O habeas corpus e as medidas assecuratórias patrimoniais: uma análise do julgamento do RHC 147.043/STJ

Por Pedro Ivo Velloso e Vinícius Arouck

Nos últimos anos, verificou-se um considerável aumento do número de habeas corpus impetrados no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal, o que se deve, em boa parte, à recalcitrância de órgãos judiciais de primeira e de segunda instância em aplicar precedentes favoráveis aos réus. Ocorre que esse aumento do número de habeas corpus acabou por gerar uma certa banalização do writ, contribuindo para o abarrotamento dos tribunais, que passaram a restringir suas hipóteses de cabimento[1].

Atualmente, apesar das inúmeras restrições existentes à admissão do writ, tem-se um consenso, pelo menos na jurisprudência pátria, que a garantia constitucional do habeas corpus demanda, ainda que indiretamente, a existência de ameaça ou coação ilegal à liberdade de ir e vir[2].

Assim, a jurisprudência das cortes superiores entendia não ser possível a impetração de HC para fins de sanar ilegalidades ou abusos de poder que afetassem o patrimônio, como para questionar medidas assecuratórias de arresto, sequestro ou indisponibilidade de bens, por exemplo. Segundo esse entendimento, por expressa disposição legal, as insurgências em face dessas medidas deveriam ser realizadas por meio do recurso próprio de apelação e, excepcionalmente, quando houvesse violação a direito líquido e certo, por meio de mandado de segurança.

Ocorre que, em 23 de março de 2022, a 6ª Turma do STJ deu provimento a um recurso ordinário em habeas corpus, de nº 147.043/SP, para o fim de determinar o levantamento do bloqueio de bens e valores do então recorrente. Na ocasião, questionava-se o excesso de prazo na tramitação do processo em que foram decretadas as medidas assecuratórias patrimoniais e pedia-se a revogação, no todo ou em parte, dessas medidas.

A 6ª Turma, por maioria, entendeu pelo cabimento do writ e deu provimento ao recurso. No ponto, faz-se necessário analisar os debates travados durante o julgamento, a fim de demonstrar a ratio decidendi da Turma, de forma a oportunizar uma análise crítica da decisão.

Pois bem. O ministro Antônio Saldanha, acompanhando o voto do relator, ministro Sebastião Reis, demonstrou preocupação com os casos em que ocorre o bloqueio integral do patrimônio do cidadão, uma vez que, em última análise, isso restringiria a liberdade de ir e vir. “Com o bloqueio de todo o patrimônio de uma pessoa não tem como ela sair, viajar. Não é preciso colocar alguém atrás das grades para prendê-la. Você bloqueia sua conta bancária, bloqueia seu patrimônio, tira seu automóvel… acabou, ele não pode se deslocar”. O ministro ainda lembrou que o mandado de segurança não tem a mesma celeridade e efetividade do que o HC. Assim, o ministro reviu seu posicionamento e flexibilizou o cabimento do writ para abranger situações em que há uma ilegal e integral constrição patrimonial.

Inaugurando a divergência, o ministro Rogério Schietti asseverou a necessidade de se observar “o objetivo e o cabimento de cada tipo de ação ou impugnação”, alegando que o pedido de restituição deve ser feito ao juiz prolator da decisão e, “quando muito, havendo clara ofensa a direito líquido e certo, poderá haver a impetração de mandado de segurança”. Com isso, assentou que “o pedido de restituição de bens refoge do alcance do habeas corpus”, para negar conhecimento ao recurso. O ministro Olindo Menezes acompanhou a divergência.

O relator voltou a defender sua posição. “Sem dinheiro, não tem como viver”, disse ele. Segundo o ministro, existem hipóteses de admissibilidade em que a ofensa à liberdade é ainda mais remota e indireta do que naquele caso. Para o ministro relator, ao se verificar a ilegalidade da constrição, não seria razoável não reconhecê-la unicamente em razão do instrumento processual adotado.

