Por: Daniel Zaclis

O julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) em relação aos processos da Lava Jato contra o ex-presidente Lula trouxe à tona, uma vez mais, o difícil tema das nulidades penais: a possibilidade de que a Justiça, revendo seus próprios atos, declare nula (sem efeitos) uma série de decisões – às vezes, uma ação inteira – em razão de erros processuais.

Como um manual de instruções, as regras de processo penal preveem a forma, a anatomia, dos atos processuais. Há um juiz competente para cada caso. Há uma maneira de citar o indivíduo contra quem recai a acusação. Há um jeito correto de interrogar o réu. O respeito a essas formas confere legitimidade à pena imposta pelo Estado.

Ao mesmo tempo – e aqui está a causa de muitas confusões -, a inobservância das regras processuais nem sempre ocasiona a invalidação do processo.  Nem todo vício do processo gera nulidade, uma vez que as formas dos atos não constituem um fim em si mesmo. Cada regra processual detém uma finalidade específica, que pode estar explícita ou implícita no ordenamento jurídico. Se o defeito não afetar tal finalidade, em tese os atos processuais devem permanecer intactos.

Por isso, o sistema de nulidades tem uma viga-mestre: a regra do prejuízo. Nenhum ato deve ser anulado se não houver prejuízo às partes. Nascido no Direito francês, em pleno século XVII, o adágio “pas de nullité sans grief” (sem dano, não há nulidade) surge como reação dos tribunais para conter a arbitrariedade dos reis, que à época detinham o poder absoluto para decidir sobre a nulidade dos processos judiciais. Hoje, a regra do prejuízo evita que processos sejam anulados por preciosismos ou erros insignificantes, reservando a sanção de nulidade apenas para os casos em que houver a comprovação de um prejuízo para acusação ou defesa.

Em tese, a regra do prejuízo faz sentido. No entanto, há um enorme dissenso sobre sua aplicação prática; por exemplo, quais critérios utilizar para a aferição do prejuízo ou mesmo quais hipóteses em que o prejuízo é inerente ao próprio vício. O resultado é uma aplicação caótica, gerando grande insegurança jurídica.

Há casos em que o prejuízo é evidente. Não se questiona, por exemplo, a nulidade de uma sentença condenatória proferida por um juiz que é irmão da vítima. Ainda que existam provas consistentes para embasar a condenação, o prejuízo existe inegavelmente.

Em outros casos, no entanto, a solução não se mostra tão trivial. Como demonstrar o prejuízo, por exemplo, da ausência de intimação para o acusado comparecer em audiência para oitiva de testemunha de acusação? Ora, uma vez que ele não esteve presente no ato, impossível fazer um juízo hipotético de como poderia sido – quais perguntas seriam feitas, etc. – com o seu comparecimento. É razoável, portanto, haver hipóteses em que o prejuízo seja presumido.

No entanto, diante da falta de critérios claros, os tribunais têm ignorado a maioria dos defeitos cometidos no processo penal, sob a justificativa de ausência de demonstração do prejuízo. Trata-se de uma saída simplista que, além de não resolver o problema, estimula a condução de processos de forma irregular.

A própria separação, existente na doutrina, entre nulidades absolutas (insanáveis) e relativas (sanáveis) hoje é fluida. Não raras vezes, um tribunal caracteriza um erro como nulidade relativa e, no julgamento seguinte, esse mesmo erro é tratado como nulidade absoluta.

Além disso, a legislação a respeito das nulidades está defasada. Enquanto os demais temas relevantes do Código de Processo Penal sofreram profundas modificações, o capítulo das nulidades permanece o mesmo desde a década de 40 do século passado. Tal descompasso, gerador de muitas incongruências e distorções, ficou ainda mais acentuado depois da Constituição de 1988, com a expressa previsão de inúmeros direitos do acusado.

O atual quadro abre um perigoso flanco para a discricionariedade judicial. Se a eventual anulação de atos processuais está sujeita à mera interpretação pessoal de cada julgador, sem critérios minimamente objetivos, o resultado são decisões contraditórias, desprovidas de racionalidade e geradoras de insegurança e perplexidade.

Grandes operações investigativas foram – e, a permanecer o atual quadro, ainda serão –  extintas num cenário de aplicação problemática, sem critérios objetivos, das nulidades. E não se pode culpar aqueles que recorrem aos tribunais para ver restabelecido o devido processo.

É imperiosa a necessidade de se estabelecer um marco sólido no tratamento das nulidades. Conceitos abstratos, manipuláveis caso a caso, são incapazes de oferecer  um mínimo de segurança em assunto de tamanha relevância.

Na discussão sobre as nulidades, o que está envolvido é muito mais do que um conjunto de regras. É a possibilidade de que qualquer cidadão – seja qual for sua cor, credo, partido ou condição financeira – seja julgado de maneira igualitária. Sem critérios seguros para lidar com as anomalias, a própria finalidade do processo se torna inócua.


Daniel Zaclis é advogado, mestre e doutorando em Direito Processual Penal pela USP e sócio do CAZ Advogados.


O presente artigo foi originalmente publicado na edição de 2 de junho de 2021, no jornal O Estado de São Paulo.


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