Leonardo Marcondes Machado[i]

A questão atinente à possibilidade (ou não) de acesso legal ao conteúdo de aparelho celular pertencente ao suspeito da prática de uma infração penal, independentemente de autorização judicial específica, constitui ainda um tema polêmico no direito processual penal brasileiro.[ii]

A posição inicial da jurisprudência, alguns anos atrás, quando as discussões giravam em torno da verificação dos registros das últimas chamadas, efetuadas e recebidas, pelo imputado através de mero aparelho de telefonia, era no sentido da licitude dessa medida investigativa, sem autorização judicial, uma vez que não submetida à cláusula constitucional da inviolabilidade do sigilo das comunicações telefônicas (art. 5º, XII, da CF), mas, pelo contrário, inscrita no poder/dever da autoridade policial de apreensão dos objetos relacionados à prática criminosa e sua consequente análise (art. 6º, II, III e VII, do CPP).[iii]

Fazia-se, portanto, uma distinção entre comunicação telefônica e registros telefônicos, bem como seus diferentes âmbitos jurídicos de proteção. A partir do entendimento de que o objeto de tutela no direito à inviolabilidade do sigilo não seriam “os dados em si, mas a sua comunicação restringida (liberdade de negação)”,[iv] afastava-se qualquer violação ao art. 5º. XII, da Constituição[v].

As situações, contudo, se alteraram em uma sociedade cada vez mais dominada pelos avanços tecnológicos e, acima de tudo, pelo uso massivo dos aparelhos celulares como principal instrumento de acesso à internet.[vi] De fato, a popularização da chamada “telefonia móvel inteligente”, com os seus modelos de smartphones, transformou os celulares (mobiles) em grandes depositários de informações privilegiadas e, por consequência, os acessos não autorizados pelo titular em atos tipicamente invasivos, ou melhor, violadores da privacidade (art. 5º, X, da CF). O que, como era de se esperar, acabou gerando uma revisão quanto aos limites jurídicos dessa prática investigativa.

É inegável que os novos celulares não funcionam mais apenas como instrumentos de comunicação telefônica; serventia, aliás, que tem diminuído ao longo dos últimos anos.[vii] As suas múltiplas funcionalidades, desde mensagens de texto a compartilhamento de áudios e vídeos, acesso a redes sociais, confecção de registros fotográficos, agendamento de eventos profissionais e pessoais, controle de dados financeiros etc., cada vez mais populares no meio social, estabelecem um conjunto de evidências consideráveis ou pelo menos rastros bastante significativos da vida íntima de seu usuário.

Segundo Lopes Jr. e Morais da Rosa, o tema da busca de dados em aparelhos celulares não recebia da jurisprudência nacional a atenção devida, partindo-se tradicionalmente de uma premissa jurídica equivocada, qual seja, a “de que o conteúdo digital estava no aparelho e, assim, tal qual outro objeto apreendido poderia ser analisado pela autoridade policial”. O equívoco, segundo os autores, decorre do fato de que a intimidade e a privacidade armazenadas no dispositivo transcendem “os limites analógicos de bens materiais”, abarcando aspectos da necessária tutela de direitos fundamentais.[viii]

Não à toa, em que pese controvérsias, o Superior Tribunal de Justiça tem entendido como “ilícita a prova oriunda do acesso aos dados armazenados no aparelho celular, relativos a mensagens de texto, SMS, conversas por meio de aplicativos (WhatsApp), obtidos diretamente pela polícia no momento da prisão em flagrante, sem prévia autorização judicial”.[ix] Conforme assentado pelo STJ, “por se encontrar em situação similar às conversas mantidas por e-mail, a cujo acesso é exigida prévia ordem judicial, a obtenção de conversas mantidas pelo programa whatsapp, sem a devida autorização judicial, revela-se ilegal”.[x] Assim também considerado o exame pericial efetuado no telefone celular, mediante requisição da autoridade policial, se desacompanhada de ordem judicial específica.[xi]

Sublinhe-se que esse tipo de ilegalidade na fase pré-processual pode gerar a rejeição liminar da inicial acusatória quando não subsistam outros elementos informativos autônomos e suficientes à formação da justa causa processual penal.[xii] Se já instaurada a relação processual, essas informações ilícitas deverão ser desentranhadas dos autos, bem como os demais elementos probatórios delas diretamente derivados[xiii], podendo, assim, ocasionar o trancamento do processo penal[xiv] se não houver outra base informativa válida para o seu regular desenvolvimento. Por óbvio, esse tipo de ilegalidade também pode afetar eventuais medidas cautelares reais ou pessoais (ex.: prisão preventiva) decretadas na espécie.

