Por João Rafael de Oliveira[i]

 

O princípio da especialidade tem origem no direito internacional, deriva de tratados internacionais, e tem por escopo tanto proteger a soberania do Estado quanto à pessoa investigada ou extraditada[ii].

Na extradição o princípio da especialidade proíbe que o Estado solicitante exerça qualquer ação jurídica que vá além dos delitos mencionados no pedido de extradição. Isto é, como regra o Estado não poderá processar ou punir o extraditado por crimes outros não referenciados no procedimento de extradição, ressalvada a expressa autorização por parte do Estado solicitado.[iii]

No que diz respeito à assistência mútua ou cooperação, o princípio proíbe o Estado solicitante de utilizar os documentos e informações fornecidas para outros fins que não a punição das infrações pelas quais o Estado requerido concedeu sua cooperação.

Destarte, no campo da assistência mútua e/ou cooperação, o princípio da especialidade tem o efeito de limitar o uso pelo Estado solicitante de documentos e informações recebidas, proibindo, por exemplo, a utilização de informações recebidas para repressão de delitos pelos quais o Estado solicitante exclui sua cooperação (delitos políticos e militares, fiscais, monetários e econômicos) ou nos casos em que a concessão da cooperação compromete a soberania, a segurança, a ordem pública ou outros interesses essenciais do Estado solicitado.

Daí a importância de o pedido de cooperação jurídica internacional, em matéria penal, cumprir minimamente os requisitos necessários para seu deferimento. Tal núcleo fundamental está presente, entre outros diplomas normativos, na Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção[iv], no acordo de assistência jurídica em matéria penal celebrado com o governo dos Estados Unidos da América[v], Tratado de Cooperação Jurídica em Matéria Penal entre o Brasil e a Confederação Suíça[vi] e Protocolo de Assistência Jurídica Mútua em Assuntos Penais do Mercosul[vii].

Em todos estes diplomas normativos há expressa referência ao conteúdo do princípio da especialidade que, como já visto, limita a utilização das provas encaminhados pelo Estado solicitado ao que foi expressamente requerido pelo Estado solicitante.

Com efeito, o que se pretende ponderar no presente estudo é se a aplicação do princípio da especialidade pode alcançar os elementos de provas obtidos em colaboração premiada, e, mais do que isso, se o Estado solicitado pode exigir a aderência aos termos do acordo para o compartilhamento de provas.        

Como cediço, a colaboração premiada, a rigor, tem natureza consensual e pressupõe acordo entre as partes, no qual, inclusive, o acusado abre mão de várias garantias constitucionais, tais como não autoincriminação, duplo grau de jurisdição, etc.

É justamente por essa característica que ganha relevância o debate sobre o compartilhamento e respectiva utilização das provas fornecidas pelo colaborador, ou arrecadadas a partir das informações por ele prestadas, em processos distintos daquele em que foi celebrado o acordo.

Com efeito, dos diplomas normativos acima mencionados se extrai, sem qualquer dúvida, a restrição ao uso da prova somente no procedimento penal mencionado no pedido de cooperação ou assistência mútua, ressalvada a possibilidade de solicitação expressa por parte do Estado requerente de utilização em outros procedimentos, cuja autorização e eventual imposição de condições ficará sob deliberação do Estado solicitado.

A pergunta que se impõe é seguinte: não havendo nenhuma regulamentação expressa nos tratados internacionais, pode o Estado solicitado condicionar o uso da prova obtida à adesão aos termos do acordo para, por exemplo, impedir que sejam utilizadas contra o réu colaborador?

Tal problema surgiu no âmbito da denominada Operação Lava Jato, mormente em torno da colaboração premiada celebrada pela empresa Odebrecht, supostamente envolvida em crimes de corrupção ocorridos em outros países. A celeuma foi tamanha que a Procuradoria Geral da República chegou a expedir, em junho de 2017, a seguinte nota sobre o assunto:

“(…) Segundo o secretário de cooperação internacional, Vladimir Aras, as condições exigidas para o cumprimento dos pedidos de assistência jurídica internacional são fundadas em tratados internacionais. Tais tratados permitem ao Estado requerido estabelecer requisitos para o atendimento dos pedidos estrangeiros. Além disso, os países rogados podem rejeitar o cumprimento de solicitações que violem a “ordem pública” e conceitos relacionados à legalidade, ao respeito aos direitos fundamentais e ao interesse público. “Se as condições exigidas pela lei brasileira – permitidas pelos tratados e derivadas dos princípios de direito internacional – não forem aceitas pelo Estado solicitante, por impossibilidade legal conforme a lei desse país, o Estado brasileiro não pode, com base em suas próprias leis, entregar as provas ao MP requerente”, explica.

