Por: Marco Jorge Eugle Guimarães

Há muito se constrói um racional, em nosso mundo jurídico, que as esferas cível, administrativa e penal são independentes entre si e, eventual fato poderá ser objeto de avaliação judicante em todos os ramos do direito, ressalvada a hipótese de reconhecimento, pela esfera penal, de que o fato não constitui delito ou não se tenha verificado que o imputado seja o autor do fato.

Nesse norte, a doutrina1 acerca de tal temática se debruça numa interpretação literal de nossa Carta Magna, a qual, em seu arquétipo analítico, não fez consignar o impedimento do cognominado bis in idem interdisciplinar ou transversal e, muito pelo contrário, reforçou a possibilidade persecutória nas instâncias administrativo sancionatória e penal, quando determinado fato jurídico comporte responsabilização em ambas as esferas. Por exemplo, no âmbito de questões que envolvam atos de improbidade administrativa, o artigo 37, §4º da Lex Legum aduz que, uma vez constatados tais fatos e, erigido um julgamento procedente da demanda, “importarão na suspensão de direitos políticos, perda da função pública, a indisponibilidade dos bens do autor dos fatos e o ressarcimento ao erário, sem prejuízo de ação penal cabível”.

Por mais que a abalizada doutrina clássica e as normas consuetudinárias sustentem a impossibilidade de dupla sanção penal pelo mesmo fato, hodiernamente, o direito penal econômico nos confere facetas que visam estrangular o particular nas mais variadas frentes de atuação, em detrimento de um determinado fato. Fato é que, quando a abordagem da casuística aporta à seara penal, muitas das vezes já o fazem pela mera condição protocolar, visto que a esfera precedente, logrou intento na coleta de todas as evidências, com adoção de medidas acautelatórias pessoais e reais, assim como medidas assecuratórias para garantir o ressarcimento dos danos ao Estado-Persecutor. Trata-se de uma prevalência sem fim do Estado em detrimento do particular, isto é, a hipertrofia do Poder Público2 por meio dos órgãos reguladores e de persecução, em desfavor da hipotrofia do particular, que se encontra desamparado pelo próprio ordenamento jurídico, o qual fomenta esse blitzkrieg persecutório.

Ao nosso sentir, o texto constitucional acima apontado nos permite uma margem interpretativa a partir de remissões do Poder Legislativo, o qual encontra-se incumbido de estabelecer gradações e formas de sanções em casos alusivos ao direito administrativo sancionador que ricocheteiem no direito penal. E é a partir dessa margem interpretativa – que até então não fora clarificada pelo órgão legiferante – que compreendemos pela vedação do bis in idem entre as esferas da administrativização do direito penal e do direito penal originário dos órgãos persecutores.

Há muito, propugna-se, no âmbito do direito penal que, tal ramo do direito tão somente será instado a exercer seu poder coercitivo quando as esferas precedentes – civil ou administrativa – não alcançarem uma satisfação real de tutela do bem jurídico posto à prova. Ou seja, fazendo alusão à Teoria dos Círculos, inicialmente, verifica-se que, se o bem jurídico tutelado é socorrido pela primeira camada de controle social, qual seja, do direito civil. Se houver solução à contenda instalada, restabelecida está a pacificação social. Caso não tenha solucionado adequadamente a celeuma, convém a manutenção da persecução, porém, em outro ramo do direito, qual seja, o direito administrativo. Uma vez mais, se tal ramo jurídico alcançar a resolução do conflito com o restabelecimento da ordem, não se faz necessário a continuação da via crucis sancionatória. No entanto, caso tal esfera jurídica prevarique na obtenção de eficácia plena à luz da casuística, impõe-se o chamamento da ultima ratio para solução da controvérsia.

Vejamos que esse estabelecimento de gradação, com alcance da seara penal, é conferido ao Poder Legislativo, sob o holofote do Princípio da Necessidade Penal3, que ao nosso olhar, data máxima vênia, vem sendo escanteado pelos órgãos de controle social, com fulcro num direito penal midiático.

Alguns exemplos que conseguimos deduzir, de plano, com enfoque no direito penal econômico, seriam: (i) cobranças de débitos tributários e seu respectivo processo administrativo – ausência de pagamento voluntário após procedimento fiscal culmina na imediata comunicação, por meio de representação fiscal para fins penais, ao Ministério Público correlato, para adoção das medidas criminais em desfavor do responsável tributário. Uma vez quitado o valor atinente ao débito tributário no curso da persecutio criminis in judicio acarreta a extinção da punibilidade da pena alusiva ao delito contido na Lei nº. 8.137/1990 e, conseguintemente, ao procedimento fiscal arrecadatório atrelado ao Fisco; (ii) instauração de procedimento administrativo perante a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) por suposta prática de oferta de investimentos coletivos sem autorização legal para tanto – pessoa jurídica que se encontra sujeita a apuração prévia perante a autarquia federal, que será julgada por membros do alto escalão do próprio órgão, está um passo atrás de um fairplay processual administrativo. Ao final desse processo administrativo, é condenado a paralisar suas atividades por determinação da aludida autarquia (stop order), com sujeição à multa arbitrada em valores astronômicos e imediata comunicação o dominus litis, visando a responsabilização penal de seus sócios administradores. Paralelamente, ante o engessamento da sua atividade empresarial decorrente de uma decisão administrativo-estatal (intervenção do estado na liberdade econômica do sujeito), os clientes da empresa voltam-se contra a ela, visando indenização dos valores investidos que não foram ressarcidos.

