Pedro Henrique Nunes1 Letícia Rodrigues Calaça2

 

Ao tratar sobre o “Pacote Anticrime”, que possui o objetivo de aperfeiçoamento da legislação penal e processual penal, os acordos de não persecução penal (ANPP) vieram como uma mudança significativa sobre os procedimentos pré-processuais. Firmado entre o Ministério Público e o acusado, um dos principais objetivos que perpassa os acordos de não persecução penal é a celeridade, e principalmente, a desburocratização para que se consiga otimizar o processo para a prevenção do crime e abarcar sua reprovação.

Dessarte, o ANPP encontra cabimento quando não há hipótese de arquivamento; o acusado tenha confessado a infração; e o delito compreende pena menor que 4 anos. Não existindo violência na conduta criminosa, o Ministério Público incorrerá no Acordo de Não persecução Penal quando puder albergar a reparação do dano, pagamento de prestação pecuniária, prestação de serviço à comunidade ou outras entidades públicas, dentre outras condições.

O legislador também cuidou de prever hipóteses específicas de não cabimento desses acordos (art. 28-A, §2º, do CPP). Dentre elas, o ponto chave desse artigo paira sobre a vedação no caso do réu que faz do crime uma atividade corriqueira (art. 28-A, § 2º, II). Nele, consta que o ANPP não se aplica “se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas”.

Com base em sua leitura, pode-se delinear situações em que o mencionado inciso não deixa margem para dúvidas em relação ao cabimento ou não do acordo de não persecução, como é o caso de condenação anterior por contravenção penal, já que o próprio artigo 63, do Código Penal, que trata da configuração da reincidência, menciona a necessidade de se estar diante do cometimento de um crime, de modo que a condenação por contravenção não obsta o ANPP.

Outra situação que também deixa pouco espaço para questionamentos é no caso de condenação por posse ou porte de drogas para consumo pessoal (art. 28, da Lei 11.343/06), já

que seria desproporcional não se considerar reincidente aquele que é condenado por contravenção penal, com pena de prisão simples, e considerá-lo aquele condenado pelo consumo de drogas, que nem sequer é punido com pena privativa de liberdade.3

Porém, ao lado dessas situações que, salvo melhor juízo, detêm pouca possibilidade de questionamento, a maneira como o dispositivo foi redigido – valendo-se do emprego de conceitos abertos e inéditos em nossa legislação penal – deixa-o sujeito a distintas interpretações em alguns  pontos.

Logo de início, observa-se que o texto se vale dos conceitos “conduta criminal habitual, reiterada ou profissional”, cujo conteúdo pode ser questionável desde um ponto de vista democrático, por flertar com um direito penal do autor, e não do ato. Nesse mesmo sentido, sua própria aferição é alvo de controvérsias, havendo autores que defendem a possibilidade de se utilizar inquéritos policiais e processos em andamentos para demonstrar esses impedimentos.4 Outros sustentam que só seria possível de se preencher o preceito quando o agente deter maus antecedentes5 que indiquem, com clareza, a habitualidade delitiva, a reiterada prática de crimes ou o profissionalismo do agente.6

Mas o termo disposto no referido inciso em que o legislador deixou maior amplitude para interpretações está justamente em sua exceção. Conforme dispõe o final do dispositivo, ao reincidente e ao criminoso habitual, reiterado ou profissional, não se pode ofertar o acordo de não persecução penal, “exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas”.

E o que vem a ser, de fato, tais infrações “insignificantes”? Nesse sentido, a doutrina vem buscando se posicionar a fim de atribuir sentido à vagueza da lei.

Há autores que defendem que o legislador quis aqui se referir aos casos em que, inobstante a existência de tipicidade formal da conduta, verificar-se a carência de sua tipicidade material. Em outras palavras, a exceção contida ao final do inciso estaria a fazer referência às situações nas quais incide o princípio da insignificância.

