Por Lívia Yuen Ngan Moscatelli[i] e Roberto Portugal de Biazi[ii]
Uma das notas características da criminalidade econômica é o seu grau de sofisticação, geralmente marcada pela multiplicidade de autores e de ações delitivas, as quais se desenvolvem em diversas localidades, seja em território nacional ou até mesmo fora dele (transnacionalidade/multinacionalidade). Por isso, o objeto de análise do Direito Penal Econômico é, no mais das vezes, complexo, arrojado, além de tratar da tutela de bens jurídicos difusos, pluriofensivos e/ou de perigo, demandando a reanálise conjunta dos institutos do Direito Penal e Processual Penal clássicos.
Esses fatores compõem alguns dos motivos pelos quais tem se tornado cada vez mais comum nos depararmos com os assim denominados maxiprocessos[iii], geralmente oriundos de operações policiais que, quando deflagradas, empreendem medidas em vários estados da federação.
Das inúmeras repercussões que esse (ainda) novo contexto gera, em especial pela confusão processual entre diversas ações penais e investigações, certamente merece atenção a questão do juiz natural e, portanto, da fixação da competência. Vale dizer, é preciso analisar como operam as regras processuais que determinarão a qual (ou quais) órgão jurisdicional competirá processar e julgar aludidos maxiprocessos, ainda que venham a ser cindidos, sem se olvidar das garantias asseguradas constitucional e convencionalmente.
Neste contexto, exsurge a importância da adequada aplicação das regras de prorrogação de competência, notadamente da conexão instrumental ou probatória (art. 76, III, CPP), por se tratar de hipótese com ampla margem interpretativa. É essa a proposta do presente artigo. Porém, para tanto, é preciso estabelecer, de partida, uma premissa necessária: o conteúdo da garantia do juiz natural e suas reverberações nas regras processuais.
A Constituição Federal estabelece, em seu artigo 5º, incisos LIII e XXXVII, que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente” e que “não haverá juízo ou tribunal de exceção”. Com isso, ela previu a garantia do juiz natural em um duplo aspecto: um positivo, que assegura o direito ao juiz competente (inciso LIII); e outro negativo, que veda a criação de tribunais de exceção (inciso XXXVII)[iv].
Ademais, o Brasil é signatário de tratados internacionais de direitos humanos, integrantes do ordenamento jurídico pátrio, que asseguram expressamente a garantia do juiz natural. Neste sentido, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP), em seu artigo 14.1, dispõe que “Toda pessoa terá o direito de ser ouvida publicamente e com devidas garantias por um tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido por lei (…)”, enquanto o artigo 8.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) prevê que “Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei (…)”[v].
Ressalte-se que, na estrutura ideal do Estado Democrático de Direito, dificilmente as autoridades se valeriam de medidas ostensivas de manipulação da competência para atender determinados interesses, de tal sorte que uma forma sutil de violação do juiz natural seria justamente a designação do juiz competente ex post factum (ou seja, a partir do fato passado), alterando determinados critérios de fixação ou prorrogação da competência, com efeitos imediatos em investigações e processos em andamento e em prejuízo do acusado, ou fazendo com que um caso penal seja atribuído a um determinado juiz. Por tais razões, afirma Gustavo Badaró que “as normas que definem o juiz competente devem estabelecer critérios gerais, abstratos e objetivos de determinação de competência, não se admitindo qualquer possibilidade de alteração de tais critérios por atos discricionários de quem quer que seja”[vi].
Não restam dúvidas, portanto, que as regras de conexão, por incidirem na determinação da competência, devem ser interpretadas à luz da garantia do juiz natural. Para cada fato em concreto, há, supostamente, um único juiz ou tribunal competente. Na prática, este respeito nem sempre ocorre, não sendo incomum manipulações discricionárias motivadas pela distorcida hermenêutica das normas, muitas vezes a partir do instituto da conexão processual.
Em linhas gerais, a conexão pode ser definida como o nexo, liame ou junção entre duas ou mais condutas criminais, originárias de uma relação material anterior à existência do processo[vii]. Ocorrendo uma dependência recíproca, entre pessoas, coisas e os fatos entre si, deverá ser promovido julgamento conjunto.