As indagações que se colocam são: o Estado-Persecutor não teria meios coercitivos, no âmbito da via administrativa, para exigir a quitação dos tributos em aberto? Precisaria, de fato, submeter uma cobrança fiscal à conhecimento do dominus litis para se deflagrar uma ação penal, visando o recolhimento de tributos? Estaria o Estado lançando mão de uma arrecadação predatória em face do contribuinte, que poderia ser solvida no âmbito do próprio processo administrativo? Quanto ao exemplo lançado acerca da suposta oferta de investimentos coletivos, seria necessária a interrupção das atividades da empresa, afetando inúmeras vidas, direta e indiretamente, máxime a condição reputacional posta em face da empresa alvo das apurações? Qual seria vantagem conferida ao Estado a partir da interrupção de operação de empresa atrelada à investimentos coletivos?

Questionamentos tais deveriam ser aviados ex ante a edição de normas de conotação delitiva.

Como tais indagações não foram consideradas previamente à elaboração das legislações penais extravagantes atinentes à matéria, pressupõe-se a constitucionalidade das normas, até que o órgão judicante Supremo interprete de forma diversa. Logo, se há vigência e aplicação dos mecanismos legais disponíveis ao Estado-Persecutor, temos que as normas procedimentais administrativas acabam por integrar o espectro penal, ainda que de forma relutante, tornando-se um subsistema penal indispensável4, pois sem ele, não se poderá recorrer a última esfera do ramo do direito.

Ante tal explanação, temos que o direito administrativo sancionador, inspirado num viés de intervenção da propriedade do sujeito estabelece, ainda que embrionariamente, um vínculo umbilical com o direito penal substantivo e adjetivo, visto que no âmbito processual, os elementos de informação e provas produzidas na via administrativa, por regra, são aproveitados nas fases preliminar e de instrução criminal, sumarizando as ações persecutórias dos órgãos de controle institucionais.

Vejamos que, em tempos modernos, pode-se suscitar a existência de um modelo processual penal tripartido, quando o enfoque material versar sobre questões atreladas ao direito penal econômico, pois o processo administrativo sancionador, por ricochete, já integra a persecução criminal por tudo que se instrumentaliza em seu bojo e, por tudo que representa no tocante a instrução criminal – como cediço, autarquias e órgãos reguladores servem como assistentes à acusação do Ministério Público, visando fortalecer as teses acusatórias. Estamos diante, verdadeiramente, da caças às bruxas!

De outra banda, inspirados em Tratados e Convenções Internacionais, bem como em decisões reiteradas de Tribunais Internacionais, conseguimos apurar, de maneira mais consolidada, a existência de uma tese fronteiriça entre hipertrofia Estatal e a hipotrofia do particular no âmbito dos processos administrativos sancionadores e penais, qual seja, o Princípio da Independência Mitigada, o qual tem por escopo limitar a elasticidade a imputação pela via do duplo binário.

Tal princípio consiste, precipuamente, na compressão da independência das esferas do ramo do direito, a fim de se evitar sanções que culminem na bancarrota do particular, violando, de forma inconteste, a dignidade da pessoa humana.

Estribado na premissa do direito administrativo sancionador como subsistema do ordenamento jurídico-penal, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), nos idos de 2014, aderiu à tese da vedação de bis in idem entre o direito administrativo sancionador e o direito penal, por compreender que, ante a preexistência da sanção administrativa perante o órgão público respectivo, fulmina a necessidade de uma persecução penal em juízo, visto que já houve um severa punição por fato idêntico, ofendendo assim, as garantias individuais do cidadão, no mesmos termos do que predispõe a Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.

Em oportunidade pretérita, a mesma Corte, analisando uma situação em que envolvia sanções administrativas castrenses do Estado Russo e a persecução penal decorrente do mesmo fato, que imputou a um homem a sanção de 03 (três) dias de detenção, por ter inserido sua namorada em instalações militares, reconheceu que não seria o caso de atribuir nova sanção oriunda do mesmo fato5.

