Fragilização democrática e poder judiciário: A cumplicidade dos juízes no processo de ascensão de autoritarismos no Brasil
Bruno de Almeida Passadore e Camila Rodrigues Forigo
1 INTRODUÇÃO
O presente estudo terá por objeto de análise a fragilização da democracia brasileira a partir da eleição de Jair Bolsonaro, fazendo-se um paralelo entre referida situação e o papel do Judiciário. Será apresentada hipótese acerca das razões para ascensão do líder demagogo, bem como será abordado um movimento em sentido próximo, de viés altamente oligárquico e autoritário no âmbito da magistratura nacional.
2 DEMOCRACIA BRASILEIRA EM CRISE
O projeto de 30 anos atrás de “construir uma sociedade livre, justa e solidária”; “garantir o desenvolvimento nacional”; “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º da CF) parece algo vazio ante a persistente pobreza, desigualdade e injustiça que se mantém no Brasil.
Por natural, criou-se uma situação de desencanto em relação às previsões contidas na Constituição, colocando-a em claro descrédito social. A população, claramente insatisfeita com a situação, em detrimento de buscar novas formas de aprofundamento democrático para fazer valer a plena dignidade sua e de seus pares, iniciou um ciclo de desconfiança do regime iniciado em 1988.([1])
A resposta buscada, portanto — e incentivada por uma inadequada influência de alguns setores políticos insatisfeitos com uma série de privilégios que a Constituição lhes ceifou (ou deveria tê-lo) —, foi a tolerância com a exclusão e violações a direitos.
Afinal, sendo a sociedade uma organização artificial, pela qual uma ordem é gerada com o fito de estabelecer as bases políticas necessárias para que a sociedade se desenvolva em sua plenitude (SADEK, 2003, p. 18), o descompromisso com a factibilidade dos direitos sociais abre espaço para descontentamentos e buscas por alternativas fora do marco constitucional.
Como lembra Dahl, “a existência de convicção bastante disseminada entre cidadãos e líderes, incluindo as convicções nas oportunidades e nos direitos necessários para a democracia”, é algo que aumenta substancialmente as chances de sucesso de um regime democrático (DAHL, 2001, p 63). Consequentemente, a descrença nesses paradigmas, ocasionada por uma falha da organização política em garanti-los, é um fator de abertura para autoritarismo.
A crise da democracia brasileira deu mostras de evidente recrudescimento com a ascensão de Jair Bolsonaro à presidência. Alçou-se ao mais importante cargo da administração pública personagem claramente descomprometido com as balizas normativas e com padrões internacionais de Direitos Humanos; que levanta dúvidas sobre a legitimidade do sistema político brasileiro; nega legitimidade aos seus oponentes; encoraja a violência; e mostra clara propensão a restringir direitos e garantias fundamentais (FOLHA DE S. PAULO, 2018). Assim, possível, a partir do escólio de Levitsky e Ziblatt, classificá-lo como demagogo autoritário com tendências a subverter a ordem e romper com o pacto democrático (LEVITSKY; ZIBLATT, 2018, p. 33/34).
Historicamente, a literatura especializada igualmente justifica a ascensão de diversos totalitarismos em solo europeu na primeira metade do século XX a partir da incapacidade dos regimes liberais do entreguerras em fazer frente às crises econômicas do período e que levaram diversos países à bancarrota juntamente com seus cidadãos (MAZOWER, 2001, p. 19).
Utilizando-se de paradigma weberiano, cria-se uma situação pela qual fragilizam-se as características da dominação predominantemente burocrática na realidade do país, e em lugar de uma forma de organização baseada na universalidade das normas e capazes de conferir impessoalidade ao poder, se inaugura um movimento em prol de um regime sem limites. Essa nova organização política, fundada no carisma de alguém e não mais nas leis ou Constituição, legitima-se em uma fonte de poder extracotidiana livre de controle e, assim, capaz de realizar uma ligação direta entre o líder e o povo. Nesse aspecto, à liderança carismática é conferida a possibilidade de derrubar o passado e, de forma revolucionária, garantir-lhe a eficiência necessária para solucionar as mazelas que afligem a sociedade e incapazes de serem resolvidas pelas bases políticas tradicionais em ruínas. ([2])
3 O JUDICIÁRIO NESTA CRISE
Na mesma linha da crise democrática apresentada, entende-se que, na atual conjuntura, os órgãos jurídicos se aristocratizaram e, no momento, também assumiram uma postura de fragilização constitucional. Sem querer esgotar o tema, por ser este o local inadequado para tanto, analisa-se brevemente estudo do então magistrado Sérgio Moro acerca da operação Mani Pulite.
Percebe-se nítido descontentamento do autor com o arcabouço normativo, sendo proposto seu desrespeito com ares de “democrático”; e justificam-se medidas de legalidade duvidosa, uma vez que, na atualidade e supostamente, a “magistratura ganhou uma espécie de legitimidade direta da opinião pública” (MORO, 2004, p. 57) e, para mantê-la, deveria corresponder a anseios midiáticos([3]) ainda que isso signifique promover o vazamento de informações sigilosas, a deslegitimação do parlamento, a busca de delações e confissões ao arrepio da ordem jurídica, entre outras coisas (MORO, 2004, p. 58/59). Afinal, “a opinião pública favorável também demanda que a ação judicial alcance bons resultados” (MORO, 2004, p. 61) e, para corresponder a essa nova fonte de legitimidade da atuação jurisdicional — aparentemente não mais decorrente da Constituição —, diversas garantias constitucionais e a forma processualmente estabelecida para formação da culpa — como a observância da presunção de inocência — tornam-se claros empecilhos.([4]) Ademais, a intolerância com o iter processual penal ao arrepio da lei e da Constituição poderia criar um sentimento popular de que o Poder Judiciário seria inadequado ao combate à corrupção e ao crime organizado.([5])
Por outro lado, como se pode facilmente perceber, ao agir de acordo com a opinião pública e sob uma suposta ligação direta entre a sociedade e o juiz, insere-se na esfera de dominação, e tal qual na situação do líder carismático, um claro fator de irracionalidade e, portanto, de abertura para novas formas de organização que usualmente são exploradas pelo líder político demagogo e de tendência autoritária (WEBER, 1982. p. 256/257). Veja-se curiosa passagem doutrinária de José Renato Nalini:
“É isso o que deve legitimar um novo protagonismo do juiz contemporâneo. Protagonismo saudável, consequência da possível anomalia da função legislativa. […] O ordenamento torna-se opaco e o juiz lhe devolverá transparência, à medida que vier a aplicá-lo. O juiz, que já foi considerado braço do Executivo, é hoje o braço legitimador do Legislativo. É exclusivamente seu o desafio de fazer conformar a vontade da lei à vontade da Constituição”. (NALINI, 2008, p. 323)
Há, assim, um sistema jurídico no qual os supostos garantidores da ordem jurídica parecem entender que sua autoridade decorre de algum instituto supralegal e hipotético, acima das leis, oligopolizador e que eleva o magistrado a um local social acima do restante da sociedade. Preso nesse paradigma, e antes de ser guardião da lei, “o juiz torna-se o próprio juiz da lei” (MAUS, 2000, p. 196). Não surpreende, portanto, que o poder público deixa de se considerar submetido à Constituição, enquanto programa normativo vinculante, libertando-o a exercer poder sobre a sociedade de forma não racional e não universalizante.
Nesse corpo aristocratizado e altamente politizado, há forte dificuldade de ascensão de certos setores da comunidade, apesar de uma igualdade formal no acesso ao cargo de magistrado pela via de concurso público. A respeito, de acordo com pesquisa do Conselho Nacional de Justiça de 2018, “o perfil da magistratura no país é de homem, branco, católico, casado e com filhos” (CNJ, 2018), havendo, inclusive, uma acentuação do caráter masculino dos juízes brasileiros a partir de 2011, momento em que o percentual de juízas caiu para índices pré-década de 1990 (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2018, p. 9).
Em face dessa situação, conclui-se, na linha de Mosca, que prevalece como critério de acesso à burocracia brasileira — notadamente no Judiciário — menos o conteúdo e mais a submissão a um procedimento formal de aquisição de conhecimento. Para o autor siciliano, uma avaliação baseada unicamente na capacidade intelectual poderia ser prejudicial a esta elite e, assim, seria mais adequado conferir importância a um processo mais facilmente controlado no intuito de reproduzir a elite dominante (MOSCA, 1939. p. 58/59).
Assim, reproduz-se um perfil de escalonamentos sociais que se fecha para certos setores e facilita acesso a outros, permitindo um movimento inercial das elites que, apesar de alterações dos ocupantes de cargos a título individual, mantém no poder uma mesma ordem de privilegiados ainda que sob um discurso democrático. ([6])
Disso, e em que pese um pretenso projeto democrático, pelo qual a sociedade atuaria sobre si mesma, programando suas leis e Constituição, as quais, por sua vez, programariam e garantiriam a sua necessária execução através das decisões de órgãos administrativos, consolidou-se um movimento contrário. Os órgãos administrativos acabam por funcionalizar o Estado, direcionando, a seu juízo, a forma como a organização administrativa será imposta ao cidadão, e, assim, deslocam o procedimento de legitimação da sociedade para si próprios em evidente prejuízo à democracia (HABERMAS, 1990, 107/108; FAORO, 2012).
Percebe-se, tanto em Nalini como em Moro, clara tendência antidemocrática quando, em detrimento de reconhecer uma origem legal de seu cargo, que lhe confere anterioridade e legitimidade, abre-se a possibilidade para uma “ligação direta” e, nesse aspecto, extracotidiana entre o magistrado e os dominados, tal qual na análise da ascensão do líder carismático anteriormente exposto.