Na relação do Brasil com Estados estrangeiros a imposição de condições para atendimento a pedidos de cooperação é corriqueira. Há vários casos em que a Suíça exigiu do Brasil a observância do princípio da especialidade. O mesmo se dá com outras nações, como recentemente ocorreu com solicitação, por Israel, de idêntico compromisso ao Brasil.

No caso da Odebrecht, o Estado brasileiro deve respeito à Lei 12.850/2013 (Lei do Crime Organizado) e à Lei 12.846/2013 (Lei Anticorrupção), no que se refere aos acordos de colaboração premiada e de leniência. Cumpre às autoridades brasileiras fazer valer os tratados internacionais vigentes, sejam bilaterais ou multilaterais, que autorizam tais condições. De igual modo, o MPF deve cumprir os acordos que firmou com os investigados, acordos estes devidamente homologados em juízo. Deste modo, a entrega de provas a Estados requerentes deve observar os princípios da especialidade, da ampla defesa e da boa-fé. Isso não significa, todavia, que os países solicitantes devam conceder imunidade ou benefícios ilegais aos colaboradores. Significa apenas que o Brasil não está autorizado a enviar ao exterior provas fornecidas por colaboradores, não podendo tampouco facultar a coleta de depoimentos desses mesmos colaboradores, sem a imposição de limites ao uso da prova voluntariamente fornecida por eles.[viii]

Sobre o tema o Ministério Público Federal emitiu posteriormente a Orientação Conjunta n° 1/2018:

As provas decorrentes do acordo de colaboração premiada poderão ser compartilhadas com outros órgãos e autoridades públicas nacionais, para fins cíveis, fiscais e administrativos, e com autoridades públicas estrangeiras, inclusive para fins criminais, com a ressalva de que tais provas não poderão ser utilizadas contra os próprios colaboradores para produzir punições além daquelas pactuadas no acordo. Esta ressalva deve ser expressamente comunicada ao destinatário da prova, com a informação de que se trata de uma limitação intrínseca e subjetiva de validade do uso da prova, nos termos da Nota Técnica nº 01/2017, da 5ª Câmara de Coordenação e Revisão.

Essas normativas passaram a incidir em acordos de colaboração premiada firmados no âmbito da Operação Lava Jato em forma de cláusulas específicas de limitação do compartilhamento e uso da prova por parte da autoridade estrangeira: “O Ministério Público Federal e, no âmbito de suas atribuições, qualquer outro ente administrativo que venha a ter acesso às provas resultantes deste acordo, somente prestará cooperação jurídica internacional de qualquer natureza que envolva acesso a qualquer informação ou elemento de prova resultante da colaboração ora pactuada, bem como ao próprio colaborador, se a autoridade estrangeira celebrar com o colaborador acordo ou lhe fizer proposta formal de acordo cujo efeito exoneratório seja, no mínimo, equivalente ao do presente acordo. (Cláusula 21, acordo na PET 6.138-STF). 32 A autoridade estrangeira ainda deverá “indicar, fundamentadamente, que seu ordenamento jurídico também lhe confere competência sobre os fatos objetivo desse acordo” (cláusula 20, parágrafo único, acordo na PET 6.138-STF)”[ix].

Levando-se em consideração a natureza consensual da colaboração premiada e, principalmente, o fato de que quando o acusado opta por cooperar ele abre mão de exercer resistência à acusação e, por conseguinte, espontaneamente renuncia garantias processuais (não autoincriminação, duplo grau de jurisdição, autodefesa, etc), parece acertada a posição do Ministério Público Federal em condicionar o uso da prova, pela autoridade estrangeira,  à adesão aos termos da colaboração, principalmente a de não utilização (ou uso condicionado) em desfavor do réu colaborador.[x]

Embora não seja objeto específico do presente estudo, cabe assentar que a “especialização” da prova obtida com a colaboração premiada também se aplica no âmbito interno. Vale dizer, as informações arrecadadas em procedimento de colaboração premiada, em regra, não podem ser irrestritamente compartilhada para órgãos de outras esferas (cível, administrativo, fiscal).

