Por Marlus H. Arns de Oliveira[1] e Mariana N. Michelotto[2]

 

A Lei “Anticrime” (como se existisse Lei “a favor do crime) trouxe o art. 28-A para o Código de Processo Penal. Referido, e já debatido, artigo nos apresentou o acordo de não persecução penal ampliando as possibilidades da defesa e acusação realizarem acordo no âmbito penal.

Os acordos penais, sempre controversos, não se tratam de instrumento recente na legislação brasileira. A Lei nº 9.099/95, dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, prevê no artigo 76 a transação penal para as infrações de menor potencial ofensivo e no artigo 89 a suspensão condicional do processo para crimes em que a pena mínima for igual ou inferior a um ano.

Não se pode ignorar o próprio instituto da colaboração premiada, que embora previsto na legislação desde a década de 90 (Lei nº 8.072/1990 entre outras tantas), passou a ser comumente utilizada após o ano de 2013 quando  ganhou suas primeiras balizas legislativas com a Lei nº 12.850/2013 – também alterada pela Lei nº 13.684/2019, que avançou na construção legal do referido instituto.

O acordo de não persecução penal é o novo instituto do direito penal negocial, ampliando profundamente as possibilidades anteriormente existentes de realização de acordo com as autoridades públicas – em especial o Ministério Público – antes de haver acusação formal quanto à prática de crimes.

Conforme previsão expressa do art. 28-A do Código de Processo Penal, em não sendo caso de arquivamento da investigação, se houver confissão quanto a prática da infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal. O mesmo artigo ressalta que o acordo será proposto, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do delito.

Neste ponto reside a primeira crítica ao acordo de não persecução penal visto não ser lógico, sob a ótica da ampla defesa, do contraditório e da presunção de inocência, que o investigado confesse crime como condição para o acordo de não persecução penal. A razão é simples: em não sendo realizado o acordo ou no caso de não cumprimento do mesmo a confissão trará danos irreparáveis ao investigado, sendo tal fato inclusive objeto da ADI 6304 ajuizada pela Abacrim – Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas.

O rol dos delitos em que será possível a propositura do acordo é extensa, pois a pena mínima inferior a 4 (quatro) anos engloba inúmeros crimes, desde furto até peculato e lavagem de dinheiro. Tal previsão alcançará tanto os crimes comuns, que correspondem a maior parte dos processos da justiça criminal, como os crimes do chamado “direito penal econômico”, que comumente são objeto das maiores operações policiais no país.

As condições para o cumprimento do acordo, que poderão ser ajustadas cumulativa e alternativamente são: a reparação do dano ou a restituição da coisa à vítima, salvo na impossibilidade de fazê-lo; a renúncia voluntária aos bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime; a prestação de serviços à comunidade por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços; o pagamento de prestação pecuniária; e o cumprimento, por prazo determinado, de outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.

Veja-se que a Lei concede ao Ministério Público um alto nível de discricionaridade, visto que admite expressamente a estipulação de obrigações não previstas no referido artigo. É preciso muito cuidado e preparo técnico dos Advogados para que o acordo não seja mera antecipação do cumprimento de pena, afinal, trata-se de negociação entre as partes, devendo as condições deverão ser ajustadas. Não estamos frente a um “contrato de adesão”.

Infelizmente, a prática tem demonstrado, que não raras vezes tanto na suspensão condicional do processo quanto na transação penal, afora no próprio acordo de colaboração premiada, que as condições sejam unilateralmente propostas pelo Ministério Público, sem qualquer (ou mínima) possibilidade ou interesse de negociação, de modo que o acusado acaba optando por “aderir” ao acordo ou decidindo por enfrentar o processo.

É preciso ressaltar que, por vezes, mesmo que haja condenação, as penas fixadas não diferem significativamente do acordo (anteriormente proposto) ou muitas vezes acabam por ser inferiores ao efetivado no acordo. Tal fato desencoraja sobremaneira a evolução da justiça negocial na esfera penal, afinal, o acordo – em qualquer de suas modalidades – precisa verdadeiramente ser negociado pelas partes e ao final ser extremamente vantajoso em relação a possível pena.

Neste ponto, ousamos afirmar que deveríamos caminhar, na doutrina, jurisprudência e legislação, para uma concretização do acordo de não persecução penal como verdadeiro direito subjetivo do acusado, que preenchendo os requisitos legais teria direito a realização do acordo de não persecução penal. Vamos além, a própria colaboração premiada deveria também caminhar neste sentido. Tal orientação diminuiria sensivelmente a discricionariedade do parquet ministerial e poderia facilitar as tratativas de acordo em verdadeiros acordos e não “contratos de adesão”.