O desempate do julgamento ficou a cargo da presidente da Turma, ministra Laurita Vaz. Para a ministra, o uso indiscriminado do HC deve ser combatido. No entanto, valendo-se de precedente favorável da 5ª Turma do STJ[3], que dispõe que as medidas assecuratórias, como medidas cautelares que são, “sujeitam-se aos requisitos e ao equilíbrio que lhes são inerentes”, entendeu haver ofensa ao princípio da razoabilidade quando a manutenção da constrição se mantém por tempo indeterminado. Assim, a ministra concluiu que “o excesso de prazo para formação da culpa desautoriza a cautelar assecuratória” e, com isso, acompanhou o voto do relator.

O precedente representa um marco importante em matéria de habeas corpus já que, verdadeiramente, foi aplicado a uma hipótese extrema de medida assecuratória patrimonial. Não se entenda, porém, que o citado precedente deve ampliar o cabimento de habeas corpus para qualquer questionamento de medida cautelar patrimonial. A Turma se fundou em certos fatores excepcionais para conhecer o writ e fez questão de deixar claro que não deve haver uma ampliação indiscriminada do cabimento do habeas corpus.

Primeiramente, o órgão colegiado considerou que a medida patrimonial deve atingir, ainda que indiretamente, a liberdade de ir e vir do cidadão. Para tanto, é necessária a demonstração de que a privação do patrimônio seja integral ou, pelo menos, suficiente para afetar a liberdade de locomoção. Em segundo lugar, o acórdão considerou a necessidade de que a constrição dure por tempo desproporcional ou desarrazoado, evidenciando-se, assim, o requisito do excesso de prazo para o afastamento da medida.

O que não está claro, contudo, é se qualquer ilegalidade — que não o excesso de prazo — autorizaria o manejo da medida. Sobre essa questão, defendemos que sim, pois qualquer ilegalidade estaria abrangida pelo dispositivo do art. 5º, LXVIII, da CF, que demanda que a ameaça ou coação à liberdade de ir e vir se dê por ilegalidade ou abuso de poder, sem qualquer distinção.

Inobstante, a verdade é que o referido entendimento representa um marco importante, sobretudo diante das inovações legislativas, que ampliaram a abrangência das medidas assecuratórias, e da mudança de postura dos órgãos persecutórios, que têm passado a utilizar as cautelares patrimoniais com muito mais frequência ante a sua alegada efetividade e da existência de uma certa tolerância para o preenchimento de seus requisitos.

Ocorre que, conforme se tem verificado no âmbito das grandes operações, as medidas constritivas patrimoniais, por vezes, revelam-se arbitrárias e desproporcionais, porquanto voltadas — às vezes intencionalmente — a constranger o alvo, asfixiando-o financeiramente, de modo que este ceda às pressões acusatórias e realize acordos com os órgãos de persecução. É inequívoco, nestes casos, a influência da medida constritiva patrimonial na liberdade de ir e vir do acusado ou do investigado. Dessa forma, não há dúvidas de que “enquanto não houver outro meio processual igualmente eficaz e célere para afastar ilegalidades que possam, ainda que indireta e futuramente, atingir a liberdade, o emprego do habeas corpus não pode ser tolhido”[4].

É sob essa perspectiva que a decisão proferida pelo STJ representou um marco importante em matéria de liberdade, pois permitiu a utilização do HC para os casos em que a liberdade é atingida pela via transversa da constrição patrimonial, desde que ela padeça de ilegalidade ou abuso de poder[5].

Os aludidos precedentes do STJ evidenciam o caráter de indivisibilidade e interdependência dos direitos fundamentais na medida em que demonstram o quanto o patrimônio — ou a ausência dele — pode interferir diretamente na liberdade, além de atribuírem uma relevância ainda maior à garantia constitucional do habeas corpus como instrumento de tutela de direitos fundamentais.

Frise-se, contudo, que o acórdão proferido será revisto pelo Supremo Tribunal Federal, uma vez que foi alvo de recurso extraordinário interposto pelo Parquet. Assim, a palavra final sobre o tema, ao que parece, ficará a cargo da Suprema Corte.

Ainda que não subsista, o referido precedente constituiu uma importante lufada de liberdade, que deixará marcas pela engenhosidade do raciocínio e, sobretudo, pela perspectiva de visualizar os direitos fundamentais como indivisíveis e interdependentes.


[1] Nesse sentido, NUNES, Mariana Madera. Habeas Corpus no Supremo Tribunal Federal. O cabimento de Habeas Corpus e jurisprudência defensiva do Supremo. Editora RT, 2019, pag. 65.

