Por: Thaise Mattar Assad[1]

Com a gradativa adoção do modelo acusatório, algo que se mostrou como imprescindível foi a divisão do processo em fases e a outorga das atividades de acusar e julgar a pessoas e órgãos distintos[2]. Desta necessidade[3], de garantir a imparcialidade do juiz, nasce o Ministério Público.

A partir daí, podemos vislumbrar, com facilidade, a grande importância institucional do Ministério Público, parte fabricada[4] e estruturante de uma dialética processual. Assim, denota-se um nexo entre o sistema inquisitivo e o Ministério Público, eis que a necessidade de fragmentar a atividade estatal, naturalmente, exigirá duas partes[5].

Temos, então, que a posição do Ministério Público é de parte, enquanto a do juiz é de ser mero espectador[6] destinatário da produção probatória realizada pelas partes, além de responsável pela oferta de respostas às demandas de justiça submetidas ao Estado[7].

A magistratura, enquanto entidade completamente afastada da atividade probatória, não é diminuída[8]. Muito pelo contrário, é esse afastamento que pode criar a isenção necessária que permita o verdadeiro controle[9] sobre a atividade de produção probatória atinente às partes, no sentido de possibilitar uma atuação voltada a garantir os interesses do acusado durante a produção probatória (por exemplo: evitar pressão em interrogatórios com o indeferimento de perguntas).

A exemplo do quão importante é que cada um ocupe seu lugar constitucionalmente demarcado, como vaticinou Jacinto Coutinho[10], Denilson Feitoza[11] expõe:

O juiz brasileiro deve ter a coragem, a força moral e o senso crítico necessário para assumir sua missão, implementando a Constituição com observância do princípio da supremacia constitucional, que lhe impõe e possibilita o reconhecimento da inconstitucionalidade das normas infraconstitucionais que sejam compatíveis com o princípio acusatório constitucional.

Se a intenção é adotar um sistema de matriz acusatória, nada mais lógico do que o Ministério Público assumir sua posição de parte processual. Na posição de parte, não é possível se defender a equidistância com a prova[12], ou mesmo sua pretensa imparcialidade (não há contaminação possível), eis que sua função se revela justamente em optar por um caminho de produção de provas que sustente sua formulação acusatória inicial (denúncia).

Não há como exigir da mesma parte que exerça funções tão antagônicas como acusar e defender, o que se deve exigir, em verdade, é a estrita e fiel observância da legalidade e da objetividade. Assim, a parcialidade do Ministério Público – enquanto parte – é condição inerente ao contraditório e a dialética no processo até para que possa possibilitar à defesa condições mínimas de exercer sua função[13].

Inclusive, as próprias reformas processuais recentes[14], que possuem olhos voltados à Constituição Federal e objetivam efetivar a consagração da pretensa implementação do sistema acusatório no Brasil, referendam uma postura ativa do Ministério Público enquanto parte, limitando poderes de magistrados que, com perfil dominador, se adiantavam na realização concreta processual do silogismo regressivo, escravizando a produção probatória em face de convicções adquiridas[15], em ato subversivo de transformar a missão de julgar em missão de vingar, em prática de uma verdadeira farsa processual.

Infelizmente, o que se observa no Brasil é uma forte resistência à implementação das diretrizes de um sistema de matriz acusatória. Porém, denota-se que tal resistência não é relativa à espécie de rejeição ou receio ao novo, mas sim de uma séria disputa sobre o poder[16].

A medida em que exista, em um sistema de matriz acusatória, a plena separação entre as funções de acusar e julgar em figuras (pessoas) distintas, o que ocorre, na prática, é a divisão do poder. O magistrado deixa de se preocupar com atividades que agora passam a ser inerentes de um órgão novo e fabricado[17] para estruturar e tornar possível uma dialética processual: o Ministério Público.

Um julgamento sóbrio apenas pode ser alcançado a partir da dúvida[18]. Não por um julgar com dúvida, mas sim pela atuação de uma magistratura que desafie sua própria mentalidade inquisitória e exerça sua função de decidir (no sentido de alcançar uma parcialidade como resultado) após ter funcionado como mera espectadora de um duelo entre as partes[19].

Porém, em realidade, o ato de duvidar é tarefa mais árdua do que se pensa, eis que se revela em um afastamento da ignorância para uma aproximação ao conhecimento, sendo certo que os dois maiores inimigos da dúvida são chamados de ignorância e orgulho[20]. Assim, quem menos conhece, menos dúvida carrega[21], pois o caminho do saber envolve certo grau de dificuldade e de desafio. É por isso que no processo há dúvida[22]. A dúvida é o elemento fornecido ao duelo. As partes servem para isso no processo: lutar entre si, entre elas, sendo o duelo o contraditório e a parcialidade revelada pela superação do que se apreciou do duelo[23].