A previsão do §2º do art. 28-A dispõe quais as hipóteses em que não será cabível o acordo de não persecução penal: a) caso seja cabível transação penal; b) se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas; c) se o agente tiver sido beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração pelo acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; d) nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar ou praticados contra mulher por razões da condição de sexo feminino.

Aqui reside uma segunda crítica, especialmente quanto à previsão de que não será possível a realização do acordo nos casos em que a conduta criminal é habitual, reiterada ou profissional. A princípio, parece que esse inciso poderá limitar consideravelmente as hipóteses de oferecimento do acordo em casos de grandes operações, vez que na maior parte das denúncias o Ministério Público descreve condutas praticadas de forma habitual e reiterada. Ainda, a maioria das denúncias oferecidas no âmbito do direito penal econômico incluem o delito de organização criminosa, com descrição, às vezes genérica, de prática delitiva reiterada e profissional, sem qualquer individualização quanto a seus diversos acusados. Assim, caso o Ministério Público continue incluindo em boa parte de suas denúncias a investigação a possível prática do delito de organização criminosa e descrevendo de forma generalizada a habitualidade da prática delitiva, as hipóteses de aplicação dessa forma específica de acordo serão consideravelmente reduzidas.

Quanto ao procedimento do acordo a lei determina que será formalizado por escrito e será realizado pelo membro do Ministério Público, pelo investigado e seu defensor. Após a formalização, será marcada audiência para homologação, em que o magistrado ouvirá o investigado na presença de seu Advogado para aferir a voluntariedade e legalidade. Previsão semelhante já era trazida no bojo dos dispositivos referentes ao acordo de colaboração premiada na Lei nº 12.850/2013. A legislação trouxe avanços permitindo que se o juiz considerar inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições do acordo, devolverá os autos ao Ministério Público para que reformule a proposta de acordo. Vale dizer, a nova lei deslocou o juiz de simples homologador do acordo para posição em que é permitido avaliar as condições negociadas.

Nos processos já em andamento, anteriores a Lei “Anticrime”, os magistrados tem determinado abertura de “vistas as partes para manifestação acerca da possiblidade de acordo de não persecução penal”. Já o Ministério Público em seus pareceres tem advertido que a confissão é pressuposto para celebração do acordo; que o seu descumprimento gerará rescisão do acordo; e que o descumprimento do acordo poderá ser utilizado como justificativa para o não oferecimento de suspensão condicional do processo nos termos dos §§ 10º e 11º do art. 28-A.

É fato, portanto, que a celebração do acordo de não persecução penal implicará a assunção de risco considerável pelo investigado, em especial, quanto a confissão e ao alto índice de discricionariedade conferido ao parquet ministerial pela nova Lei.

Os reflexos do acordo de não persecução penal nos procedimentos cíveis foram objeto de preocupação do legislador que alterou o art. 17, §1º da Lei 8429/92, prevendo a celebração de acordo de não persecução cível nas ações de improbidade. O avanço é importante mas é tímido pois havendo acordo na esfera penal, e na área cível, restarão em aberto ainda as questões perante a Receita Federal, órgãos e agências reguladoras e fiscalizadoras, que sofrerão reflexos diretos da confissão na esfera penal e poderão restar sem a possibilidade de acordo por ausência de previsão legal.

Ao final, caberá a defesa técnica profunda análise quanto a utilização deste novo instrumento de acordo como uma das opções de estratégia de defesa, sendo necessário reavaliar as estratégias de defesa tradicionais e a utilização – ou não – dos instrumentos de acordo.

A vulgarização dos acordos, em quaisquer de suas modalidades, podem custar-lhe a credibilidade, sendo que para alcançarem sua plenitude como legítimos instrumentos de defesa, devem ser aprimorados, cabendo a nós Advogados, diante desses novos desafios, adequar a orientação político-criminal à dogmática penal, sendo a garantia da aplicação prática dos princípios da presunção de inocência, do contraditório e da ampla defesa nosso norte.


[1] Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUC/PR, Advogado Sócio do escritório Arns de Oliveira e Andreazza Advogados Associados, vice-Presidente do IBDPE.

[2] Mestranda em Direito Penal Econômico na Fundação Getúlio Vargas – FGV/SP, Advogada do escritório Arns de Oliveira e Andreazza Advogados Associados, membro do IBDPE.


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