[2] Nesse sentido, entende-se que “a liberdade de locomoção há de ser entendida de forma ampla, não se limitando a sua proteção à liberdade de ir e vir diretamente ameaçada, como também toda e qualquer medida de autoridade que possa afetá-la, ainda que indiretamente”.  MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 12. Ed. São Paulo: Saraiva, 2017. P. 433.

[3] EDcl nos EDcl no AgRg no AREsp 1792372/PR, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 08/03/2022, DJe 11/03/2022

[4] TORON, Alberto Z. Habeas Corpus. Controle do devido processo legal: questões controvertidas e de processamento do writ. 1 ed. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 51.

[5] O entendimento firmado pelo STJ se aproxima, em termos de cabimento do habeas corpus, àquele contido na Constituição de 1891, idealizada por Ruy Barbosa, pois o writ passa a ter maior amplitude, amparando inclusive situações nas quais não necessariamente se discute o direito de locomoção. À época, o elastério interpretativo para o cabimento do writ deu origem à assim chamada “doutrina brasileira do habeas corpus”. Nesse sentido, TORON, Alberto Z. Habeas Corpus. Controle do devido processo legal: questões controvertidas e de processamento do writ. 1 ed. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 42.



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O crime antecedente de sonegação fiscal na lavagem de dinheiro

Por Marcelo Augusto Rodrigues de Lemos e Marina Brentano Colombo

Discute-se, atualmente, a (im)possibilidade da tipificação do crime de lavagem de dinheiro, na hipótese em que bens, direitos ou valores são adquiridos com recursos oriundos do crime de sonegação fiscal. Malgrado existam correntes doutrinárias que decretam que é atípica a conduta de lavagem de dinheiro em casos de supressão ou redução de tributos, por inexistência de crime antecedente, há, nessa problemática, relevantes desdobramentos.

Sabe-se, nessa quadra argumentativa, que, desde a edição da Lei n.º 12.683/2012, a lavagem de capitais passou a admitir, como crime antecedente, qualquer infração de temática penal. A alteração legislativa veio a derrubar a taxatividade dos delitos que antecediam o cometimento do branqueamento de capitais, expandindo o espectro de abrangência do tipo penal cotejado, trazendo ao cenário jurídico discussões bastante intrigantes em relação à estrutura típica do delito. Veja-se que a existência de uma infração penal, seja ela uma simples contravenção penal até um vultoso caso de tráfico de entorpecentes, é indispensável para a tipicidade, inobstante não necessitar, sequer, da existência de ação penal tendente a apurar, julgar e condenar o acusado pelo delito prévio (art. 2.º, inc. II, da Lei n.º 9.613/98). Assim, a partir do advento da nova lei, tem-se, por certo, um nebuloso alcance da lavagem de capitais, pois, grosso modo, qualquer crime ou contravenção penal que gere algum tipo de lucro, ou seja, conversão de dinheiro ilícito em idôneo, é suficiente para consumar a lavagem de dinheiro[1].

O crime antecedente, contudo, é autônomo em relação ao branqueamento de capitais, de sorte que, mesmo havendo absolvição no primeiro em razão, por exemplo, de inexistência de provas ou dúvidas quanto à autoria, a lavagem de dinheiro, mesmo assim, se perfectibiliza. Nesse aspecto, avulta-se a seguinte questão: considerando que a configuração do crime de sonegação fiscal depende do prévio esgotamento da via administrativa, enquanto que o crime de lavagem de capitais se consuma assim que os bens, direitos ou valores voltam a circular na economia lícita[2], é possível ter-se um crime de lavagem de capitais cujo delito antecedente seja a supressão ou redução de tributos?

A priori, é de rigor destacar-se que o crime tipificado no art. 1.º da Lei n.º 8.137/90 é um crime material e de dano, cujos elementos objetivos do tipo consistem na efetiva supressão ou redução de tributos ou contribuições sociais. Ainda, o elemento subjetivo é o dolo. À base dessas ponderações, interessa-nos, nos limites desta exposição, o dado momento de consumação do crime, havendo, para tanto, duas possibilidades: quando da conjuntura de todos os elementos normativos do tipo (supressão ou redução de tributos ou contribuições sociais, somado ao não-pagamento) ou após a constituição definitiva do crédito tributário.

