Beatriz Daguer[1] e Rafael Junior Soares[2]

A lei de lavagem de dinheiro (Lei 9.613/98) completou vinte e dois anos de existência no país, já tendo passado por profundas modificações no ano de 2012 (Lei 12.683/12). Com o objetivo especialmente de atender anseios internacionais, o Brasil introduziu mencionado crime e, por sua vez, organizou o mecanismo de controle à atividade ilícita, com a inserção de obrigações e responsabilidade administrativa para determinados sujeitos.

Neste contexto, observou-se pelo país nos últimos anos o aumento significativo da quantidade de processos criminais com a inclusão da figura típica da lavagem de dinheiro e, como consequência natural, uma série de desafios para os Tribunais, como, por exemplo, natureza jurídica do crime, os limites do tipo objetivo, caixa dois, medidas assecuratórias etc. Tanto é assim que recentemente a Câmara dos Deputados criou a Comissão de Juristas[3] para atualizar a legislação, especialmente na correção dos problemas decorrentes da prática judicial, visando conferir maior segurança jurídica e diminuição das lacunas legislativas.

Sem ignorar a importância de cada um dos temas a serem examinados pela Comissão de Juristas, uma das questões que sempre preocupou a advocacia consiste na possibilidade de imputação de lavagem de dinheiro pelo mero recebimento de honorários advocatícios. Embora a questão possa parecer simples, existem casos ao redor do país de incriminação de advogados pelo simples recebimento de honorários. Não é incomum a tentativa, por meio de projetos de lei[4], de impor obrigações aos advogados de comprovação da origem dos honorários recebidos ou até mesmo impor aos acusados que, em casos de lavagem de dinheiro, tenham de se socorrer da Defensoria Pública.

Dentre os projetos de lei, há a proposição de equiparação de recebimento de honorários advocatícios que sabe ser proveniente de crime à receptação qualificada[5] e até impor a obrigação de que os advogados ou sociedades de advogados forneçam informações sobre pagamentos que porventura possam constituir indícios de lavagem de dinheiro[6], entre outras investidas que objetivam criminalizar a profissão do defensor, notadamente o que atua na área criminal.

Enquanto a discussão não é deliberada e definida no âmbito do Poder Legislativo, com o escopo de solucionar o problema e dirimir eventual insegurança, em 2020, a Ordem dos Advogados do Brasil apresentou proposta de Provimento instituindo medidas de prevenção à lavagem de dinheiro para advogados e sociedades de advogados, oferecendo, com isso, contornos mais seguros à atividade profissional em diversos aspectos.

O instrumento normativo é dividido em três capítulos[7]. O primeiro tratando dos princípios gerais de prevenção da lavagem de dinheiro (arts 1º e 2º). O segundo abordando os honorários profissionais (arts. 3º a 9). E, por fim, os deveres relacionados à comunicação de operações suspeitas (arts. 10 a 12). Não obstante a importância dos três tópicos, o presente trabalho limita-se a examinar a questão relativa aos honorários profissionais.

O objetivo do Provimento nada mais é do que afastar qualquer tentativa indevida de criminalização da atividade advocatícia, tanto é assim que no art. 2º, parágrafo único, assevera não constituir qualquer forma de colaboração para lavagem de dinheiro a prestação legítima de atividades privativas da advocacia e o recebimento de honorários pela atividade profissional desempenhada.

Dessa forma, os dispositivos subsequentes estabelecem a forma de comprovação da prestação de serviços (art. 7º), elencando diversos meios de demonstração a partir da forma e natureza jurídica do trabalho desempenhado tanto na seara litigiosa quanto na consultiva, como contratos de honorários, petições, arrazoados, participação em audiências, despachos, sustentações orais etc.

A previsão é importante porque traz orientações objetivas e claras à classe da advocacia quanto à necessidade de observar obrigações mínimas de registro e controle como forma de se afastar por completo eventual suspeição acerca da atividade profissional, a fim de se evitar problemas de imputação da prática dos ilícitos dispostos na Lei 9.613/98.

Na sequência se apresenta orientação ao recebimento de valores a título de honorários com o escopo de repasse a terceiros, ainda que sob a forma simulada de contratação pelo serviço, estabelecendo que ficará o defensor sujeito às sanções legais (art. 8º). Trata-se de dispositivo que visa reforçar o objetivo do Provimento de regulação do recebimento de honorários como contraprestação pelo trabalho desenvolvido, uma vez que a situação narrada acima esquiva-se das atividades da advocacia. Além disso, afasta a possibilidade de criminalização do legítimo direito ao recebimento de honorários pelo lícito serviço prestado pela classe.

