O câmbio negro das criptomoedas

Por Josias Soares

Andando pelas ruas de Ciudad Del Este, no Paraguai, é impossível não notar a presença dos cambistas, aquelas figuras com bolsas repletas de dinheiro, à plena luz do dia, despreocupados com a própria segurança.

Com eles é possível trocar quaisquer quantias de uma moeda por outra - Dólar, Guarani, Real, em minutos. As taxas são um pouco acima das oficiais, e verdade, mas têm o benefício de não se exigir nenhuma identificação de parte a parte.

É o câmbio negro, na sua forma mais pura!

Coisa parecida só se vê com as criptomoedas (que, aliás, de moeda não tem nada). Sem o dinheiro (moeda), como o conhecemos, as criptomoedas não existem porque não será possível comprá-las ou vende-las.

Se não são moedas per si, o que são as criptomoedas? É meio de troca, tão somente.

E por que se tornaram tão atrativas?

Antes, uma analogia: já ouviu falar na deepweb? Pois é, não funciona tão bem quanto a surface web. Ainda assim, há os que preferem navegar pela deepweb. Por que? Porque as comunicações ocorrem de forma horizontal (point-to-point) e assim não são rastreadas, interceptadas ou impedidas.

A mesma lógica se aplica às criptomoedas.

No Sistema Financeiro oficial toda movimentação de moeda é controlada, ao passo que o ecossistema das criptomoedas - com suas blockchain, criptografias, token’s etc – consegue existir e atuar fora do controle do Estado.

Ideologicamente, há os que digam que as criptomoedas representam a libertação do homem do controle do Estado.

Porém, as preocupações giram em torno das possibilidades da utilização das criptomoedas para fins ilícitos que vão desde a lavagem de dinheiro ao financiamento de organizações terroristas internacionais.

Analisando algumas das características das criptomoedas, vê-se inúmeros motivos para preocupação: são facilmente cambiáveis (troca-se qualquer moeda oficial por criptomoedas numa Exchange, e vice-versa); não são (facilmente) rastreáveis dentro do ecossistema (nomes são trocados por códigos, como na deepweb); são de fácil remessa para o exterior (é possível comprá-las num País e vendê-las Noutro, e vice-versa, num click e sem nenhum controle Estatal; inclusive, são capazes de driblar embargos econômicos).

É esse conjunto de atributos que atrai o interesse das pessoas. Algumas são motivadas pelo potencial de valorização, outras para fins ilícitos - uma forte evidência disso são as cifras negras, ou seja, apesar do número crescente de golpes com criptomoedas são poucas as pessoas que acionam o sistema penal para investigar, talvez pelo receio de ter que explicar a origem do dinheiro que foi parar em criptomoedas.

É evidente que esse fenômeno vem provocando reações do Estados, que não devem abrir mão do controle sobre a moeda sob pena de malferir a própria soberania.

Algumas medidas parecem viáveis, outras são dúbias.

A iniciativa de criar uma criptomoeda oficial chega a ser risível. A um porque a moeda oficial já é virtual, afinal, o dinheiro não passa de um número contábil. A dois porque o valor das criptomoedas só existe na clandestinidade, ou seja, fora do controle Estatal, e essa “marginalização do sistema financeiro” interessa tanto quanto o câmbio negro nas ruas do Paraguai.

A regulação do mercado de criptomoedas parece ser a melhor solução (senão a única), controlando as operações junto às Exchanges - ponto de contato entre o ecossistema das criptomoedas e o sistema financeiro oficial dos Estados, por onde tudo passa.

Nota-se, no plano internacional, crescente movimentação para o controle da movimentação de capitais afim de prevenir e reprimir a lavagem de dinheiro, para assim sufocar as práticas e/ou organizações ilícitas, obrigando, inclusive, os particulares a colaborarem nesse processo, como decorre dos sistemas de compliance.

Aliás, finalizando, os sistemas de compliance deverão se debruçar sobre as criptomoedas, e aqueles, por sua vez, hão de coabitar no ecossistema dessas, cedo ou tarde.


Josias Soares, advogado, palestrante e professor.


Este artigo reflete a opinião de seus autores e não necessariamente a opinião do IBDPE.