Não há se olvidar-se, nesse cenário, a existência da Súmula Vinculante n.º 24, a qual estipula que não há tipificação material do crime de sonegação fiscal antes do lançamento definitivo do crédito tributário. Ou seja, será necessário o prévio esgotamento da esfera administrativa, para, finalmente, se iniciar a persecução penal. Nesse ponto, o Supremo Tribunal Federal, no habeas corpus n.º 81611, de lavra do ex-Ministro Sepúlveda Pertence, reconheceu que não há condição objetiva de punibilidade, no delito em análise, enquanto não houver o lançamento definitivo do tributo. Em outras palavras, não se consuma o crime quando ainda há discussão sobre a existência (ou não) da exigibilidade do imposto, em tese, devido[3].

Sucede, no entanto, que nem sempre foi assim: o julgado alhures representou uma mudança no entendimento do Pretório Excelso, pois, conforme bem elucida José Paulo Baltazar Júnior¸ antigamente, o crime de sonegação fiscal se consumava quando existentes todos os elementos normativos do tipo, a partir do vencimento do prazo para pagamento do débito tributário:

 

Ao contrário do que se dava no regime da Lei 4.729/65, os crimes do art. 1.º da Lei 8.137, com exceção daquele previsto em seu parágrafo único, são materiais e de dano, consumando-se quando todos os elementos do tipo estão reunidos. Exige-se, então, para a consumação, a efetiva supressão ou redução de tributo ou contribuição social (STF, HC 75.945, Pertence, 1.ª T., u., DJ 13.2.98) (...) Tradicionalmente, entendia-se, então, consumado o crime por ocasião do vencimento do prazo para pagamento[4].

 

Indubitável, pois, pela existência dos precedentes do Supremo Tribunal Federal no sentido de considerar-se, especialmente por conta da fluência do prazo prescricional do crime do art. 1.º da Lei n.º 8.137/90, em razão do óbice da Súmula Vinculante n.º 24, que o momento da consumação do delito é “no dia seguinte ao término do prazo para recurso voluntário no processo administrativo fiscal[5]”.

À base desse cenário, temos duas linhas de entendimento, prevalecendo-se a primeira: 1. o crime de sonegação fiscal se consuma a partir da constituição definitiva do crédito tributário, vale dizer, após o esgotamento da via administrativa e; 2. o delito contido no  se consuma quando da conjunção de todos os elementos normativos do tipo, isto é, quando há a efetiva supressão ou redução de tributos ou contribuições sociais e, por via de consequência, a ausência de adimplemento do tributo, ainda que pendente discussão administrativa[6].

Nessa ordem de ideias, as reiteradas decisões do Supremo Tribunal Federal tendentes a afirmar que o momento da consumação do crime de sonegação fiscal é a partir do lançamento definitivo do crédito tributário é, sem dúvida, uma providência plausível para evitar que a sonegação fiscal, enquanto tipo penal, se torne inócua. Explico: uma representação fiscal, assim como um processo judicial, pode demorar muitos anos, face a todos os recursos que o contribuinte tem a sua disposição. Nesse contexto, se, porventura, a consumação do delito se desse, para esses fins, na data da conjuntura de todos os elementos normativos do tipo e, consequente, vencimento do prazo para pagamento do débito tributário (não esqueçamos que o pagamento integral do tributo extingue a punibilidade do agente), o crime de sonegação fiscal, em sua extensa maioria, na prática, poderia estar prescrito, pois, com o advento da Súmula Vinculante n.º 24, é necessário o prévio esgotamento da via administrativa para, então, iniciar-se a persecutio criminis in judicio. Vale dizer, a contagem do prazo prescricional se inicia a partir da consumação do crime. Então, o Pretório Excelso tomou a (necessária) medida para fazer valer o jus puniendi estatal, evitando, deste modo, que o crime de sonegação fiscal se tornasse “letra morta” no ordenamento jurídico brasileiro.

