Por VINICIUS SILVA NASCIMENTO

Recentemente (DJe 20/09/2022), a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, por maioria de votos, ao julgar o REsp n. 1.977.172/PR, firmou o entendimento de que a incorporação societária resulta na extinção da personalidade jurídica da empresa incorporada, refletindo na extinção da punibilidade dos crimes ambientais anteriormente praticados, em razão da incidência do princípio da intranscendência da pena (artigo 5º, inciso XLV, da Constituição Federal), que veta a transferência da responsabilidade penal para terceiros.

A controvérsia levada à apreciação do STJ versou sobre a responsabilidade penal da pessoa jurídica, de modo que se analisou, se diante de operação societária de incorporação de empresa seria possível imputar à incorporadora a responsabilidade penal por ato praticado pela empresa incorporada. Ou se caberia, nesse cenário, aplicar analogicamente o art. 107, I, do Código Penal, para declarar a extinção da punibilidade pelo fim da existência da incorporada.

Inicialmente, cumpre destacar a existência de precedente similar julgado pelo  STJ em 27/10/2010, delimitando que a “incorporação societária – operação pela qual uma ou mais sociedades são absorvidas por outra – enseja a extinção da personalidade jurídica da sociedade incorporada, equiparando-se, para efeitos legais, à morte da pessoa física ou natural. (…)”. (STJ – AgRg no REsp 89557/RS – Rel. Min. Mauro Campbell Marques).

Em se tratando de incorporação societária, o Código Civil estabelece na redação do art. 1.116, que “na incorporação, uma ou várias sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede em todos os direitos e obrigações, devendo todas aprová-las, na forma estabelecida para os respectivos tipos”. No mesmo sentido, o artigo 1.118, do Diploma Civil, delimita que “aprovados os atos da incorporação, a incorporadora declarará extinta a incorporada, e promoverá a respectiva averbação no registro próprio”.

Por sua vez,  o art. 227, da Lei 6.404/1976 (Lei das Sociedades por Ações ou Lei das S.A.), prevê que a incorporação societária representa “a operação pela qual uma ou mais sociedades são absorvidas por outra que lhe sucede em todos os direitos e obrigações”, ou seja, a incorporação societária resulta na extinção da sociedade incorporada, transmitindo-se à incorporadora os direitos e obrigações de natureza cível e administrativas, excetuando-se as obrigações penais que não se confundem com obrigações transmissíveis.

Na seara penal, a pretensão punitiva estatal não se enquadra no conceito jurídico-dogmático de obrigação patrimonial transmissível, pois não se relaciona com o direito à reparação delimitado tanto da seara do Direito Civil ou Direito Ambiental. Assim, “inexistindo norma penal que autorize a transferência da responsabilidade penal à incorporadora, deve ser aplicado o princípio da intranscendência da pena, previsto no art. 5º, XLV, da CR/1988, aplicável às pessoas jurídicas” (REsp n. 1.977.172/PR).

Conforme preceito constitucional disposto no artigo 5º, inciso XXXIX, da Carta Magna, aplica-se ao Direito Penal o princípio da estrita legalidade, impedindo a utilização de analogia jurídica para criação de tipos penais incriminadores em prejuízo ao réu ou acusado. Com efeito, a inexistência de dispositivo legal permitindo a transferência de responsabilidade penal em casos de operações societárias, obsta a responsabilização criminal de empresas incorporadoras, em decorrência da efetiva extinção da punibilidade pelo perecimento da organização incorporada.

No julgamento do Agravo de Instrumento n. 491.276/SP, de relatoria do Min. Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, considerou-se que “a extinção da personalidade jurídica de uma entidade de direito privado equipara-se, para efeitos legais, à morte da pessoa física ou natural, consoante tem sido reconhecido pela jurisprudência dos Tribunais.” Assim, a exigência de isonomia da legislação penal e dos institutos protetivos direcionados aos réus ou acusados, “devem ser aplicados às pessoas jurídicas, uma vez que elas também se configuram como sujeitos passivos da persecução penal nessa situação” (REsp n. 1.977.172/PR).