Ademais, enquanto representante dos novos “donos do poder”, não é surpreendente que o mesmo magistrado que entende que o Judiciário deva conferir legitimidade ao Legislativo, através de interpretações ousadas (para dizer o mínimo) de suas leis, defenda a concessão de auxílio de legitimidade duvidosa aos seus pares, uma vez que estes “tem 27% de desconto de Imposto de Renda” e “precisam comprar ternos e não dá para ir toda hora para Miami comprar terno”.([7]) Afinal, ante essa aristocratização que não é limitada por uma racionalização impessoal, abre-se espaço para, em detrimento de um paradigma baseado na igualdade intrínseca — imperiosa em uma democracia —, um sistema que tem por característica a superioridade de uma casta que funcionaliza as instituições (DAHL, 2001, p. 75/81).
4 CONCLUSÃO
A hipótese apresentada não se mostra de simples defesa e exposição, mormente em razão das limitações de espaço a que foi proposto o corrente estudo. Por outro lado, entende-se delimitada a sintonia entre o discurso que venceu as eleições presidenciais de 2018 e aquele gestado no Judiciário em mesmo período, algo que pode ser inclusive corroborado pela ascensão de Sérgio Moro ao cargo de ministro de Estado.
O argumento é o mesmo. Esgarçamento da racionalidade no modo de dominação e busca por fatores extracotidianos que supostamente possam conferir melhor resposta aos anseios populares. Como aponta Mosca, um dos principais fatores de manutenção ou mudança de elites é a sintonia ou não delas com as forças políticas dominantes que se apresentam (MOSCA, 1939. p. 65/66). Assim, ao ganhar campo um conjunto de ideias que procuram fragilizar uma ordem jurídica racional democrática, nada surpreendente que a mesma elite que comanda a estrutura jurídica que teria por pressuposto a manutenção dessa ordem milite em favor de uma estrutura irracional e altamente oligárquica, exatamente na linha dessas novas forças.
Bruno de Almeida Passadore
Doutorando em Teoria do Estado e Mestre em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Defensor Público no Estado do Paraná.
Camila Rodrigues Forigo
Doutoranda em Direito Penal pela Universidade de São Paulo. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Secretária da Comissão da Advocacia Criminal da OAB-PR. Conselheira do IBDPE. Advogada Criminal.
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Notas
([1]) Vale registrar que esse dilema é corroborado por pesquisas recentíssimas sobre a opinião dos brasileiros acerca da democracia nacional e suas instituições. Segundo pesquisa veiculada em 04 junho de 2019 pelo jornal Folha de S. Paulo, 60% dos brasileiros consideram a democracia a melhor forma de governo, mas 58% se dizem insatisfeitos com as instituições, colocando o Brasil entre os últimos colocados em comparações com outros países em que a mesma questão foi avaliada (CONFIANÇA na democracia sobe, mas insatisfação com seu funcionamento é de 58%).
([2]) “A dominação carismática, como algo extracotidiano, opõe-se estritamente tanto à dominação racional, especialmente a burocrática, quanto à tradicional, especialmente a patriarcal e a patrimonial ou estamental. Ambas são formas de dominação especificamente cotidianas — a carismática (genuína) é especificamente o contrário. A dominação burocrática é especificamente racional no sentido da vinculação a regras discursivas analisáveis; a carismática é especificamente irracional no sentido de não conhecer regras. A dominação tradicional está vinculada aos precedentes do passado e, nesse sentido, é também orientada por regras; a carismática derruba o passado (dentro de seu âmbito) e, nesse sentido, é especificamente revolucionária. Esta não conhece a apropriação do poder senhorial ao modo de uma propriedade de bens, seja pelo senhor seja por poderes estamentais. Só é ‘legítima’ enquanto e na medida em que ‘vale’, isto é, encontra reconhecimento, o carisma pessoal, em virtude de provas; e os homens de confiança, discípulos ou sequazes só lhe são ‘úteis’ enquanto tem vigência sua confirmação carismática.” (WEBER, 1999, p. 160).
([3]) “[A] opinião pública, como ilustra o exemplo italiano, é também essencial para o êxito da ação judicial. […] Enquanto ela [a atuação judicial] contar com o apoio da opinião pública, tem condições de avançar e apresentar bons resultados” (MORO, 2004, p. 57 e 61).
([4]) “A presunção de inocência, no mais das vezes invocada como óbice a prisões pré-julgamento, não é absoluta, constituindo apenas instrumento pragmático destinado a prevenir a prisão de inocentes. […] Tal construção representa um excesso liberal com uma pitada de ingenuidade.” (MORO, 2004, p. 61).
([5]) “Em alguns casos, de fato, a descoberta de ilegalidade disseminada provoca críticas ao sistema judicial no sentido de que este estaria sendo inadequado para combater a corrupção.” (MORO, 2004, p. 62).
([6]) O perfil dos magistrados brasileiros é de pessoas com família de altíssima educação e originárias dos estratos sociais mais elevados; e tal oligopolização vem apresentando tendências de acentuação nos últimos anos. (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2018. p. 15).
([7]) Fazemos referência à entrevista do então Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, José Renato Nalini, à TV Cultura, defendendo a instituição do famigerado auxílio-moradia a juízes e promotores. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=AbrQc22CJE0>. Acesso em: 28 jun. 2019.
* Artigo publicado originalmente no Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), São Paulo, edição 322, set. 2019, p. 34 – 36[i].
([i]) O artigo publicado foi originalmente publicado no Boletim do IBCCRIM e, diante das decisões recentes do Supremo Tribunal Federal acerca da incompetência e parcialidade do ex-Juiz Federal Sérgio Moro na condução dos processos da denominada “Operação Lava Jato”, os autores entenderam relevante a republicação do artigo.
Este artigo reflete a opinião de seus autores e não necessariamente a opinião do IBDPE.
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Ação contra perda de direitos políticos por improbidade administrativa irá direto ao Plenário
Fonte: STF
O ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu levar para julgamento definitivo pelo Plenário a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6678, ajuizada pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), contra dispositivos da Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992) que prevê a perda de direitos políticos do agente público que praticar ato de improbidade. O relator dispensou a análise do pedido de liminar e adotou o rito do artigo 12 da Lei das ADIs (Lei 9.868/1999).
O PSB pretende que a incidência da suspensão dos direitos políticos prevista no inciso II do artigo 12 da lei se restrinja aos atos dolosos (intencionais) e que seja excluída a expressão “suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos” do inciso III. Segundo argumenta, essa previsão é desproporcional, pois trata de forma semelhante os casos em que houve a intenção de cometer o ato de improbidade e os casos em que, por alguma razão, tenha havido mero atraso numa prestação de contas, por exemplo. A seu ver, a perda dos direitos políticos é uma "sanção excepcionalíssima", somente autorizada nos casos de atos dolosos de improbidade administrativa que configurem lesão ao erário e enriquecimento ilícito.
A ação foi distribuída ao ministro Marco Aurélio por prevenção, pois relatou a ADI 4295, julgada improcedente pelo Plenário. Ao adotar o rito abreviado para o julgamento da ação, o relator pediu manifestação da Advocacia-Geral da União (AGU) e parecer da Procuradoria-Geral da República (PGR).
AR/CR//CF
Leia mais:
12/5/2010 - Supremo julga improcedente ADI contra Lei de Improbidade Administrativa
É correto falar em “efetividade” de programas de compliance?
Por Alexandre Knopfholz e Gustavo Britta Scandelari
- Introdução
Os programas de prevenção corporativa que sigam as balizas legais aplicáveis, que sejam planejados e implementados por profissionais comprometidos e experientes e que, consequentemente, logrem cultivar hábitos de transparência, fiscalização e ética muito provavelmente serão “efetivos” (ou melhor, como se explicará a seguir, serão idôneos[1]). Mas ainda parece que sejam poucos. Quando existem, resultam muito mais de um alinhamento moral pré-existente de pessoas específicas envolvidas no projeto e cujo mérito e esforço contínuos são decisivos do que de uma hipotética política público-privada bem-sucedida de fomento ao cumprimento da lei.
Profissionais que atuam no dia-a-dia junto a empresas de todos os portes no Brasil têm condições de afirmar, por experiência própria, que, infelizmente, a maioria das corporações ainda não se preocupa de fato com a adoção de programas de prevenção de ilícitos que realmente os previnam. Os objetivos normalmente têm sido ligados ao mero atendimento formal de obrigações legais ou à maximização do lucro[2]. Especialmente após a entrada em vigor da Lei 12.846/13[3], houve um aumento da demanda pelo serviço de auditorias, advogados e outros profissionais de compliance, mas o escopo principal tem sido ostentar a mera aparência de que há uma cultura de cumprimento – para, com isso, criar possível defesa quando ilícitos forem praticados – e não verdadeiramente conquistá-la para evitar ilícitos. Esses problemas foram constatados em pesquisas e estatísticas[4].
Hoje, é indiscutível que o objetivo principal de um programa idôneo deve ser a prevenção de ilícitos, juntamente com a sua detecção e o trato adequado dos que porventura já tenham ocorrido[5]. Umas das razões para isso é que “os casos de uma criminalidade praticada na empresa são (...) os mais complexos em termos de atribuição de responsabilidades”[6] e os programas (ao menos aqueles considerados idôneos da forma como se propõe na presente pesquisa) poderão contribuir para a correta delimitação e imputação de responsabilidades quando a autoria do fato for nebulosa[7].
2. O problema da ideia de efetividade dos programas de prevenção
Tanto os Estados que promulgam leis disciplinando programas de prevenção de ilícitos em empresas quanto os empresários que investem em tais programas provavelmente compartilham ao menos uma mesma preocupação: como saber se eles estão funcionando? A maior parte das leis[8] e das pesquisas[9] sobre o assunto tem utilizado a ideia de efetividade (ou, com menor frequência, eficácia). O problema é que esse vocábulo indica a necessidade de verificabilidade empírica, ou seja, exige que a prevenção seja provada como algo incontestável[10]. Se tal comprovação ocorrer, o programa será efetivo. Seria algo como a avaliação de um colete à prova de balas: feito o teste, se ele repelir o projétil, será efetivo. Se não o repelir, será inefetivo e, consequentemente, inútil para seu desiderato.