A fim de preservar a segurança jurídica, previsibilidade e, sobretudo, o próprio instituto da colaboração premiada – cuja eficácia restou demonstrada nas grandes operações policiais deflagradas nos últimos anos no País -, impõe-se o condicionamento do uso da prova à adesão dos termos do acordo pelos órgãos interessados (TCU, CADE, RF).

Recentemente, no julgamento do Ag. Rg no Inquérito 4420-DF, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal enfrentou a temática do compartilhamento da prova obtida em acordo leniência, cujos contornos de consensualidade e cooperação são idênticos ao da colaboração, e entendeu por limitar o uso da prova à aderência aos termos estipulados no acordo. A ementa do acórdão espelha bem o entendimento do colegiado:

Penal e Processual Penal. 2. Compartilhamento de provas e acordo de leniência. 3. A possibilidade de compartilhamento de provas produzidas consensualmente para outras investigações não incluídas na abrangência do negócio jurídico pode colocar em risco a sua efetividade e a esfera de direitos dos imputados que consentirem em colaborar com a persecução estatal. 4. No caso em concreto, o inquérito civil investiga possível prática de ato que envolve imputado que não é abrangido pelo acordo de leniência em questão. 5. Contudo, deverão ser respeitados os termos do acordo em relação à agravante e aos demais aderentes, em caso de eventual prejuízo a tais pessoas. 6. Nego provimento ao agravo, mantendo a decisão impugnada e o compartilhamento de provas, observados os limites estabelecidos no acordo de leniência em relação à agravante e aos demais aderentes.

Conforme aponta VASCONCELOS, posteriormente, no julgamento do Agravo Regimental na Petição nº 7.065[xi], a Segunda Turma do STF reiterou tal entendimento, mantendo-se o compartilhamento de provas, mas se destacou que “deverá respeitar os termos do acordo em relação aos seus aderentes, em caso de eventual prejuízo a tais pessoas”.[xii]

Destarte, diante da natureza consensual da colaboração premiada, bem como e principalmente da necessária segurança jurídica e previsibilidade que deve reger o acordo de tal natureza, principalmente se levar em consideração que o acusado colaborador abre mão de suas garantias constitucionais para cooperar com Estado, impõe-se a “especialização” no compartilhamento das provas obtidas mediante acordo de colaboração premiada.


[i] Doutorando em Direito Constitucional no Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP. Mestre em Direito do Estado, com ênfase em direito processual penal pela UFPR. Professor de Direito Processual Penal do Centro Universitário Unibrasil. Coordenador da pós-graduação em direito penal e processual penal da ABDCONST. Advogado Criminalista.

[ii] ZIMMERMMANN, Robert. Remise anticipée de renseignements et de moyens de preuve dans le cadre de l’entraide judiciaire internationale ? Un avant-projet défectueux. Disponível em: <Remise anticipée de renseignements et de moyens de preuve dans le cadre de l’entraide judiciaire internationale ? Un avant-projet défectueux>. Acesso em: 04 dez 2019

[iii] Idem. Capítulo do Manual do Bitencourt sobre extradição é bem feito, e explica isso também.

[iv] Promulgada no Brasil por meio do Decreto nº 5.687/06 que, ao que aqui importa, assim dispõe no artigo 46, item 19: O Estado Parte requerente não transmitirá nem utilizará, sem prévio consentimento do Estado Parte requerido, a informação ou as provas proporcionadas por este para investigações, processos ou ações judiciais distintas daquelas indicadas na solicitação. Nada do disposto no presente parágrafo impedirá que o Estado Parte requerente revele, em suas ações, informação ou provas que sejam fatores de absolvição de uma pessoa acusada. Neste último caso, o Estado Parte requerente notificará o Estado Parte requerido antes de revelar a informação ou as provas e, se assim solicitado, consultará o Estado Parte requerido. Se, em um caso excepcional, não for possível notificar este com antecipação, o Estado Parte requerente informará sem demora o Estado Parte requerido da mencionada revelação.

