Décio Franco David[1]

A corrupção se tornou uma das agendas mais debatidas no campo penal. Porém, o enfoque é direcionado, em sua grande maioria, aos problemas corruptivos do setor público, ignorando-se que a esfera privada possui problemas político-criminais muito mais relevantes ao tema.

Nessa toada, alguns projetos de lei foram apresentados em solo nacional, sempre com menções aos ordenamentos estrangeiros[2]. Os referidos projetos e modelos foram objeto de profunda análise em obra específica para qual remetemos o leitor[3]. Contudo, diante dos cinco modelos identificados (fidelidade contratual empregatícia, lealdade concorrencial, tutela patrimonial, pluriofensivo e unitário), há um que apresenta diferenças e curiosidade peculiares quando comparados ao ordenamento e tradição legislativa penal brasileiro. Esse modelo é o unitário, o qual é apresentado pelo ordenamento Sueco.

O referido modelo propõe uma mescla entre a estrutura de tipificação da corrupção pública e com a corrupção privada. Em 1977, a Suécia, por meio da Lei 1977:103, passou a tipificar, na Seção 7 do Capítulo 17, do seu Código penal a conduta da seguinte maneira:

Uma pessoa que dá, promete ou oferece um suborno ou outra recompensa por um empregado ou outra pessoa definida no Capítulo 20, Seção 2, para o exercício de funções oficiais, será condenado por suborno a multa ou prisão por no máximo dois anos[4]

Desta forma, há uma uniformidade na autoria da conduta por intermédio de técnica de reenvio mencionando a Seção 2 do Capítulo 20 da própria lei, a qual traz um conceito bastante amplo:

Um funcionário que recebe, aceita uma promessa ou exige um suborno ou outra recompensa imprópria pelo desempenho de suas funções, será sentenciado por aceitar suborno a uma multa ou prisão por no máximo dois anos. O mesmo se aplica se o empregado cometeu o ato antes de obter o cargo ou depois de deixá-lo. Se o crime for grave, será imposta prisão por no máximo seis anos.

As disposições do primeiro parágrafo em relação a um empregado também se aplicam a:

  1. um membro de uma diretoria, administração, conselho, comitê ou outro órgão pertencente ao Estado, um município, conselho municipal, associação de autoridades locais, paróquia, sociedade religiosa ou escritório de seguro social,
  2. uma pessoa que exerce uma tarefa regulada por lei,
  3. um membro das forças armadas sob a Lei de Delitos Disciplinares por Membros das Forças Armadas, etc. (1986: 644), ou outra pessoa desempenhando um dever oficial prescrito por Lei,
  4. uma pessoa que, sem ter uma nomeação ou designação como a acima mencionada, exerça autoridade pública, e
  5. uma pessoa que, em um caso diferente do indicado nos pontos 1-4, em razão de um cargo de confiança tenha recebido a tarefa de administrar os assuntos jurídicos ou financeiros de outra pessoa ou de lidar independentemente com uma atribuição que requeira conhecimento técnico qualificado ou exercer supervisão sobre a administração de tais assuntos ou atribuições[5].

Interessante consignar que para este modelo, o bem jurídico tutelado acaba necessitando abarcar simultaneamente as condutas corruptivas na esfera pública e privada, afinal o tipo penal é único.

Assim, reconhecendo que o bem jurídico tutelado pelos crimes de corrupção no setor público é o regular funcionamento da administração pública[6], pode-se identificar o bom funcionamento do mercado como bem jurídico tutelado por esta modalidade de tipificação da corrupção privada.

No entanto, tal solução não parece ser a mais adequada. É preciso relembrar que à cada tipificação deve corresponder um bem jurídico específico. Deste modo, não é possível atribuir ao tipo em análise dois bens jurídicos pela mesma disposição, haja vista a diversificação da natureza jurídica existente entre duas áreas tão diferentes (esfera privada e esfera pública).

Por isso, poder-se-ia argumentar uma identificação do bem jurídico por intermédio da moral pública ou probidade pública como bem tutelado na corrupção no setor público e estender tal perspectiva ao setor privado. No entanto, é preciso relembrar que mecanismos moralistas e éticos não devem ser identificados como bens jurídicos, haja vista sua abstração e a possibilidade de resultar em modelos penais autoritários, como alertam Claus Roxin[7] e Luís Greco[8].

Sobre o assunto, Michael Bergström, em monografia temática, afirma que a unificação das condutas sobre um único tipo, mesmo não fazendo diferença formal entre corrupção no setor público e no setor privado, acaba protegendo interesses diferentes[9]. Segundo Bergström, ambos os tipos de corrupção são considerados prejudiciais para a confiança pública tanto do setor público quanto do setor privado. Desse modo, o bem tutelado seria a confiança pública[10].

No mesmo sentido, Sara Hatakka destaca que “um aspecto ligado à corrupção é a importância da confiança dos cidadãos na administração e na comunidade empresarial”[11], reforçando, portanto, a noção de confiança pública sobre tais condutas. Ainda segundo Sara Hatakka, “um baixo nível de corrupção corresponde a um certo nível de confiança dos cidadãos da nação para o exercício da autoridade (“maquinaria de gestão”)”[12].

Essa perspectiva de tutela a partir do sentimento de confiança pública também não se mostra adequada a um modelo constitucional de Direito penal garantidor de direitos fundamentais, haja vista que é altamente questionável exercer proteção penal de sentimentos, consoante afirma Tatjana Hornle[13].