O problema, no que diz respeito aos programas de prevenção, é uma questão de lógica: não importa quão bom seja o programa, assim que ocorrer algum ilícito cuja prevenção estava no seu escopo, ele será imediatamente considerado falho e, obviamente, inefetivo[11]. Se ilícitos não forem evitados para sempre naquela empresa, o programa inevitavelmente será classificado, em algum momento, como falho. Como não parece que atos ilícitos serão completamente erradicados da realidade corporativa mundial a partir da implementação de ferramentas como os programas corporativos de prevenção, é só uma questão de tempo até que todo e qualquer programa seja considerado inefetivo (haja vista o significado do vocábulo). Por outro prisma, os ilícitos que tenham sido evitados também jamais são passíveis de registro, afinal, nunca ocorreram. Hipoteticamente, é possível que determinado programa de prevenção tenha repelido mais de 1.000 ilícitos em um período de 6 meses. Todavia, bastará a realização de apenas 1 ilícito para que ele sofra a pecha de inefetivo.
Uma má consequência do uso da ideia de efetividade para descrever programas de compliance é a avaliação pessimista a respeito da sua utilidade para o fim a que se propõe. Afinal, se nunca prevenirá ilícitos de forma efetiva, por que investir tempo e dinheiro neles? Mas a verdade é que não se pode avaliar programas de prevenção como se avaliam coletes balísticos. Estes são passíveis de verificação empírica de efetividade (projéteis são sempre uma realidade visível, assim como a eventual perfuração da veste de proteção), aqueles, não (ilícitos podem não ter repercussão natural alguma e são fenômenos dependentes de interpretação subjetiva). É impossível constatar materialmente ilícitos que foram evitados[12], assim como é impossível sustentar que algum programa de prevenção evitará ilícitos com 100% de sucesso, isto é, será infalível para sempre[13].
Então, é preciso alterar o foco da análise, adaptando-o à natureza do funcionamento dos programas de prevenção. Se é impossível medir a sua efetividade material, parece possível identificar fatores que apontem para a sua potencialidade de prevenção. Ou melhor: a sua idoneidade[14]. Tratando especificamente do quesito idoneidade de programas de compliance, a literatura aponta que “a idoneidade refere-se a que o conjunto de medidas de gestão adotado seja adequado e suficientemente compreensivo e abrangente para potencialmente ser efetivo, de maneira que a pessoa jurídica adote todas as medidas recomendadas como boas práticas administrativas para o seu específico tipo de negócio ou atividade, considerando todas as suas características”[15]. GUTIÉRREZ PÉREZ já sinalizou, quanto aos programas de compliance, que a sua “eficácia deve ser entendida desde um prisma da idoneidade genérica para evitar” a prática de ilícitos[16]. Isso é algo como dizer que eficácia, em tema de programas de compliance, significa idoneidade. Mas isso é uma proposição para que se altere o significado das palavras por mera convenção. E a rigor, é uma admissão de que se deve utilizar a noção de idoneidade em lugar de eficácia. O ideal seria adotar logo a palavra idoneidade, o que é mais simples e adequado do que lutar contra o significado das palavras “eficácia” ou “efetividade”, defendendo que o programa continua efetivo mesmo não tendo prevenido o ilícito[17].
Qualquer programa será inefetivo quando deixar de evitar um ilícito, mas um programa inefetivo não necessariamente será inidôneo, porque a sua idoneidade se refere à sua capacidade de evitar o ilícito e não à evitação concreta dele. Embora hipotética, essa capacidade é mensurável segundo critérios objetivos passíveis de verificação, o que torna a idoneidade não somente um conceito adequado para descrever programas de prevenção, como também útil para avaliá-los objetivamente.
A rigor, é possível que haja controle dos riscos de ilícitos em empresas sem o emprego formal ou profissional de métodos de prevenção, por serem desnecessários em ambiente no qual bons valores e as leis aplicáveis já são respeitados[18]. Porém, corporações de grande porte provavelmente não conseguirão criar e manter ambiente com riscos controlados sem o uso de um programa de prevenção complexo, formal e materialmente implementado. Nesse caso, quando tal programa atende aos requisitos objetivos de idoneidade, torna-se mais provável que determinados crimes sejam realmente evitados. Assim, a idoneidade corresponde, na prática, a um grau determinável de probabilidade de evitar ilícitos apresentado pelos programas de compliance. E isso pode ser aferido segundo critérios objetivos.
- Conclusão
Muitas vezes, a utilização equivocada de vocábulos é um erro puramente linguístico, formal e de pouco interesse prático. Outras, porém, são semânticas e geram sensível alteração na realidade fática. A distinção entre efetividade e idoneidade do compliance encontram-se no segundo grupo. É incorreto falar que determinado programa de prevenção é efetivo. A efetividade, como exposto, importa a conclusão de que jamais poderiam ocorrer ilícitos no âmbito da pessoa jurídica. E tal é impossível de prever. Daí porque se falar em um programa idôneo de compliance. Tal terminologia permite, a um só tempo, concluir pela adoção concreta de medidas de prevenção de ilícitos no âmbito das empresas, sem, contudo, desgarrar-se da inevitável realidade fática de que crimes podem ocorrer em qualquer lugar, por mais cautela que se possa ter. Não se pode crucificar uma empresa que adota programa idôneo de compliance mas, ainda assim, não evitou a ocorrência de delitos. O entendimento contrário seria o mesmo que apontar falhas da vítima que toma todas as cautelas para não ser assaltado e, ainda assim, o é.
Alexandre Knopfholz Mestre em Direito empresarial e cidadania pelo Centro Universitário Curitiba, especialista em advocacia criminal pela Faculdade Cândido Mendes, formado em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba e integrante do Escritório Professor René Dotti.
Gustavo Britta Scandelari é advogado e coordenador do Núcleo de Direito Criminal do Escritório Professor René Dotti.
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SANEN, Claudia; DONEGÁ, Guilherme. Integridade e empresas no Brasil. In Transparência Internacional Brasil. São Paulo: Associação Transparência e Integridade, maio de 2018.
SCANDELARI, Gustavo Britta. Compliance como prevenção idônea de crimes e sua compatibilização com a intervenção mínima. In COUTINHO, Aldacy Rachid; BUSATO, Paulo César (Org.). Aspectos jurídicos do compliance. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; SAAD-DINIZ, Eduardo. Compliance, Direito Penal e Lei Anticorrupção. São Paulo: Saraiva, 2015.
[1] A ideia de trabalhar com a característica de idoneidade para programas de prevenção já havia sido exposta, de modo superficial, em SCANDELARI, Gustavo Britta. Compliance como prevenção idônea de crimes e sua compatibilização com a intervenção mínima. In COUTINHO, Aldacy Rachid; BUSATO, Paulo César (Org.). Aspectos jurídicos do compliance. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 114-118.
[2] É claro que não se considera errado, de forma alguma, que o empreendimento privado tenha o lucro como objetivo, muito pelo contrário. O que se quer criticar é a comum (e nociva) extensão do objetivo de auferir lucro ao programa de integridade em si.
[3] GABARDO, Emerson; CASTELLA, Gabriel Morettini e. A nova lei anticorrupção e a importância do compliance para as empresas públicas que se relacionam com a Administração Pública. In A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, a. 15, n. 60, abr./jun. 2015, Fórum, p. 133.
[4] SANEN, Claudia; DONEGÁ, Guilherme. Integridade e empresas no Brasil. In Transparência Internacional Brasil. São Paulo: Associação Transparência e Integridade, maio de 2018, p. 1-56 (Disponível em https://transparenciainternacional.org.br/assets/files/conhecimento/relatorio-executivo.pdf. Acesso em 5 de janeiro de 2021): “ainda que as maiores empresas brasileiras tenham implementado sistemas de governança e controles internos nos anos recentes, cobrindo os riscos mais relevantes de corrupção, é preciso saltar ao próximo nível e garantir que esses esforços sejam efetivos na criação de um contexto de integridade” (p. 32); “as grandes empresas, por iniciativa própria ou por necessidade, têm dado mais importância a políticas anticorrupção. Divulgam seus códigos de conduta e criam suas áreas de compliance. Mas com frequência inaceitável tais iniciativas ficam no discurso, no papel” (p. 39); KMPG, “Maturidade do Compliance no Brasil”, final do 3º trimestre de 2015: pesquisa com aproximadamente 200 empresas de 19 segmentos e com receitas, em sua maioria, de R$ 300 milhões a R$ 5 bilhões, concluiu que a maturidade dos programas é baixa. Quase a totalidade das empresas não possuía infraestrutura mínima nos setores de compliance, investem muito pouco neles, não adotavam políticas anticorrupção claras e não utilizavam nenhum sistema de monitoramento, revisão e avaliação da efetividade dos programas (p. 7-12). Quase 20% das empresas respondentes sequer possuía programas de prevenção de ilícitos. Disponível em https://cndl.org.br/politicaspublicas/wp-content/uploads/estudos/Maturidade%20do%20compliance%20no%20Brasil%20-%20KPMG.pdf. Acesso em 4 de fevereiro de 2021. A mesma pesquisa foi realizada cerca de 1 ano depois, com cerca de 250 empresas, e os resultados se mantiveram quase iguais (KPMG, “Maturidade do Compliance no Brasil, 2ª edição”, 2º semestre de 2016, p. 11. Disponível em http://www.amchamrio.com.br/srcreleases/compliance2_bernardo_lemos.pdf. Acesso em 5 de julho de 2019). Em sua 3ª edição, realizada em 2017 e 2018, com 450 empresas das mais variadas dimensões e áreas, os resultados, embora melhores, continuavam preocupantes: 27% das empresas não possuíam estruturas dedicadas de compliance; 36% não contavam com recursos suficientes para o programa; 23% admitiram não possuir independência e autonomia; 53% não adotavam rotinas de monitoramento; 54% não executavam due diligence para a contratação de terceiros; 20% afirmaram não dispor de canal de ética/denúncias; 10% não possuem código de ética ou de conduta (Disponível em http://www.sistemafiep.org.br/rede-compliance/uploadAddress/Pesquisa_Maturidade_do_Compliance_3ed_2018_web_pag[83801].pdf. Acesso em 4 de fevereiro de 2021, p. 1-8); ICTS, Protiviti (Brasil), “Nível de Maturidade de Compliance das Organizações Brasileiras”, Edição 2017. Informações coletadas entre janeiro de 2016 e abril de 2017, com 1.417 participações: “principais resultados da pesquisa: (...) 45% das empresas participantes apresentaram nível de Compliance baixo, situação de extrema exposição a riscos de corrupção”. Disponível em https://www.protiviti.com/sites/default/files/pesquisa_de_maturidade_de_compliance_2017_0.pdf. Acesso em 5 de fevereiro de 2021; indicando um baixo nível de cultura ética em muitas empresas do setor financeiro (pesquisa com 1.122 organizações conduzida de 2014 a 2018): Direzione – transformando organizações, “Cultura ética no ambiente organizacional brasileiro”, julho de 2019, p. 1-4. Disponível em https://www.direzione.com.br/publicacoes. Acesso em 5 de fevereiro de 2021.
