Nicole Trauczynski[i]

Camila Rodrigues Forigo[ii]

O Direito Penal Econômico é integrado por discussões que perpassam por questões extremamente contemporâneas e que necessitam ser objeto de atualização constante.

Nessa área de estudo, o compliance ganhou lugar de destaque e, com o passar dos anos, seus pressupostos, suas qualidades e seus problemas têm sido alvo de discussão cada vez mais crítica.

Ainda que seja uma ferramenta importante na prevenção de ilícitos corporativos, uma série de aprimoramentos se faz indispensável, seja pela necessidade de instituição de uma fiscalização e uma efetiva avaliação desses programas pelo setor público, seja pelas consequências penais que decorrem da sua implementação.

Paralelamente, a (in)eficácia do sistema penal repressivo há décadas é objeto de críticas e de sugestões de aprimoramento. Os elementos que levam a essa discussão são inúmeros, mas para o recorte do presente artigo dois podem ser destacados: a necessidade de se pensar em uma forma efetiva de prevenção da criminalidade e uma resposta estatal que seja capaz de reinserir socialmente o condenado após o cumprimento da pena, levando em consideração também os aspectos dos demais sujeitos envolvidos no cometimento do delito, como por exemplo, as vítimas e as consequências sociais.

A convergência entre esses dois temas foi objeto de um Seminário promovido pelo Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico (IBDPE) no dia 01 de outubro de 2020, intitulado “Justiça Restaurativa Empresarial: Problemas e Desafios”[iii] e este trabalho se destina a apresentar algumas das reflexões que foram expostas naquela ocasião.

Para o início dessa breve reflexão, é fundamental ter em vista que o delito praticado no âmbito empresarial apresenta algumas características gerais que o distinguem da criminalidade comum.

Além desse crime ser diferenciado pelas características pessoais do delinquente, já que geralmente se trata de pessoa instruída, com bom poder aquisitivo e que ocupa altos cargos hierárquicos dentro de uma empresa, o crime empresarial apresenta consequências sociais e econômicas muito graves, sendo o dano dificilmente objetivável ou identificável e a vítima, muitas vezes, não é aparente ou de fácil identificação[iv]. É de se recordar, ainda, que o âmbito de proteção dos delitos econômicos se volta, muitas vezes, para bens jurídicos de caráter supraindividual ou coletivos, razão pela qual sua violação pode acarretar danos generalizados. Ademais, em delitos ambientais de graves repercussões, a responsabilização penal das pessoas físicas envolvidas não raras vezes é de difícil aferição, prejudicando a responsabilidade pessoal dos autores do delito e remanescendo apenas sanções de caráter econômico em face das empresas.

Ressalte-se, ainda, que a atuação em um ambiente coletivo, próprio de uma estrutura empresarial, incrementa o risco de aparecimento de condutas desviantes por parte de seus diretores e empregados, já que o sentimento de responsabilidade individual existente em uma corporação é volatilizada, de modo que os agentes praticam condutas que provavelmente não desenvolveriam individualmente[v]. Isso é classificado por Omar Palermo e Mateo Bermejo como “atitude criminal de grupo”[vi] e pode decorrer de uma cultura empresarial criminógena[vii] que se origina também das dificuldades de imputação de responsabilidade jurídica aos agentes internos da empresa.

Alie-se também a existência de uma crise de valores na empresa, que, ao invés de estimular preceitos de solidariedade e de consideração com os demais, fomenta o egoísmo e a busca de seus próprios interesses, muitas vezes em detrimento da obediência ao direito[viii].

Sem pretender esgotar os elementos que caracterizam a empresa como um ambiente propício ao cometimento de ilícitos, esses pontos apresentados, refletem, principalmente, aspectos valorativos existentes no ambiente empresarial e nos indivíduos ali inseridos.

E é nesse contexto que o compliance ganha relevo, já que pode ser implementado com atenção aos valores e a ética que devem reger a atividade negocial.

Nesse sentido, o Professor Eduardo Saad-Diniz, que gentilmente colaborou com o Seminário e enriqueceu profundamente o debate, esclarece que “o planejamento estratégico de compliance se for mesmo o caso de se livrar de fanatismos ou obsessão pela punição de infrações econômicas, deve supor elevada capacidade de aprendizagem com os erros, apresentando, de forma idônea, sua postura colaborativa com as autoridades fiscalizadoras e reguladoras”[ix].

E aqui, então, se verifica a convergência com a temática da justiça restaurativa.

A Justiça restaurativa busca a recomposição do dano em sua integralidade e sob todos os seus aspectos, isto é, a partir de uma “composição” entre vítimas e sujeito ativo do delito a fim de se perquirir uma situação mais próxima do status quo possível. Assim leciona Giamberadino: “Ao invés da aflitividade, a dimensão comunicativa da censura deve abrir espaços de proatividade aos sujeitos vitimizados e criminalizados para que, (…) sejam desafiados a ressignificar o ocorrido e propor medidas criativas e simbólicas de reparação e ‘restauração’”[x]. É nesse sentido também que Luz e Santana defendem a integração com os interesses e opiniões dos demais envolvidos[xi], como ocorre com a justiça restaurativa, diferentemente das persecuções comuns que tornam a vítima e o ofensor mero objetos e expectadores dos processos e procedimentos em que estão envolvidos, como afirma Martín[xii].