Por sua vez, o Conselho Nacional Sueco para a Prevenção do Crime (Brottsförebyggande rådet – Brå) explica que a matriz que orienta a tutela penal da corrupção naquele ordenamento corresponde ao abuso de poder[14]. Deste modo, conclui-se que a unificação do tipo se dá em razão da tutela das regulares relações jurídicas de poder, sejam elas públicas ou privadas. Todavia, destaca-se que o tipo penal está alocado na Seção dos crimes contra a administração pública e a definição do autor na Seção sobre ilícitos praticados em atividades profissionais, demonstrando sua peculiar tipificação da conduta.

Embora não encontre a referida harmonização à dogmática penal mais moderna, tampouco aos preceitos normativos internacionais, o modelo sueco é bastante eficaz na investigação e combate ao fenômeno corruptivo, destacando sua posição sempre positiva nos índices divulgados pela Transparência Internacional[15]. Em todo caso, torna-se um modelo paradigma para ampliação e projeção técnica no debate.

 


[1] Doutor e Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do Programa de Pós-graduação (mestrado) em Direito da UNIVEL. Professor de Direito Penal da FAE Centro Universitário. Professor de História das Instituições Jurídicas da FURB. Coordenador do Núcleo de Estudos em Ciências Criminais da FAE Centro Universitário (NECCRIM/FAE). Presidente do Conselho Estadual do Paraná da Associação Nacional da Advocacia Criminal (ANACRIM/PR). Conselheiro do IBDPE. Advogado Criminalista. E-mail: decio@dfdavid.com

[2] Por todos, PL 4480/2020.

[3] DAVID, Décio Franco. Corrupção no setor privado: fundamentos e criminalização. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2020.

[4] Tradução livre do autor. Original em: SWEDEN. Swedish Penal Code. Disponível em: <https://www.government.se/contentassets/5315d27076c942019828d6c36521696e/swedish-penal-code.pdf>. Acesso em: 08 mar. 2021.

[5] Tradução livre do autor. Original em: SWEDEN. Swedish Penal Code. Disponível em: <https://www.government.se/contentassets/5315d27076c942019828d6c36521696e/swedish-penal-code.pdf>. Acesso em: 08 mar. 2021.

[6] Sobre: DAVID, Décio Franco; CAMBI, Eduardo Augusto Salomão. A legitimidade do Direito Penal para combater a corrupção. Revista dos Tribunais, ano 101, v. 924. São Paulo: Revista dos Tribunais, out./2012, p. 261-296, p. 275.

[7] ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do Direito Penal. 2.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 20-25.

[8] GRECO, Luis. Breves reflexões sobre os princípios da proteção de bens jurídicos e da subsidiariedade no Direito Penal. In: SCHMIDT, Andrei Zenkner (coord). Novos rumos do Direito Penal Contemporâneo: Livro em homenagem ao Prof. Dr. Cezar Roberto Bitencourt. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 409-410; e GRECO, Luís. “Princípio da Ofensividade” e Crimes de Perigo Abstrato – Uma introdução ao debate sobre o Bem Jurídico e as Estruturas do Delito. In: Modernização do Direito Penal, bens jurídicos coletivos e crimes de perigo abstrato. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 90 e ss.

[9] BERGSTRÖM, Michael. Corporate Criminal Liability and Negotiated Settlements as New Means to Fight Corruption in Sweden. Thesis in Criminal Law. Stockholm University, Faculty of Law, Stockholm, Sweden, 2014, p. 7. Disponível em: <http://su.diva-portal.org/>. Acesso em: 08 mar. 2021.

[10] BERGSTRÖM, Michael. Op. cit., p. 7.

[11] HATAKKA, Sara. Begreppet med fäste i gråzonen: korruptionsdefinitionen i Hufvudstadsbladets nyhetsrapportering. Examensarbete HT-13. Kriminologiska institutionen, Stockholms universitet, Stockholms, 2013, p. 21. Disponível em: <http://su.diva-portal.org/>. Acesso em: 08 mar. 2021.

[12] HATAKKA, Sara. Op. cit., p. 21.

[13] HÖRNLE, Tatjana. La protección de sentimientos en el STGB. HEFENDEHL, Roland. La teoría del bien jurídico: ¿fundamento de legitimación del derecho penal o juego de abalorios dogmático? Madrid: Marcial Pons, 2007, p. 383-399. No mesmo sentido, DAVID, Décio Franco. Análise crítica dos crimes contra o respeito aos mortos no direito penal brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 23, n. 117. São Paulo: Revista dos Tribunais, nov.-dez./2015, p. 154-159.

[14] SWEDEN. Swedisch National Council for Crime Prevention. Reported Corruption in Sweden: Structure, risk factors and countermeasures. Stokoholm: Swedisch National Council for Crime Prevention, 2013, p. 16.

[15] Nos últimos Índices de Percepção da Corrupção ocupou a 3ª posição como país menos corrupto do globo, cf. TRANPARÊNCIA INTERNACIONAL. Índice de Percepção da Corrupção 2018. Tradução Quote Translations. Berlim: Transparency International, 2019. Disponível em: <https://s3-sa-east-1.amazonaws.com/tibr-downloads/CPI-2018.pdf>. Acesso em: 08 mar. 2021 e TRANPARÊNCIA INTERNACIONAL. Índice de Percepção da Corrupção 2020. Disponível em: <https://comunidade.transparenciainternacional.org.br/ipc-indice-de-percepcao-da-corrupcao-2020>. Acesso em: 08 mar. 2021.


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