Bruno de Almeida Passadore e Camila Rodrigues Forigo

 

1 INTRODUÇÃO

O presente estudo terá por objeto de análise a fragilização da democracia brasileira a partir da eleição de Jair Bolsonaro, fazendo-se um paralelo entre referida situação e o papel do Judiciário. Será apresentada hipótese acerca das razões para ascensão do líder demagogo, bem como será abordado um movimento em sentido próximo, de viés altamente oligárquico e autoritário no âmbito da magistratura nacional.

 

2 DEMOCRACIA BRASILEIRA EM CRISE

O projeto de 30 anos atrás de “construir uma sociedade livre, justa e solidária”; “garantir o desenvolvimento nacional”; “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º da CF) parece algo vazio ante a persistente pobreza, desigualdade e injustiça que se mantém no Brasil.

Por natural, criou-se uma situação de desencanto em relação às previsões contidas na Constituição, colocando-a em claro descrédito social. A população, claramente insatisfeita com a situação, em detrimento de buscar novas formas de aprofundamento democrático para fazer valer a plena dignidade sua e de seus pares, iniciou um ciclo de desconfiança do regime iniciado em 1988.([1])

A resposta buscada, portanto — e incentivada por uma inadequada influência de alguns setores políticos insatisfeitos com uma série de privilégios que a Constituição lhes ceifou (ou deveria tê-lo) —, foi a tolerância com a exclusão e violações a direitos.

Afinal, sendo a sociedade uma organização artificial, pela qual uma ordem é gerada com o fito de estabelecer as bases políticas necessárias para que a sociedade se desenvolva em sua plenitude (SADEK, 2003, p. 18), o descompromisso com a factibilidade dos direitos sociais abre espaço para descontentamentos e buscas por alternativas fora do marco constitucional.

Como lembra Dahl, “a existência de convicção bastante disseminada entre cidadãos e líderes, incluindo as convicções nas oportunidades e nos direitos necessários para a democracia”, é algo que aumenta substancialmente as chances de sucesso de um regime democrático (DAHL, 2001, p 63). Consequentemente, a descrença nesses paradigmas, ocasionada por uma falha da organização política em garanti-los, é um fator de abertura para autoritarismo.

A crise da democracia brasileira deu mostras de evidente recrudescimento com a ascensão de Jair Bolsonaro à presidência. Alçou-se ao mais importante cargo da administração pública personagem claramente descomprometido com as balizas normativas e com padrões internacionais de Direitos Humanos; que levanta dúvidas sobre a legitimidade do sistema político brasileiro; nega legitimidade aos seus oponentes; encoraja a violência; e mostra clara propensão a restringir direitos e garantias fundamentais (FOLHA DE S. PAULO, 2018). Assim, possível, a partir do escólio de Levitsky e Ziblatt, classificá-lo como demagogo autoritário com tendências a subverter a ordem e romper com o pacto democrático (LEVITSKY; ZIBLATT, 2018, p. 33/34).

Historicamente, a literatura especializada igualmente justifica a ascensão de diversos totalitarismos em solo europeu na primeira metade do século XX a partir da incapacidade dos regimes liberais do entreguerras em fazer frente às crises econômicas do período e que levaram diversos países à bancarrota juntamente com seus cidadãos (MAZOWER, 2001, p. 19).

Utilizando-se de paradigma weberiano, cria-se uma situação pela qual fragilizam-se as características da dominação predominantemente burocrática na realidade do país, e em lugar de uma forma de organização baseada na universalidade das normas e capazes de conferir impessoalidade ao poder, se inaugura um movimento em prol de um regime sem limites. Essa nova organização política, fundada no carisma de alguém e não mais nas leis ou Constituição, legitima-se em uma fonte de poder extracotidiana livre de controle e, assim, capaz de realizar uma ligação direta entre o líder e o povo. Nesse aspecto, à liderança carismática é conferida a possibilidade de derrubar o passado e, de forma revolucionária, garantir-lhe a eficiência necessária para solucionar as mazelas que afligem a sociedade e incapazes de serem resolvidas pelas bases políticas tradicionais em ruínas. ([2])

 

3 O JUDICIÁRIO NESTA CRISE

Na mesma linha da crise democrática apresentada, entende-se que, na atual conjuntura, os órgãos jurídicos se aristocratizaram e, no momento, também assumiram uma postura de fragilização constitucional. Sem querer esgotar o tema, por ser este o local inadequado para tanto, analisa-se brevemente estudo do então magistrado Sérgio Moro acerca da operação Mani Pulite.