[5] GARCÍA CAVERO, Percy. Criminal compliance. Lima: Palestra Editores, 2014, p. 38-39.
[6] SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; SAAD-DINIZ, Eduardo. Compliance, Direito Penal e Lei Anticorrupção. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 250-251.
[7] Em Direito penal, a literatura reconhece a necessidade de se criar novos marcos teóricos que possam se adaptar à realidade das grandes organizações econômicas, especialmente no que diz respeito a técnicas de imputação por conta das dificuldades de se identificar com precisão a autoria (MOURA, Bruno. Autoria e participação nos crimes desde a empresa: bases para um modelo de imputação individual. In Revista CEPPG, a. 15, n. 25, 2º sem./2011. Catalão: Centro de Ensino Superior de Catalão, 2011, p. 63).
[8] P.ex.: “effective compliance and ethics program” (EUA, Sentencing Guidelines, §8B2.1); “con eficacia” (Código Penal espanhol, art. 31 bis, item 2, 1ª); “l'efficace attuazione del modello” (Decreto Legislativo italiano 231/01, 7º, 4); “evaluación continua de la efectividad del programa” (Lei argentina 27.401/17, art. 23, VIII); “a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica” (Lei brasileira 12.846/13, art. 7º, VIII); “efetividade do gerenciamento dos riscos e dos processos de governança” (Lei brasileira 13.303/16, art. 9º, §3º, II); “demonstrar a efetividade de seu programa de governança” (Lei brasileira 13.709/18, art. 50, II); “deberá establecer métodos para la aplicación efectiva del modelo de prevención” (Lei chilena 20.393/09, art. 4º, item 4, a); “el fiscal o el juez (...) verifican la efectiva implementación y funcionamiento del modelo de prevención” (Lei peruana 30.424/16, art. 18).
[9] KLINKHAMMER, Julian. On the dark side of the code: organizational challenges to an effective anti-corruption strategy. In Crime, Law and Social Change, v. 60, issue 2, Springer Netherlands (Science+Business Media Dordrecht), jul./2013, p. 191-208. Disponível em https://doi.org/10.1007/s10611-013-9453-y. Acesso em 2 de fevereiro de 2021; STUCKE, Maurice E. In Search of Effective Ethics & Compliance Programs. 39 Journal of Corporation Law 769, University of Tennessee Legal Studies, Research Paper n. 229, 2014. Disponível em https://dx.doi.org/10.2139/ssrn.2366209. Acesso em 2 de março de 2021; MUÑOZ DE MORALES ROMERO, Marta. Programa de cumplimiento “efectivos” en la experiencia comparada. In ZAPATERO, Luis Arroyo; NIETO MARTÍN, Adán (direct.). El Derecho Penal Económico en la era Compliance. Valencia: Tirant lo Blanch, 2013, p. 211-230; GONZÁLEZ DE LEÓN BERINI, Arturo. Autorregulación empresarial, ordenamento jurídico y derecho penal. Pasado, presente y futuro de los límites jurídico-penales al libre mercado y a la libertad de empresa. In SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María (Dir.); MONTANER FERNÁNDEZ, Raquel (Coord.). Criminalidad de empresa y Compliance – Prevención y reacciones corporativas. Barcelona: Atelier, 2013, p. 91-100; PORTO, Roberta Guasti; CASSINI, Flavia Tiemi Oshiro; LIMA, Mirela Clemente Pedrosa. Reflexões sobre a efetividade de programas de compliance. In OLIVEIRA, Luis Gustavo Miranda de. Compliance e integridade: aspectos práticos e teóricos, v. 2. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019, p. 467- 604; HAYASHI, Felipe Eduardo Hideo. Corrupção – combate transnacional, compliance e investigação criminal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 183; CARDOSO, Débora Motta. Criminal compliance na perspectiva da lei de lavagem de dinheiro. São Paulo: LiberArs, 2015, p. 180; MOTA FILHO, Humberto E. C.; CASAGRANDE, Morgana Ana Daler. Desenvolvendo programas de integridade efetivos: como traduzir o compliance para as pequenas e médicas empresas? In OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende; ACOCELLA, Jéssica (Coord.). Governança corporativa e compliance. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 25-45.
[10] Pesquisa no verbete “efetividade” em HOUAISS ELETRÔNICO, versão monousuário 3.0, jun./09, Instituto Antônio Houaiss. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. O conteúdo do software corresponde à edição integral do Dicionário Houaiss da língua portuguesa.
[11] FERRAZ, Sérgio Valladão. Programas de compliance: é possível aferir sua efetividade para fins penais? In COUTINHO, Aldacy Rachid; BUSATO, Paulo César (Org.). Aspectos jurídicos do compliance. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 138-143.
[12] O problema, aqui, é similar ao da ação devida em crimes omissivos: consumado o crime, ele somente pode ser imputado ao autor por uma causalidade hipotética, haja vista que, como a ação devida não foi praticada (eis a omissão punível), nunca se sabe se ela realmente teria sido apta para evitar o resultado típico.
[13] Se não por essa abordagem lógica em programas de prevenção de ilícitos em empresas, pela conhecida análise sociológica segundo a qual uma certa porção de ilícitos é absolutamente natural em coletividades humanas e, por isso, não é passível de total eliminação: “o crime não é encontrado somente na maioria das sociedades desta ou daquela espécie, mas em todas as sociedades de todos os tipos. Não existe nenhuma em que não haja alguma forma de criminalidade. Esta muda de feitio, os atos qualificados de crimes não são os mesmos em toda a parte; mas sempre e em todo lugar houve homens que se conduziram de maneira a chamar sobre si a repressão penal. Se, pelo menos, a taxa de criminalidade, isto é, relação entre a quantidade anual de crimes e a quantidade de população tendesse a baixar (...) poder-se-ia acreditar que, embora permanecendo fenômeno normal, tendia, porém, o crime a perder esse caráter. Não temos, porém, nenhuma razão que nos permita crer na realidade desta regressão. Diversos fatos pareceriam antes demonstrar a existência de um movimento em sentido inverso. Desde o começo do século, a estatística nos fornece o meio de seguir a marcha da criminalidade; ora, ela aumentou em toda a parte. (...) Não existe, pois, fenômeno que apresente da maneira mais irrecusável todos os sintomas da normalidade, uma vez que aparece estreitamente ligado às condições de toda a vida coletiva” (DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. 8.ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977, p. 57). Vide, também, DURKHEIM, Émile. O suicídio, estudo de sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 438-496, em que o autor se referiu especialmente ao homicídio e sua relação com as espécies de suicídio que estudou.
[14] Vocábulo que pode ser sinônimo de “apto, capaz” e que significa a presença de “qualidades para desempenhar determinada atividade”. Pesquisa no verbete “idôneo” em HOUAISS ELETRÔNICO, versão monousuário 3.0, jun./09, Instituto Antônio Houaiss. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
[15] FERRAZ, Sérgio Valladão. Programas de compliance: é possível aferir sua efetividade para fins penais? In COUTINHO, Aldacy Rachid; BUSATO, Paulo César (Org.). Aspectos jurídicos do compliance. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 145. Itálicos não originais. Acolhendo-se a crítica de FERRAZ (idem, p. 146), não se defende, aqui, que o programa de compliance possa servir, por si só e com base legal expressa, como causa excludente de imputação ou de pena (as possibilidades negociais estão de fora dessa análise). Mas o fato de que existem leis que o permitam e autores que defendam o compliance como impeditivo de responsabilização criminal não significa que o qualificativo idôneo seja inadequado. O que FERRAZ parece ter criticado foi o uso da expressão citada como argumento para impedir a punição dos responsáveis e não a sua utilidade para, tão só, avaliar a qualidade dos programas. Afinal, “(...) é possível analisar a idoneidade e a cultura de cumprimento da pessoa jurídica para fins de influir na fixação da dosimetria da pena” (idem, p. 147).
[16] GUTIÉRREZ PÉREZ, Elena. Los compliance programs como eximente o atenuante de la responsabilidad penal de las personas jurídicas. la “eficacia e idoneidad” como principios rectores tras la reforma de 2015. In GÓMEZ DE LA TORRE, Ignacio Berdugo (Dir.). Revista General de Derecho Penal (RGDP), n. 24, novembro de 2015. Madrid: Iustel, 2015, p. 20-21. Disponível em https://www.iustel.com/v2/revistas/buscador.asp?id=8&autor=%22Mar%C3%ADa%20Guti%C3%A9rrez%20Rodr%C3%ADguez%22. Acesso em 3 de março de 2021.
