Por: Giulia Mazzetto Coqueiro[1] eIsabela Corso Baptista dos Santos[2]

 

RESUMO

Este artigo põe em análise o princípio da insignificância e sua aplicação nos crimes contra a ordem tributária. A doutrina majoritária atrela a existência do princípio a Roxin e menciona a tipicidade conglobante como importante aspecto para a análise do fato típico. O princípio em questão foi produto de uma construção doutrinária e o histórico de sua formação revela a necessidade de sua aplicabilidade para o ordenamento jurídico e também fundamenta a sua existência. O tema trabalhado neste artigo cujo escopo é entender a relação entre os dois institutos, envolve um conglomerado de jurisprudências, as quais serão objeto de estudo.

 

  1. INTRODUÇÃO

O Estado Democrático de Direito, pautado na Constituição de 1988, possui o Jus Puniendi, ou seja, a prerrogativa sancionadora do Estado – direito estatal de punir. No que tange à análise do crime e seus elementos, a teoria predominante no ordenamento jurídico brasileiro é a tricrômica ou tripartida. Essa teoria apresenta o crime como fato típico, ilícito e culpável.

A tipicidade, diretamente afetada pela incidência do princípio em estudo, pode ser analisada a partir de dois ângulos – formal e material – O aspecto formal é a mera relação entre o fato concreto e o tipo penal. No entanto, essa interpretação restritiva exclui o aspecto prático da conduta. Se sob a égide da teoria finalista da ação, a ação é uma conduta humana consciente e voluntária, dirigida a uma finalidade (WELZEL), a lei penal sempre será aplicada quando presentes os três elementos citados?  O caso em concreto pode demonstrar difícil compreensão quando além da lei penal, se relaciona com os costumes, bem jurídicos e princípios constitucionais. Dessa forma, o conflito entre Estado e indivíduo exige que, juntamente com a aplicação da norma penal, exista uma reflexão que seja capaz de relacionar os aspectos teóricos da lei com a prática dos casos em concreto. O princípio da razoabilidade demonstra que todo representante do Estado está, ao mesmo tempo, obrigado a fazer uso de meios adequados e de abster-se de utilizar meios e recursos desproporcionais. (BITENCOURT, 2011, p. 55).

Com isso, a teoria social da ação define a ação como uma conduta positiva socialmente relevante, dominada pela vontade e dirigida a uma finalidade[3]. Destarte, essa teoria desenvolvida por Jascheck e Wessels consegue vincular a aplicação do direito penal a uma conduta penalmente relevante e por fim, demonstrando a proporcionalidade entre a conduta e a norma.

A partir da tipicidade conglobante de Zaffaroni – tipicidade material juntamente com a antinormatividade – observa-se que a adequação do fato à norma envolve a proibição e o alcance proibitivo da norma. Portanto, a limitação ao ius puniendi propõe fazer-se mister que esteja presente o exame do bem jurídico tutelado antes da aplicação da lei penal ao caso em estudo.

 

  1. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NO DIREITO PENAL: ANÁLISE JURISPRUDENCIAL

Com base no conflito entre indivíduo e Estado, foi verificado que nem todo resultado é penalmente relevante. Em 1964, Claus Roxin iniciou o estudo do princípio da insignificância, o qual seria analisado posteriormente no Brasil pelo jurista Francisco de Assis Toledo:

“Segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária, só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas. Assim, no sistema penal brasileiro, por exemplo, o dano do art. 163 do Código Penal não deve ser qualquer lesão à coisa alheia, mas sim aquela que possa representar prejuízo de alguma significação para o proprietário da coisa; o descaminho do artigo 334, parágrafo 1°, d, não será certamente a posse de pequena quantidade de produto estrangeiro, de valor reduzido, mas sim a de mercadoria cuja quantidade ou cujo valor indique lesão tributária, de certa expressão, para o Fisco; o peculato do artigo 312 não pode ser dirigido para ninharias como a que vimos em um volumoso processo no qual se acusava antigo servidor público de ter cometido peculato consistente no desvio de algumas poucas amostras de amêndoas.” (TOLEDO, 1982, p.133).

 

 

O STJ dispõe que: “A admissão da ocorrência de um crime de bagatela reflete o entendimento de que o Direito Penal deve intervir somente nos casos em que a conduta ocasionar lesão jurídica de certa gravidade, devendo ser reconhecida a atipicidade material de perturbações jurídicas mínimas ou leves, estas consideradas não só no seu sentido econômico, mas também em função do grau de afetação da ordem social que ocasionam.” (STJ, 5ª Turma, AgRg no HC 480.413/SC, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 21/02/2019, publicado 01/03/2019).

Dessa forma, observa-se que que o STJ admite a aplicabilidade do princípio da insignificância caso o autor do fato seja reincidente, porém negou a sua aplicação em habeas corpus envolvendo reincidência específica[4].