Em outro cenário, muito embora o crime de lavagem de dinheiro seja autônomo em relação aquele que o originou, certo é que há de existir, ao menos, indícios da prática delitiva. Uma ponderada reflexão e imediata conclusão no tocante à sonegação fiscal como crime prévio ao branqueamento de capitais, nos leva a crer ser impossível a tipicidade nesses casos, pois a data de consumação do crime antecedente será posterior ao delito de lavagem de capitais. Portanto, em tese, não haverá crime antecedente.

Não se desconhece, igualmente o entendimento segundo o qual haverá tipicidade de lavagem de dinheiro oriunda de sonegação fiscal, pois, o art. 2.º, inc. II, da Lei n.º 9.613/98 estipula que a ação penal do crime de lavagem de dinheiro “independe do processo e julgamento das infrações penais antecedentes”, nos mesmos moldes do delito do art. 180 do Código Penal, o qual, na conclusão de Vladimir Aras “nem mesmo a Súmula Vinculante 24 impede a acusação por lavagem de dinheiro decorrente de sonegação fiscal”[7].

Entretanto, apesar disso, a questão redunda sobre a seguinte assertiva: deverá existir o crime antecedente (ou indícios) para tipificar o branqueamento de capitais. Nesse passo, as ações penais que visam a apurar a lavagem de capitais provenientes de ilícitos fiscais penais pode, sobremaneira, após impulsionamento da persecução penal em juízo perder o seu objeto. Isso porque as discussões acerca da exigibilidade do crédito tributário perduram por anos, de modo que, na existência de ação penal paralela, das duas uma: ou o processo criminal de apuração da responsabilidade pelo branqueamento de capitais será levado a efeito, sem qualquer problema, ou, na hipótese de reconhecimento, no processo fiscal, da inexigibilidade do tributo ou, até mesmo, outros aspectos que sejam relevantes ao processo penal (como o dolo, por exemplo), a ação penal deverá ser arquivada, trazendo um severo prejuízo ao acusado e ao Estado.

Portanto, em nossa concepção, levar a efeito uma persecução criminal em juízo que pode, ao fim e ao cabo, se tornar inócua é, sem sombra de dúvida, um ônus que o Estado não pode suportar. Não só isso, o próprio acusado em processo penal, não pode ser processado, julgado e condenado sem ter certeza quanto à existência de elemento normativo do tipo. Isto é, não compactua com os preceitos republicanos de um Estado Democrático de Direito, a marcha de um processo criminal no qual haja, desde sempre, a bem da verdade, dúvida quanto à existência de tipicidade. Destarte, em que pese a prescindibilidade de condenação quanto ao crime antecedente, no âmbito da lavagem de dinheiro, certo é que deverá haver o delito prévio. A norma não exclui essa indispensabilidade de os ativos ilícitos serem oriundos de infração penal.

Por conta disso, pela consumação do crime de sonegação fiscal se perfectibilizar na data em que é constituído o crédito tributário e, em sendo o branqueamento de capitais consumado em momento anterior a isso, não há se falar em lavagem de dinheiro proveniente da supressão ou redução de tributos. Somando-se a problemática posta em debate é preciso, ainda, trazer a baila outro posicionamento que corrobora a impossibilidade da sonegação fiscal como crime antecedente, isto é, da ausência, neste tipo penal, de inserção de recursos inidôneos aos seus proventos lícitos.

Sabe-se que o objetivo do agente ‘’lavador’’ é conferir origem lícita aos proventos ilícitos, a fim de que os mesmos sejam incorporados em seu patrimônio, havendo, desse modo, um acréscimo nesse. A conduta criminosa da lavagem de dinheiro é, portanto, naturalmente traduzida e vinculada à evolução do capital financeiro do agente, na medida em que ‘’o delito antecedente deve estar relacionado a um proveito econômico, redutível em valores ou direitos imobiliários.’’[8]. Nessa perspectiva, pontua-se, ab initio, que a figura do delito de sonegação fiscal, em realidade, possui uma diferenciação na sua estrutura típica frente aos demais delitos que comumente ocupam a posição de delito antecedente do branqueamento de capitais (p.ex: tráfico, roubo, estelionato e outros). Note-se que as infrações penais corriqueiras conduzem à incorporação de bens, direitos ou valores, ditos ‘‘sujos’’ ao patrimônio do sujeito, os quais, até então, ainda não faziam parte do seu patrimônio originário, isto é, estavam - até a perfectibilização do ilícito - na posse/propriedade de terceiro.

