Por: Rafael Guedes de Castro[1]
O contexto das grandes operações deflagradas pela Polícia Judiciária e pelo Ministério Público, no que tange ao combate aos delitos econômicos, tem exigido profunda e criteriosa reflexão técnica sobre a forma como são conduzidas e sobre os parâmetros jurídico-institucionais que as permeiam. Se de um lado as retribuições ilegais decorrentes de atos de corrupção, por exemplo, geram prejuízos econômicos na medida em que afetam a distribuição de recursos públicos e a liberdade de iniciativa[2], de outro, não se pode desconsiderar que há uma tendência de que os subsistemas de imputação sejam transformados em meros instrumentos de punição, subvertendo, dessa forma, sua natureza de mecanismos de proteção do cidadão em face do Poder Estatal.
No ano de 2001, no II Congresso Brasileiro de Direito Processual Civil, Penal e Juizados Especiais, em Joinville – SC, o Professor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho já advertia sobre os riscos de uma crescente ideia de flexibilização de garantias constitucionais nas reformas processuais e de eficiência “tentando dar efetividade antecipada a uma “possível/provável condenação”, mesmo que, para isso, tenha-se de correr o risco da injustiça[3]. Essa tendência se revelou, na prática, mediante a atuação do aparelho persecutório estatal e uma técnica político-legislativa pouco criteriosa a exemplo da Lei 12.850/2013, que ampliou os espaços de consenso no Direito Processual Penal mediante a importação de conceitos próprios de países cuja tradição jurídica difere em muito da realidade brasileira.[4]
Dentro desse cenário de combate à criminalidade econômica, o tema referente às medidas cautelares patrimoniais surge como mecanismo processual comumente utilizado para, além da punição corporal, garantir uma eventual reparação do dano causado pela infração. Ocorre que, a despeito da possibilidade de sua utilização, não é incomum sua má utilização, invocando-se, inclusive, um suposto “poder geral de cautela” na seara penal para a determinação de medidas constritivas em desacordo com o estatuto processual penal, o que conduz a um indevido uso abusivo dessas medidas cautelares.
O capítulo IV do Código de Processo Penal elenca, como medidas assecuratórias, o (i) sequestro, o (ii) arresto e a (iii) hipoteca legal, sendo que todos esses instrumentos possuem claras e objetivas finalidades. O sequestro, por exemplo, a teor dos artigos 125 a 132, pode recair sobre bens móveis e imóveis que tenham sido adquiridos como provento da infração penal. O arresto, artigos 136 e 137 do estatuto processual, poderá recair sobre imóveis, previamente a especialização e registro da hipoteca legal, artigo 134 e 135, para que seja estimado o valor do bem constrito, bem como subsidiariamente sobre bens móveis, não ficando sua incidência limitada a bens adquiridos ilicitamente.
Sob o mesmo ponto de vista, o artigo 4º da Lei de Lavagem de Capitais, com redação dada pela Lei 12.683/2012, estabelece que o juiz poderá decretar, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial, medidas assecuratórias de bens quando existirem indícios suficientes da prática da infração, permitindo que atinjam instrumentos, produto ou proveito do crime e bens do acusado que estejam em nome de pessoa interposta. A inovação legislativa, claramente, ampliou a incidência do tema, permitindo que a constrição atinja tanto o produto ou proveito obtido pela prática da infração antecedente como o produto da própria lavagem. Ao contrário da sistemática estabelecida no estatuto processual penal, o qual prevê a inscrição e registro da hipoteca legal e o arresto prévio como medidas destinadas à reparação do dano, a Lei de Lavagem de Capitais estabeleceu uma possibilidade ampla de que sejam decretadas medidas assecuratórias para reparação do dano, prestação pecuniária, multa e custas processuais.[5]
O alargamento das hipóteses legais de decretação dessas medidas e uma falta de critério na análise do instrumento na prática têm conduzido a situações inusitadas. Não é raro observar a imposição de medidas cautelares patrimoniais sem indicação do instrumento processual que está sendo adotado, com ausência de diferenciação de bens lícitos e ilícitos, sem prazo de duração e com absoluto casuísmo ao simplesmente decretá-las, nomeando-as, como medidas de bloqueio ou indisponibilidade, nomenclaturas que sequer existem na sistemática processual. Esse campo de incertezas conduz à sua indevida utilização, à inversão do ônus probatório e a uma indevida presunção de culpabilidade.
Não é difícil visualizar os graves prejuízos que alguém, presumivelmente inocente, poderá ter ao enfrentar um processo judicial com todo patrimônio constrito indevidamente. De outro lado, mais grave ainda é quando essa medida atinge os ativos financeiros de uma pessoa jurídica que possua sócios ou dirigentes investigados e que necessite fazer frente a inúmeros compromissos financeiros com funcionários acionistas e investidores.
Neste sentido, apesar de o Direito Penal prever uma responsabilidade subjetiva e pessoal, a jurisprudência tem estendido às pessoas jurídicas o ônus de arcar com custas, multas e ressarcimento do dano mesmo que a sua responsabilização penal seja inviável constitucionalmente, à exceção dos crimes ambientais. Por exemplo, na Apelação Criminal n. 5046488-95.2018.4.04.7000, o Tribunal Federal da 4ª Região já decidiu que “tratando-se de criminalidade complexa, praticada por pessoas físicas, mas por intermédio de pessoa jurídica e/ou em favor desta, viável o direcionamento acautelatório contra o patrimônio do beneficiário ainda que inviável a responsabilização penal da pessoa jurídica (…) isto não equivale dizer que esta não possa sofrer a constrição de seus bens ou ativos de origem lícita – que não correspondem ao produto ou proveito do crime.” No mesmo sentido, seguiu o Superior Tribunal de Justiça, no Agravo Regimental no Recurso Especial n. 1712934/SP. Por outro lado, sobre a forma genérica como se trata o tema, o Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial 1319345/PR, também já afirmou que as “medidas assecuratórias previstas na legislação processual penal, tais como o sequestro, o arresto e a hipoteca legal, têm por fim garantir tanto a reparação de dano exdelicto quanto a efetividade da multa pecuniária e o pagamento das custas processuais que possam vir a ser impostas ao denunciado”, não estabelecendo uma diferenciação entre as hipóteses contempladas pela legislação.