Percebe-se nítido descontentamento do autor com o arcabouço normativo, sendo proposto seu desrespeito com ares de “democrático”; e justificam-se medidas de legalidade duvidosa, uma vez que, na atualidade e supostamente, a “magistratura ganhou uma espécie de legitimidade direta da opinião pública” (MORO, 2004, p. 57) e, para mantê-la, deveria corresponder a anseios midiáticos([3]) ainda que isso signifique promover o vazamento de informações sigilosas, a deslegitimação do parlamento, a busca de delações e confissões ao arrepio da ordem jurídica, entre outras coisas (MORO, 2004, p. 58/59). Afinal, “a opinião pública favorável também demanda que a ação judicial alcance bons resultados” (MORO, 2004, p. 61) e, para corresponder a essa nova fonte de legitimidade da atuação jurisdicional — aparentemente não mais decorrente da Constituição —, diversas garantias constitucionais e a forma processualmente estabelecida para formação da culpa — como a observância da presunção de inocência — tornam-se claros empecilhos.([4]) Ademais, a intolerância com o iter processual penal ao arrepio da lei e da Constituição poderia criar um sentimento popular de que o Poder Judiciário seria inadequado ao combate à corrupção e ao crime organizado.([5])

Por outro lado, como se pode facilmente perceber, ao agir de acordo com a opinião pública e sob uma suposta ligação direta entre a sociedade e o juiz, insere-se na esfera de dominação, e tal qual na situação do líder carismático, um claro fator de irracionalidade e, portanto, de abertura para novas formas de organização que usualmente são exploradas pelo líder político demagogo e de tendência autoritária (WEBER, 1982. p. 256/257). Veja-se curiosa passagem doutrinária de José Renato Nalini:

 

É isso o que deve legitimar um novo protagonismo do juiz contemporâneo. Protagonismo saudável, consequência da possível anomalia da função legislativa. […] O ordenamento torna-se opaco e o juiz lhe devolverá transparência, à medida que vier a aplicá-lo. O juiz, que já foi considerado braço do Executivo, é hoje o braço legitimador do Legislativo. É exclusivamente seu o desafio de fazer conformar a vontade da lei à vontade da Constituição”. (NALINI, 2008, p. 323)

 

Há, assim, um sistema jurídico no qual os supostos garantidores da ordem jurídica parecem entender que sua autoridade decorre de algum instituto supralegal e hipotético, acima das leis, oligopolizador e que eleva o magistrado a um local social acima do restante da sociedade. Preso nesse paradigma, e antes de ser guardião da lei, “o juiz torna-se o próprio juiz da lei” (MAUS, 2000, p. 196). Não surpreende, portanto, que o poder público deixa de se considerar submetido à Constituição, enquanto programa normativo vinculante, libertando-o a exercer poder sobre a sociedade de forma não racional e não universalizante.

Nesse corpo aristocratizado e altamente politizado, há forte dificuldade de ascensão de certos setores da comunidade, apesar de uma igualdade formal no acesso ao cargo de magistrado pela via de concurso público. A respeito, de acordo com pesquisa do Conselho Nacional de Justiça de 2018, “o perfil da magistratura no país é de homem, branco, católico, casado e com filhos” (CNJ, 2018), havendo, inclusive, uma acentuação do caráter masculino dos juízes brasileiros a partir de 2011, momento em que o percentual de juízas caiu para índices pré-década de 1990 (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2018, p. 9).

Em face dessa situação, conclui-se, na linha de Mosca, que prevalece como critério de acesso à burocracia brasileira — notadamente no Judiciário — menos o conteúdo e mais a submissão a um procedimento formal de aquisição de conhecimento. Para o autor siciliano, uma avaliação baseada unicamente na capacidade intelectual poderia ser prejudicial a esta elite e, assim, seria mais adequado conferir importância a um processo mais facilmente controlado no intuito de reproduzir a elite dominante (MOSCA, 1939. p. 58/59).