O juiz não está vinculado às partes, mas precisa delas[24]. Daí o nexo entre o processo de matriz inquisitorial e a figura do Ministério Público. O papel inerente a atividade do órgão ministerial é de confrontar a parte defensiva no sentido de sustentar a proposta acusatória (denúncia) e, quando não obter sucesso nesta tarefa, ter como uma de suas opções inclusive o pedido de absolvição. Ao passo em que não há uma estrutura dialética no processo, quando não há naturalmente duas partes aptas a exercerem o contraditório, algo precisa ser criado, por isso a necessidade de fabricação do Ministério Público como parte artificial, eis que, do contrário, tal função precisaria ser exercida pelo Estado-juiz, fato que desvirtuaria por completo sua missão institucional.

Há que se considerar ainda que, com o advento da Constituição Federal, nasceu um desenho de Ministério Público que deve atuar na vanguarda do regime democrático[25], com atribuições crescentes e variadas com relação às garantias constitucionais das minorias, da defesa do patrimônio público e de direitos difusos, por exemplo.

Com as reformas processuais e, principalmente, pelo advento da Constituição Federal de 1988, encontra-se, hoje, o Ministério Público, na condição de parte processual responsável pela formulação do caso penal a partir do qual pretende – e deve – produzir elementos de prova suficientes, em contraposição (ou não) da parte defensiva, que possam ensejar o provimento jurisdicional de seu pedido[26]. Não pode mais o órgão ministerial adotar a postura de mero espectador da atividade probatória do magistrado, eis que quando assim atua abre mão de sua missão institucional e permite que sua função seja usurpada indevidamente. A ninguém interessa um Ministério Público omisso, submisso ou até servente do Poder Judiciário. Ao órgão ministerial se reserva a importante missão de ser um dos pilares do Estado Democrático de Direito e estar na vanguarda da defesa dos direitos individuais e coletivos.

Assim, nada mais urgente do que a necessidade de que o Ministério Público finalmente e de forma definitiva assuma[27] e ocupe sua posição de parte no processo penal – com todas as funções a ela inerentes – principalmente no que tange a ser parte legítima da produção probatória possibilitando, assim, a real dialética processual e a preservação da originalidade cognitiva do magistrado, evitando a contaminação do mesmo com a consequente e indevida iniciativa probatória.

O atingimento do ideal de um processo de partes, inserido na perspectiva de uma matriz acusatória, é a única fórmula que, segundo Paulo César Busato[28], propõe um ideal de justiça em substituição a uma pretensão de verdade que a tudo justifica. A partir de tal raciocínio, podemos concluir que apenas iremos estabelecer uma dialética possível e efetiva no processo penal a partir do momento em que as partes tomarem para si as “rédeas” do processo, no sentido de terem a plena consciência do que efetivamente representam, colocando-se o magistrado em seu devido lugar, constitucionalmente demarcado[29], recolhendo-se à posição equidistante do processo e para além[30] das partes. Portanto, é o Ministério Público figura indispensável para a efetivação da dialética e de um processo penal democrático de matriz acusatória.


[1] Thaise Mattar Assad é advogada criminalista, mestre em ciências criminais pela PUC-RS, vice-presidente da Associação Paranaense dos Advogados Criminalistas (APACRIMI – ABRACRIM-PR), vice-presidente da Comissão de Defesa das Prerrogativas Profissionais da OAB-PR e Conselheira do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico – IBDPE.


[2] LOPES JR., Aury. Fundamentos do Processo Penal: introdução crítica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 158.

[3] LOPES JR., Aury. Fundamentos do Processo Penal: introdução crítica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 158.

[4] LOPES JR., Aury. Fundamentos do Processo Penal: introdução crítica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 158.

[5] CARNELUTTI, Francesco. Poner en su puesto al Ministerio Público. In: CARNELUTTI, Francesco.  Cuestiones sobre el proceso penal. Buenos Aires: El Foro,1994, p. 209 e seguintes.

[6] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2020, p. 71.

[7] BUSATO, Paulo César. De magistrados, inquisidores, promotores de justiça e samambaias. Um estudo sobre os sujeitos no processo em um sistema acusatório. Revista Justiça e Sistema Criminal, Curitiba: FAE Centro Universitário, v. 1, n. 1, jul./dez, 2009, p. 110.

[8] RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 28. ed. São Paulo: Editora Gen Atlas, 2020, p. 505.

[9] BUSATO, Paulo César. De magistrados, inquisidores, promotores de justiça e samambaias. Um estudo sobre os sujeitos no processo em um sistema acusatório. Revista Justiça e Sistema Criminal, Curitiba: FAE Centro Universitário, v. 1, n. 1, jul./dez, 2009, p. 113.

[10] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 186, p. 103-116, jul./set. 2009.

[11] FEITOZA, Denilson. Reforma processual penal. Niterói: Impetus, 2008, p. 39.

[12] BUSATO, Paulo César. De magistrados, inquisidores, promotores de justiça e samambaias. Um estudo sobre os sujeitos no processo em um sistema acusatório. Revista Justiça e Sistema Criminal, Curitiba: FAE Centro Universitário, v. 1, n. 1, jul./dez, 2009, p. 116.