Quanto às hipóteses de conexão intersubjetiva e objetiva (art. 76, incisos I e II do CPP), não há grande dificuldade o seu reconhecimento e aplicação. A situação se agrava com a modalidade probatória ou instrumental, definida como o liame mais sensível, tênue e impreciso de conexão de causas[viii] e que ocorre quando “a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra inflação” (art. 76, inciso III do CPP).
Antes de apontarmos os problemas decorrentes de sua incorreta aplicação, é fundamental compreender as causas e finalidades pelos quais ela foi concebida. Em primeiro lugar, a união de feitos evitaria a repetição inútil de atos processuais, como o aproveitamento da oitiva de uma mesma testemunha relevante que presenciou todos os crimes. É um ganho em celeridade e economia processual[ix].
Ela igualmente serve para evitar o risco da existência de decisões judiciais divergentes e contraditórias sobre fatos relacionados[x]. Imaginemos um processo já com condenação por lavagem de dinheiro, sendo que o processo do crime antecedente, que tramitou de forma separada, veio posteriormente a reconhecer a absoluta inexistência de fato delituoso, imperando a absolvição. Se as ações penais tramitassem em conjunto, certamente o resultado seria diferente, já que a “proveniência do produto ou proveito da infração penal antecedente é verdadeiro elemento normativo do tipo de lavagem”[xi].
Em um aspecto mais importante, a conexão probatória tem ganhos expressivos quando analisada em uma perspectiva epistemológica e heurística[xii], já que a verdade é um dos objetivos institucionais do processo[xiii] e um critério importante para a decisão[xiv]. Em determinados casos, somente com a união dos feitos é que se poderá ter um correto acertamento dos fatos e um melhor esclarecimento de ambos crimes, já que procedimentos separados possibilitarão apenas visões fracionárias e parciais[xv]. O julgador terá uma visão mais global da imputação, dos atores envolvidos, do contexto em que ambos crimes foram cometidos, das causas e finalidades do delito, situação em que poderá proferir uma decisão mais qualificada. Para além, o instituto pode aprimorar a paridade de armas entre a defesa e a acusação, já que o defensor passa a compreender a amplitude da imputação, e dependendo do caso, pode ser a única forma de se viabilizar a apreciação de determinada tese jurídica.
Entendendo sua importância, cumpre esclarecer que a redação do art. 76, inciso III do CPP não expressa qual é o grau de influência necessário para o reconhecimento da prorrogação de competência, o que resulta na união de processos a depender da casuística e dos critérios de oportunidade.
Dentro do espectro dos maxiprocessos, foi exatamente este fenômeno que ocorreu na Operação Lava-Jato. A 13aVara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba se declarava competente para julgar processos que não influíam no acervo probatório de outras ações penais, não tinham relação com o contexto da Petrobrás, como sequer haviam sido cometidos na área territorial que abrange a referida subseção judiciária, sob o argumento da incidência das regras de prevenção ou conexão probatória. Para Aury Lopes e Alexandre Morais da Rosa, criou-se até mesmo uma competência “conglobante” ou “esponja” em absorver o que não lhe era devido, em manifesta manipulação do juiz natural[xvi].
Fato igualmente grave foi denunciado por Gustavo Badaró ao afirmar que “A Operação Lava-Jato quer só a prorrogação da competência, mas não a unidade processual”[xvii]. O Juízo Federal, logo após reconhecer a existência da conexão probatória, imediata e discricionariamente determinava a separação dos processos, nos termos do art. 80 do CPP. Cabe lembrar que o referido artigo não autoriza que o juiz deixe de reunir os processos desde o início, mas somente possibilita a separação dos feitos que estavam anteriormente reunidos[xviii]. Em outras palavras, a crítica se perfaz no sentido que os processos nasciam separados, nunca eram reunidos e mesmo assim eram mantidos sob julgamento da 13aVara Federal, sendo que os efeitos benéficos da conexão sequer eram aproveitados.
