Por Guilherme Brenner Lucchesi[i]

A jurisprudência utiliza a “cegueira deliberada” para condenar por dolo eventual os acusados que alegam desconhecer alguma circunstância fática elementar do delito imputado. Os critérios para atribuir dolo eventual a tais situações de desconhecimento – ou, melhor, de ausência de comprovação de conhecimento pela acusação – têm sido estabelecidos caso a caso, sem qualquer compromisso com a lei ou com a dogmática penal.

A partir do estudo de casos[ii], é possível identificar alguns critérios comuns para a aplicação da cegueira deliberada como substituto do dolo eventual: o autor deve, cumulativamente, (1) ter ciência da elevada probabilidade de estar envolvido em algum crime, (2) manter-se indiferente quanto a tal ciência e (3) evitar aprofundar o seu conhecimento acerca do crime em que desconfia estar envolvido.

Há alguns problemas nesta lógica, no entanto. Primeiramente, tem-se um grave problema de direito comparado. Muito se diz que a cegueira deliberada tem sua origem na willflul blindness do direito da common law. Ocorre que o direito penal anglo-saxão possui critérios de imputação muito diferentes daqueles impostos pela legislação penal brasileira,[iii] o que não é (mas deve ser) explorado antes da importação de conceitos jurídicos.

Além disso, não há correspondência entre os conceitos de willful blindness e cegueira deliberada, tendo sido acrescentada a esta a exigência de “indiferença” por parte do autor. Desconfia-se que isso tenha sido feito de caso pensado para aproximar a cegueira deliberada do dolo eventual, pois costuma-se associar (incorretamente) o dolo eventual com uma atitude interna de indiferença com a produção do resultado.

De uma análise da legislação, no entanto, resta evidente que o art. 18 do CP – dolo é “querer o resultado” ou “assumir o risco de produzi-lo” – não é suficiente para conceituar dolo. Segundo o art. 20 do CP, o conhecimento é elemento indispensável, pois desconhecimento exclui o dolo.

É possível verificar, com isso, que a cegueira deliberada, do modo como aplicada pelos tribunais brasileiros, funciona como uma categoria que visa à expansão do alcance do dolo para além do campo delimitado pelo legislador brasileiro, invadindo o território da culpa. Como a punição da culpa é excepcional (art. 18, p. ún., CP), não sendo possível em diversos crimes como lavagem de dinheiro, caracterizar um fato como doloso ou culposo influi diretamente na sua punibilidade.

O dolo somente pode ser reconhecido nos casos em que seus pressupostos legais já estejam presentes. Sendo assim, a cegueira deliberada não pode alterar nem ampliar o conceito legal de dolo.

Se os critérios para identificação da cegueira deliberada no Brasil são diferentes dos critérios para a identificação da willful blindness e se cegueira deliberada deve corresponder ou ao menos se inserir no conceito de dolo, não há sentido em se desenvolver uma teoria nesses termos. A tentativa de se englobar pela cegueira deliberada condutas que não seriam puníveis pela aplicação dos critérios legais do dolo viola o princípio da legalidade.


[i] Advogado. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Presidente do IBDPE.


[ii] Em especial, o voto da ministra Rosa Weber no caso do “Mensalão” (STF, APn 470, Rel. Joaquim Barbosa, DJe 22.4.13. p.1295-1302) e o julgamento da Apelação 5009722-81.2011.4.04.7002 no TRF-4 (Rel. Sergio Fernando Moro, DJe 23.9.13).

[iii] LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a culpa como dolo: o uso da cegueira deliberada no Brasil. São Paulo: Marcial Pons, 2018. p.123-132.


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