Assim, reproduz-se um perfil de escalonamentos sociais que se fecha para certos setores e facilita acesso a outros, permitindo um movimento inercial das elites que, apesar de alterações dos ocupantes de cargos a título individual, mantém no poder uma mesma ordem de privilegiados ainda que sob um discurso democrático. ([6])

Disso, e em que pese um pretenso projeto democrático, pelo qual a sociedade atuaria sobre si mesma, programando suas leis e Constituição, as quais, por sua vez, programariam e garantiriam a sua necessária execução através das decisões de órgãos administrativos, consolidou-se um movimento contrário. Os órgãos administrativos acabam por funcionalizar o Estado, direcionando, a seu juízo, a forma como a organização administrativa será imposta ao cidadão, e, assim, deslocam o procedimento de legitimação da sociedade para si próprios em evidente prejuízo à democracia (HABERMAS, 1990, 107/108; FAORO, 2012).

Percebe-se, tanto em Nalini como em Moro, clara tendência antidemocrática quando, em detrimento de reconhecer uma origem legal de seu cargo, que lhe confere anterioridade e legitimidade, abre-se a possibilidade para uma “ligação direta” e, nesse aspecto, extracotidiana entre o magistrado e os dominados, tal qual na análise da ascensão do líder carismático anteriormente exposto.

Ademais, enquanto representante dos novos “donos do poder”, não é surpreendente que o mesmo magistrado que entende que o Judiciário deva conferir legitimidade ao Legislativo, através de interpretações ousadas (para dizer o mínimo) de suas leis, defenda a concessão de auxílio de legitimidade duvidosa aos seus pares, uma vez que estes “tem 27% de desconto de Imposto de Renda” e “precisam comprar ternos e não dá para ir toda hora para Miami comprar terno”.([7]) Afinal, ante essa aristocratização que não é limitada por uma racionalização impessoal, abre-se espaço para, em detrimento de um paradigma baseado na igualdade intrínseca — imperiosa em uma democracia —, um sistema que tem por característica a superioridade de uma casta que funcionaliza as instituições (DAHL, 2001, p. 75/81).

 

4 CONCLUSÃO

A hipótese apresentada não se mostra de simples defesa e exposição, mormente em razão das limitações de espaço a que foi proposto o corrente estudo. Por outro lado, entende-se delimitada a sintonia entre o discurso que venceu as eleições presidenciais de 2018 e aquele gestado no Judiciário em mesmo período, algo que pode ser inclusive corroborado pela ascensão de Sérgio Moro ao cargo de ministro de Estado.

O argumento é o mesmo. Esgarçamento da racionalidade no modo de dominação e busca por fatores extracotidianos que supostamente possam conferir melhor resposta aos anseios populares. Como aponta Mosca, um dos principais fatores de manutenção ou mudança de elites é a sintonia ou não delas com as forças políticas dominantes que se apresentam (MOSCA, 1939. p. 65/66). Assim, ao ganhar campo um conjunto de ideias que procuram fragilizar uma ordem jurídica racional democrática, nada surpreendente que a mesma elite que comanda a estrutura jurídica que teria por pressuposto a manutenção dessa ordem milite em favor de uma estrutura irracional e altamente oligárquica, exatamente na linha dessas novas forças.

 


Bruno de Almeida Passadore

Doutorando em Teoria do Estado e Mestre em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Defensor Público no Estado do Paraná.

Camila Rodrigues Forigo

Doutoranda em Direito Penal pela Universidade de São Paulo. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Secretária da Comissão da Advocacia Criminal da OAB-PR.  Conselheira do IBDPE. Advogada Criminal.


FOLHA DE S. PAULO. Confiança na democracia sobe, mas insatisfação com seu funcionamento é de 58%. São Paulo, 04. Jun. 2019. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/06/confianca-na-democracia-sobe-mas-insatisfacao-com-seu-funcionamento-e-de-58.shtmll>. Acesso em: 04 jun. 2019.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Perfil sociodemográfico dos magistrados brasileiros. Brasília, 2018.

DAHL, Robert. Sobre a democracia. Brasília: Ed. UnB, 2001.

FAORO, Raymundo. Os Donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 5. ed. São Paulo: Globo, 2012. Versão e-book.

HABERMAS, Jürgen. Soberania popular como procedimento: um conceito normativo de espaço público. Trad. Márcio Suzuki. Revista do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), n. 26, mar. 1990.

LEBRUN, Gerard, O que é poder? São Paulo: Abril Cultural, 1984.

LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

MAUS, Ingebord. O Judiciário como superego da sociedade. Revista do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), n. 58, nov. 2000.

MAZOWER, Mark. Continente sombrio: a Europa do século XX. São Paulo:  Cia das Letras, 2001.