Diante dessa desnaturação da aplicação das regras de conexão probatória, imprescindível uma correta delimitação da conceituação de qual será o grau necessário para o seu correto reconhecimento.
Para a corrente minoritária, “o interesse probatório vai além de qualquer relação de prejudicialidade penal”, de modo que o que importa é a relação probatória em que a mesma prova possa servir para o esclarecimento de ambos delitos[xix], bastando a mera demonstração desse interesse probatório para o reconhecimento da conexão instrumental.
Por outro lado, grande parte da doutrina defende que é necessária a exposição da efetiva influência e repercussão no conhecimento da prova para justificar a união dos processos[xx], com a demonstração da prejudicialidade homogênea entre os delitos[xxi].
Ao que parece, o STF tem adotado esse último entendimento, afinal, já afirmou que “o simples encontro fortuito de prova de infração que não possui relação com o objeto da investigação em andamento não enseja o simultaneus processus”[xxii]. Posteriomente, na decisão paradigmática que admitiu o fatiamento da Operação Lava-Jato em sede do Inq 4130, a Suprema Corte definiu que “não há relação de dependência entre a apuração desses fatos e a investigação de fraudes e desvios de recursos no âmbito da Petrobras, a afastar a existência de conexão (art. 76, CPP) e de continência (art. 77, CPP) que pudessem ensejar o simultaneus processus”[xxiii]. O Supremo Tribunal Federal já reiterou diversas vezes referido entendimento, consignando que “a identidade entre autores de crimes em tese praticados no âmbito de pessoas jurídicas diversas, por si só, não enseja a existência de conexão instrumental, quando não constatada que a prova relacionada a infrações penais supostamente ocorridas em uma pessoa jurídica possa influir decisivamente na prova de crimes cometidos em outra”[xxiv] (destacamos).
Portanto, ainda que seja de fundamental importância a previsão da hipótese da conexão probatória, em especial pelo seu potencial epistêmico, defendemos uma interpretação restritiva, que preze pelo incondicional respeito à garantia do juiz natural. A relação entre as causas deve ser evidente (ou decisiva, nas palavras do ex-Ministro Teori Zavascki), com uma concreta relação probatória entre as circunstâncias dos delitos, sob pena de atender determinados interesses políticos e criar maxiprocessos exagerados com uma grande quantidade de fases, apenas para justificar a manutenção de determinado julgador que sempre se afirme prevento, fazendo as vezes de um “juízo universal”.
Regra é garantia dentro do processo penal, ainda mais em tema de conexão, cujas hipóteses legais atinam com a garantia constitucional e convencional do juiz natural. Por isso, não há espaço para manipulações discricionárias dos critérios de fixação e de prorrogação da competência, sob pena de abrir-se margem a indevidos oportunismos. Enfim, a observância do devido processo legal (e de seus consectários) é imprescindível à própria preservação do Estado Democrático de Direito.
[i] Mestranda em Direito na Universidade de São Paulo, no Departamento de Direito Processual, subárea de Processo Penal e em raciocínio probatório pela Universitat de Girona (UDG) na Espanha. Pós-graduada em Direito Penal pela Universidade de Coimbra (IDPEE/IBCCRIM). Graduada em Direito na Universidade de São Paulo (USP). Advogada criminalista.
[ii] Mestrando em Direito na Universidade de São Paulo, no Departamento de Direito Processual, subárea de Processo Penal. Pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas (GVLaw). Pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra (IDPEE/IBCCRIM). Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado criminalista.
[iii] Os maxiprocessos possuem: (1) cobertura midiática massiva; (2) o gigantismo processual; (3) a confusão processual; (4) a mutação substancial domodelo clássico de legalidade penal; (5) o incremento da utilização dos meios investigação ou obtenção de prova. SANTORO, Antonio EduardoRamires. A imbricação entre maxiprocessos e colaboração premiada: o deslocamento do centro informativo para a fase investigatória na OperaçãoLava Jato. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v. 6, n. 1, p. 81-116, jan-abr. 2020. p. 88.
[iv] BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 124.