Ocorre que o compromisso por programas de compliance mais efetivos são, muitas vezes, assumidos por grandes corporações em decorrência de acordos de leniência firmados pelas empresas, não raras vezes em paralelo com acordos de colaboração premiada firmados por seus executivos, a fim de restabelecer a continuidade das funções da empresa e aceitar a resposta sancionatória imposta pelo Estado pelos fatos ilícitos praticados. No entanto, a mera assunção de programas dessa natureza, sem a conscientização do empresariado pela adesão de políticas de justiça restaurativa não tem o condão de apaziguar e restabelecer o possível dano ocasionado no âmbito dessa criminalidade, seja em face das vítimas diretamente atingidas ou da comunidade como um todo. Não se trata de impor mais uma medida sancionatória, mas a busca pela conscientização da importância da justiça restaurativa a fim de trazer à resolução do conflito as perspectivas e a participação de todos os seus envolvidos.

Com efeito, o paradigma de punir pelos mecanismos tradicionalmente adotados não tem apresentado respostas satisfatórias ao fenômeno delitivo, eis que há alta taxa de reincidência no cometimento de delitos[xiii], além de não recomporem o dano social ocasionado.

Tal situação se concretiza nestes termos em razão da presença exclusiva de sujeitos estatais (responsáveis pela persecução e pelas decisões decorrentes dos atos criminosos), numa perspectiva abstrata de aplicação das normas e numa postura de superioridade e distanciamento frente aos jurisdicionados, na medida em que as decisões são tomadas à margem da vivência concreta dos envolvidos no fenômeno delitivo e do diálogo entre eles. Nesse jaez, a maior aplicabilidade da justiça restaurativa teria o condão de escutar a(s) vítima(s) e demais envolvidos no cometimento do delito para efetivamente restabelecer a paz social.

Desta forma, defende-se a o incremento da utilização das balizas utilizadas na justiça restaurativa nos programas de compliance ou de forma complementar a esses, visando uma maior aproximação entre aqueles que são atingidos pelo ato delitivo e aqueles que aplicarão os referidos programas, visando uma maior efetividade e uma resposta integral social, alçando-se a real responsabilidade social que deve nortear a atividade empresarial.


[i] Mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Especialista em Direito Penal Econômico e Empresarial pela Universidad Castilla-La Mancha, Toledo/Espanha. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela PUC-SP. Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e das Comissões da Mulher Advogada e de Advogados Criminalistas da OAB/PR. Conselheira do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico (IBDPE). Advogada.

[ii] Doutoranda em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Direito Econômico e Desenvolvimento, pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal – ICPC. Secretária da Comissão da Advocacia Criminal da OAB-PR. Conselheira do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico (IBDPE). Advogada.


[iii] A íntegra do Seminário está disponível no canal doYoutube do IBDPE: https://www.youtube.com/watch?v=u19kzWk3Z0c

[iv] AGUSTINA SANLLEHÍ, José R. Estrategias y limites en la prevención del delito dentro de la empresa: a proposito del control del correo electrónico del trabajador como posible violación de la intimidad (ex artículo 197 CP). Revista para el Análisis del Derecho – InDret, Barcelona, v. 2/2009, abr. 2009. p.  8. Disponível em: <http://www.raco.cat/index.php/InDret/article/viewFile/122213/169333>.

[v] FORIGO, Camila. A figura do compliance officer no direito brasileiro: funções e responsabilização penal. Multifoco: Rio de Janeiro, 2017. p. 41.

[vi] PALERMO, Omar; BERMEJO, Mateo G. La Intervención Delictiva del Compliance Officer. In: KUHLEN, Lothar; MONTIEL, Juan Pablo; URBINA GIMENO, Íñigo Ortiz de (Eds.). p. 171-205. Compliance y teoria del derecho penal. Madrid: Marcial Pons, 2013. p.  174-175.

[vii] SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María; VARELA, Lorena. Responsabilidades individuales em estructuras de empresa: la influencia de sesgos cognitivos y dinámicas de grupo. In: SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María (Dir.). MONTANER FERNÁNDEZ, Raquel (Coord). p. 265-286. Criminalidad de empresa y compliance: prevención y reacciones corporativas. Atelier: Barcelona, 2013. p. 278-280.

[viii] PASTOR MUÑOZ, Nuria. La respuesta adecuada a la criminalidade de los directivos contra la própria empresa: ¿Derecho penal o autorregulación empresarial? Revista para el Análisis del Derecho – InDret, Barcelona, v. 4/2006, n. 380, out. 2006. Disponível em: <http://www.raco.cat/index.php/InDret/article/viewFile/122213/169333>.

[ix] SAAD-DINIZ, Eduardo. Ética negocial e compliance: entre a educação executiva e a interpretação judicial. São Paulo: Thomson Reuters, 2019, p. 193.

[x] GIAMBERARDINO, André Ribeiro. Crítica da pena e justiça restaurativa: a censura para além da punição. 1 ed. Florianópolis: Empório do Direito Editora, 2015, p. 230.

[xi] SANTANA, Selma Pereira; LUZ, Ilana Martin. A ascensão do intérprete e o outro olhar do conflito penal. In: COSTA, José de Faria et al. Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Manuel da Costa Andrade. Volume II. Coimbra: Sersilito-Empresa Gráfica Lda., 2017, p. 795 – 814.

[xii] MARTÍN, Adán Nieto. Empresas, víctimas y sanciones restaurativas: ¿como configurar um sistema de sanciones para personas jurídicas pensando em sus víctimas?. In: SAAD-DINIZ, Eduardo; LAURENTIZ, Victoria Vitti de; Corrupção, direitos humanos e empresa. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 31 – 46.

[xiii] A taxa é de aproximadamente 42% segundo o relatório “Reentradas e reiterações Infracionais — Um olhar Sobre os Sistemas Socioeducativo e Prisional Brasileiros” – CONJUR. Taxa de retorno ao sistema prisional entre adultos é de 42%, aponta pesquisa. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2020-mar-03/42-adultos-retornam-sistema-prisional-aponta-pesquisa>, acesso em 19 nov. 2020.


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