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O Acordo de Não Persecução Penal e a ampliação do alcance da justiça negociada: Agiu bem o legislador ao adequar as tendências internacionais àqueles submetidos à justiça criminal

Por PEDRO IVO VELLOSO e NINA NERY

A adoção de mecanismos consensuais para resolução de conflitos na esfera penal não é  um tema novo. Os institutos de barganha têm origem anglo-saxônica que, através do plea bargaining, consolidou a possibilidade de negociação direta entre acusação e defesa. A influência da justiça negociada nos ordenamentos jurídicos pelo próprio aprimoramento das garantias do réu que, inevitavelmente, fizeram com que os processos se prolongassem no tempo.

A justiça negociada no ordenamento jurídico brasileiro

No Brasil, a Constituição Federal tratou da criação dos juizados especiais para julgamento das infrações penais de menor potencial e estabeleceu a possibilidade de transação penal, que foi regulada anos mais tarde com a edição da Lei 9.099/1995, que também incluiu a possibilidade de suspensão condicional do processo.

A iniciativa viabilizou a adoção de critérios mais simples para a resolução de casos que tratam delitos de pequena e média gravidade. Além de desafogar o Judiciário e aprimorar o ius puniedi, o consenso possibilitou a redução dos prejuízos causados pela prática criminosa, já  que a reparação de danos   uma das condições para a homologação do acordo.

O ANPP e a aplicação do consenso para além dos crimes de menor potencial ofensivo

A transação e a suspensão marcaram o advento da justiça penal negociada no Brasil e se caracterizaram como o teste dessa nova via reativa ao delito, que depois seria expandida para outras práticas, como a colaboração premiada, prevista na Lei 12.850/2013, e o acordo de n o persecução penal, inserido no artigo 28-A do C digo de Processo Penal (CPP) pela reforma promovida pela Lei 13.964/2019.

Enquanto colaboração pressupõe a utilidade e o interesse públicos, e está essencialmente voltada à obtenção de provas, o ANPP busca a resolução da demanda com relação ao próprio investigado, que não precisa contribuir com a identificação dos demais coautores ou das circunstâncias do crime.

Para fazer jus ao ANPP, o investigado deverá confessar a prática da infração penal, sendo que, apesar do reconhecimento da culpa, a celebração e o cumprimento do acordo não constarão de seus antecedentes criminais. O ANPP configurou uma inovação bastante relevante e ampliou aplicabilidade dos mecanismos consensuais de resolução de conflitos na esfera penal, que passaram a alcançar crimes que antes não eram abrangidos pela justiça consensual.

Enquanto a transação e a suspensão estão adstritas aos crimes de menor potencial ofensivo, o ANPP pode ser aplicado aos delitos que, desde que não praticados mediante violência ou grave ameaça, sejam apenados com pena mínima inferior a quatro anos, sem qualquer restrição quanto pena máxima cominada em lei. A previsão abriu margem para a utilização do consenso em outros delitos, dentre os quais se incluem os crimes de corrupção, peculato, fraude à licitação, tributários, contra a ordem econômica mica e contra a ordem financeira – infrações que, em sua maioria, estão caracterizadas pela ocorrência de danos materiais, que podem ser mensurados e, consequentemente, reparados.

A confissão e o direito subjetivo do réu à celebração do ANPP

No caso dos instrumentos previstos na Lei 9.099/1995, o oferecimento da proposta constitui poder-dever do Ministério Público, ou seja, presentes os requisitos e não havendo causas impeditivas, o representante ministerial deverá propor o benefício, prevalecendo o entendimento de que a celebração do acordo não constitui direito subjetivo do réu, cabendo ao órgão acusatório analisar a aplicação do instituto no caso concreto.

O ANPP reacendeu essas discussões, sendo possível encontrar vozes dissonantes quanto à natureza do instituto. É possível encontrar precedentes que reconhecem que, embora o oferecimento do ANPP seja um poder-dever do Ministério Público, também deixam claro que não se trata de um poder absoluto, discricionário e livre de qualquer controle judicial.

Por outro lado, é preciso dizer que a redação do artigo 28-A   passível de críticas, notadamente no que diz respeito à necessidade de confissão do investigado para a formalização do acordo, requisito que não é exigido pelos instrumentos previstos na Lei 9.099/1995. O direito ao silêncio é princípio basilar do Estado democrático de Direito e, embora não haja proibição de renunciabilidade, surge aqui a primeira reflexão crítica na redação conferida ao dispositivo legal: a lei exige a confissão formal do crime, no entanto, renunciar ao silêncio não é o mesmo que confessar a prática do crime.