Lado outro, no delito de sonegação fiscal, os valores sonegados pertencem, originariamente, ao próprio sujeito sonegador, de sorte que o mesmo não passa a obter um acréscimo em seu patrimônio, mas, tão somente, mantém o valor que já estava, a priori, diluído no mesmo. É dizer: os valores sonegados não são incorporados ao patrimônio do sonegador, eles existem desde sempre e, simplesmente, não são recolhidos aos cofres públicos. Assim, quando o sujeito incorre no delito do art. 1.º da Lei n.º 8.137/90, não há o aporte de valores oriundo de terceiros e nem mesmo um proveito econômico – como ocorre nos demais crimes -, mas, tão somente, a manutenção do seu status quo.

Desse modo, questiona-se se a estrutura do delito de sonegação fiscal permite a configuração do branqueamento de capitais desencadeado em decorrência daquele, uma vez que se estaria diante de um crime antecedente, que por sua composição típica não preenche os pressupostos exigidos pelo tipo penal do art. 1º da Lei n.º 9.613/98, de sorte que os valores ditos ilícitos – por não terem sido declarados e recolhidos – já pertenciam ao sujeito sonegador, e não a um terceiro, não havendo, nesse sentido, a produção de recursos que venham a aumentar o patrimônio do sonegador. Não obstante, convém ainda destacar que a Exposição de Motivos da Lei n.º 9.613/98 possui redação que aborda, sem dificuldade, a problemática posta em debate.

 

Item 34: Observe-se que a lavagem de dinheiro tem como característica a introdução, na economia, de bens, direitos ou valores oriundos de atividade ilícita e que representaram, no momento de seu resultado, um aumento do patrimônio do agente. Por isso que o projeto não inclui, nos crimes antecedentes, aqueles delitos que não representam agregação, ao patrimônio do agente, de novos bens, direitos ou valores, como é o caso da sonegação fiscal. Nesta, o núcleo do tipo constitui-se na conduta de deixar de satisfazer obrigação fiscal. Não há, em decorrência de sua prática, aumento de patrimônio com a agregação de valores novos. Há, isto sim, manutenção de patrimônio existente em decorrência do não pagamento de obrigação fiscal. Seria desarrazoado se o projeto viesse a incluir no novo tipo penal - lavagem de dinheiro - a compra, por quem não cumpriu obrigação fiscal, de títulos no mercado financeiro. É evidente que essa transação se constitui na utilização de recursos próprios que não têm origem em um ilícito[9].

 

Percebe-se, pois, que o objetivo do legislador, de fato, jamais foi o de punir como crime antecedente de lavagem de dinheiro a sonegação fiscal, porquanto ausente, nesse cenário, qualquer acréscimo patrimonial ao agente sonegador, que, em última análise, manteve o seu capital originário em detrimento do desconto pelo pagamento do tributo. Assim, entende-se que, qualquer posicionamento favorável à configuração do delito de sonegação fiscal como crime antecedente ao branqueamento de capitais, mostra-se não só irrazoável como também desproporcional, pois conduz ao raciocínio de que todo o sonegador de impostos responderá por lavagem de dinheiro, isto é, o delito de sonegação fiscal será, obrigatoriamente, combinado com o delito de lavagem de dinheiro.

E mais: superando a questão posta acima, em que a própria estrutura do delito de sonegação fiscal impossibilita a sua caracterização como crime antecedente à lavagem de dinheiro, importante frisar, a partir de uma segunda perspectiva, a impossibilidade de punir o sujeito que, tão somente, se utiliza do dinheiro ‘’sujo’’ sem que o submeta ao processo de lavagem e a sua reinserção na economia legal[10]. Nesse aspecto, Juarez Tavares e Antonio Martins pontuam que ‘’ imagine-se que se exigisse daquele que comprasse um pão, um jornal um sanduíche ou um café a demonstração de que seu dinheiro tivera origem lícita. A vida seria insuportável. ’’[11]

Da mesma forma, como admitir que o valor não declarado seja – somente em razão de tal fato - objeto de lavagem de dinheiro sendo que o mesmo sequer passou pelo processo de dissimulação e reinserção na economia legal?  Como admitir que a conduta de não recolher impostos - em que não há a agregação de bens, direito ou valores ao patrimônio do sonegador - seja equiparada à conduta do sujeito que recebe proveitos ilícitos obtidos com o tráfico de drogas e faz a sua reinserção na economia, preenchendo perfeitamente os pressupostos do crime do art. 1º da Lei n.º 9.613/98? Em que momento se caracteriza o processo de lavagem do valor sonegado? Quando há a sua ocultação e reinserção a economia legal?