É certo que o tema está na ordem do dia tanto no Congresso Nacional quanto na Ordem dos Advogados do Brasil, esperando-se que a posição terminativa a ser adotada seja no sentido de que não se considere que o ato legítimo de recebimento de honorários pela correta prestação de serviços – independentemente da necessidade de se perquirir a origem dos recursos – possa se enquadrar nos dispositivos previstos na lei de lavagem de dinheiro.

Aliás, como bem suscitado por Pierpaolo Cruz Bottini, “o escopo da lei de lavagem de dinheiro é garantir a rastreabilidade do capital para que as autoridades públicas possam conhecer o caminho entre a infração e o destino dos bens”[8], ao passo que não deve ser imposto ao advogado o dever de investigar a origem do dinheiro ou os atos que justificaram sua aquisição, mas o recebimento deve ser tão somente registrado e anotado para que os responsáveis pela investigação tenham à sua disposição elementos para construir a cadeia de distribuição de eventuais recursos ilícitos[9].

Portanto, o Provimento representa importante avanço como forma de proteção da advocacia nacional, tendo em vista que estabelece padrões objetivos de conduta do profissional, especialmente pela indicação das formas de comprovação da atividade exercida, as quais uma vez atendidas afastam, por si só, qualquer possibilidade de incriminação da atividade exercida como lavagem de dinheiro.


[1] Mestranda em Direito Penal na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Especialista em Direito Penal e Processo Penal Econômico pela PUC/PR. Advogada criminalista. E-mail: beatrizdaguer.adv@gmail.com

[2] Doutorando em Direito pela PUC/PR. Mestre em Direito Penal pela PUC/SP. Professor de Direito Penal da PUC/PR. Advogado Criminalista. E-mail: rafael@advocaciabittar.adv.br


[3]   Lista completa disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/grupos-de-trabalho/comissao-de-juristas-lavagem-de-capitais/conheca-a-comissao/criacao-e-constituicao/Criaoeinstituiao.pdf. Acesso em: 03 mar. 2021.

[4]   REVISTA CONJUR. Mais um projeto quer obrigar advogados a provar origem legal dos honorários. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jul-02/projeto-obrigar-advogados-provar-origem-legal-honorarios. Acesso em: 25 fev. 2021.

[5]   CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei nº _____, de 2019. Deputada Bia Kicis.  Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/pl-responsabilizar-advogado-honorario.pdf. Acesso em: 03 mar. 2021.

[6]   SENADO FEDERAL. Projeto de Lei nº 4516, de 2020. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8889028&ts=1599758994970&disposition=inline. Acesso em: 03 mar. 2021.

[7]   REVISTA CONJUR. Para OAB, advogado, em outra função, deve informar atividade suspeita de cliente. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-dez-07/proposta-preve-advogado-comunique-operacoes-suspeitas-clientes. Acesso em: 03 mar. 2021.

[8]   BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Advogado não deve ser fiscal dos próprios honorários. Disponível em: conjur.com.br/2013-fev-26/direito-defesa-advogado-nao-fiscal-proprios-honorarios. Acesso em: 05 mar. 2021.

[9] Ibidem.

BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Advogado não deve ser fiscal dos próprios honorários. Disponível em: conjur.com.br/2013-fev-26/direito-defesa-advogado-nao-fiscal-proprios-honorarios. Acesso em: 05 mar. 2021.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei nº _____, de 2019. Deputada Bia Kicis.  Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/pl-responsabilizar-advogado-honorario.pdf. Acesso em: 03 mar. 2021.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Câmara instala hoje comissão de juristas que vai propor mudanças na lei de lavagem de dinheiro. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/grupos-de-trabalho/comissao-de-juristas-lavagem-de-capitais/conheca-a-comissao/criacao-e-constituicao/Criaoeinstituiao.pdf. Acesso em: 03 mar. 2021.

REVISTA CONJUR. Mais um projeto quer obrigar advogados a provar origem legal dos honorários. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jul-02/projeto-obrigar-advogados-provar-origem-legal-honorarios. Acesso em: 25 fev. 2021.

REVISTA CONJUR. Para OAB, advogado, em outra função, deve informar atividade suspeita de cliente. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-dez-07/proposta-preve-advogado-comunique-operacoes-suspeitas-clientes. Acesso em: 03 mar. 2021.

SENADO FEDERAL. Projeto de Lei nº 4516, de 2020. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8889028&ts=1599758994970&disposition=inline. Acesso em: 03 mar. 2021.



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