A obrigação de confessar a prática do crime gera complexos desdobramentos: a lei não traz limites para o uso dessa confissão e, diante da ausência de parâmetros legais, não é possível mensurar como seriam as consequências em caso de rescisão do acordo, ou ainda, se essa confissão poderia ser aplicada em outras searas do direito.

É possível perceber que, conquanto o ANPP revele avanços na forma como o Estado lida com a prática criminosa, tem-se que, ao exigir a confissão do acusado, o legislador dá um passo para trás, aproximando o instrumento da lógica inquisitorial, especialmente porque, nesses casos, a confissão e a fixação das condições ocorrem perante o Ministério Público, sem a intermediação do Poder Judiciário e sem a prolação de uma decisão fundamentada, preceitos basilares do processo penal garantista, que traz, dentre os seus axiomas, o princípio da jurisdicionalidade.

Conclusão

Agiu bem o legislador ao se adequar às tendências internacionais no tratamento conferido pelo Estado àqueles que são submetidos à justiça criminal, de modo que o ANPP é uma inovação salutar inserida no Código de Processo Penal brasileiro. Mais do que apenas reprimir a prática criminosa, o consenso permite a reparação dos danos, sem que, em contrapartida, sejam aumentados os riscos da estigmatização decorrente da colocação de mais um indivíduo no sistema carcerário.

A abertura do consenso para os crimes que não se enquadram no rol de delitos de menor potencial ofensivo, mas que, por outro lado, não envolvem violência ou grave ameaça, permite a resolução do caso com maior efetividade, gerando benefícios tanto para o réu, que não sofre os prejuízos decorrentes da própria submissão ao processo e de eventual condenação, quanto para o Estado e para a vítima, que têm os danos reparados já no momento incipiente do feito.

Apesar disso, a celebração dos acordos de não persecução penal deve ser sempre acompanhada da defesa, a quem cabe avaliar o cabimento desse tipo de estratégia no caso concreto, especialmente diante da previsão legal que impõe a imputado o dever de confessar para fazer jus aos benefícios da negociação. O acordo também está sujeito ao controle do Judiciário, a quem cabe avaliar o exercício desse poder-dever pelo Ministério Público que, embora detenha certa discricionariedade no exercício dessa prerrogativa, não pode se negar a oferecer a proposta de acordo de maneira injustificada.

[1] LANGER, Maximo. Plea Bargaining, Trial-Avoiding Conviction and the Global Administratization of Criminal Convictions. LANGER, Maximo. Plea Bargaining, Trial-Avoiding Conviction and the Global Administratization of Criminal Convictions. Annu. Rev. Criminol. DOI: 10.1146/annurev-criminol-032317-092255 (2019) UCLA School of Law, Public Law Research Paper No. 19-35.

[2] JUNIOR, Aury Celso. Lima. L. Direito processual penal. São Paulo: Editora Saraiva, 2021. 9786555590005. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786555590005/. Acesso em: 10 jan. 2022.

[3] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.


PEDRO IVO VELLOSO – Sócio do Figueiredo & Velloso Advogados e doutorando pela Universidade de São Paulo em Processo Penal
NINA NERY – Advogada do Figueiredo & Velloso Advogados e mestranda em direito processual penal pela Universidade de São Paulo


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Há crime na captação de clientela em anúncios virtuais e ferramentas de busca?

Por: Guilherme Brenner Lucchesi e Ivan Navarro Zonta

A competitividade do livre mercado é a força motriz do sucesso comercial. A própria Constituição da República erige a livre concorrência como princípio da ordem econômica pátria, fundada também na livre iniciativa (art. 170, IV, CR). A liberdade para concorrência, contudo, não pode ser exercida sem limites: a liberdade conferida pela Constituição não significa chancela para abuso. Por isso, no mesmo Título em que a Constituição indica a livre concorrência como princípio da ordem econômica, estão previstos também o princípio da defesa do consumidor (art. 170, V, CR) e a repressão ao "abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros" (art. 173, § 4.º, CR). Existe um equilíbrio que deve ser visado no cenário da livre concorrência comercial.