[17] Como se vê, p.ex., em GOENA VIVES, Beatriz. Responsabilidad penal y atenuantes en la persona jurídica. Madrid: Marcial Pons, 2017, p. 364.
[18] GARCÍA CAVERO, Percy. Criminal compliance. Lima: Palestra Editores, 2014, p. 99.
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Majorante sobressalente pode entrar na primeira ou segunda fase da dosimetria, decide Terceira Seção
Fonte: STJ
Em julgamento que pacificou a interpretação do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre o tema, a Terceira Seção concluiu ser possível o deslocamento de majorante sobejante (aquela ainda não considerada) para a primeira ou segunda fases da dosimetria da pena. Para o colegiado, além de não contrariar o sistema trifásico da dosimetria, a movimentação da majorante sobressalente é a medida que melhor se compatibiliza com o princípio da individualização da pena.
"De fato, as causas de aumento (terceira fase), assim como algumas das agravantes, são, em regra, circunstâncias do crime (primeira fase) valoradas de forma mais gravosa pelo legislador. Assim, não sendo valoradas na terceira fase, nada impede sua valoração de forma residual na primeira ou na segunda fases", afirmou o ministro Reynaldo Soares da Fonseca, cujo entendimento prevaleceu.
A discussão teve origem em ação na qual uma mulher foi condenada, com outros réus, à pena de dez anos e seis meses de reclusão, em regime inicial fechado, por roubo triplamente circunstanciado – pena que foi reduzida para sete anos e cinco meses pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso.
Por meio de habeas corpus, a defesa alegou que a existência de três causas especiais de aumento não justificaria a elevação da pena-base, da pena intermediária e, ainda, o aumento na terceira fase, em virtude do chamado bis in idem.
Patamares fixos e variáveis
O ministro Reynaldo Soares da Fonseca apontou inicialmente que não seria possível dar tratamento diferenciado às causas de aumento que trazem patamares fixos e àquelas que indicam patamares variáveis, por considerar não haver utilidade nessa distinção.
"Ademais, eventual conclusão no sentido de que uma interpretação a contrario sensu do parágrafo único do artigo 68 do Código Penal ensejaria a valoração de todas as causas de aumento, previstas no mesmo dispositivo legal, na terceira fase da dosimetria, albergaria, a meu ver, não apenas as majorantes com patamar variável, mas igualmente aquelas com patamar fixo", apontou.
O ministro explicou que o sistema trifásico prevê que a fixação da pena observará três fases: a fixação da pena-base, por meio da valoração das circunstâncias judiciais previstas no artigo 59 do Código Penal; a fixação da pena intermediária, com a valoração das atenuantes e agravantes; e a pena definitiva, após a incidência das causas de diminuição e aumento da pena.
Segundo o ministro, o Código Penal não atribui um patamar fixo às circunstâncias judiciais nem às agravantes, as quais devem ser aplicadas de acordo com o livre convencimento motivado do magistrado, observando-se os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Já as causas de aumento e de diminuição, observou, apresentam os patamares que devem ser utilizados, de forma fixa ou variável.
Perigo de subversão
Por essas razões, da mesma forma como ocorre em relação ao crime qualificado, quando já existe uma circunstância que qualifique ou eleve a pena – o que autoriza a alteração do preceito secundário ou a incidência de fração de aumento –, o ministro considerou correto o entendimento majoritário do STJ segundo o qual as qualificadoras e majorantes sobressalentes podem ser valoradas na primeira ou na segunda fases.
De acordo com Reynaldo Soares da Fonseca, assim como a existência de mais de uma qualificadora não modifica o tipo penal nem o preceito secundário, a existência de mais de uma majorante também não permite a retirada da fração de aumento do mínimo, tendo em vista que, conforme a Súmula 443 do STJ, o aumento na terceira fase do cálculo da pena no crime de roubo circunstanciado exige fundamentação concreta, não sendo suficiente a mera indicação do número de majorantes.
"Nesse contexto, a desconsideração, tanto da qualificadora quanto da majorante sobressalentes, acaba por violar o princípio da individualização da pena, o qual preconiza a necessidade de a pena ser aplicada em observância ao caso concreto, com a valoração de todas as circunstâncias objetivas e subjetivas do crime".
Além disso, para o ministro, a desconsideração das majorantes sobressalentes na dosimetria acabaria por subverter a própria individualização da pena prevista pelo legislador, uma vez que as circunstâncias consideradas mais graves, a ponto de serem tratadas como causas de aumento, seriam desprezadas.
Com base nesses parâmetros, o ministro fez nova dosimetria da pena e fixou a condenação da ré em sete anos de reclusão, em regime inicial fechado.
Leia o acórdão.
O avanço do populismo, também no direito penal
Helena Regina Lobo da Costa[2]
Há alguns anos, o estudo do populismo vem ganhando espaço entre cientistas políticos, filósofos e juristas, embora nem todos usem a mesma terminologia. Há quem se refira a novos despotismos (Norberto Bobbio), poderes selvagens (Luigi Ferrajoli) ou fascismo eterno (Umberto Eco). Ainda que multifacetada, essa nova forma de autoritarismo - mais dissimulada e sofisticada do que aquela que se apresentou no século passado - tem alguns traços comuns.
Como primeira característica, o populismo não busca romper com a democracia e instalar uma ditadura, embora isso possa acontecer em algumas de suas manifestações. Seu objetivo é estabelecer, no âmbito de uma democracia formal, um conteúdo autoritário, que se choca com a Constituição, com a ideia de sociedade plural e com a separação de Poderes.
Em segundo lugar, o populismo não é uma ideologia, no sentido de ter um conteúdo político específico. Ele não é necessariamente de direita, como no caso do fascismo. Pode ser de direita, esquerda, centro, etc.
O historiador Federico Finchelstein, grande estudioso do tema, identifica, ademais, outros elementos. O populismo centra-se num líder messiânico e carismático, que é a personificação do povo. Nesse processo, há uma homogeneização do povo como uma única entidade, bem como a configuração dos antagonistas políticos como inimigos, os antipovo, a antipátria, os traidores da nação. O populismo é, portanto, profundamente avesso ao pluralismo e à tolerância e, por consequência, contrário à democracia e à política.
Há, ainda, questões importantes no âmbito da comunicação. Por exemplo, a internet criou bolhas informacionais, com relevância crescente de influenciadores digitais e grupos de WhatsApp. Muitas vezes, o discurso simplista falso é mais compreensível do que as explicações científicas e complexas sobre a realidade. Além disso, o debate público tem com frequência dificuldade de distinguir o que é legítima manifestação da liberdade de expressão e o que é puro negacionismo, criando espaços de equivalência para a desinformação e diluindo os parâmetros do que é verdade. Cria-se um ambiente de desorientação, para além da desinformação.
Frente a isso, o populismo oferece uma suposta segurança, por meio de soluções simples, ainda que erradas. Ele trabalha, assim, com os sentimentos e as paixões humanas, com o medo e as ansiedades contemporâneas.
O populismo não afeta apenas a política. Está, por exemplo, cada vez mais presente no campo penal, já que a legislação penal é uma ferramenta particularmente apta para a concretização do populismo. Se o objetivo é construir uma artificial homogeneidade social, com a ideia do “nós contra eles”, nada melhor do que usar o direito penal para castigar os inimigos, os párias, os antipovo.
O direito penal perde, assim, sua pretensão de racionalidade e efetividade, transfigurando-se em puro terror, vingança e brutalidade. Os contrários no campo da política são transformados em inimigos e tratados pela via penal – não há mais arena de discussão, não há tolerância; há combate, há luta, há guerra.
Ao tentar mobilizar sentimentos humanos, o populismo busca despertar a vingança e o ódio, fazendo com que as pessoas desejem mais polícia, mais prisões, mais penas e, até mesmo, mais armas em suas mãos. E, uma vez mais, esse discurso é apresentado como hegemônico.
Assim, criam-se normas cada vez mais rigorosas no âmbito penal. Tudo é válido para combater o inimigo, o diferente, o outro. Ocorre que todas essas alterações fundam-se na busca por votos, não em evidências e efetividade. Predomina, então, o engano. Finge-se que o recrudescimento penal resolverá todos os problemas, mas obviamente não resolve, pois a premissa é falsa. Há, então, nova decepção dos destinatários do discurso, que passam a desacreditar ainda mais a política e a democracia.
O populismo no direito penal aprofunda, portanto, as causas de surgimento do próprio populismo na política, criando um círculo vicioso.
Se na Europa tais ferramentas penais recrudescidas e inefetivas voltam-se sobretudo ao imigrante, eleito como o inimigo pelo populismo, no Brasil o direito penal aprofunda sua aplicação socialmente desigual e racista. O populismo penal torna-se ferramenta do processo contínuo de dominação de grupos minoritários.
Além disso, volta-se aos crimes de colarinho branco apenas para, qualitativamente, enfraquecer as garantias penais. As consequências serão suportadas, no entanto, sobretudo pela clientela de sempre do sistema penal.
Ademais, a concepção de que quem pratica crime é inimigo leva ao descaso pela situação carcerária, se é que é possível piorar algo que já alcançara o absoluto desrespeito à dignidade da pessoa. As prisões são o inferno, pois para lá não vão cidadãos, vão apenas os párias, os antipovo.
O populismo é um fenômeno disseminado e recorrente na contemporaneidade, manifestando-se de forma particularmente grave no direito penal. Para combatê-lo com eficácia, é imprescindível identificá-lo bem, suas características e seus efeitos.