Nessa linha, portanto, tem-se que o acesso ao conteúdo de aparelho celular depende atualmente de concordância expressa e voluntária do titular[xv] ou de ordem judicial específica para o afastamento de direitos fundamentais do imputado[xvi] em respeito à inviolabilidade da intimidade e da vida privada (art. 5º, X, da CF)[xvii], o que apenas se justifica quando presentes os requisitos próprios de cautelaridade processual penal no sentido da imprescindibilidade desse meio investigativo criminal.[xviii]

Não custa lembrar que a Lei n. 12.965/2014, responsável pela disciplina normativa do uso da internet no país, estabelece textualmente, em seu art. 7º, inc. III, que são assegurados aos seus usuários a “inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial”.[xix] O que, sem dúvida, reforça a tese majoritária quanto à reserva constitucional de jurisdição inclusive no campo da investigação criminal.[xx]

Em tempo, algumas distinções jurisprudenciais importantes. A primeira é no sentido da ausência de ilicitude informativa ou probatória quando a visualização de dados armazenados em aparelhos celulares, inclusive smartphones, resultar da posse regular desses objetos em cumprimento a mandados de busca e apreensão domiciliar. Conforme o Superior Tribunal de Justiça, “na pressuposição da ordem de apreensão (…) está o acesso aos dados que neles estejam armazenados, sob pena de a busca e apreensão resultar em medida írrita, dado que o aparelho desprovido de conteúdo simplesmente não ostenta virtualidade de ser utilizado como prova criminal”.[xxi]

Necessário, contudo, observar um requisito adicional à validade desse tipo de diligência investigativa, qual seja, a especificação quanto ao objeto da busca e apreensão na correspondente decisão judicial, uma vez que o próprio mandado “pode facultar o acesso às informações” que constem nos aparelhos recolhidos. Daí não haver óbice para que a autoridade policial ou o órgão ministerial solicite, em sua representação ou requerimento “pela autorização de busca e apreensão, que seja deferido o acesso aos dados estáticos contidos no material coletado”.[xxii]

Outra questão diz respeito à ilegalidade, mesmo em face de ordem judicial específica, quanto ao uso da técnica de espelhamento, via “whatsapp web”, para o acesso das conversas (pretéritas, atuais e futuras) do investigado no referido aplicativo. O Tribunal entendeu que esse tipo de medida, que não se confunde com a interceptação das comunicações telefônicas tampouco com o acesso às conversas já realizadas e armazenadas no celular através do aplicativo whatsapp, não encontra respaldo na ordem jurídica brasileira, motivo pelo qual não poderia ser autorizada pelo Poder Judiciário. [xxiii]

Há, ainda, outro relevante julgado do STJ que considerou ilegal os atos praticados na fase de investigação preliminar, bem como reconheceu a nulidade de sentença criminal embasada em prova ilícita derivada do fato de um policial, sem qualquer autorização do titular da linha ou da justiça, “para ler mensagens nem para atender ao telefone móvel da pessoa sob investigação e travar conversa por meio do aparelho com qualquer interlocutor que seja”, ter se passado por seu dono “para  fazer a negociação de drogas e provocar o flagrante”.[xxiv]

Por fim, vale destacar que o mesmo Superior Tribunal de Justiça afastou a ilicitude de provas obtidas a partir de “breve consulta” realizada por policiais militares, sem autorização judicial, de dados existentes em “aparelho abandonado em via pública, a fim de identificar a propriedade do objeto”. No caso em questão, a pessoa abordada pelos militares estaduais teria inicialmente negado a propriedade de celular localizado próximo a ele, o que interpretado pelo STJ como motivo regular ao acesso “pelos policiais às informações contidas no referido aparelho celular apreendido”.[xxv]


[i] Doutorando e Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Pós-graduado em Bases del Razonamiento Probatorio pela Universitat de Girona – Espanha. Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal – ICPC. Professor de Direito Processual Penal e Criminologia na Academia de Polícia Civil de Santa Catarina (ACADEPOL-SC) e no Centro Universitário para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí (UNIDAVI-SC). Professor em Cursos de Pós-Graduação na Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst). Delegado de Polícia Civil em Santa Catarina. Contato: www.leonardomarcondesmachado.com.br.