Justamente por isso, e num contexto de competitividade que se desenrola cada vez mais no plano virtual, tem-se dado atenção aos casos de aparentes abusos da liberdade de concorrência por meio da manipulação seletiva de anúncios e termos de pesquisas virtuais. Como já indicado em diversos escritos que abordaram o tema1, essa estratégia consiste na criação de anúncios "clonados" e/ou utilização seletiva de termos de pesquisa - em sistemas de consulta como o Google, Yahoo e Bing - que vinculam palavras-chave comumente associadas a determinadas marcas a anúncios publicados justamente por seus concorrentes. Em resumo, uma marca compra/cria anúncios virtuais que se assemelham e/ou utilizam palavras-chave relacionadas a uma outra marca concorrente. Assim, quando o consumidor realiza consulta de termos que normalmente remeteriam a uma determinada marca, ele se depara com anúncios de marca que compete diretamente com aquela primeira. Essa estratégia tem sido identificada como "brand bidding" ou "sequestro de anúncios".2

Como exemplos já julgados pelos Tribunais Pátrios, temos: (i) ação movida pela Empreendimentos Quetzal Comércio de Brinquedos e Papelaria Ltda. (detentora do domínio virtual "www.saciperere.com.br") contra as rés Microsoft Ltda. e Americanas.com S.A., no qual as rés foram civilmente condenadas por atos de concorrência desleal e desvio de clientela por terem vinculado o domínio da autora ao domínio da segunda ré, permitindo o acesso ao site da autora apenas por meio do domínio da segunda ré, sua concorrente direta no segmento comercial3; e (ii) a condenação da 123 Viagens e Turismo Ltda. (123 Milhas) pela utilização do termo "decolar" por meio da ferramenta Google Ads, desviando em seu favor as consultas relacionadas à concorrente Decolar.com Ltda.4

Parece haver consenso quanto à natureza abusiva de tais práticas e quanto às cabíveis consequências de natureza cível e patrimonial. Há, contudo, que se indagar acerca da possibilidade de tais fatos também constituírem crimes, sujeitando seus autores a penas criminais. Recente publicação no Migalhas indicou o possível enquadramento dessas condutas nos crimes previstos nos arts. 1895 e 1956 da lei 9.279/96, que tutelam direitos e obrigações relativos à propriedade industrial. A pergunta, porém, é mais complexa do que pode parecer em princípio, e a resposta demanda cuidados.

De fato, a lei 9.279/96 criminaliza condutas praticadas contra marcas registradas, de concorrência desleal e de desvio de clientela. Ainda, atos de "brand bidding" e "sequestro de anúncios" têm realmente sido reconhecidos como atos de concorrência desleal e desvio de clientela.7 Os casos, contudo, possuem natureza cível, de modo a ensejar consequências patrimoniais e obrigacionais, mas não responsabilidade penal. Reconhecer a ocorrência de concorrência desleal e desvio de clientela, portanto, não pressupõe afirmar a ocorrência de crime de concorrência desleal ou captação de clientela.8

Do ponto de vista do Direito Civil e Empresarial, na acirrada competição entre marcas e grandes empresas no cenário de livre concorrência, é interessante aos concorrentes/litigantes que possam contar com advertências de natureza criminal. Por vezes, a ameaça de aplicação de penas criminais surtirá mais efeitos do que a ameaça de condenação à reparação de danos na esfera cível. Por isso, grandes empresas e bancas altamente qualificadas de advocacia empresarial podem enxergar vantagens em tentar submeter essas práticas comerciais potencialmente abusivas ao campo do Direito Penal. Sendo os delitos da lei 9.279/96 crimes de iniciativa privada por via de queixa-crime (art. 199), pode-se cogitar tentativas de utilizar indevidamente o direito penal como instrumento de coação para discussões que devem permanecer na seara cível.

Assim como a livre concorrência, a proteção ao consumidor e a repressão ao abuso do poder econômico dependem de cuidadoso equilíbrio, a aplicação do Direito Penal também deve se equilibrar com os direitos fundamentais, as garantias do indivíduo e os limites ao exercício do poder punitivo estatal. A mera previsão legal de imputação de crimes de concorrência desleal e de captação de clientela, no âmbito de disputas de mercado, não deve justificar a mitigação dos limites impostos ao poder punitivo, que vinculam a responsabilização criminal à demonstração de ocorrência de conduta humana típica, antijurídica e culpável.

Salvo em casos de delitos ambientais9 - e mesmo nesses casos, sob alvo de críticas doutrinárias -, pessoas jurídicas não podem ser sujeitos ativos de crimes. Essa primeira premissa já deve ser levada em conta a fim de mitigar eventual utilização oportunista do aparato criminal em disputas comerciais: uma empresa não pode ser acusada por outra pela prática de crime de concorrência desleal.