[v] Apesar da redação bastante similar ao PIDCP, a CADH se revela muito mais protetiva, na medida em que fez inserir o termo anteriormente. Como bem pontuou Sylvia Steiner, o Pacto de São José da Costa Rica exige “seja o juízo competente estabelecido com anterioridade, o que implica em afastar-se a possibilidade de alteração de competência em face da criação de novos tribunais ou juízos, posteriores à prática do delito” In: A convenção americana sobre direitos humanos e sua integração ao processo penal brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 113.
[vi] BADARÓ, Gustavo Henrique. A conexão no processo penal, segundo o princípio do juiz natural, e sua aplicação nos processos da operação Lava Jato. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 24, n. 122, p. 171-204, ago. 2016. Neste sentido: STF, RHC 107.453, Rel. Min. Gilmar Mendes, 2ª T, julgado em 13.09.2011.
[vii] XAVIER DE ALBUQUERQUE, Francisco Manoel. Aspectos da Conexão. Tese (Titular), Manaus, Faculdade de Direito do Amazonas, 1956, p. 29.
[viii] MARQUES, Frederico. Elementos do Processo Penal. vol. I. Campinas: Bookseller, 1997, p. 259.
[ix] ASSIS, Maria Thereza Rocha de. Da competência. In: GOMES FILHO, Antonio Magalhaes; TORON, Alberto Zacharias; BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy (Orgs). Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018. p. 251-308, p. 269.
[x] Ibidem, p. 269.
[xi] MENDONÇA, Andrey Borges. Do processo e julgamento da Lavagem de Dinheiro. In: Carla Veríssimo de Carli. (Org.). Lavagem de Dinheiro: Prevenção e Controle Penal. 2. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2013, p. 483-610, p. 594.
[xii] BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI; Pierpaolo Cruz. Lavagem de Dinheiro: Aspectos penais e processuais penais. Comentários à Lei 9.613/1998, com alterações da Lei 12.683/2012. 4a ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 302.
[xiii] MATIDA, Janaina; MASCARENHAS, Marcella; HERDY, Rachel. No processo penal, a verdade dos fatos é garantia. CONJUR. Disponível em: https://bit.ly/3br0BVX. Acesso em 04 set. 2020.
[xiv] TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. Trad. de Vitor de Paula Ramos. São Paulo, Marcial Pons, 2012. p. 160.
[xv] BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI; Pierpaolo Cruz. Lavagem de Dinheiro: Aspectos penais e processuais penais, op. cit, p. 302.
[xvi] LOPES, Aury; ROSA, Alexandre Morais da. Supremo pode ter retirado a competência de Sergio Moro. CONJUR. Disponível em: https://bit.ly/32LIh5Y. Acesso em 1 set. 2020.
[xvii] BADARÓ, Gustavo Henrique. Conexão no processo penal, op. cit., p. 186.
[xviii] BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI; Pierpaolo Cruz. Lavagem de Dinheiro, op. cit., p. 322.
[xix] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 13a ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 309.
[xx] ASSIS, Maria Thereza Rocha de. Da competência, op. cit., p. 270.
[xxi] Nesse sentido: BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI; Pierpaolo Cruz. Lavagem de Dinheiro, op. cit., p. 304; PEDROSO, Fernando de Almeida. Competência penal: doutrina e jurisprudência. 2. Ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2007. p. 87-88; ASSIS, Maria Thereza Rocha de. Da competência, op. cit., p. 270.
[xxii] STF, RHC 120.379/RO, Rel. Min. Luiz Fux, 1a Turma, julgado em 26.08.2014.
[xxiii] STF, Questão de Ordem no Inq 4130, Rel. Dias Toffoli, Pleno, julgado em 23.09.2015.
[xxiv] STF, Pet 5862, Relator Min. Teori Zavascki, Segunda Turma, julgado em 15.03.2016. Em sentido semelhante: “O juízo que homologa o acordo de colaboração premiada não é, necessariamente, competente para o processamento de todos os fatos relatados no âmbito das declarações dos colaboradores” (STF, Pet 7074, Rel. Min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 29.06.2017).
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