Esse é o entendimento de Rodrigo Cabral, para quem “quando as infrações antecedentes forem consideradas como insignificantes (é dizer, apesar de dotadas de tipicidade formal, não importarem em relevante violação aos bens jurídicos tutelados) não incidirá a proibição do acordo”, citando como exemplo uma infração pretérita motivada pelo furto de bombons dentro de um estabelecimento comercial.7 Nessa mesma esteira segue Rodrigo Rodrigues, o qual argumenta que a parte final do referido inciso caracterizaria “a consagração legal do princípio da insignificância ou da criminalidade de bagatela”.8

Já Andrey Mendonça também aponta para a margem de apreciação que o legislador deixou para o operador no caso concreto. Porém, ao exemplificar situações em que a exceção em comento poderia ser aplicada, toma como norte eventuais atos infracionais de pequena monta cometidos pelo acusado. Para o autor, “Imagine-se, assim, um adolescente que teve vários atos infracionais por furto de valores insignificantes. Chegado à maioridade, caso venha a praticar um delito, pode ser, excepcionalmente, proposto o ANPP no caso concreto”.9

Porém, tal posicionamento parece concluir que a lei teria se valido da expressão “insignificante” de maneira totalmente desnecessária. Ora, é certo que partindo de um quadro de direito penal mínimo, se uma determinada conduta é insignificante, ela não poderá ser alvo de tutela penal. Conforme sustentam Melo e Broeto, “Não precisa muito para dizer que, se a infração penal é insignificante, de infração penal (crime ou contravenção) não se trata”.10

Portanto, tal interpretação acaba por desconsiderar o acréscimo feito em caráter de exceção pelo legislador ao final do dispositivo, o que não se sustenta.

Carvalho e Dias também discordam desse posicionamento inicial, porém chegando a conclusões diferentes. Para eles, “o princípio da insignificância exclui a própria infração penal, por atipicidade material, de modo que não há equivalência entre o princípio e o novo conceito

Porém, tal conclusão peca exatamente no mesmo ponto da anterior, tendo em vista que continuaria sendo desnecessário o acréscimo ao final do dispositivo, já que o artigo 28 não pode ser utilizado para fins de reincidência ou conduta criminal, habitual ou reiterada, tal como mencionado acima.

Assim, buscando uma interpretação que pudesse de fato conferir algum sentido à expressão “insignificantes as infrações penais pretéritas”, sem tornar o texto completamente inócuo, alguns autores sustentam que, nesse caso, enquadrar-se-iam os crimes de menor potencial ofensivo. O argumento é motivado pela baixa reprovabilidade existente nessas condutas – ainda que não necessariamente implique na aplicação do princípio da insignificância em todos os casos -, bem como considerando que, diferentemente das contravenções, são aptos a gerar os efeitos da reincidência, conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça.12

Compactuando com essa interpretação, leciona Renato Brasileiro de Lima que “Revela-se inadequado, portanto, falar em infração penal pretérita insignificante, exatamente porque, ausente a tipicidade material, a infração penal jamais terá existido”. Ao que conclui “Por tais motivos, somos levados a crer que o legislador usou o termo insignificante em seu sentido vulgar, possivelmente se referindo às infrações de menor potencial ofensivo”.13

Santos também perfila esse entendimento, apontando que “relevada a (descomunal) impropriedade terminológica, mostram-se neutras, para fins de ANPP, condenações anteriores por infrações de menor potencial ofensivo, assim devendo ser interpretado o adjetivo insignificante.”14. Por fim, é justamente esta a interpretação defendida pelo próprio Ministério Público por meio do Enunciado n. 21 da Comissão Especial do Grupo Nacional de Coordenadores

de Centro de Apoio Criminal (GNCCRIM), acerca da Lei Anticrime, equiparando-se a expressão “insignificantes” a “delitos de menor potencial ofensivo”.15

E com efeito, tal posicionamento parece ser aquele que melhor se amolda aos objetivos que levaram à instauração do ANPP em nosso ordenamento. Ora, tal instituto foi implantado sob a justificativa de proporcionar celeridade na resolução de casos menos graves, de modo a priorizar os recursos aos casos mais graves; minorar os efeitos deletérios de uma condenação penal; e desafogar os estabelecimentos prisionais.16