[ii] Matéria pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal com repercussão geral admitida: STF – Tribunal Pleno – ARE 1.042.075 RG/RJ – Rel. Min. Dias Toffoli – j em 23.11.2017 – DJe 285 de 11.12.2017. Sobre a jurisprudência estadual: ANTONIALLI, Dennys; ABREU, Jacqueline; MASSARO, Heloisa; LUCIANO, Maria. Acesso de autoridades policiais a celulares em abordagens: retrato e análise da jurisprudência de tribunais estaduais. Revista Brasileira de Ciências Criminais , v. 27, n. 154, p. 177-214, abr. 2019.

[iii] STF – Segunda Turma – HC 91.867/PA – Rel. Min. Gilmar Mendes – j em 24.04.2012 – DJe 185 de 24.04.2012.

[iv] FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Sigilo de dados: o direito à privacidade e os limites à função fiscalizadora do Estado. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, v. 88, p. 439-459, 1993, p. 446.

[v] STF – Tribunal Pleno – RE 418.416/SC – Rel. Min. Sepúlveda Pertence – j em 10.05.2006 – DJ de 19.12.2006.

[vi] Conforme pesquisa divulgada no ano de 2018 pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil, tem-se, pela primeira vez na série histórica, que “a proporção de usuários que acessaram a rede apenas pelo celular superou a daqueles que combinaram celular e computador”. Nesse sentido, quanto aos meios de acesso à internet, nota-se uma clara preferência pelo uso do celular (mobile), empregado por 90% dos internautas. Na verdade, desde a edição de 2015 da pesquisa, o telefone celular tem sido o dispositivo mais utilizado para acesso à rede. Em 2017, estimou-se que mais de 115 milhões de brasileiros acessaram a internet por meio do telefone celular. (CGI. Pesquisa sobre o Uso das Tecnologias de Informação e Comunicação nos Domicílios Brasileiros: TIC Domicílios 2017. Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR – São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2018, pp. 24, 33 e 121).

[vii] “Em 2017, 156,8 milhões de brasileiros eram usuários de telefone celular”, sendo que a sua utilização para chamadas telefônicas vem sofrendo uma variação negativa desde 2014 (CGI. Pesquisa sobre o Uso das Tecnologias de Informação e Comunicação nos Domicílios Brasileiros…, p. 125).

[viii] LOPES JÚNIOR, Aury; MORAIS DA ROSA, Alexandre. Vasculhar aparelho celular só é possível com autorização judicial. São Paulo: Consultor Jurídico, 23 fev. 2018. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-fev-23/limite-penal-vasculhar-aparelho-celular-somente-autorizacao-judicial>. Acesso em: 15.03.2019

[ix] STJ – Quinta Turma – RHC 92.009/RS – Rel. Min. Felix Fischer – j em 10.04.2018 – DJe de 16.04.2018.

[x] STJ – Quinta Turma – RHC 90.276/MG – Rel. Min. Ribeiro Dantas – j em 13.03.2018 – DJe de 21.03.2018.

[xi] STJ – Quinta Turma – REsp 1.727.266/SC – Rel. Min. Jorge Mussi – j em 05.06.2018 – DJe de 15.06.2018.

[xii] STJ – Quinta Turma – AgRg no REsp 1.748.161/AC – Rel. Min. Jorge Mussi – j em 13.11.2018 – DJe de 22.11.2018.

[xiii] STJ – Quinta Turma – RHC 73.998/SC – Rel. Min. Joel Ilan Paciornik – j em 06.02.2018 – DJe de 19.02.2018.

[xiv] STJ – Sexta Turma – RHC 98.250/RS – Rel. Min. Nefi Cordeiro – j em 12.02.2019 – DJe de 07.03.2019.