Eventual queixa-crime deverá demonstrar, portanto, quais teriam sido as pessoas naturais que, de forma consciente e voluntária, praticaram condutas que resultaram em "brand bidding" ou "sequestro de anúncios". E mais: a peça acusatória deverá demonstrar que tais pessoas tinham ciência quanto ao método específico utilizado - v.g. associação de palavras-chave com remissão a empresas/marcas concorrentes e/ou criação de anúncios "clonados" - para realização de tais atos, sob pena de ausência de elemento subjetivo do delito. Por fim, a queixa-crime deverá demonstrar a materialidade de tais atos, com provas documentais sólidas quanto à utilização desses subterfúgios a fim de manipular anúncios digitais e resultados de pesquisas virtuais.

Obedecer a esses requisitos, que insculpem alguns dos limites mínimos aplicáveis na seara penal, não é algo fácil. Em casos de empresas cuja hierarquia interna é estratificada e que terceirizam serviços de publicidade, especialmente a virtual, não se pode simplesmente imputar genericamente a prática de tais crimes aos dirigentes e sócios-proprietários. Isso consistiria em tentativa de responsabilização objetiva absolutamente vedada na seara criminal.

Não se nega em absoluto a possibilidade de ocorrência de condutas efetivamente criminosas no âmbito da atividade empresarial competitiva. É claro que efetivas fraudes que maculem intencionalmente a reputação objetiva de marca rival e/ou fraudes deliberadamente empregadas para induzir o consumidor em erro, a título exemplificativo, podem vir a ensejar punição na seara criminal.

O que se argumenta, contudo, é que a disputa comercial entre empresas concorrentes não pode "sequestrar" as ferramentas específicas da seara penal a fim de avançar seus interesses primordialmente econômicos e de mercado. E mais: a disputa de rivais comerciais, principalmente entre aqueles que detêm alto poder econômico, não pode resultar no elastecimento dos requisitos e limites ao poder punitivo estatal. Dentro da lógica própria ao sistema penal, os direitos fundamentais do acusado frente ao poder punitivo prevalecem sobre a livre concorrência e a proteção ao consumidor, principalmente por haver sistema de proteção próprio da lei 9.279/96 mais adequado à tutela de tais interesses.

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1 Ver, por exemplo: MIGALHAS, Usar nome de concorrente no Google Ads tem consequência Civil e Penal. Migalhas, 15 fev. 2022; COSTA. Amanda Resende; BURNETT, Thaís Gladys. RIBEIRO. Ana Carolina Spina de Campos. Marcas imitativas: concorrência desleal ou mera coincidência? Migalhas, 5 out. 2021; MIGALHAS, Empresas não podem usar marca de concorrente em palavras-chave ao anunciar na internet. Migalhas, 28 mai. 2019.

2 Brand-bidding é considerada prática de concorrência desleal. Brunner Digital, set. 2021.

3 TJ/RJ, 3.ª Câmara Cível, Apelação Cível n.º 2008.001.60797, Rel. Des. Mario Assis Gonçalves, j. 7 abr. 2009.

4 TJ/SP, 2.ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Apelação Cível n.º 1014930-35.2019.8.26.0068, Rel. Des. Grava Brazil, j. 20 jul. 2021. O caso já foi comentado no Migalhas: 123 Milhas não pode usar "decolar" no Google: "carona no prestígio". Migalhas, 29 jul. 2021.

5 "Art. 189. Comete crime contra registro de marca quem: I - reproduz, sem autorização do titular, no todo ou em parte, marca registrada, ou imita-a de modo que possa induzir confusão; ou II - altera marca registrada de outrem já aposta em produto colocado no mercado. Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa."

6 "Art. 195. Comete crime de concorrência desleal quem: [...] III - emprega meio fraudulento, para desviar, em proveito próprio ou alheio, clientela de outrem; IV - usa expressão ou sinal de propaganda alheios, ou os imita, de modo a criar confusão entre os produtos ou estabelecimentos; V - usa, indevidamente, nome comercial, título de estabelecimento ou insígnia alheios ou vende, expõe ou oferece à venda ou tem em estoque produto com essas referências;"

7 A título exemplificativo, em adição aos casos já citados anteriormente: TJ/SP, 1.ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Agravo de Instrumento n.º 2066080-48.2019.8.26.0000, Rel. Des. Cesar Ciampolini, j. 22 mai. 2019; TJ/SP, 1.ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Apelação Cível n.º 1016104-20.2018.8.26.0196, Rel. Des. Fortes Barbosa, j. 22 mai. 2019.