[v] Promulgado no Brasil pelo Decreto 3.810/01, o referido acordo bilateral prevê em seu artigo VII que: A Autoridade Central do Estado Requerido pode solicitar que o Estado Requerente deixe de usar qualquer informação ou prova obtida por força deste Acordo em investigação, inquérito, ação penal ou procedimentos outros que não aqueles descritos na solicitação, sem o prévio consentimento da Autoridade Central do Estado Requerido. Nesses casos, o Estado Requerente deverá respeitar as condições estabelecidas. 2. A Autoridade Central do Estado Requerido poderá requerer que as informações ou provas produzidas por força do presente Acordo sejam mantidas confidenciais ou usadas apenas sob os termos e condições por ela especificadas. Caso o Estado Requerente aceite as informações ou provas sujeitas a essas condições, ele deverá respeitar tais condições. 3. Nenhum dos dispositivos contidos neste Artigo constituirá impedimento ao uso ou ao fornecimento das informações na medida em que haja obrigação constitucional nesse sentido do Estado Requerente, no âmbito de uma ação penal. O Estado Requerente deve notificar previamente o Estado Requerido de qualquer proposta de fornecimento de tais informações. 4. Informações ou provas que tenham sido tornadas públicas no Estado Requerente, nos termos do parágrafo 1 ou 2, podem, daí por diante, ser usadas para qualquer fim.

[vi] Promulgado no Brasil pelo Decreto nº 6.974/09, acerca da especialidade, assim prevê em seu artigo 13: 1.As informações, documentos ou objetos obtidos pela via da cooperação jurídica não podem, no Estado Requerente, ser utilizados em investigações, nem ser produzidos como meios de prova em qualquer procedimento penal relativo a um delito em relação ao qual a cooperação jurídica não possa ser concedida.

2.Qualquer outra utilização está subordinada à aprovação prévia da Autoridade Central do Estado Requerido. Esta aprovação não é necessária quando: a)Os fatos que originaram o pedido representam um outro delito em relação ao qual a cooperação jurídica pode ser concedida; b)O procedimento penal estrangeiro for instaurado contra outras pessoas que participaram do delito; ou c)O material for usado para uma investigação ou procedimento que se refira ao pagamento de indenização relacionada a procedimento para o qual a cooperação jurídica foi concedida.

[vii] O citado protocolo, promulgado pelo decreto 3468/2000, assim dispõe no seu artigo 12: 1. Salvo consentimento prévio do Estado requerido, o Estado requerente somente poderá empregar a informação ou a prova obtida, em virtude do presente Protocolo, na investigação ou no procedimento indicado na solicitação. 2. A autoridade competente do Estado requerido poderá solicitar que a informação ou a prova obtida em virtude do presente Protocolo tenha caráter confidencial, de conformidade com as condições que especificará. Nesse caso, o Estado requerente respeitará tais condições. Se não puder aceitá-las, comunicará o requerido, que decidirá sobre a prestação da cooperação.

[viii] Disponível em: http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/nota-de-esclarecimento-sobre-cooperacao-internacional-no-caso-odebrecht. Acesso em 12/12/2019.

[ix] VASCONCELOS, VINICIUS. Compartilhamento de provas na Colaboração Premiada: Limites à Persecução Penal Baseada nos Elementos de Autoincriminação Produzidos pelo Delator. In: Revista de Direito Público. V. 15, n. 87, p. 9-24, maio-jun 2019. Disponível em: https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/direitopublico/article/view/3381/pdf.  Acesso em: 09/01/2020.

[x] VASCONCELOS, Vinicius. Compartilhamento de provas na Colaboração Premiada: Limites à Persecução Penal Baseada nos Elementos de Autoincriminação Produzidos pelo Delator. In: Revista de Direito Público. V. 15, n. 87, p. 9-24, maio-jun 2019. Disponível em: https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/direitopublico/article/view/3381/pdf

[xi] STF, PET 7.065-AgRg, 2ª T., Rel. Min. Edson Fachin, J. 30.10.2018. Acórdão ainda não publicado. Consulta pelo sítio eletrônico: www.stf.jus.br

[xii] VASCONCELOS, Vinicius. Compartilhamento de provas na Colaboração Premiada: Limites à Persecução Penal Baseada nos Elementos de Autoincriminação Produzidos pelo Delator. In: Revista de Direito Público. V. 15, n. 87, p. 9-24, maio-jun 2019. Disponível em: https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/direitopublico/article/view/3381/pdf


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