Por certo que a resposta para os questionamentos se encontra estampada na seguinte afirmação: não há como existir - típica e faticamente - crime de lavagem de dinheiro provocado pela sonegação fiscal, pois a conduta de deixar de recolher impostos, por si só, não é capaz de (i) aumentar o capital financeiro do sonegador e; (ii) o valor sonegado, passível de lavagem, eventualmente utilizado pelo agente, por si só, não configura o tipo penal do art. 1º da Lei n.º 9.613/98, sendo necessária a configuração do dolo da lavagem isto é, que o proveito ilícito seja efetivamente ‘’lavado’’ e reinserido na economia, o que não é o caso do delito de sonegação fiscal.

Essa é a conclusão que se perfilha nos estreitos limites deste ensaio, de modo que admitir que o delito de sonegação fiscal ocupe a posição de crime antecedente da lavagem de dinheiro conduz a um pensamento sem fundamento jurídico, de modo que a própria tipicidade do delito do art. 1º da Lei n.º 9.613/98 impede tal fenômeno, seja pelo fato de que a conduta de sonegar impostos não confere ao agente sonegador um acréscimo patrimonial – exigido pelo delito de lavagem de dinheiro – mas sim, apenas mantém o patrimônio anteriormente existente, ou pelo fato de que só existirá a perfectibilização do tipo penal de lavagem quando ocorrer o processo de dissimulação dos proveitos ilícitos acompanhado da sua consequente reinserção na economia. É dizer, portanto que, sob todos os ângulos, a lavagem de dinheiro desencadeada pela sonegação fiscal é plenamente atípica.

 

[1] Não obstante, há precedentes, especialmente emanado na Ação Penal n.º 470, que a simples ocultação de ativos ilícitos é suficiente para a consumação do crime de lavagem de dinheiro.

[2] Idem 1.

[3] HC 81611, Relator(a):  Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 10/12/2003, DJ 13-05-2005 PP-00006 EMENT VOL-02191-1 PP-00084.

[4] BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. Crimes federais. – 9.º ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2014, p. 844.

[5] BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. Crimes federais. – 9.º ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2014, p. 845.

[6] Nesse caso, por certo, a ação penal possui severo risco de se tornar inócua, uma vez que com o andamento simultâneo de ação penal e representação fiscal para fins penais é possível, ao fim e ao cabo, haver sentença administrativa favorável ao contribuinte decretando-se, por exemplo, a inexigibilidade do tributo devido. Na hipótese, inexistiria crime de sonegação fiscal, gerando, destarte, um desnecessário desgaste ao acusado em processo penal.

[7] ARAS, Vladimir. A investigação criminal na nova lei de lavagem de dinheiro. Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, boletim n.º 237, ago/2012.

[8] TAVARES, Juarez; MARTINS, Antonio. Lavagem de Capitais. 1ª ed.São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, pg. 59.

[9] https://www.gov.br/coaf/pt-br/acesso-a-informacao/Institucional/a-atividade-de- supervisao/regulacao/supervisao/legislacao/exposicao-de-motivos-lei-9613-1.pdf/view.

[10] TAVARES, Juarez; MARTINS, Antonio. Lavagem de Capitais. 1ª ed.São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, pg. 25.

[11] TAVARES, Juarez; MARTINS, Antonio. Lavagem de Capitais. 1ª ed.São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, pg. 26.


Marcelo Augusto Rodrigues de Lemos, Doutorando em Direito pela UNISINOS/RS e Mestre em Ciências Criminais pela PUC/RS e Especialista em Direito Penal Empresarial pela PUC/RS. Advogado criminalista.

Marina Brentano Colombo, bacharela em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos; Pós-graduanda em Direito Penal Econômico pela Pontifícia Universidade Católica do Estado de Minas Gerais. Advogada criminalista.


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