8 Nesse sentido, os arts. 207 e 209 da Lei n.º 9.279/1996: "Art. 207. Independentemente da ação criminal, o prejudicado poderá intentar as ações cíveis que considerar cabíveis na forma do Código de Processo Civil. [...]" "Art. 209. Fica ressalvado ao prejudicado o direito de haver perdas e danos em ressarcimento de prejuízos causados por atos de violação de direitos de propriedade industrial e atos de concorrência desleal não previstos nesta Lei, tendentes a prejudicar a reputação ou os negócios alheios, a criar confusão entre estabelecimentos comerciais, industriais ou prestadores de serviço, ou entre os produtos e serviços postos no comércio."

9 Cf. arts. 2.º e 3.º da Lei n.º 9.605, de 1998.

Publicado em: https://www.migalhas.com.br/depeso/360676/ha-crime-na-captacao-de-clientela-em-anuncios-virtuais


Guilherme Brenner Lucchesi
Advogado sócio da banca Lucchesi Advocacia. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Diretor do Instituto dos Advogados do Paraná.

Ivan Navarro Zonta
Mestrando em Direito pela UFPR. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela ABDConst. Graduado em Direito pela UFPR. Advogado sócio da Lucchesi Advocacia.


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A Dupla Imputação ao Crime de Sonegação Fiscal (e Lavagem de Dinheiro)

Por: João Vieira Neto

 

Os tipos penais integrantes do plexo dos delitos de sonegação fiscal praticados contra a ordem tributária e alinhavados na Lei nº 8.137/90, à guisa de mera classificação quanto ao resultado naturalístico e consumação, têm natureza distinta, ao passo que os previstos no rol de incisos do Art. 1º perfectibilizam-se tão somente empós exaurimento das vias administrativas sancionadoras[1], portanto de essência material e com maior rigor de apenação. Já os condensados no Art. 2º descrevem resultado prescindível e a sua consumação é meramente declaratória, sendo, portanto, de natureza formal.

 

Tal distinção desvela nodal relevância em linha à possibilidade do advento da persecução penal; é dizer: enquanto a subsunção casuística aos previstos nos incisos do Art. 1º não se poderá ajuizar ação punitiva até o esvaziamento dos recursos fiscais, os compactados no Art. 2ª há condição de imediata judicialização da lide processual penal, inobstante abarcarem uma série de medidas despenalizadoras previstas no sistema processual pátrio, a exemplo do sursis e da transação penal, nos moldes dos artigos 76 e 89 da Lei nº 9099/95.

 

Ainda sob esse enfoque desjudicialização, notadamente à vigência da Lei nº 13.964/2019, o acordo de não persecução penal representa um avanço no direito penal dialogal e será plenamente aplicável nos crimes elencados no artigo primário da Lei nº 8137/90, como forma de, sem tautologia, composição entre as partes e ter uma resolução consensual sem, com isto, precisar ensejar à hodierna litigância, além de minorar os impactos, custos e excesso de ações penais propostas com viés secundário de se pressionar o contribuinte a acordar (em parcelamentos por programas de refinanciamentos) ou quitar o crédito tributário, ambos no sentido de extinguir a punibilidade.

 

Como forma de pacificar o entendimento jurisprudencial, o Superior Tribunal de Justiça tem um papel de excelência na interpretação das normas infraconstitucionais à luz de decisões sensíveis ao contexto legislativo, estabelecendo vinculação e norte às demais Cortes de Justiça e Regionais.

 

Assim, a parametrização da aplicação da norma penal-tributária reside na importância de se estabelecer limites à acusação, freios processuais e, sobretudo, criar um sentimento de segurança jurídica na aplicação da lei, à mercê do arbítrio de acusações excessivas (overchanging). Pois, como é consabido, qualquer decisão suspensiva da higidez do crédito tributário afetará diretamente a tramitação de feitos criminais (STJ - RHC 113.294/MG, 5ª T., Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, j. 13/08/2019, p. DJe 30/08/2019), se exige a individualização da conduta, com a vedação do consequencialismo persecutório e da responsabilidade objetiva (STJ – HC 243450/SP, 6ªT., Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, j. 20/06/2013, p. DJe 04/09/2013), além de divisar que a extinção da punibilidade do crime funcional precedente não tornará o delito parasitário de lavagem de dinheiro atípico (STJ – HC 207936/MG, 5ª T., Ministro JORGE MUSSI, j. 27/03/2012, p. DJe 12/04/2012), em dicção ao art. 2º, §1º, da Lei nº 9613/98, nem tampouco é necessária a condenação daquele para a configuração do delito circunscrito no art. 1º da Lei n. 9.613/98, justamente por ser autônomo (STJ - RHC 94.233/RN, 6ª T., Ministro NEFI CORDEIRO, j. 21/08/2018, p. DJe 03/09/2018).

