Por Camila Rodrigues Forigo[1]

 

A lavagem de dinheiro consiste no ato ou na sequência de atos “praticados para mascarar a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, valores e direitos de origem delitiva ou contravencional, com o escopo último de reinseri-los na economia formal com aparência de licitude”[i].

Na tentativa de combater essa prática, as últimas décadas[ii] são marcadas pela elaboração de diversas estratégias político-criminais para criminalizar essas condutas e para ampliar o confisco dos bens de origem delitiva.

Não por outra razão, Blanco Cordero explica que a filosofia adotada na luta contra a lavagem de dinheiro consiste em seguir o dinheiro de origem delitiva (“follow the money”) e realizar o seu confisco[iii].

A primeira reação formal da Comunidade Europeia contra o perigo da introdução do capital de origem delitiva no circuito econômico foi a Recomendação do Conselho da Europa nº R(80)10 sobre medidas contra a transferência e custódia de fundos de origem criminal, de 27 de junho de 1980[iv].

Referida recomendação destacou não só os danos causados pela introdução na economia de valores provenientes de origem delitiva de um país a outro, como também ressaltou a necessidade de os Estados membros definirem uma política global de prevenção e da necessidade de contribuição das entidades privadas com as autoridades judiciais e policiais na fiscalização e fornecimento de informações.

No ano de 1986 tem-se a publicação do Money Laudering Act Control nos Estados Unidos, responsável pela criação do delito de lavagem de capitais naquele país e pelo estabelecimento de ferramentas eficazes para lutar contra a lavagem de capitais[v].

Essa lei impôs uma série de obrigações às instituições financeiras, bem como às empresas e profissões não financeiras expressamente designadas, no sentido de determinar o estabelecimento de sistemas de controle interno e auditoria contra a lavagem de dinheiro, com base no risco da atividade[vi].

A Convenção de Viena, ou Convenção das Nações Unidas sobre drogas de 1988, internalizada no Brasil por meio do Decreto nº 154/1991, ao dispor sobre regras de combate ao tráfico de drogas, traz a previsão da lavagem de dinheiro[vii] e impõe aos Estados partes que tipifiquem penalmente atos consistentes em conversão, transferência e ocultação de bens que procedam de delitos relacionados a drogas[viii].

Com a pretensão de privar os agentes que praticam tráfico ilícito de entorpecentes dos produtos oriundos de suas atividades, o instrumento exige a cooperação internacional entre os Estados Partes na extração, apreensão de bens e assistência judicial recíproca[ix].

A Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo) de 2000, incluída no ordenamento jurídico nacional pelo Decreto nº 5.015/2004, teve por objetivo promover a cooperação entre os Estados signatários para prevenir e combater de forma mais eficaz a criminalidade organizada transnacional. O texto legislativo indica que os bens passíveis de lavagem podem decorrer de outros crimes além do tráfico de drogas[x] e impõe aos Estados deveres para criminalizar o pertencimento a grupos criminosos organizados[xi].

Por fim, a Convenção de Mérida (Convenção da ONU contra a Corrupção), firmada em 2003 e ratificada no Brasil por meio do Decreto nº 5.687/2006, estabelece aos Estados membros a implantação de mecanismos de transparência contábil, auditoria interna, transparência nas relações comerciais e códigos de governança corporativa.

A Convenção tratou de assuntos como lavagem de dinheiro, tráfico de influência, abuso de funções, peculato, suborno de oficiais públicos, práticas ativas e passivas de corrupção, encobrimento e obstrução da justiça. Igualmente impõe a obrigação de tipificar a lavagem de dinheiro[xii] e disciplina a cooperação entre os Estados[xiii].

Convém citar, ainda, a Lei Sarbanes-Oxley (SOX), publicada no ano de 2002 nos Estados Unidos, que exige relatórios acerca dos controles internos da empresa e declarações financeiras[xiv]. A legislação também determinou o estabelecimento e manutenção de estruturas adequadas de controles internos[xv] e criou mecanismos para a responsabilização cível e criminal de executivos, conselheiros e auditores responsáveis por declarações imprecisas[xvi].

