Por: Sérgio Rebouças[1]

É corriqueira, entre muitos, a dificuldade de entender a lógica de inadmissibilidade e de exclusão de provas obtidas por meios ilícitos (art. 5º, LVI, Constituição Federal; art. 157, Código de Processo Penal). Afinal, não seria demais excluir – e até inutilizar – uma prova independentemente de seu conteúdo e de sua relevância material? Qual o sentido de se desprezar o conteúdo inequívoco de uma prova, por mais que sua obtenção tenha ocorrido de forma contrária ao direito? Ora, se um investigador público, sem autorização judicial, invadiu um dispositivo informático e ali obteve dados relevantes sobre a prática de crimes, que se puna o sujeito pelo emprego desse meio ilícito (e até criminoso), mas que não se chegue ao ponto de desprezo do próprio conteúdo evidenciado pela prova! Isso, a propósito, corresponde à lógica de um princípio contraposto ao da exclusão: o da veracidade da prova, que já vigorou no Brasil, segundo o qual não interessa o modo de obtenção da prova, mas só o seu conteúdo.  Por que não é assim? Por que o Estado chega a renunciar ao próprio resultado probatório, quando alcançado ilicitamente?

No recente episódio da divulgação de conversas e ajustes entre um juiz e um acusador público, curiosamente, viu-se uma inversão dessa tendência comum de incômodo frente à regra de inadmissibilidade: de repente, muitos passaram a afirmar que, apesar de seu conteúdo (na verdade, antes mesmo de se chegar a uma discussão sobre ele), as gravações constituem produto de ato ilícito (até criminoso) e, portanto, devem ser desprezadas e excluídas, para qualquer efeito.

Nesse cenário todo, é importante entender a lógica da exclusão da prova ilícita. Não é só uma questão de respeito às regras do jogo, de imperativo moral ou de necessidade de reafirmação do direito violado na obtenção da prova. A exclusão da prova obedece a um sentido bem particular, assumindo até um viés pragmático.

Retorne-se, então, ao ponto inicial: por que o Estado renuncia ao resultado da prova ilícita como mecanismo incriminador dotado de eficácia? O fundamento tem suas origens em dois casos paradigmáticos julgados pela Suprema Corte norte-americana: o caso Boyd v. United States, de 1886[2]; e, principalmente, o caso Weeks v. United States, de 1914[3].

No último desses casos, foi reconhecida a ineficácia das sanções penais, civis e administrativas para desestimular agentes estatais investigativos quanto ao emprego de práticas ilícitas na obtenção da prova. Para bem cumprir esse efeito dissuasório, o próprio resultado da prova deve ser declarado imprestável e excluído. Só a eliminação do resultado do trabalho ilícito será capaz de desestimular o agente público: a mera ameaça de responsabilidade não é suficiente para enfrentar eventual pendor do sujeito em, na sua atividade rotineira, buscar o meio mais fácil de chegar à prova. Vale a pena mencionar este trecho do julgado da Suprema Corte norte-americana (Weeks v. US, 1914): “A tendência daqueles que executam as leis penais do país de obter elementos de convicção por meio de apreensões ilegais e de confissões forçadas, as últimas com frequência obtidas depois da sujeição de acusados a injustificáveis práticas destrutivas de direitos assegurados pela Constituição Federal, provavelmente não encontram nenhuma sanção nos julgamentos das cortes, encarregadas a todo tempo da defesa da Constituição, e às quais pessoas de todas as condições têm o direito de recorrer para a proteção de tais direitos fundamentais”. Considere-se a ideia comum de que o crime só deixa de compensar quando o agente, além da punição, é privado do produto ou do proveito da prática criminosa. Algumas leis da República têm por base esse parâmetro.

A renúncia estatal ao resultado probatório, porém, não deixa de ser um ato muito doloroso e extremo. Há um custo social relevante associado à exclusão da prova. Isso só deve acontecer, portanto, em situações excepcionais, quando realmente haja necessidade de desestímulo ao abuso estatal na atividade investigativa. Por esse motivo, a própria jurisprudência norte-americana foi fixando limites à regra de exclusão. A título de exemplo, no sistema norte-americano, já se reconheceu que mesmo a prova ilícita pode ser utilizada, com eficácia: (i) quando produzida por um particular, e não por um agente estatal; (ii) em processos de natureza civil. Com efeito, no caso Burdeau v. McDowell, de 1921, entendeu a Suprema Corte norte-americana, resgatando o princípio do precedente firmado em 1914, que “a proteção da Quarta Emenda contra buscas e apreensões ilegais refere-se à ação estatal[4]. Por outro lado, no caso United States v. Janis, de 1976[5], entendeu-se que a exclusão somente é aplicável em processos criminais[6].