MORO, Sérgio Fernando. Considerações sobre a operação Mani Pulite. Revista CEJ, Brasília, v. 8, n. 26, jul.-set. 2004.

MOSCA, Gaetano. The rulling class. Londres: Mcgraw-Hill Book Company, 1939.

NALINI, José Renato. A rebelião da toga. 2. ed. .Campinas: Millennium, 2008.

SADEK, Maria Tereza. Nicolau Maquiavel: o cidadão sem fortuna, o intelectual de virtù. In: WEFFORT, Francisco (org.). Os clássicos da política. São Paulo: Ática, 2003.

FOLHA DE S. PAULO. Veja 11 frases polêmicas de Bolsonaro. São Paulo, 06 out. 2018. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/veja-11-frases-polemicas-de-bolsonaro.shtml>. Acesso em: 02 jul. 2019.

WEBER, Max. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 1982.

_____, Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. v. 1. Brasília: Ed. UnB, 1999.


Notas

([1]) Vale registrar que esse dilema é corroborado por pesquisas recentíssimas sobre a opinião dos brasileiros acerca da democracia nacional e suas instituições. Segundo pesquisa veiculada em 04 junho de 2019 pelo jornal Folha de S. Paulo, 60% dos brasileiros consideram a democracia a melhor forma de governo, mas 58% se dizem insatisfeitos com as instituições, colocando o Brasil entre os últimos colocados em comparações com outros países em que a mesma questão foi avaliada (CONFIANÇA na democracia sobe, mas insatisfação com seu funcionamento é de 58%).

([2]) “A dominação carismática, como algo extracotidiano, opõe-se estritamente tanto à dominação racional, especialmente a burocrática, quanto à tradicional, especialmente a patriarcal e a patrimonial ou estamental. Ambas são formas de dominação especificamente cotidianas — a carismática (genuína) é especificamente o contrário. A dominação burocrática é especificamente racional no sentido da vinculação a regras discursivas analisáveis; a carismática é especificamente irracional no sentido de não conhecer regras. A dominação tradicional está vinculada aos precedentes do passado e, nesse sentido, é também orientada por regras; a carismática derruba o passado (dentro de seu âmbito) e, nesse sentido, é especificamente revolucionária. Esta não conhece a apropriação do poder senhorial ao modo de uma propriedade de bens, seja pelo senhor seja por poderes estamentais. Só é ‘legítima’ enquanto e na medida em que ‘vale’, isto é, encontra reconhecimento, o carisma pessoal, em virtude de provas; e os homens de confiança, discípulos ou sequazes só lhe são ‘úteis’ enquanto tem vigência sua confirmação carismática.” (WEBER, 1999, p. 160).

([3]) “[A] opinião pública, como ilustra o exemplo italiano, é também essencial para o êxito da ação judicial. […] Enquanto ela [a atuação judicial] contar com o apoio da opinião pública, tem condições de avançar e apresentar bons resultados” (MORO, 2004, p. 57 e 61).

([4]) “A presunção de inocência, no mais das vezes invocada como óbice a prisões pré-julgamento, não é absoluta, constituindo apenas instrumento pragmático destinado a prevenir a prisão de inocentes. […] Tal construção representa um excesso liberal com uma pitada de ingenuidade.” (MORO, 2004, p. 61).

([5]) “Em alguns casos, de fato, a descoberta de ilegalidade disseminada provoca críticas ao sistema judicial no sentido de que este estaria sendo inadequado para combater a corrupção.” (MORO, 2004, p. 62).

([6]) O perfil dos magistrados brasileiros é de pessoas com família de altíssima educação e originárias dos estratos sociais mais elevados; e tal oligopolização vem apresentando tendências de acentuação nos últimos anos. (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2018. p. 15).

([7]) Fazemos referência à entrevista do então Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, José Renato Nalini, à TV Cultura, defendendo a instituição do famigerado auxílio-moradia a juízes e promotores. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=AbrQc22CJE0>. Acesso em: 28 jun. 2019.


* Artigo publicado originalmente no Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), São Paulo, edição 322, set. 2019, p. 34 – 36[i].

([i]) O artigo publicado foi originalmente publicado no Boletim do IBCCRIM e, diante das decisões recentes do Supremo Tribunal Federal acerca da incompetência e parcialidade do ex-Juiz Federal Sérgio Moro na condução dos processos da denominada “Operação Lava Jato”, os autores entenderam relevante a republicação do artigo.


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