Não se pode deixar de mencionar a criação, em 1989, do Grupo de Ação Financeira sobre Lavagem de Dinheiro (GAFI/FATF) no âmbito da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) cujo objetivo é examinar, desenvolver e promover políticas de combate à lavagem de dinheiro[xvii]. Em 1990, o GAFI emitiu 40 (quarenta) recomendações, as quais são regularmente atualizadas, que constituem verdadeiros modelos a se seguir pelos Estados em matéria de lavagem de capitais[xviii].

No ano 2000 é criado o Grupo de Ação Financeira Internacional da América do Sul (GAFISUD), voltada à prevenção da lavagem do dinheiro em âmbito regional, envolvendo países da América do Sul[xix], seguindo a tendência da criação de grupos regionais de lavagem de dinheiro[xx].

No ordenamento nacional, a lavagem é criminalizada pela Lei Federal nº 9.613/1998, com as alterações introduzidas pela Lei Federal nº 12.683/2012. Além de tipificar a conduta de mascaramento em diversas modalidades, a lei estabelece regras e obrigações administrativas para aqueles que exercem atividades em setores sensíveis aos esquemas de lavagem[xxi].

As condutas que caracterizam a lavagem de dinheiro estão dispostas no artigo 1º, em seus parágrafos e incisos, da Lei nº 9.613/1998, sendo punido o ato de distanciar os valores de sua origem delitiva, com o disfarce das movimentações e criação de empecilhos para rastrear tais recursos[xxii].

Cite-se que a lei originalmente publicada, em 1998, trazia uma relação taxativa de condutas ilícitas que poderiam dar origem à bens e valores passíveis de lavagem de dinheiro[xxiii], mas com a reforma legislativa operada pela Lei nº 12.683/2012, o rol taxativo foi suprimido, de modo que a prática de qualquer crime ou contravenção penal pode gerar produtos passíveis de lavagem de dinheiro. Essa alteração do rol, de acordo com Badaró e Bottini[xxiv], seguiu a tendência internacional de ampliação progressiva da abrangência de lavagem de dinheiro.

A lei também criou a unidade de inteligência financeira nacional — o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) —, cujo principal objetivo é proteger os setores econômicos contra a lavagem de dinheiro e o financiamento do terrorismo.

Com esse breve panorama, resta evidente que há uma obrigação de os Estados cooperarem e atuarem de forma positiva para prevenir, descobrir, reprimir atos de lavagem de dinheiro e recuperar os produtos derivados do crime.

Para isso, considerando a complexidade com que se praticam esses atos e o fato de que muitas operações de lavagem são realizadas através de instituições financeiras, transações imobiliárias e aquisição de objetos de valor, torna-se indispensável a colaboração das entidades relacionadas ao exercício de tais atividades.

Isso porque o Estado não tem capacidade de controlar todas as estruturas empresariais e detectar, de forma direta, atos que indiquem a prática de lavagem de dinheiro, principalmente se considerada a complexidade das relações sociais, o desenvolvimento tecnológico, a especialização de setores de atividade e as modernas estruturas organizativas[xxv].

Não por outra razão, os programas de compliance adquirem um papel fundamental nesse cenário, pois representam a estratégia de regular a atividade empresarial por meio da autorregulação, em que o poder público delega parte de sua função regulatória às próprias empresas e se utiliza delas para intervir de forma mais rigorosa e eficaz[xxvi], buscando, principalmente, atingir a finalidade preventiva da prática de ilícitos[xxvii], especialmente aqueles relacionados à lavagem de dinheiro.

Para atingir essa finalidade, os programas de compliance precisam se estruturar de forma a atender não só a legislação ordinária, como também as normativas relacionadas ao órgão administrativo regulador do exercício de suas atividades.


[1] Doutoranda em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Direito Econômico e Desenvolvimento, pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal – ICPC. Conselheira do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico. Secretária da Comissão da Advocacia Criminal da OAB-PR (Triênio 2019 – 2021). Advogada.


[i] BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais: comentários à lei 9.613/1998 com as alterações da lei 12.683/2012. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. p. 25.

[ii] BADARÓ; BOTTINI, 2019, p. 31.

[iii] BLANCO CORDERO, Isidoro. El delito de Blanqueo de Capitales. 4.ed. Thomson Reuters; Arazandi: Navarra, 2015. p. 59.

[iv] CERVINI, Raúl; OLIVEIRA, William Terra de; GOMES, Luiz Flávio. Lei de lavagem de capitais: comentários à Lei 9.613/1998. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 110/111.