[xv] “1. Os dados armazenados nos aparelhos celulares – envio e recebimento de mensagens via SMS, programas ou aplicativos de troca de mensagens, fotografias etc. -, por dizerem respeito à intimidade e à vida privada do indivíduo, são invioláveis, nos termos em que previsto no inciso X do art. 5º da Constituição Federal, só podendo, portanto, ser acessados e utilizados mediante prévia autorização judicial, com base em decisão devidamente motivada que evidencie a imprescindibilidade da medida, capaz de justificar a mitigação do direito à intimidade e à privacidade do agente. 2. Pelo contexto fático que ficou delineado nos autos, há elementos suficientes o bastante – produzidos sob o crivo do contraditório e da ampla defesa – a evidenciar que os próprios pacientes, de forma voluntária, autorizaram aos policiais o acesso ao celular, o que afasta a apontada violação dos dados armazenados no referido aparelho e, consequentemente, a aventada ilicitude das provas obtidas” (STJ – Sexta Turma – HC 492.052/SP – Rel. Min. Rogério Schietti Cruz – j em 26.05.2020 – DJe de 02.06.2020).

[xvi] Diferente é a situação de telefone de propriedade da vítima de um crime, já falecida, cujo aparelho celular tenha sido entregue à polícia pela esposa, interessada no esclarecimento dos fatos. Nessa situação, o acesso às conversas de whatsapp armazenadas no telefone, sem autorização judicial, não se reveste de ilicitude, conforme julgado do Supremo Tribunal Federal (STF – Segunda Turma – HC 152.836 AgR/MT – Rel. Min. Gilmar Mendes – j. em 22.06.2018 – DJe 153 de 31.07.2018).

[xvii] STJ – Quinta Turma – RHC 89.981/MG – Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca – j em 05.12.2017 – DJe de 13.12.2017.

[xviii] É o posicionamento do Min. Gilmar Mendes: “(…) o acesso aos aparelhos telefônicos deve ser submetido a prévia decisão judicial, na qual seja demonstrado, in concreto, a necessidade, adequação e proporcionalidade do acesso aos dados e informações requeridos”. O que não impede a atuação da polícia no momento do flagrante para apreender o aparelho celular, respeitados os requisitos legais para tanto (haver fundada suspeita de que existam provas em sua memória) e a cadeia de custódia, para posterior representação ao juízo para que autorize o acesso aos dados” (STF – ARE 1.042.075/RJ – Voto Min. Gilmar Mendes).

[xix] A citada previsão é bastante semelhante ao que já consta no art. 3º, inc. V, da Lei n. 9.472/97, a qual, no entanto, se refere ao campo dos serviços de telecomunicações. Conforme esse dispositivo legal, todo usuário de telecomunicações tem direito “à inviolabilidade e ao segredo de sua comunicação, salvo nas hipóteses e condições constitucional e legalmente previstas”.

[xx] Nesse sentido: GLOECKNER, Ricardo Jacobsen; EILBERG, Daniela Dora. Busca e Apreensão de Dados em Telefones Celulares: novos desafios diante dos avanços tecnológicos. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 27, n. 156, p. 353-393, jun. 2019; ZILLI, Marcos. A Prisão em Flagrante e o Acesso de Dados em Dispositivos Móveis. Nem utopia, nem distopia, apenas racionalidade. In: ANTONIALLI, Dennys; ABREU, Jaqueline da Souza (ed.). Direitos Fundamentais e Processo Penal na Era Digital. v. 1. São Paulo: Internetlab, 2018. p. 64-99.

[xxi] STJ – Quinta Turma – RHC 75.800/PR – Rel. Min. Felix Fischer – j. em 15.09.2016 – DJe de 26.09.2016. No mesmo sentido: STJ – Sexta Turma – HC 574.131/RS – Rel. Min. Nefi Cordeiro – j. em 25.08.2020 – DJe de 04.09.2020.

[xxii] STJ – Sexta Turma – HC 444.024/PR – Rel. Min. Sebastião Reis Júnior – Rel. p/ Acórdão Min. Rogerio Schietti Cruz – j em 02.04.2019 – DJe de 02.08.2019.

[xxiii] STJ – Sexta Turma – RHC 99.735/SC – Rel. Min. Laurita Vaz – j em 27.11.2018 – DJe de 12.12.2018.

[xxiv] STJ – Sexta Turma – HC 511.484/RS – Rel. Min. Sebastião Reis Júnior – j em 15.08.2019 – DJe de 29.08.2019.

[xxv] STJ – Quinta Turma – AgRg no AREsp 1.573.424/SP – Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca – j. em 08.09.2020 – Dje de 15.09.2020.


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