Este trabalho foi publicado, originalmente, em O Estado de São Paulo, edição do dia 2 de janeiro de 2021, p. A2.
[2] Professora livre docente da Faculdade de Direito da USP e advogada
Este artigo reflete a opinião de seus autores e não necessariamente a opinião do IBDPE.
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Sexta Turma reafirma invalidade de prova obtida pelo espelhamento de conversas via WhatsApp Web
Fonte: STJ notícias
Por unanimidade, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) aplicou entendimento já firmado pelo colegiado para declarar que não podem ser usadas como provas as mensagens obtidas por meio do print screen da tela da ferramenta WhatsApp Web.
No caso julgado, o recorrente e dois corréus foram denunciados por corrupção. Segundo os autos, telas salvas com diálogos obtidos a partir do WhatsApp Web teriam sido entregues por um denunciante anônimo aos investigadores.
No recurso, a defesa alegou constrangimento ilegal sob o argumento de que os prints das telas de conversas, juntados à denúncia anônima, não têm autenticidade por não apresentarem a cadeia de custódia da prova.
O relator, ministro Nefi Cordeiro, afirmou que não se verificou ilegalidade no inquérito policial, pois, após a notícia anônima do crime, foi adotado um procedimento preliminar para apurar indícios de conduta delitiva, antes de serem tomadas medidas mais drásticas, como a quebra do sigilo telefônico dos acusados.
Sem vestígios
O magistrado esclareceu que as delações anônimas não foram os únicos elementos utilizados para a instauração do procedimento investigatório, como demonstra o acórdão proferido no RHC 79.848.
Ele apontou ainda que o tribunal estadual não entendeu ter havido quebra da cadeia de custódia, pois nenhum elemento probatório demonstrou adulteração das conversas espelhadas pelo WhatsApp Web ou alteração na ordem cronológica dos diálogos.
No entanto, destacou o relator, a Sexta Turma tem precedente que considera inválida a prova obtida pelo espelhamento de conversas via WhatsApp Web, porque a ferramenta permite o envio de novas mensagens e a exclusão de mensagens antigas ou recentes, tenham elas sido enviadas pelo usuário ou recebidas de algum contato, sendo que eventual exclusão não deixa vestígio no aplicativo ou no computador (RHC 99.735).
"As mensagens obtidas por meio do print screen da tela da ferramenta WhatsApp Web devem ser consideradas provas ilícitas e, portanto, desentranhadas dos autos", afirmou.
Ao dar parcial provimento ao recurso, apenas para declarar nulas as mensagens obtidas por meio do print screen da tela do WhatsApp Web, o ministro determinou o desentranhamento dessas mensagens dos autos, mantendo as demais provas produzidas após as diligências prévias que a polícia realizou em razão da notícia anônima.
O número deste processo não é divulgado em razão de segredo judicial.
O controle jurisdicional de legalidade da oferta de acordo de não persecução penal pelo Ministério Público
Por Guilherme Brenner Lucchesi e Marlus H. Arns de Oliveira
O acordo de não persecução penal (ou "ANPP") foi um dos institutos inseridos na legislação processual penal brasileira com a reforma parcial promovida pela lei 13.964/19. O objetivo é o de evitar a instauração de processo nos casos em que o Ministério Público e o imputado chegarem a um acordo quanto à continuidade da persecução penal, deixando a acusação de oferecer denúncia - mesmo presentes as condições da ação e pressupostos processuais - e, em troca, o imputado cumpre as condições ajustadas entre as partes, proporcionais e compatíveis com a infração imputada, definidas a partir de rol não taxativo previsto em lei.
Da leitura do art. 28-A do CPP, em sua redação atual, percebe-se que o instituto tem natureza dúplice: ao mesmo tempo que constitui um benefício processual, inserido no contexto das medidas despenalizadoras, difundidas principalmente a partir dos benefícios da lei 9.099/95, também possui inequívoca natureza de acordo, estando o ANPP no seio da justiça penal negocial. Em outras palavras, o ANPP não pode ser limitado a uma espécie de "suspensão condicional do processo qualificada", havendo no ANPP um componente negocial adicional.
Na suspensão condicional do processo, a lei estabeleceu a possibilidade de evitar o prosseguimento de um processo criminal a partir do cumprimento de condições obrigatórias, durante um período de prova por prazo pré-estabelecido. É menos acordo e mais termo de adesão, com reduzida margem de negociação entre as partes. Nesses termos, o Ministério Público não se coloca como parte, mas como autoridade que concede ao acusado um benefício - ainda que não tenha discricionariedade para tanto1, visto que não há margem para negociação, exceto para suplicar eventual redução de exigência de alguma das condições obrigatórias.
Essa não é a realidade do ANPP. Ainda que o art. 28-A estabeleça algumas condições, não o faz em numerus clausus. A própria cabeça do artigo estabelece que as condições ali previstas podem ser ajustadas isolada ou cumulativamente, havendo no inciso V a previsão de qualquer condição proporcional e compatível com a infração imputada. A proposta feita pelo Ministério Público não pode ser um simples "é pegar ou largar" empurrado ao imputado. O texto da norma prevê que as condições a serem cumpridas devem ser ajustadas, isso é, objeto de discussão e concordância numa relação horizontal entre partes - ou, no mínimo, menos verticalizada que a relação autoridade-réu.
Dessa maior abertura estabelecida legalmente ao ANPP, poder-se-ia chegar a duas percepções equivocadas.
Primeiro, diante da aplicação do ANPP a crimes mais graves do que aqueles que admitem suspensão condicional do processo (estes, pena mínima de até um ano; aqueles, pena mínima de até quatro anos), poder-se-ia concluir que o benefício acordado entre as partes no ANPP não poderia superar o benefício concedido ao imputado no sursis processual. Não há qualquer previsão legal nesse sentido. O ANPP foi criado mais de duas décadas depois da suspensão condicional do processo, após a oportunidade de diagnosticar a prática desses acordos no âmbito dos Juizados Especiais Criminais. Tendo a oportunidade de estabelecer condições obrigatórias, o legislador caminhou em sentido contrário, rumo às práticas negociais no processo penal. Desse modo, a única limitação que se impõe ao ANPP é a impossibilidade de sua celebração nos casos que admitem transação penal (art. 76, Lei n.º 9.099). Em cabendo tanto a celebração de ANPP quanto de suspensão condicional do processo, estando o imputado disposto a confessar a prática da infração - o que nem sempre será o caso -, é possível que as partes ajustem os termos de ANPP, somente se impondo aos limites estreitos da suspensão condicional caso o acordo não evolua. Apesar de suas aparentes similitudes, como se vê, trata-se de institutos distintos, não se podendo querer aplicar automaticamente ao ANPP toda a jurisprudência desenvolvida quanto à prática da suspensão condicional do processo.
Segundo, e mais importante: em que pese a sua natureza de acordo e as suas diferenças com a suspensão condicional do processo, não se pode concluir haver qualquer discricionariedade por parte do Ministério Público na propositura do acordo. Ainda que não se possa falar propriamente em um direito público subjetivo do imputado a uma proposta de ANPP, também não há como se reconhecer qualquer discricionariedade ampla ao órgão oficial da acusação no processo penal. Muito se fala - inclusive na Exposição de Motivos do "Pacote Anticrime", que deu origem à lei 13.964/192 - na mitigação do sistema da obrigatoriedade da ação penal a partir dos modelos de justiça penal negocial. Essa suposta mitigação, contudo, não resulta em um sistema de livre oportunidade e conveniência. Como qualquer agente estatal, o órgão ministerial é regido pela garantia de legalidade (art. 37, Constituição), tendo a sua atuação vinculada às disposições legais3. Em outras palavras, do mesmo modo que o MP não pode promover o arquivamento nos casos em que estiverem reunidos os requisitos para propositura da ação penal, também não pode deixar de propor acordo de não persecução penal quando os requisitos legais para a formação de uma proposta estiverem presentes4. Não há liberalidade nessa atuação, tratando-se de um poder-dever do Ministério Público a oferta de alguma proposta de ANPP, proporcional e compatível com a infração imputada, uma vez preenchidos os requisitos legais.
Quanto à atuação jurisdicional, o CPP prevê a necessidade de homologação do ANPP por parte do magistrado, devendo-se verificar não apenas a voluntariedade do acordo (art. 28-A, § 4.º), como também a adequação das propostas e condições ajustadas, não podendo ser insuficientes nem tampouco abusivas (art. 28-A, § 5.º). Essa verificação pelo juiz é obrigatória e independe de qualquer provocação pelas partes, sendo obrigatória no rito do ANPP instituído por lei. Caso o juiz entenda por não homologar o acordo, deve devolver ao Ministério Público e à defesa para nova negociação (art. 28-A, § 5.º), cabendo a continuidade das investigações ou o oferecimento de ação penal apenas quando não for possível chegar a algum ajuste adequado entre as partes (art. 28-A, §§ 7.º e 8.º).
A jurisdição não tem a possibilidade de se imiscuir no acordo, sendo esse um negócio jurídico processual entre partes. Contudo, diante da necessidade de homologação, é possível que o juiz analise os termos acordados, a fim de verificar se cumprem o requisito da legalidade. É certo que o juízo, portanto, controla a legalidade na fase de celebração do ANPP. Defende-se que deve também controlar a legalidade na fase anterior, de formação da proposta.
Tratando-se a formulação de proposta do ANPP de poder-dever do Ministério Público, eventual não oferta de proposta deve ser motivada e apresentada ao imputado e também ao juízo. Neste caso, o CPP faculta ao imputado a possibilidade de remessa dos autos à instância revisional do Ministério Público, na forma do art. 28 do CPP (art. 28-A, § 14).
