Por: João Vieira Neto

 

Os tipos penais integrantes do plexo dos delitos de sonegação fiscal praticados contra a ordem tributária e alinhavados na Lei nº 8.137/90, à guisa de mera classificação quanto ao resultado naturalístico e consumação, têm natureza distinta, ao passo que os previstos no rol de incisos do Art. 1º perfectibilizam-se tão somente empós exaurimento das vias administrativas sancionadoras[1], portanto de essência material e com maior rigor de apenação. Já os condensados no Art. 2º descrevem resultado prescindível e a sua consumação é meramente declaratória, sendo, portanto, de natureza formal.

 

Tal distinção desvela nodal relevância em linha à possibilidade do advento da persecução penal; é dizer: enquanto a subsunção casuística aos previstos nos incisos do Art. 1º não se poderá ajuizar ação punitiva até o esvaziamento dos recursos fiscais, os compactados no Art. 2ª há condição de imediata judicialização da lide processual penal, inobstante abarcarem uma série de medidas despenalizadoras previstas no sistema processual pátrio, a exemplo do sursis e da transação penal, nos moldes dos artigos 76 e 89 da Lei nº 9099/95.

 

Ainda sob esse enfoque desjudicialização, notadamente à vigência da Lei nº 13.964/2019, o acordo de não persecução penal representa um avanço no direito penal dialogal e será plenamente aplicável nos crimes elencados no artigo primário da Lei nº 8137/90, como forma de, sem tautologia, composição entre as partes e ter uma resolução consensual sem, com isto, precisar ensejar à hodierna litigância, além de minorar os impactos, custos e excesso de ações penais propostas com viés secundário de se pressionar o contribuinte a acordar (em parcelamentos por programas de refinanciamentos) ou quitar o crédito tributário, ambos no sentido de extinguir a punibilidade.

 

Como forma de pacificar o entendimento jurisprudencial, o Superior Tribunal de Justiça tem um papel de excelência na interpretação das normas infraconstitucionais à luz de decisões sensíveis ao contexto legislativo, estabelecendo vinculação e norte às demais Cortes de Justiça e Regionais.

 

Assim, a parametrização da aplicação da norma penal-tributária reside na importância de se estabelecer limites à acusação, freios processuais e, sobretudo, criar um sentimento de segurança jurídica na aplicação da lei, à mercê do arbítrio de acusações excessivas (overchanging). Pois, como é consabido, qualquer decisão suspensiva da higidez do crédito tributário afetará diretamente a tramitação de feitos criminais (STJ – RHC 113.294/MG, 5ª T., Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, j. 13/08/2019, p. DJe 30/08/2019), se exige a individualização da conduta, com a vedação do consequencialismo persecutório e da responsabilidade objetiva (STJ – HC 243450/SP, 6ªT., Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, j. 20/06/2013, p. DJe 04/09/2013), além de divisar que a extinção da punibilidade do crime funcional precedente não tornará o delito parasitário de lavagem de dinheiro atípico (STJ – HC 207936/MG, 5ª T., Ministro JORGE MUSSI, j. 27/03/2012, p. DJe 12/04/2012), em dicção ao art. 2º, §1º, da Lei nº 9613/98, nem tampouco é necessária a condenação daquele para a configuração do delito circunscrito no art. 1º da Lei n. 9.613/98, justamente por ser autônomo (STJ – RHC 94.233/RN, 6ª T., Ministro NEFI CORDEIRO, j. 21/08/2018, p. DJe 03/09/2018).

 

Nessa observação orgânica, muito há de se debater e vetorizar alguns aspectos contemplativos das estruturas criminais independentes, em especial a conduta de lavagem de dinheiro em consequência ao delito de sonegação fiscal – do tributo declarado e não pago – , quase sempre indexados excessivamente nas incoativas em concurso material.

 

Por linha de raciocínio fundante à estrutura dessa reflexão textual, com apego à interpretação literal da regra e sem contorcionismos hermenêuticos, vê-se a hipótese conjugada do art. 2º da Lei nº 8137/90, em especial ao inciso II[2], face à modulação da conduta àquele quem dolosamente e de forma contumaz declara (o ICMS) e não quita a dívida tributária (STF – RHC 163334/SC, Pleno, Min. ROBERTO BARROSO, j. 18/09/2019, p. DJe 13.11/2020), comumente atrelada ao delito de branqueamento de capital – produto decorrente de atividade lícita empresarial – pelo órgão de acusação.

 

Em brilhante exposição[3], fazendo um recorte e deixar de lado o expansionismo penal, Helios Moyano e Marcelo Salomão chamaram a atenção quanto à mudança da compreensão jurisprudencial e sua aplicação no espaço/tempo, que até então era uma conduta atípica, no sentido de firmar posicionamento doutrinário em prol de impossibilitar tal aplicação retroativamente in pejus dada as “alterações jurisprudências”, com fundamento na “existência de erro de proibição”, nos moldes do art. 21 do CP.

 

Quanto à persecução penal, via de regra por fishing expedition[4], ressoa empós uma série de medidas invasivas (dentre elas a quebra de sigilo bancário e fiscal), a contemplação de valores creditados em conta corrente de empresa-alvo ou pessoa física-sócio, cuja predisposição ministerial é de se reportar a esses numerários como “guardados” até se criar a ficção jurídico-punitivista de sê-los “ocultados” e decorrentes do crime antecedente (da apropriação e não pagamento do tributo). Aqui enverga a celeuma.

 

Com respeito às regras processuais e em sinergia à impossibilidade do nen bis in idem material, a mera conservação de valores provenientes de exercício empresarial lícito, a despeito da declaração do tributo e o seu não pagamento, com a conservação em conta corrente, portanto, em tese, sob a lupa do sistema financeiro-bancário, ainda que seja com intenção de não saldar e de forma contumaz, decerto, não poderia caracterizar (também) o delito de lavagem de dinheiro na modalidade de ocultação.

 

Com maestria, os Professores Pierpaolo Bottini e Gustavo Badaró[5], dentro de uma lógica estruturante da interpretação do crime de lavagem de dinheiro, sinalizam a sua não consumação com o “mero usufruir do produto infracional”, sendo assim atípico.

 

Em verdade, a manutenção de valor decorrente de atividade lícita empresarial, ainda que parte dele viesse a servir para saldar débitos tributários (não quitados), por si só, não constitui proveito aferido pelo agente com a prática do fato típico, antijurídico e culpável (por digressão jurisprudencial) a desaguar na hipótese de enquadramento ao crime de lavagem de dinheiro.


[1] Súmula Vinculante n.º 24 STF: Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. , incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo.

[2] II – deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;

[3] MOYANO, Helios Nógues; SALOMÃO, Marcelo Viana. In: https://www.conjur.com.br/2021-out-01/opiniao-entendimento-stf-icms-declarado-nao-pago

[4] DA ROSA, Alexandre Morais. In: https://www.conjur.com.br/2021-jul-02/limite-penal-pratica-fishing-expedition-processo-penal

[5] BOTTINI, Pierpaolo Cruz; BADARÓ, Gustavo Henrique. Lavagem de Dinheiro: aspectos penais e processuais penais. 4. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2019, p. 116.


João Vieira Neto é advogado criminalista e sócio do escritório João Vieira Neto Advocacia Criminal.


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