Por: Rafael Junior Soares

O pacote anticrime inseriu no Código de Processo Penal o instituto da cadeia de custódia (arts. 158-A a 158-F), considerado como mecanismo importante para a lisura da prova na persecução penal, tendo em vista que há necessidade de se demonstrar documentalmente que o vestígio recolhido é o mesmo valorado na tomada de decisão judicial, pairando uma desconfiança entre as partes, a qual somente poderá ser superada pela correta demonstração dos elos inerentes à custódia da prova[1].

O objetivo da cadeia de custódia é o de “garantir a preservação da integridade dos vestígios de um crime, documentando-se, inclusive, os agentes estatais que tiveram contato com a prova”[2]. Diante disso, garante-se todo o percurso da prova, que vai desde o reconhecimento do vestígio até o descarte, de modo que eventual interferência poderá redundar na imprestabilidade[3].

A discussão mais importante reside nos desdobramentos que poderão ocorrer em razão da quebra ou não preservação da cadeia de custódia, tendo em vista que existem duas correntes com a defesa de consequências bem distintas. A primeira sustentando que a violação implicará na exclusão do material probatório, enquanto a segunda advoga que caberá ao juiz valorar o elemento probatório à luz da irregularidade constatada[4].

Neste contexto, independentemente da posição a ser adotada, é possível verificar os primeiros reflexos do novo instituto na jurisprudência, como por exemplo, a decisão prolatada pelo Superior Tribunal de Justiça no habeas corpus nº. 461.709/SP[5], no qual se reconheceu vícios no reconhecimento de vozes dos investigados. O caso examinado pela Corte Cidadã chama a atenção em dois aspectos: i) o reconhecimento de voz, em inobservância ao art. 226 do Código de Processo Penal; ii) a quebra da cadeia de custódia pela não conservação das vozes recolhidas na investigação preliminar.

Com efeito, o Ministro Rogério Schietti asseverou em seu voto o seguinte: “a inexistência de formalidade para a identificação do suspeito afasta seu potencial epistêmico. A gravação das vozes não foi preservada (quebra de cadeia de custódia), as falas não foram colocadas ao lado de outras, que com elas tivessem qualquer semelhança e não foi feito nenhum tipo de comparação, por perícia técnica, com as escutas dos sequestradores, que o delegado afirmou ter feito.”.

Desse modo, observa-se que o reconhecimento de voz realizado na delegacia de polícia não foi repetido em juízo, além de ter sido produzido em desconformidade com o art. 226 do Código de Processo Penal[6]. Assim, especialmente no que interessa ao presente trabalho, observa-se que as gravações de vozes não foram preservadas pelas autoridades, a fim de que pudessem ser comparadas em juízo, bem como periciadas e objeto de contraprova pela defesa.

Com efeito, o caso é muito interessante porque apresenta influxos concretos dos novos dispositivos na jurisprudência relativa à irregularidade da cadeia de custódia. Além disso, a partir do exame da decisão mencionada, entendeu-se como “ausentes critérios mínimos para garantir o nível de confiabilidade racional do elemento informativo”. Isso demonstra que a suposta quebra da cadeia de custódia foi interpretada como fator de diminuição da credibilidade da prova e não como sua ilicitude, cabendo ao magistrado valorar o elemento probatório.

Portanto, a inclusão da cadeia de custódia no ordenamento jurídico apresenta-se como mais um dos institutos essenciais para que ocorra uma “filtragem epistêmica” da prova penal[7], fixando-se procedimentos específicos para a produção de cada meio de prova, tudo com o objetivo de garantir um processo penal que seja capaz de respeitar as garantias processuais.

 


Rafael Junior Soares
Doutorando em Direito pela PUC/PR.

Mestre em Direito Penal pela PUC/SP

Professor de Direito Penal na PUC/PR. Advogado.

E-mail: rafael@advocaciabittar.adv.br


REFERÊNCIAS

BORRI, Luiz Antonio. SOARES, Rafael Junior. A cadeia de custódia no pacote anticrime. Boletim IBCCRIM, ano 28, nº. 335, p. 17-19, out./2020.