Em um campo onde predomina a discricionariedade, deve-se observar que o tema relativo à tutela cautelar está vinculado a um princípio de legalidade estrita e a pressupostos rígidos de cautelaridade, ainda que não se tenha um verdadeiro processo cautelar autônomo no processo penal. Dentre as características existentes, há duas que se sobressaem como imprescindíveis à análise do tema, quais sejam, a Referibilidade e a Proporcionalidade. A Referibilidade é um requisito que conecta a necessidade da medida com a situação concreta de direito material, determinando que a constrição patrimonial não ultrapasse os limites do que pode ser objeto de condenação ao final. A proporcionalidade, por sua vez, impede que a medida não seja mais gravosa que o provimento final.[6]
Como dito, a legalidade estrita é um imperativo na matéria, levando à conclusão de que medidas que ampliem o escopo da tutela cautelar patrimonial não encontram guarida na sistemática processual vigente. Da mesma forma, a existência de um poder geral de cautela, que permitiria ao Magistrado limitar a liberdade do investigado sem expressa previsão legal, também não se enquadra dentro das exigências constitucionais que determinam um processo penal acusatório e que observe o devido processo legal. [7]
O tema provoca intensa reflexão e não seria possível deixar de recordar as preciosas lições do Professor e Advogado René Ariel Dotti. No artigo intitulado “Algumas reflexões sobre o Direito Penal dos Negócios”[8], o ilustre Professor, além de ponderar sobre a exigência de uma atuação jurisdicional penal efetiva para ao enfrentamento de uma criminalidade que manifesta fatores complexos e prejudiciais, reafirmava seu notório compromisso com a defesa constitucional, aduzindo ser necessário um rigoroso controle público pela fiscalização, inclusive de instituições não formais, como parte de um processo de democratização que leve em conta as liberdades, os direitos e as garantias fundamentais.
[1] Advogado. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná e especialista em Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Direito Penal Econômico pela Universidade Federal do Paraná, pela Universidade de Coimbra – Portugal e pela Universidade Castilla La Mancha, Toledo, Espanha.
[2]ROSE-ACKERMAN, Susan. The Law and Economics of Bribery and Extortion.In:Annual Review of Law and Social Science, vol. 6, p. 217-236, 2010; Yale Law & Economics Research Paper n. 408. Disponível em: http://ssrn.com/abstract=1646975.
[3]COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Efetividade do Processo Penal e Golpe de Cena: Um problema às reformas processuais. In:Escritos de Direito e Processo Penal em homenagem ao Professor Paulo Claudio Tovo. Lumen Juris, 2002, p. 145
[4]Sobre o tema: LANGER, M. Dos Transplantes jurídicos às traduções jurídicas: A globalização do plebargaining e a tese da americanização do Processo Penal. Delicate, vol. 2, n.3, jul-dez. 2017.
[5]BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais. 3. ed. São Paulo: EditoraRevista dos Tribunais, 2016, p. 343.
[6]BADARÓ, GutavoHenrique . Medidas Cautelares Patrimoniais no Processo Penal. In: Crimes Econômicos e Processo Penal. Série GV-law. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 170.
[7]GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Presunção de inocência e prisão cautelar. São Paulo: Sarava, 1991, p. 57.
[8]DOTTI, Rene Ariel. Algumas reflexões sobre o Direito Penal dos Negócios.In:PRADO, Luiz Regis; DOTTI, René Ariel. Doutrinas Essenciais Direito Penal da Administração Pública, Vol. IV, São Paulo, RT, 2011.
Bibliografia
BADARÓ, Gutavo Henrique. Medidas Cautelares Patrimoniais no Processo Penal. In: Crimes Econômicos e Processo Penal. Série GV-law. São Paulo: Saraiva, 2008.
BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais. 3. ed. São Paulo: EditoraRevista dos Tribunais, 2016
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda.Efetividade do Processo Penal e Golpe de Cena: Um problema às reformas processuais.In:Escritos de Direito e Processo Penal em homenagem ao Professor Paulo Claudio Tovo. Lumen Juris, 2002.
DOTTI, Rene Ariel. Algumas reflexões sobre o Direito Penal dos Negócios.In: PRADO, Luiz Regis; DOTTI, René Ariel. Doutrinas Essenciais Direito Penal da Administração Pública, Vol. IV, São Paulo, RT, 2011
GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Presunção de inocência e prisão cautelar. São Paulo: Sarava, 1991, p. 57
LANGER, M. Dos Transplantes jurídicos às traduções jurídicas: A globalização do plebargaining e a tese da americanização do Processo Penal. Delicate, vol. 2, n.3, jul-dez. 2017
ROSE-ACKERMAN, Susan. The Law and Economics of Bribery and Extortion.In:Annual Review of Law and Social Science, vol. 6, p. 217-236, 2010; Yale Law & Economics Research Paper n. 408. Disponível em: http://ssrn.com/abstract=1646975
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