[13] BUSATO, Paulo César. De magistrados, inquisidores, promotores de justiça e samambaias. Um estudo sobre os sujeitos no processo em um sistema acusatório. Revista Justiça e Sistema Criminal, Curitiba: FAE Centro Universitário, v. 1, n. 1, jul./dez, 2009, p. 116.

[14] Lei nº 11690/2008, Lei nº 12.403 de 2011, Lei nº 13.964 de 2019, dentre outras.

[15] BUSATO, Paulo César. De magistrados, inquisidores, promotores de justiça e samambaias. Um estudo sobre os sujeitos no processo em um sistema acusatório. Revista Justiça e Sistema Criminal, Curitiba: FAE Centro Universitário, v. 1, n. 1, jul./dez, 2009, p. 111.

[16] BUSATO, Paulo César. De magistrados, inquisidores, promotores de justiça e samambaias. Um estudo sobre os sujeitos no processo em um sistema acusatório. Revista Justiça e Sistema Criminal, Curitiba: FAE Centro Universitário, v. 1, n. 1, jul./dez, 2009, p. 111.

[17] “Na Alemanha, até o século XIX, com a prática do processo inquisitório, a figura do juiz se confundia com a do inquisidor. Somente com o advento do Processo Penal Reformado é que a condução da investigação foi encarregada ao recém-criado Ministério Público. Ou seja, foi criado um órgão acusador. As atribuições desse novo órgão se mesclavam às funções de defesa jurídica do Estado”. (SCHÜNEMANN. Bernd. O juiz como um terceiro manipulado no processo penal? Uma confirmação empírica dos efeitos perseverança e correspondência comportamental. Revista Liberdades, I Publicação Oficial do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, n. 11, set./dez. 2012, p. 31).

[18] CARNELUTTI, Francesco. Poner en su puesto al Ministerio Público. In: CARNELUTTI, Francesco.  Cuestiones sobre el proceso penal. Buenos Aires: El Foro,1994, p. 209 e seguintes.

[19] CARNELUTTI, Francesco. Poner en su puesto al Ministerio Público. In: CARNELUTTI, Francesco.  Cuestiones sobre el proceso penal. Buenos Aires: El Foro,1994, p. 209 e seguintes.

[20] CARNELUTTI, Francesco. Poner en su puesto al Ministerio Público. In: CARNELUTTI, Francesco.  Cuestiones sobre el proceso penal. Buenos Aires: El Foro,1994, p. 209 e seguintes.

[21] CARNELUTTI, Francesco. Poner en su puesto al Ministerio Público. In: CARNELUTTI, Francesco.  Cuestiones sobre el proceso penal. Buenos Aires: El Foro,1994, p. 209 e seguintes.

[22] CARNELUTTI, Francesco. Poner en su puesto al Ministerio Público. In: CARNELUTTI, Francesco.  Cuestiones sobre el proceso penal. Buenos Aires: El Foro,1994, p. 209 e seguintes.

[23] CARNELUTTI, Francesco. Poner en su puesto al Ministerio Público. In: CARNELUTTI, Francesco.  Cuestiones sobre el proceso penal. Buenos Aires: El Foro,1994, p. 209 e seguintes.

[24] CARNELUTTI, Francesco. Poner en su puesto al Ministerio Público. In: CARNELUTTI, Francesco.  Cuestiones sobre el proceso penal. Buenos Aires: El Foro,1994, p. 209 e seguintes.

[25] BUSATO, Paulo César. De magistrados, inquisidores, promotores de justiça e samambaias. Um estudo sobre os sujeitos no processo em um sistema acusatório. Revista Justiça e Sistema Criminal, Curitiba: FAE Centro Universitário, v. 1, n. 1, jul./dez, 2009, p. 117.

[26] BUSATO, Paulo César. De magistrados, inquisidores, promotores de justiça e samambaias. Um estudo sobre os sujeitos no processo em um sistema acusatório. Revista Justiça e Sistema Criminal, Curitiba: FAE Centro Universitário, v. 1, n. 1, jul./dez, 2009, p. 116.

[27] BUSATO, Paulo César. De magistrados, inquisidores, promotores de justiça e samambaias. Um estudo sobre os sujeitos no processo em um sistema acusatório. Revista Justiça e Sistema Criminal, Curitiba: FAE Centro Universitário, v. 1, n. 1, jul./dez, 2009, p. 123.

[28] BUSATO, Paulo César. De magistrados, inquisidores, promotores de justiça e samambaias. Um estudo sobre os sujeitos no processo em um sistema acusatório. Revista Justiça e Sistema Criminal, Curitiba: FAE Centro Universitário, v. 1, n. 1, jul./dez, 2009, p. 124.

[29] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 186, p. 103-116, jul./set. 2009.

[30] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal. SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da; PAULA, Leonardo Costa de. (Orgs.). Observações sobre os sistemas processuais penais. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2018, p. 32. (Escritos do Prof. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho).


Este artigo reflete a opinião de seus autores e não necessariamente a opinião do IBDPE.
Este espaço é aberto aos Associados do IBDPE! Para submeter seu artigo, envie uma mensagem para contato@ibdpe.com