[v] CORDERO, 2015, p. 114.

[vi] Conforme diretrizes estabelecidas no artigo 6 do Money Laudering Act. In: UNITED States of America. Money Laudering Act. Disponível em: < https://law.moj.gov.tw/ENG/LawClass/LawAll.aspx?pcode=G0380131>. Acesso em 25 jun. 2020.

[vii] BADARÓ; BOTTINI, 2019, p. 32.

[viii] BLANCO CORDERO, 2015, p. 125/126.

[ix] BLANCO CORDERO, 2015, p. 125.

[x] BADARÓ; BOTTINI, 2019, p. 33.

[xi] ESTELLITA, Heloisa. Criminalidade de empresa, quadrilha e organização criminosa. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 45.

[xii] BLANCO CORDERO, 2015, p. 130.

[xiii] CARVALHO, Marina Amaral Egydio de; SILVEIRA, Luciana Dutra de Oliveira. Corrupção e Direito Internacional: o combate internacional à corrupção e a regulação do lobby praticado por empresas transnacionais. In: LAUFER, Daniel (Coord).  Corrupção: uma perspectiva entre as diversas áreas do Direito. Curitiba: Juruá, 2013, p. 119-151. p. 127-129.

[xiv] MAEDA, Bruno Carneiro. Programas de compliance anticorrupção: importância e elementos essenciais. In: DEBBIO, Alessandra Del; MAEDA, Bruno Carneiro; AYRES, Carlos Henrique da Silva (Coord). Temas de anticorrupção & compliance. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013, p. 167-201. p. 174-175.

[xv] CLAYTON, Mona. Entendendo os desafios de compliance no Brasil: um olhar estrangeiro sobre a evolução do compliance anticorrupção em um país emergente. In: DEBBIO, Alessandra Del; MAEDA, Bruno Carneiro; AYRES, Carlos Henrique da Silva. Temas de anticorrupção & compliance. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013. p. 149-166. p. 156.

[xvi] MAEDA, 2013, p. 174-175.

[xvii] Vale mencionar que, de acordo com Sánchez Rios, o Grupo de Atuação Financeira (GAFI) estabelece que a lavagem pode ocorrer em três fases, isto é, a colocação (placement), a dissimulação dos ativos (layering) e a integração dos bens, direitos ou valores à economia regular (integration). (Cf. SÁNCHEZ RIOS, Rodrigo. Advocacia e lavagem de dinheiro: questões de dogmática jurídico-penal e de política criminal. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 48.)

[xviii] BLANCO CORDERO, 2015, p. 207.

[xix] MANZI, Vanessa Alessi. Compliance no Brasil: consolidação e perspectivas. São Paulo: Saint Paul, 2008. p. 31.

[xx] BADARÓ; BOTTINI, 2019, p. 35.

[xxi] BADARÓ; BOTTINI, op. cit., p. 27.

[xxii] BRASILEIRO, Renato. Lavagem ou ocultação de bens: lei 9.613, 03.03.1998. In: GOMES, Luiz Flávio; CUNHA, Rogério Sanches. Legislação criminal especial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 519.

[xxiii] De acordo com a redação original, apenas os crimes de tráfico de entorpecentes, terrorismo, contrabando ou tráfico de armas ou munições, extorsão mediante sequestro, contra a Administração Pública (inclusive a exigência de qualquer vantagem para a prática ou omissão de atos administrativos),  contra o sistema financeiro nacional e praticado por organização criminosa poderiam ser considerados como crimes antecedentes. A Lei 10.701, de 9 de julho de 2003 incluiu o financiamento ao terrorismo no rol da Lei 9.613/1998.

[xxiv] BADARÓ; BOTTINI, 2019, p. 94.

[xxv] COCA VILA, Ivó. ¿Programas de Cumplimiento como forma de autorregulación regulada? In: SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María (Dir.). MONTANER FERNÁNDEZ, Raquel (Coord). Criminalidad de empresa y compliance: prevención y reacciones corporativas. Atelier: Barcelona, 2013. p. 43-76. p. 43-44.

[xxvi] COCA VILA, 2013, p. 45.

[xxvii] SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; SAAD-DINIZ, Eduardo. Compliance, direito penal e lei anticorrupção. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 250.


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