Então, se o objetivo do ANPP é justamente o de reduzir a massificação do sistema penal e seus efeitos, é coerente que o instituto não pode ser tomado como uma exceção ao réu. Por isso, a proposta de interpretar o final do inciso II, §2º, art. 28-A, do CPP, a fim de serem abarcados os crimes de menor potencial ofensivo, além de conferir um substrato ao texto legal e impedir de torná-lo inócuo, também é a que mais amplia seu alcance e permite o respaldo dos fundamentos de sua instauração em nosso ordenamento.

 


1 Graduando em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Membro fundador e Coordenador do Núcleo de Estudos de Direito Penal Econômico da Universidade Federal do Paraná (NUPPE). E-mail: nunespedro1998@gmail.com.

2 Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Membra do Núcleo de Estudos de Direito Penal Econômico da Universidade Federal do Paraná (NUPPE). E-mail: leticia.calaca@ufpr.br.


3 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5ª Turma). Habeas Corpus nº 453.437/SP. Relator: Ministro Reynaldo Soares da Fonseca. DJe 15/10/2018.

4 MENDONÇA, Andrey Borges de. Acordo de não persecução penal e o pacote anticrime (Lei 13.964/2019). In: GONÇALVES, Antonio Baptista. Lei Anticrime: Um olhar criminológico, político-criminal, penitenciário e judicial.

  1. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.

5 Valendo-se, para tanto, do que foi fixado pelo STF na tese de repercussão geral no RE 591.054, a fim de sustentar que a simples existência de inquéritos policiais ou de ações penais sem trânsito em julgado não pode ser considerada como maus antecedentes.

6 NUCCI, Guilherme de Souza. Pacote anticrime comentado. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 62.

7 CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Manual do Acordo de Não Persecução Penal. 2ª ed. rev. atual. e ampl. Salvador: Editora JusPodivm, 2021. p. 120.

8 RODRIGUES, Rodrigo Alves. Principais Aspectos Do Acordo de Não Persecução Penal. Âmbito Jurídico. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-processual-penal/principais-aspectos-do-acordo-de- nao-persecucao-penal/. Acesso em 19/04/2021.

9 MENDONÇA, op. cit. RB-11.9.

10 MELO, Valber; BROETO, Felipe Maia. Acordo de não persecução penal e suas (relevantes) implicações no processo penal brasileiro. Olhar Jurídico. Disponível em:                                                                                                                                            https://www.olharjuridico.com.br/artigos/exibir.asp?id=917&artigo=acordo-de-nao-persecucao-penal-e-suas- relevantes-implicacoes-no-processo-penal-brasileiro. Acesso em: 18/04/2021.

(infrações penais insignificantes) introduzido pelo legislador”.11 Sua conclusão, então, é a de que o único tipo criminal que se amolda à exceção em comento seria aquele previsto no já mencionado art. 28, da Lei de Drogas, tendo em vista sua tutela por medidas alternativas à pena de prisão.

11 CARVALHO, João Henrique M. C. de; DIAS, Ádhryans Wylly. As ‘infrações penais insignificantes’ segundo a Lei 13.964/2019. Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/as-infracoes-penais-insignificantes- segundo-a-lei-13-964-2019-17072020. Acesso em: 19/04/2021.

12 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (6ª Turma). Habeas Corpus nº 355.763/SP. Relator: Ministra Maria Thereza de Assis Moura. Julgado em 21/06/2016. DJe 30/06/2016.

13 LIMA, Renato Brasileiro de. Pacote Anticrime: Comentários à Lei nº 13.964/19. Salvador: Juspodivm, 2020. p. 228.

14 SANTOS, Marcos Paulo Dutra. Comentários ao pacote anticrime. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2020. P. 226.

15 Enunciado nº 21: Não caberá o acordo de não persecução penal se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas, entendidas estas como delitos de menor potencial ofensivo.

16 LIMA., op. cit. p. 219.


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