Só se deve inadmitir e excluir a prova, assim, quando produzida por agentes do Estado (“aqueles que executam as leis penais do país”), e isso só para efeito incriminador, em um processo de natureza penal. A necessidade é de desestímulo à conduta de quem, por função e rotina, pratica atividades investigativas oficiais, e não à ação de particulares que, casualmente, encontrem a oportunidade de executar um ato ilegal para obter a prova.  No último caso, claro, o particular deve ser punido, mas não se justifica a renúncia estatal ao próprio resultado da prova. Tampouco se justifica o desprezo desse resultado em processo que não seja de natureza penal, com efeito punitivo.

A Constituição brasileira, a esse respeito, foi bem mais protetiva, ao vedar a utilização de provas ilícitas produzidas por quem quer que seja (público ou privado) e em qualquer âmbito (penal ou civil). O Supremo Tribunal Federal, a propósito, já decidiu que mesmo a prova ilícita produzida por um particular não pode ser utilizada no processo. Nessa linha, consulte-se a decisão monocrática do Ministro Celso de Mello no RE 251.445/GO (DJ de 03.08.2000[7]), em que se reconheceu a inadmissibilidade da prova, “ainda que não se revele imputável aos agentes estatais o gesto de desrespeito ao sistema normativo”, quando “vier ele a ser concretizado por ato de mero particular”. No mesmo sentido, confira-se o acórdão da Segunda Turma da Suprema Corte brasileira no HC 82.862/SP (Rel. Min. Cezar Peluso, DJ de 13.06.2008[8]).

Ora, mas há uma finalidade, também objeto de tutela constitucional, bem mais importante do que a excepcional renúncia do Estado ao resultado probatório: a ampla defesa, sobretudo em processo de natureza penal, e a liberdade que aí está em jogo. Afinal, o que justificaria o desprezo do Estado a um dado capaz de evidenciar a inocência de um acusado ou condenado, ou a invalidade de um processo criminal? No Brasil, o Estado também desestimula que um particular produza prova por meio contrário ao direito, e isso de forma reforçada, não só punindo o sujeito, mas chegando ao ponto de inadmitir o resultado probatório, para efeitos de incriminação. Cumprida a finalidade de desestímulo reforçado, nada justifica que o dado não possa ser utilizado contra o poder persecutório do Estado surpreendido, ele próprio, em um cenário de ilegalidade, tudo como mecanismo de proteção da liberdade individual.

Uma nota emerge do que foi dito acima: considerando determinados precedentes da jurisprudência norte-americana, ali a situação de prova ilícita produzida por agentes particulares não levaria à exclusão do dado sequer para efeito incriminador. Vale dizer: a prova ilícita produzida por um particular pode ser utilizada até mesmo para incriminar. O particular, por seu turno, fica sujeito a responsabilidade, inclusive a penal, decorrente de sua conduta ilícita. Aplique-se essa lógica ao recente caso das conversas entre acusador e juiz, em que a prova foi supostamente obtida – de forma ilícita – por particulares, e não por agentes públicos… No Brasil, diversamente, considerando a amplitude da tutela constitucional, veda-se o uso dessa prova para incriminação, ficando admitida, porém, sua eficácia como instrumento de defesa.

 


[1] Advogado criminalista, sócio do escritório Cândido Albuquerque Advogados Associados, doutor em Direito Penal pela Universidade de Sevilha e professor de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará


[2] Boyd v. United States, United States Supreme Court, 116. US. 616, 1886.

[3] Weeks v. United States, United States Supreme Court, 232. U.S. 383, 1914.

[4] Burdeau v. McDowell, United States Supreme Court, 256 U.S. 465, 1921.

[5] United States v. Janis, United States Supreme Court, 428 U.S. 433, 1976. Com o mesmo sentido, há ainda, na jurisprudência norte-americana, o precedente do famoso caso O. J. Simpson, de 1995.

[6] Para mais casos de limitações à regra de exclusão, consulte-se: REBOUÇAS, Sérgio. Curso de Direito Processual Penal. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 542-549.

[7] STF, RE 251.445/GO, Rel. Min. CELSO DE MELLO, julgamento em 21.06.2000, DJ de 03.08.2000.

[8] STF, 2ª Turma, HC 82.862/SP, Rel. Min. CEZAR PELUSO, julgamento em 19.02.2008, DJ de 13.06.2008.


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