Claudia da Rocha e  Marlus H. Arns de Oliveira

Os avanços tecnológicos, econômicos e científicos nos conduzem cotidianamente “a uma nova modernidade” e caracterizam a chamada sociedade de risco. O mercado financeiro e de capitais, o controle de remessa de divisas, o combate à lavagem de dinheiro – entre muitos – são alguns dos fenômenos que o Direito Penal reconhece e acaba por tipificar condutas.

Nesse cenário, em que o Direito Penal tenta coibir ataques à economia, à globalização, às sociedades empresariais, ao meio ambiente, gradativamente nos afastamos da “ultima ratio” de controle e passamos – para o bem e para o mal – a um discurso de “Direito Penal liberal”.

Assim, condutas que outrora eram objeto de tutela na seara administrativa passam a ser tuteladas pelo Direito Penal, utilizando-se o Direito Administrativo como braço de apoio do Direito Penal, ocasionando uma desenfreada expansão.

Em decorrência dessa expansão penal e dos novos desafios impostos pela sociedade de risco tem-se, no cenário processual penal, a introdução de instrumentos de justiça negociada, na qual se alteram os ambientes de conflitos por espaços de consenso.

Desse contexto temático, extrai-se o seguinte problema: como conciliar esse quadro, em que, de um lado, o Estado expande a incidência do Direito Penal e, de outro, afasta-se, ainda que parcialmente, da resolução do conflito primando pela justiça penal negocial?

O negócio processual penal pode ser concei­tuado, de forma ampla, como um acordo entre acusação e defesa, com concessões mútuas e possibilitando uma solução antecipada para o conflito.

Conforme Sánchez, na justiça negociada, os valores como “verdade e justiça ficam, quando muito, em segundo plano”[1]. Parte-se da premissa de que devem ser buscados novos paradigmas na aplicação do Processo Penal, de modo a torná-lo mais célere, efetivo e negocial.

A negociação no Processo Penal, apesar de ser uma forte tendência, em especial com o recente Acordo de Não Persecução Penal, é um tema sensível – desde a transação penal à suspensão condicional do processo, pois afasta o Estado-Juiz de sua atuação como interventor necessário e coloca-o na condição de expectador do conflito.

A própria concepção do Processo Penal, compreendido como instrumento legitimador do exercício do poder punitivo estatal, ganha novos contornos após o acolhimento da transação penal, da suspensão condicional do processo, da colaboração premiada e do acordo de não persecução penal. Assume-se a faceta contratual de um negócio jurídico.

Nesse sentido, exemplificativamente, o artigo 3º-A da Lei n. 12.850/2013 estabelece que “o acordo de colaboração premiada é negócio jurídico processual”, em consonância com o que já havia decidido o Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC n. 127.483/PR.

É certo que a figura do negócio jurídico possui relevo no direito privado, sendo igualmente correto afirmar que vem ganhando força no âmbito processual penal. Inicia-se com a edição da Lei n. 9.099/1995, ao disciplinar sobre a transação e a suspensão condicional do processo, expande-se com a colaboração premiada e, mais recentemente, com a inclusão do acordo de não persecução penal, pela Lei Anticrime, no Código de Processo Penal.

No entanto, é essencial compreender que enquanto no campo civil se lida mais com o “ter”, no âmbito penal a preocupação maior é o homem. Por isso, quando se pensa, por exemplo, no acordo de não persecução penal surgem problemas como i) a supervalorização da confissão, a nosso sentir totalmente inconstitucional enquanto condição obrigatória no acordo de não persecução penal e ii) a ilusão de voluntariedade e consenso, que oculta a sujeição do acusado ao poder do Estado, em especial, quanto à pena pretendida pelo acusador.

É certo que o abuso na utilização desses instrumentos de negociação penal levará à falência dos institutos, por isso toda cautela se faz necessária, bem como o cumprimento das obrigações legais e o imprescindível registro integral das negociações.

Não obstante as problemáticas suscitadas, e muitas outras existentes, faz-se  necessário analisar e debater novos pressupostos para a compreensão do Processo Penal, especialmente no que concerne à distinção entre direitos fundamentais e privilégios, pois a disponibilidade da ação penal e o direito ao processo são pressupostos da negociação.

A título exemplificativo, no caso do acordo de não persecução penal, em que se confessa e se negocia a pena, cabe destacar o seguinte:

 

  1. a) se a presunção da inocência e o direito ao processo forem tratados como Direitos Fundamentais indisponíveis, será impossível negociar-se a culpa e pena, logo, por dever de coerência, não se poderá aceitar a negociação porque o caso penal seria inegociável;
  2. b) no entanto, se a presunção de inocência e o direito ao processo forem normas disponíveis, não se poderá invocar boa parte da tradição continental de Direito processual penal, e deverá se compreender (a negociação) como privilégios, portanto, disponíveis.[2]

 

Portanto, o verdadeiro divisor de águas neste momento de transição do Direito Penal e Processual Penal é a definição do que se constituiu fundamentalmente como standard de garantias e o que pode ser negociado. Isso porque são verdadeiramente os Direitos Fundamentais as balizas para a negociação. Estabelecidos quais são os resguardos básicos da dignidade humana, estará assegurado que os novos institutos de negociação penal observem o devido processo legal.

 


Claudia da Rocha é advogada, pós-graduada em Direito Constitucional pelo IDCC, em Direito e Processo Penal pela UEL, pós-graduanda em Direito Penal Econômico pelo IDPEE/IBCCRIM, mestranda em Direito Negocial na UEL e professora de Processo Penal e Prática Penal no Centro Universitário Unifamma.

Marlus H. Arns de Oliveira é advogado, sócio do escritório Arns de Oliveira & Andreazza Advogados Associados e doutor em Direito pela PUC/PR.


[1] SÁNCHEZ, Jesus-Maria Silva. A Expansão do Direito Penal. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 90.

[2]ROSA, Alexandre Morais da. Guia do processo penal conforme a teoria dos jogos. 6. ed. Florianópolis: EMais, 2020, p. 508.


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