Como fundamento da decisão, se basearam nos “critérios Engel” (Engel criteria) consistente em: (i) analisar o grau de importância do ato perpetrado e, se tal ato já reflete um caráter penal em sua essência; (ii) verificar qual seria a esfera de proteção do bem jurídico tutelado no âmbito do direito administrativo sancionador e, certificar se tal proteção não guarda relações íntimas com o direito penal, e; (iii) apurar se a sanção imposta ao apenado implica em alguma limitação ambulatória. No caso concreto, o ato de desordem na seara militar já se reveste de caráter penal, preenchendo, portanto, o primeiro critério. O bem jurídico tutelado na presente situação se ilustra na ordem pública e na dignidade humana, bens estes que já se encontram protegidos pela ultima ratio. E, por fim, a sanção administrativa de 03 (três) dias de detenção em caserna consignou um caráter penal, pois cerceou o direito de ir e vir do apenado.

Pelos procedimentos punitivos instaurados guardarem os mesmos fatos, substancialmente, determinou-se o afastamento de eventual sanção criminal com fulcro na vedação do ne bis in idem.

Já em território tupiniquim, tivemos a grata surpresa de, ao final de 2020, sermos agraciados com uma posição semelhante às Cortes Internacionais.

Nosso Pretório Excelso enfrentou a temática no âmbito de Reclamação Constitucional em sede Ação Civil Pública por atos de Improbidade Administrativa, haja vista a preexistência de um trancamento de Ação Penal, escorado de Habeas Corpus, com fundamento elementar na negativa de autoria do recorrente. Na espécie, o Ministro Relator, sua Exa. Gilmar Mendes6, aprofundando seus estudos na narrativa de ambos os procedimentos existentes em face do recorrente, vislumbrou que havia: (i) identidade de narrativas; (ii) identidade de conjunto fático e acervos probatórios na fundamentação dos procedimentos

paralelos.

O douto Ministro Relator passou a avaliar o artigo 37, § 4º, da Carta Constitucional e, estruturou, a partir de tal verbete, o Princípio da Independência Mitigada no âmbito do ordenamento jurídico pátrio. Em seus fundamentos, se estabeleceu, casuisticamente, uma lógica irrefutável sob a seguinte óptica: a profundidade do processo penal no tocante a coleta de evidências e demais provas é infinitamente maior do que de uma Ação Civil Pública por atos de Improbidade Administrativa. Ainda, a seleção desse arcabouço probatório para edificar um édito condenatório no âmbito do processo penal é muito mais rigoroso frente a um processo administrativo sancionador. Como, no caso concreto, o recorrente fora beneficiado pelo trancamento de Ação Penal, haja vista a sua ausência de autoria ou participação na empreitada criminosa, não havia motivos ótimos para sua manutenção da Ação de Improbidade Administrativa, em sede de processo administrativo sancionador, com espeque nos princípios da proporcionalidade, subsidiariedade e da necessidade.

Concluímos que, diante de tudo o que fora abordado no presente texto, o Estado arrimado na sua tríplice função, tem o dever constitucional de, inicialmente, analisar os projetos de leis incriminatórios – novatio legis incriminador – abalizados no Princípio da Necessidade Penal e seus corolários (Princípio da Fragmentariedade, Subsidiariedade e Intervenção Mínima) e desvencilhados de qualquer repercussão simbólica ou midiática, confrontar as normas administrativo-sancionatórias para checar se estas não supririam, a contento, o ajuste pretendido.

Superada a fase de lege ferenda, cabe ao Poder Judiciário o necessário controle, não só das normas postas, mas também dos excessos e arbítrios das Autoridades que se valem de super trunfos ou blitzkriegs procedimentais para, não só, alcançar seu intento persecutório, como também açoitar a dignidade humana do particular. Controle dos excessos são necessários!


Advogado Criminalista, Pós-Graduado em Direito e Tecnologia da Informação pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (POLI-USP) e Pós-Graduando em Direito Penal Econômico pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP).


1 CAVALLI, Marcelo Costenaro. Fundamento e limites da repressão penal da manipulação do mercado de capitais: uma análise a partir do bem jurídico da capacidade funcional alocativa do mercado. Tese para obtenção do título de Doutor em Direito. Universidade de São Paulo – USP. 2017.

2 MALAN, Diogo. Processo Penal aplicado à criminalidade econômico-financeira. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. 2015. RBCCrim 114.

3 MARTINELLI, João Paulo Orsini. DE BEM, Leonardo Schmitt. Lições fundamentais de direito penal – parte geral. 3ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2018, p. 173.

4 OLIVEIRA, Ana Carolina. Direito de Intervenção e Direito Administrativo Sancionador: o pensamento de Hassamer e o direito penal brasileiro 2012. Tese para obtenção do título de Mestre em Direito. Universidade de São Paulo – USP. 2012.

5 Öztürk c. Allemagne (Requête n. 8544/79), ECHR, 21 de fevereiro de 1984.

6 STF, Rcl. 41.557/SP, 2ª Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 14.12.2020.