Há, nesse ponto, uma importante questão de direito intertemporal. O § 14 do art. 28-A remete ao art. 28 do CPP, que, em sua redação dada pela lei 13.964/19, prevê a possibilidade de revisão da atuação do membro do Ministério Público pela instância de revisão ministerial. Havendo sido suspensa a eficácia do art.28 pela decisão em Medida Cautelar nos autos de Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.298 pelo STF, resta a dúvida se a remissão contida no § 14 do art. 28-A pode se referir ao texto com eficácia suspensa ou se deve remeter à redação anterior (atualmente vigente) do art. 28 do CPP. Na redação anterior, não se falava em pedido de revisão à instância revisional do MP, mas sim na possibilidade de o juízo remeter os autos ao Procurador Geral do Ministério Público nos casos em que discordar da opinio delicti. Está-se, portanto, diante de dois modelos distintos de atuação: uma, voluntária, promovida pela parte interessada na revisão dos atos do membro do Ministério Público; outra, de ofício, realizada pelo juízo no controle da legalidade da atuação ministerial.
Ainda que o art. 28 tenha sido reformado pela lei 13.964/19 - e apesar da suspensão de eficácia determinada pelo STF -, entende-se que o controle de legalidade da atuação ministerial é dever do juízo, independentemente de provocação por parte do interessado. É dever dos magistrados, nos termos do inciso I do art. 35 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei Complementar n.º 35/1979) "cumprir e fazer cumprir, com independência, serenidade e exatidão, as disposições legais e os atos de ofício". Desse modo, não há que se falar em excesso ou mesmo em violação do princípio dispositivo - princípio reitor de um sistema processual acusatório - na atuação de ofício do magistrado para assegurar o cumprimento da lei no processo. Este dever se traduz na necessidade de avaliar o cumprimento do poder-dever atribuído ao membro do Ministério Público de iniciar as tratativas de acordo de persecução penal com o imputado nos casos em que estiverem presentes os requisitos legais.
Nesses casos, caberá ao juízo, uma vez percebendo-se o cabimento de ANPP e a ausência de sua propositura pelo Ministério Público, intimar a acusação para que ofereça proposta ou decline os motivos pelos quais entende incabível a sua oferta. Nessas circunstâncias - devendo-se buscar sempre ouvir o imputado, em homenagem à garantia de contraditório -, em não havendo justificativa pelo Ministério Público ou, em a considerando insuficiente, deverá o juízo remeter os autos à instância de revisão ministerial - ou ao Procurador Geral, caso a eficácia da nova redação do art. 28 siga suspensa -, a fim de que seja verificada a possibilidade ou não de celebração de acordo.
Com o intuito de assegurar às partes o seu devido papel no processo, o que cabe ao juízo é tão somente a verificação de legalidade da atuação ministerial. Tratando-se o acordo de não persecução penal de um negócio jurídico processual entre partes, não poderá, sob hipótese alguma, o magistrado fazer as vezes do órgão acusatório, estabelecendo ele próprio condições e/ou benefícios ao imputado, ou mesmo determinando a alteração de alguma cláusula ajustada entre as partes.
Com isso espera-se conferir maior racionalidade aos acordos de não persecução penal, reforçando o seu caráter negocial e conferindo maior participação do imputado na negociação das condições a serem ajustadas. O controle de legalidade pela jurisdição sobre a atuação do Ministério Público nessa fase não retira do imputado o seu protagonismo na negociação. Ao contrário, reforça que na justiça penal negocial a atuação do Ministério Público não se dá como autoridade, mas, sim, como parte.
1 A jurisprudência consagrou o entendimento de que é poder-dever do Ministério Público oferecer proposta de sursis processual quando o acusado preencher os requisitos legais.
2 BRASIL. Ministério da Justiça e da Segurança Pública. EM 00014/2019 MJSP. 31 jan. 2019.
3 "O MP está obrigado a proceder e dar acusação por todas as infracções de cujos pressupostos - factuais e jurídicos, substantivos e processuais - tenha tido conhecimento e tenha logrado recolher, na instrução, indícios suficientes. Não há pois lugar para qualquer juízo de «oportunidade» sobre a promoção e prossecução do processo penal, antes esta se apresenta como um dever para o MP [...] A actividade do MP desenvolve-se, em suma, sob o signo da estrita vinculação à lei (daí o falar-se em princípio da legalidade) e não segundo considerações de oportunidade de qualquer ordem, v.g. política (raison d'État) ou financeira (custas)." FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito processual penal. Coimbra: Coimbra, 1974. reimp. 2004. p. 126-127.
4 Não se analisa nesta oportunidade como se devem dar os acordos de não persecução penal nos casos de ação penal de iniciativa privada, o que será objeto de reflexão futura.
Guilherme Brenner Lucchesi é advogado sócio da Lucchesi Advocacia. Presidente do IBDPE. Doutor em Direito pela UFPR. Master of Laws pela Cornell Law School. Professor de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da UFPR.
Marlus H. Arns de Oliveira é advogado, sócio do escritório Arns de Oliveira & Andreazza Advogados Associados e doutor em Direito pela PUC/PR.
Este artigo reflete a opinião de seus autores e não necessariamente a opinião do IBDPE.
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A Lava-Jato e a Incompetência do Juízo de Curitiba: Crônica de uma morte anunciada
Caio Marcelo Cordeiro Antonietto [1], Rafael Guedes de Castro[2] e Douglas Rodrigues da Silva[3]
Na última segunda-feira, dia 08 de março, o Ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, por meio de uma decisão monocrática, entendeu pela anulação de todos os atos decisórios que tenham vinculação aos casos criminais instaurados contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva perante a 13ª Vara Federal de Curitiba. De modo sintético, a decisão indicou que o Juízo curitibano seria incompetente para processar e julgar os processos em questão, cabendo aplicar o artigo 567 do Código de Processo Penal e, nessa medida, remeter os autos para o juízo competente com a invalidação de todas as decisões.
A decisão causou surpresa de um modo geral. Mas de inesperada não tinha nada.
Desde o início da rumorosa “Operação Lava-Jato”, nos idos de 2015, advogados, professores e juristas questionam a supercompetência construída pela 13ª Vara Federal de Curitiba. De uma operação que teve como mote casos de desvios na Petrobras, tornou-se uma espécie de juízo-geral universal para todos os casos que se entendia conveniente deixar nas mãos da denominada “Força-Tarefa”. Em certo momento da operação, acusadores e julgador passaram a elastecer todos os critérios de competência apresentados pelo Código de Processo Penal – especialmente o critério territorial do artigo 70 – como forma de justificar a manutenção dos processos em Curitiba. Tudo de modo ilegítimo.
A partir da tratativa de diversos acordos de colaboração premiada, em que eram narrados fatos que nada se relacionavam à Subseção Judiciária de Curitiba, os membros da “Força-Tarefa”, com a chancela do Juízo, passaram a aforar as ações no Paraná, justificando a existência de uma imaginada competência instrumental, em que era preciso manter todas as apurações sobre corrupção nas mãos da 13ª Vara Federal de Curitiba, considerando que a prova demandava o julgamento conjunto. E isso, obviamente, demonstrou um contexto bastante peculiar. Tudo era visto como “Fase da Operação Lava-Jato”, numa jogada de marketing e simbolismo que intentava justificar contextos peculiares, como, por exemplo, casos em que os fatos tinham se dado supostamente no Rio de Janeiro, Brasília, São Paulo ou mesmo Manaus, mas que seriam julgados por Curitiba, mesmo que nada tenha ocorrido nesta cidade. Construiu-se, efetivamente, um “Juízo Universal”.
E o próprio Supremo Tribunal Federal já estava atento a essa situação. A título de exemplo, no ano de 2016, no Inquérito 4130, o Ministro Dias Toffoli assentou que “o fato de polícia judiciária e Ministério Público denominarem de ‘fases da operação lava-jato’ uma sequência de crimes diversos [...], não se sobrepõe às normas disciplinadoras da competência”, o fator preponderante não poderia deixar de ser as regras de competência da Constituição ou do CPP. A grande preocupação do STF, naquela ocasião, era evitar transformar a 13ª Vara Federal de Curitiba em um Juízo Universal, como de fato ocorria.
Veja-se que a operação, de casos da Petrobras, passou também a investigar supostos desvios na Caixa Econômica Federal, na Transpetro, no Instituto Lula, no BNDES, em fundos do FGTS, enfim, tudo passou a ser “Lava-Jato”. O critério de competência utilizado? A mera conveniência da acusação. Era evidente, portanto, que um dia a competência seria rechaçada nas instâncias superiores. E isso aconteceu.
Embora não se negue a existência de critérios de extensão da competência, estava bastante claro que boa parte deles não existiam nos casos da “Lava-Jato”.
O primeiro deles, a chamada competência territorial, evidentemente não existia, como dito, chegou-se a um ponto da operação em que os casos simplesmente eram julgados em Curitiba sem ter a ver com nada que tenha ocorrido nesta cidade. Inclusive, exemplificativo eram os cumprimentos de mandados de prisão ou busca e apreensão. Rememorando algumas fases da operação, pode-se ver que boa parte dos casos não tinha nada a ser cumprido em Curitiba, a prisão ou a busca e apreensão se davam, por exemplo, em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília. Ao juízo paranaense incumbia “apenas julgar”. Evidentemente isso não se coaduna com o chamado Juiz Natural, pois o critério de definição da competência era pura conveniência, não a lei.
Poder-se-ia pensar na prevenção. Como é sabido, o juízo que primeiro conhece da matéria torna-se prevento para processar e julgar todos os casos conexos. O problema, porém, está no fato de que a prevenção é critério subsidiário. Ou seja, somente caberia falar em juiz prevento se todos os outros critérios se mostrassem insuficientes. E não era o caso. Em primeiro plano, é certo que a competência territorial, por si, afastava qualquer outro. Mas, ainda assim, seria preciso que o Juízo de Curitiba fosse igualmente competente aos demais, para só então falar em prevenção. E isso não existia.