Importante ressaltar a impossibilidade de sucessão processual de réu ou acusados no âmbito criminal, pois o Código de Processo Penal não delimitou essa possibilidade. Portanto, inexistindo instrumento similar capaz de permitir a substituição do réu ou acusado (pessoa física ou jurídica) em uma ação penal, mostrar-se-ia inadequada a interpretação analógica da sucessão processual prevista no âmbito do processo civil, uma vez que esta é voltada às relações patrimoniais, que  possuem natureza diversa da pretensão punitiva do direito penal.

Conforme voto do Ministro-Relator Ribeiro Dantas, nos autos do REsp n. 1.977.172/PR, “na relação entre o Ministério Público e o réu em uma ação penal, inexistem os três elementos obrigacionais há pouco referenciados, justamente porque a pretensão punitiva criminal não é uma obrigação, dela divergindo em suas fontes, estruturas e consequências”. Trata-se, portanto, de natureza jurídica diversa, pois as penalidades criminais não se equiparam às obrigações cíveis considerando o fundamento jurídico de sua incidência.

Nessa perspectiva, considerou-se que o princípio da intranscendência da pena (art. 5º, XLV da Constituição Federal), aplica-se efetivamente às pessoas jurídicas, de modo que, extinta legalmente a pessoa jurídica pela incorporação societária – sem nenhum indício de fraude -, incidirá analogicamente o art. 107, I, do Código Penal, com a consequente extinção de sua punibilidade.

Cumpre-se ressalvar que a referida extinção da punibilidade por meio da incorporação de empresas se restringe ao campo de aplicação do direito penal, subsistindo a responsabilidade administrativa, ambiental e cível pelos danos causados ao meio ambiente ou à terceiros, bem como os efeitos extrapenais de uma sentença condenatória eventualmente já proferida, devendo tais responsabilidades serem transmitidas à incorporadora.

Assim sendo, em se tratando dos danos ambientais praticados pela empresa incorporada, é passível de se concluir que sua repercussão pode ser transmitida à esferas distintas e independentes, especialmente por força da Súmula 623/STJ, que estabelece a responsabilidade objetiva e solidária de natureza propter rem aos danos ambientais, pois aderem ao título de domínio ou posse, independente do fato de ter sido ou não o proprietário o autor da degradação ambiental, viabilizando-se a cobrança da obrigação perante proprietários e possuidores presentes e passados.

Ao fim, considerando que o tema igualmente influi na seara do Direito Constitucional, a tese delimitada pelo STJ eventualmente poderá ser apreciada pelo Supremo Tribunal Federal sob o aspecto da interpretação constitucional da Lei 6.404/1976 (Lei das Sociedades), em face do artigo 225 da Constituição Federal de 1988, que estabelece o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 10 out. 2022.

 

BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 31 dez. 1940. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em: 10 out. 2022.

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 139, n. 8, p. 1-74, 11 abr. 2021. Acesso em: 10 out. 2022.

BRASIL. Lei nº 6.404/1976 , de 15 de dezembro de 1976. Dispõe sobre as Sociedades por Ações. Diário Oficial da União, Brasília, 17 dez. 1976. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6404consol.htm>. Acesso em: 10 out. 2022.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RECURSO ESPECIAL. REsp n. 1.977.172/PR. Relator: Ministro Ribeiro Dantas. DJ: 20/09/2022. Disponível em: <https://processo.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202103792243&dt_publicacao=20/09/2022>. Acesso em: 12 out. 2022.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AGRAVO DE INSTRUMENTO. Agravo de Instrumento n. 491.276/SP. Relator: Ministro Celso de Mello. DJ: 24/08/2005. Disponível em: <https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/despacho44123/false>. Acesso em: 12 out. 2022.


 

Vinicius Silva Nascimento é Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Associado do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico (IBDPE). Pesquisador na Área de Direito Constitucional, Direito Penal e Administrativo.


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