 

Nessa observação orgânica, muito há de se debater e vetorizar alguns aspectos contemplativos das estruturas criminais independentes, em especial a conduta de lavagem de dinheiro em consequência ao delito de sonegação fiscal – do tributo declarado e não pago - , quase sempre indexados excessivamente nas incoativas em concurso material.

 

Por linha de raciocínio fundante à estrutura dessa reflexão textual, com apego à interpretação literal da regra e sem contorcionismos hermenêuticos, vê-se a hipótese conjugada do art. 2º da Lei nº 8137/90, em especial ao inciso II[2], face à modulação da conduta àquele quem dolosamente e de forma contumaz declara (o ICMS) e não quita a dívida tributária (STF – RHC 163334/SC, Pleno, Min. ROBERTO BARROSO, j. 18/09/2019, p. DJe 13.11/2020), comumente atrelada ao delito de branqueamento de capital – produto decorrente de atividade lícita empresarial – pelo órgão de acusação.

 

Em brilhante exposição[3], fazendo um recorte e deixar de lado o expansionismo penal, Helios Moyano e Marcelo Salomão chamaram a atenção quanto à mudança da compreensão jurisprudencial e sua aplicação no espaço/tempo, que até então era uma conduta atípica, no sentido de firmar posicionamento doutrinário em prol de impossibilitar tal aplicação retroativamente in pejus dada as “alterações jurisprudências”, com fundamento na “existência de erro de proibição”, nos moldes do art. 21 do CP.

 

Quanto à persecução penal, via de regra por fishing expedition[4], ressoa empós uma série de medidas invasivas (dentre elas a quebra de sigilo bancário e fiscal), a contemplação de valores creditados em conta corrente de empresa-alvo ou pessoa física-sócio, cuja predisposição ministerial é de se reportar a esses numerários como “guardados” até se criar a ficção jurídico-punitivista de sê-los “ocultados” e decorrentes do crime antecedente (da apropriação e não pagamento do tributo). Aqui enverga a celeuma.

 

Com respeito às regras processuais e em sinergia à impossibilidade do nen bis in idem material, a mera conservação de valores provenientes de exercício empresarial lícito, a despeito da declaração do tributo e o seu não pagamento, com a conservação em conta corrente, portanto, em tese, sob a lupa do sistema financeiro-bancário, ainda que seja com intenção de não saldar e de forma contumaz, decerto, não poderia caracterizar (também) o delito de lavagem de dinheiro na modalidade de ocultação.

 

Com maestria, os Professores Pierpaolo Bottini e Gustavo Badaró[5], dentro de uma lógica estruturante da interpretação do crime de lavagem de dinheiro, sinalizam a sua não consumação com o “mero usufruir do produto infracional”, sendo assim atípico.

 

Em verdade, a manutenção de valor decorrente de atividade lícita empresarial, ainda que parte dele viesse a servir para saldar débitos tributários (não quitados), por si só, não constitui proveito aferido pelo agente com a prática do fato típico, antijurídico e culpável (por digressão jurisprudencial) a desaguar na hipótese de enquadramento ao crime de lavagem de dinheiro.


[1] Súmula Vinculante n.º 24 STF: Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. , incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo.

[2] II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;

[3] MOYANO, Helios Nógues; SALOMÃO, Marcelo Viana. In: https://www.conjur.com.br/2021-out-01/opiniao-entendimento-stf-icms-declarado-nao-pago

[4] DA ROSA, Alexandre Morais. In: https://www.conjur.com.br/2021-jul-02/limite-penal-pratica-fishing-expedition-processo-penal

[5] BOTTINI, Pierpaolo Cruz; BADARÓ, Gustavo Henrique. Lavagem de Dinheiro: aspectos penais e processuais penais. 4. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2019, p. 116.


João Vieira Neto é advogado criminalista e sócio do escritório João Vieira Neto Advocacia Criminal.


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