Mas e as colaborações premiadas, não tornariam o juízo prevento? Não. Inclusive, essa também já era a opinião do Supremo Tribunal Federal lá em 2016, quando entendeu que acordos de colaboração premiada não podem ser vistos como fatores de definição de competência, até porque não são processos autônomos, mas um meio de se obter provas. O simples fato de existir um acordo homologado em determinado juízo não o torna prevento para todos os outros.
Resta o argumento da conexão probatória. Ora, não seria o caso de manter a competência da 13ª Vara Federal de Curitiba como forma de manter a prova hígida, considerando que poderia existir uma relação entre a prova de um e outro fato? Ao que tudo indica não. Como é notório, o foco da “Operação Lava-Jato” sempre esteve ligado aos supostos desvios na Petrobras, então, se muito, a conexão probatória deveria se limitar a casos relativos à petrolífera. O problema é que isso não foi respeitado. Como apontado, em determinado momento, toda e qualquer acusação de corrupção ou acordos escusos passou a ser visto como atribuição da “Operação Lava-Jato”, construindo-se um falso argumento de que a “corrupção sistêmica” merecia ser tratada de modo unificado. De um dia para outro, tinha-se todo tipo de caso criminal no Juízo de Curitiba. Um completo vilipêndio às regras do processo penal. Estava nítido que havia uma verdadeira “escolha” do julgador, por pura conveniência.
Isso restou claro nas decisões recentes do Supremo Tribunal Federal, com especial destaque ao Inquérito 4215, à Petição n. 8090 e ao Habeas Corpus n. 198.081. Em todos os casos, então relativos à TRANSPETRO, o STF reforçou que houve verdadeira deturpação das regras de competência por parte da “Força-Tarefa da Lava-Jato”.
Em suma, a polêmica competência da 13ª Vara Federal de Curitiba não é um tema novo no Supremo Tribunal Federal.
Por isso mesmo não surpreende a decisão tomada pelo Ministro Edson Fachin no último dia 08 de março. O Ministro nada fez além de reforçar o que já estava claro desde muito tempo: a 13ª Vara Federal de Curitiba se arvorou na condição de juízo universal incabível segundo as regras constitucionais e legais. O resultado disso, gostemos ou não, deve ser a nulidade dos atos decisórios, pois há claro vício de origem em todos eles. A decisão, nesse ponto, é bastante correta – sem qualquer incursão em outros debates, como suspeição do Juízo.
De tudo isso, merece friso a reafirmação das regras do jogo e o recado claro de que não se combate qualquer crime que seja sem que se respeite a moldura legal. Enquanto houver vista grossa aos desmandos judiciais por pura simpatia a seus resultados, o preço a se pagar será sempre a perda dos atos. Que reste evidente, a partir de agora, que investigações e acusações somente são bem feitas quando amparadas nas regras e que estas, na verdade, não são meras formalidades ou preciosismo, mas a garantia de que a decisão será justa
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[1] Doutorando em Direito pela Universitat Pompeu Fabra. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Advogado Criminal. Sócio do Antonietto e Guedes de Castro Advogados Associados.
[2] Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Professor de Direito Processual Penal. Advogado Criminal. Sócio do Antonietto e Guedes de Castro Advogados Associados.
[3] Mestre em Direito pelo Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Especialista em Direito Penal e Processo Penal pelo Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Professor de Direito Penal. Advogado Criminal. Sócio do Antonietto e Guedes de Castro Advogados Associados.
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STJ tranca ação penal baseada em interceptação telefônica ilegal
Fonte: Migalhas
O paciente foi preso em flagrante e denunciado, juntamente com oito corréus, como incurso nos crimes de tráfico e associação para o tráfico de drogas. Aos argumentos de nulidade por cerceamento de defesa e inépcia da denúncia, a defesa impetrou habeas corpus na Corte de origem, que denegou a ordem.
Ao STJ, a defesa do paciente alegando constrangimento ilegal na manutenção da ação penal. Sustentou que a defesa técnica foi cerceada em razão de conduta do magistrado singular, que se omitiu na entrega de mídia solicitada, bem como não analisou "grampo ilegal".
O relator, ministro Sebastião Reis Jr. lembrou julgamento de sua relatoria (HC 159.711), que foi concedida a ordem para anular todas as provas decorrentes da interceptação telefônica considerada ilegal na ação penal que o paciente responde.
"Não verifiquei terem as acusações partido de uma fonte independente, estando contaminadas pelas interceptações declaradas ilegais, pois somente por meio dos diálogos captados foi possível identificar os acusados, sua movimentação entre Estados da Federação, bem como os locais de desembarque, incluindo a movimentação financeira do grupo e a atribuição de cada um na referida associação, cujo vínculo estável e permanente também só foi possível evidenciar por meio da interceptação telefônica."
Diante disso, concedeu a ordem para trancar a ação penal em relação a todos os acusados, sem prejuízo de que outra denúncia seja oferecida pelo Ministério Público, desde que calcada em elementos de informação que não decorram das interceptações declaradas ilegais.
O advogado João Vieira Neto, do escritório João Vieira Neto Advocacia Criminal, autor da impetração do habeas corpus, comentou a decisão.
"É de se notar que o socorro ao direito à ampla defesa, a despeito de ter sido acolhido após 13 anos dos fatos, não foi tardio, pois a Justiça foi realizada dentro da legalidade, com prisma em respeito as garantias constitucionais e respeitadas as regras do jogo processual penal."
- Processo: HC 167.152
Veja o acórdão.
A prisão preventiva na Lei Anticrime: Primeiro ano de vigência e sua interpretação jurisprudencial
Por Bibiana Fontella[1] e Gabriela Kreusch Serena[2]
Em janeiro de 2020 entrou em vigor a Lei n. 13.964/2019, popularmente conhecida como lei anticrime, a qual alterou vários dispositivos do Código Penal, Código de Processo Penal e Leis Penais Especiais.
Quando da tramitação do projeto anticrime, divulgação da ideia de que seria uma lei que reformaria o sistema penal brasileiro e traria como consequência a repressão criminal como uma das suas características essenciais. Contudo, várias das propostas do então Ministro da Justiça Sergio Moro deixaram de ser aprovadas, assim, em alguns pontos, a lei deixou de ter o caráter repressivo e assumiu a postura garantista da lei penal. Entretanto, em outros aspectos Lei Anticrime aderiu o clamor popular e endureceu vários dispositivos penais.
Um dos pontos de grande relevância da Lei Anticrime foi a inclusão do art. 3º-B e seguintes no Código de Processo Penal, instituindo o tão esperado juiz de garantias. Contudo, tais dispositivos foram objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade (n. 6298, 6299, 6300 e 6305), tendo tido vigência da lei suspensa por decisão do então Vice-Presidente do STF, Ministro Luiz Fux, por prazo indeterminado. Também, foi objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade o teor do art. 28, caput, do Código de Processo Penal, com alteração da Lei n. 13.964/2019. No qual o arquivamento de inquérito policial seguiria novas tramitação: a vítima, o investigado e a autoridade policial seriam comunicados e os autos encaminhados para a instância de revisão ministerial para fins de homologação. Da mesma forma, este dispositivo legal teve sua vigência suspensa pela decisão do então Vice-Presidente do STF, Ministro Luiz Fux. Todavia, até o presente ambos os dispositivos permanecem com eficácia suspensa.
Entretanto, aqui analisa-se apenas as alterações promovidas pela Lei Anticrime no instituto da Prisão Preventiva, bem como a interpretação jurisprudencial:
A prisão preventiva – que é um dos temas mais sensíveis no cenário brasileiro – foi objeto de alterações pelo Lei n. 13.964/2019, fazendo consta no art. 315 do CPP a necessidade de fundamentação do decreto, substituição, negação da prisão preventiva, inclusão de indicação, na decisão, de existência de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada.
O §2º do referido artigo traz os requisitos para exclusão de fundamentação das decisões que versem sobre a prisão preventiva: i) limitar-se à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; ii) empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; iii) invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; iv) não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; v) limitar-se a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; vi) deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
No tocante ao requisito da contemporaneidade nas medidas cautelares pessoais, o Superior Tribunal de Justiça entendeu no julgamento do Habeas Corpus n. 553310[3], de relatoria da Ministra Laurita Vaz, pela ofensa do princípio da contemporaneidade em razão do decurso de longo perigo de tempo entre os supostos fatos delituosos e a determinação de afastamento da paciente de cargo público.
Outra importante alteração promovida pela Lei Anticrime no tema da prisão preventiva foi a inclusão da necessária revisão periódica dos motivos ensejadores da segregação cautelar a cada 90 (noventa) dias, com a inclusão do parágrafo único no art. 316 do CPP.
Sobre a exigência de revisão periódica o Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento em Plenário no sentido de que o decurso do prazo de 90 (noventa) dias não conduziria à soltura automática do preso preventivamente. Neste sentido foi o julgamento do Habeas Corpus n. 190028[4], de relatoria da Ministra Rosa Weber.
Neste sentido, destaca-se o julgamento, em Plenário do STF, do Habeas Corpus n. 191836[5], quando da suspensão da liminar que determinou a soltura de André Rap, entendendo que a inobservância do prazo de 90 (noventa) dias para revisão da prisão preventiva não a revoga automaticamente.
[1] Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra. Professora de Direito Penal. Advogada Criminal.
[2] Acadêmica do Curso de Direito na UFPR.
[3] STJ, HC 553310/SP, Relatora Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, publicado em 17/11/2020.
[4] STF, HC 190028/SP, Relatora Ministra Rosa Weber, Primeira Turma, julgamento: 21/12/2020, publicação em 11/02/2021.
[5] STF, HC 191.826/SP, Relator Ministro Marco Aurelio, Relator para Acórdão Alexandre Moraes, Primeira Turma, julgamento em 20/11/2020.
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