 

  1. A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NOS CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA

O Direito Tributário, instituído pelo Art. 145 da constituinte, prevê o poder da criação de tributos pela União, Estado e Município como meio de viabilizar a garantia do desenvolvimento nacional. No que concerne a sua concretização na ordem tributária, percebe-se que muito embora o haja um sentido minorado da insignificância, nos crimes contra o sistema de tributação a ocorrência constitui-se como um dos mais nefastos e confrontadores tipos de delito, posto que coloca em voga a atuação estatal. Com sua prática torna-se cerceado o intuito basilar da tributação, o qual seja, promover o equilíbrio nas relações entre os que têm e os que não tem poder, ou ainda entre aqueles que têm mais poder e os que têm menos.

A Lei 8.137/90, chamada Lei dos Crimes Contra Ordem Tributária, vem justamente para incriminar a conduta de sonegar tributos, ao  discorrer como crime suprimir ou reduzir tributos –  ou quaisquer outras contribuições – omitindo informações, falsificando notas, fraudando a fiscalização, sob pena de aplicação de multa e reclusão. Na prática o que se observa é que o abalo entre o dever de pagar e a sonegação dos tributos acaba por refletir nos direitos fundamentais dos indivíduos ao passo em que ao valores não recolhidos não são aplicáveis na estruturação da sociedade.

Ocorre que, o sistema penal brasileiro admite a aplicação do princípio da insignificância no limite de R$20.000,00 (vinte mil reais) com a justificativa de que esse seria o montante que a Fazenda Nacional poderia requerer o ajuizamento de ação de execução fiscal[5]. É bem verdade que o Direito, enquanto ultima ratio deve criminalizar as condutas graves que levem a supressão ou diminuição da arrecadação tributária – com o fito de equilibrar a distribuição de riquezas e gerar equilíbrio entre o poder de tributar e a obrigação de pagar tributos – mas, os tribunais entendem que valores inferiores ao montante acima não seriam relevantes à atuação penal.

De acordo com o Sistema Tribunal Federal, em seus julgados recentes, existem alguns requisitos necessários à aferição da tipicidade penal, os quais sejam (i) a mínima ofensividade da conduta do agente, (ii) a nenhuma periculosidade social da ação, (iii) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (iv) a inexpressividade da lesão jurídica provocada[6]. No caso de lesão à aplicação tributária esse requisitos não são observados.Esse entendimento decorre da limitação da atuação do Direito Penal, afastando a sua imposição aos crimes que, pela sua característica de baixo grau de lesividade, não necessitam de sanção penal.

 

  1. CONCLUSÃO.

O Direito Penal é exceção à regra, sendo aplicável somente quando observados requisitos de ilicitude, culpabilidade e punibilidade. Deve ser invocado apenas quando outros ramos do Direito não forem suficientes à titulação dos direitos, o que, reitera-se, não ocorre nas sanções do Direito Tributário. O fato é tão verdade que na aplicação do sistema tributário, a banalização do Direito Penal fica evidente quando observado que com o pagamento dos tributos devidos, a punibilidade é extinguida, posto que não há como se falar em lesão ao bem jurídico. Em mesmo sentido, o princípio da insignificância nos crimes contra ordem tributária não atinge a tipicidade do fato, visto que não são verificados requisitos  – de consideráveis prejuízos – para que o ato criminoso seja considerado repulsivo e de imprescindível repressão estatal.

O que se conclui é que o Direito Penal na esfera tributária tem um único objetivo: de o Estado “ameaçar” a população para o pagamento do tributo. Não importa se já houve sonegação do imposto ou recolhimento indevido – mesmo com a observância da concretização do crime – quando há a devida quitação tributária, não existe mais crime e portanto, afastamento do Direito Penal.

Assim, o princípio da insignificância traduz a ideia de que o Direito Penal somente deve atuar na incriminação de situações com consequência juridicamente relevantes não cabendo na atuação do sistema tributário.

 


[1] Graduanda na Universidade Estadual de Londrina – UEL participante do Grupo de Direito Penal Econômico da PUC em Londrina\PR.

[2] Graduanda na Universidade Estadual de Londrina – UEL


[3] Comentários adicionados pelo autor na obra Direito Penal Esquematizado, 2019, no capítulo dirigido à análise da tipicidade

[4] HC 491.970/SP da 5ª Turma do STJ.

[5] Lei nº 10.522/02, que dispõe sobre o cadastro informativo dos créditos não quitados do setor público federal.

[6] HC  94.439 da 1ª Turma do STF discorrendo sobre o princípio da insignificância no caso concreto de furto.

 

  1. REFERÊNCIAS
  1. ESTEFAM, André. Direito Penal Esquematizado: parte geral. / André Estefam e Victor Eduardo Rios Gonçalves, Editora Saraiva, 2017, São Paulo
  2. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 5ª Turma, HC 491.970/SP, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 26/02/2019, publicado em 08/03/2019.
  3. CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal I. 16. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. 651p.
  4. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 5ª Turma, AgRg no HC 480.413/SC, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 21/02/2019, publicado 01/03/2019.
  5. Lei nº 522/02 e Portarias nº 75 e 130, de 2012, do Ministério da Fazenda.
  6. Primeira turma. Habeas corpus 94.439/RS. Rel. Min. Menezes Direito, julgado em 03/03/2009.
  7. GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte geral. v. 1. 12. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Impetus, 2010. p. 63.