MATIDA, Janaina. A cadeia de custódia é condição necessária para a redução dos riscos de condenações de inocentes. Boletim IBCCRIM, ano 28, 331, p. 06-08, jun./2020.

MATIDA, Janaina. MASCARENHAS, Marcella; HERDY, Rachel. A prova penal precisa passar por uma filtragem epistêmica. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-13/limite-penal-prova-penal-passar-filtragem-epistemica. Acesso em: 30 abr. 2021.

MENEZES, Isabela A.; BORRI, Luiz A.; SOARES, Rafael J. A quebra da cadeia de custódia da prova e seus desdobramentos no processo penal brasileiro. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 4, n. 1, p. 281, jan./abr. 2018. Disponível em: https://doi.org/10.22197/rbdpp.v4i1.128. Acesso em: 30 abr. 2021.

PRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova penal. São Paulo: Marcial Pons, 2019, p. 94-97.


[1] PRRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova penal. São Paulo: Marcial Pons, 2019, p. 94-97.

[2] BORRI, Luiz Antonio. SOARES, Rafael Junior. A cadeia de custódia no pacote anticrime. Boletim IBCCRIM, ano 28, nº. 335, p. 17-19, out./2020.

[3] MENEZES, Isabela A.; BORRI, Luiz A.; SOARES, Rafael J. A quebra da cadeia de custódia da prova e seus desdobramentos no processo penal brasileiro. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 4, n. 1, p. 281, jan./abr. 2018. Disponível em: https://doi.org/10.22197/rbdpp.v4i1.128. Acesso em: 30 abr. 2021.

[4] MATIDA, Janaina. A cadeia de custódia é condição necessária para a redução dos riscos de condenações de inocentes. Boletim IBCCRIM, ano 28, 331, p. 06-08, jun./2020.

[5] HC 461.709, Rel. Ministro Rogério Schietti, Sexta Turma, DJ 30/04/2021.

[6] O Superior Tribunal de Justiça construiu precedente importante a respeito do reconhecimento de pessoas, o qual foi reproduzido para o reconhecimento de vozes: HABEAS CORPUS. ROUBO MAJORADO. RECONHECIMENTO FOTOGRÁFICO DE PESSOA REALIZADO NA FASE DO INQUÉRITO POLICIAL. INOBSERVÂNCIA DO PROCEDIMENTO PREVISTO NO ART. 226 DO CPP. PROVA INVÁLIDA COMO FUNDAMENTO PARA A CONDENAÇÃO. RIGOR PROBATÓRIO. NECESSIDADE PARA EVITAR ERROS JUDICIÁRIOS. PARTICIPAÇÃO DE MENOR IMPORTÂNCIA. NÃO OCORRÊNCIA. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA. (…) Conclusões: 1) O reconhecimento de pessoas deve observar o procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se encontra na condição de suspeito da prática de um crime; 2) À vista dos efeitos e dos riscos de um reconhecimento falho, a inobservância do procedimento descrito na referida norma processual torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita e não poderá servir de lastro a eventual condenação, mesmo se confirmado o reconhecimento em juízo; 3) Pode o magistrado realizar, em juízo, o ato de reconhecimento formal, desde que observado o devido procedimento probatório, bem como pode ele se convencer da autoria delitiva a partir do exame de outras provas que não guardem relação de causa e efeito com o ato viciado de reconhecimento; 4) O reconhecimento do suspeito por simples exibição de fotografia(s) ao reconhecedor, a par de dever seguir o mesmo procedimento do reconhecimento pessoal, há de ser visto como etapa antecedente a eventual reconhecimento pessoal e, portanto, não pode servir como prova em ação penal, ainda que confirmado em juízo. (…) . (HC 598.886/SC, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 27/10/2020, DJe 18/12/2020).

[7] MATIDA, Janaina. MASCARENHAS, Marcella; HERDY, Rache. A prova penal precisa passar por uma filtragem epistêmica. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-13/limite-penal-prova-penal-passar-filtragem-epistemica. Acesso em: 30 abr. 2021.