DA IMPOSSIBILIDADE DA PRÁTICA DO CRIME DE FRUSTRAÇÃO DO CARÁTER COMPETITIVO DO PREGÃO POR MEIO DE BLOQUEIO

Por: Carolina Lopes Pinheiro[1]  e Carolina Schmidt[2]

Visando o combate a cartéis em contratações públicas, tem se tornado cada vez mais comum a existência de processos criminais, tanto na esfera Estadual, quanto na Federal, em que se imputa a prática do crime de frustração do caráter competitivo de licitação[3], na modalidade pregão presencial, por meio da utilização da técnica conhecida como bloqueio ou paredão.

O bloqueio em pregão presencial é definido pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), como uma estratégia anticompetitiva caracterizada pela atuação concertada entre uma empresa que fornece determinado bem ou serviço

Na prática, o objetivo é reduzir as chances das demais licitantes de se classificarem para a fase de lances do pregão, restringindo, com isso, a concorrência no certame.

No entanto, conclui-se que, a tese de bloqueio em pregão presencial, seja na modalidade menor ou maior preço, é incabível, dada a própria lógica desse tipo de licitação.

Assim, o escopo desse artigo é demonstrar que o crime previsto no Art. 337-F, do Código Penal, não pode ser realizado mediante a utilização desse modus operandi, devendo, nesses casos, ser reconhecida a atipicidade da conduta.

Da impossibilidade de bloqueio em pregão

De acordo com o contido na Lei nº 10.520/2002, nas situações em que a Administração Pública necessite da prestação de um serviço ou da aquisição de bens comuns, deverá realizar licitação através da modalidade do pregão, que pode ser presencial ou eletrônico.

Tendo em consideração que o pregão eletrônico não está sujeito à regra dos 10%[4], a discussão nesse artigo se dará somente em torno do pregão presencial.

O pregão presencial, independentemente do seu critério, maior ou menor preço, possui dois momentos distintos de disputa de valores: i) apresentação das propostas de todos os licitantes cadastrados e ii) fase de lances verbais e sucessivos. Nessa última fase participarão somente os licitantes classificados na fase de abertura dos envelopes.

Dessa maneira, de acordo com o artigo 4º, VIII, da Lei 10.502/2002, serão classificados para a fase de lances verbais, o licitante com a melhor proposta e, todos os demais, que atingirem a diferença de, no máximo, 10% (dez por cento) da primeira classificada, devendo ser classificados no mínimo três licitantes.

Destaca-se que as propostas iniciais entregues pelos licitantes ao pregoeiro estarão lacradas nos envelopes, de forma que os demais concorrentes não conseguem visualizá-las antes da classificação inicial, portanto, é impossível aos licitantes possuírem controle das ofertas de todos os seus concorrentes, de modo a restringir ou bloquear a competitividade do certame.

Deste modo, verifica-se em processos dessa natureza, que a argumentação que vem sendo apresentada pelo Órgão acusador, de que os acusados se utilizam do bloqueio com intuito de afastar concorrentes da fase de lances e, assim, inviabilizar a disputa, é completamente descabida. Isso porque, essa tese tem se fundamentado em eventos inviáveis, dada a dinâmica da modalidade licitatória, pois a própria normativa dispõe de mecanismos que proporcionam um maior número de participantes para a fase de lances, estabelecendo apenas a quantidade mínima e, não máxima.

Isto é, não há como um licitante impedir que seus concorrentes participem da fase aludida, pelos simples fatos de: i) não terem domínio sobre as propostas ofertadas por todos os concorrentes; e ii) a lei determinar que serão classificados no mínimo três - e não somente três – concorrentes.

Nessa lógica, Carlos Ari Sundfeld[5] aduz que

“Eventual acerto prévio entre três licitantes quanto a suas ofertas iniciais pode existir, claro, mas não tem como lhes garantir a passagem, nem pode gera o bloqueio de terceiros; isso depende dos valores de todas as propostas iniciais, o que o acerto só entre três licitantes não é capaz de afetar. ” (2020, p. 580)

“Se três licitantes não têm poder de dominação sobre os demais e não mandam no mercado (ditando comportamentos e impondo condutas no ambiente da licitação como um todo), não há como supor a existência de cartel entre eles. Não há como supor acordo ilógico, o qual, por conta das regras, não poderia garantir a exclusão de competidores não alinhados. ” (2020, p. 580)

Ainda, conclui:

“À luz das regras do pregão presencial, não é possível que um acordo entre licitantes bloqueie a ida de terceiro à fase de Lances. Não há número máximo para a passagem de concorrentes à segunda fase (passam todos com propostas iniciais até 10% superiores à menor), sendo impossível que algum acordo bloqueie a passagem de terceiro”. (2020, p. 582)

Nesse sentido, cumpre ressaltar ainda, que mesmo não se tratando do entendimento perfilhado por essas autoras, a tese de bloqueio, só seria minimamente cabível, em certames cujo critério é o do menor preço, visto que, nesses casos, a Administração Pública consegue observar se as propostas dos licitantes na primeira fase são irrisórias, ou seja, ofertas que claramente estão em desacordo com o mercado e, portanto, são impraticáveis.

Já, em se tratando de um pregão pelo critério do maior preço, o objetivo da Administração Pública é justamente o oposto, isto é, a obtenção da maior oferta. Assim, será vencedor o participante que apresentar a proposta de maior valor. O que torna descabida a alegação de lesão a competitividade e eventual prejuízo à Administração Pública.

Conclusão

Ainda que o bloqueio em pregão presencial, venha sendo indicado pelo Ministério Público como um meio utilizado para a prática do crime de frustração do caráter competitivo das licitações, pela argumentação acima apresentada, é possível concluir que, dada a própria dinâmica desse tipo de certame, o bloqueio não é um instrumento hábil para impedir o caráter competitivo das contratações públicas.

Sendo assim, este tipo de acordo colusivo não seria capaz de eliminar ou mesmo, restringir, a participação dos demais licitantes para a 2ª fase da disputa, de modo a impedir a concorrência dos processos de contratação de bens e serviços pela Administração Pública.

Dessa forma, nos processos em que o Órgão acusador indicar o bloqueio como sendo o único método empregado para a configuração desse delito, a atipicidade da conduta deve ser reconhecida, com a consequente absolvição do acusado.


[1]Advogada especialista em Direito Penal e Criminologia (UFPR) e mestre em Direitos Fundamentais e Democracia (Unibrasil).

[2]Advogada especialista em Direito Administrativo (Instituto de Direito Bacellar) e bacharelanda em Gestão Pública (UFPR).


[3]Art. 337-F, do Código Penal: Frustrar ou fraudar, com o intuito de obter para si ou para outrem vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação, o caráter competitivo do processo licitatório: Pena - reclusão, de 4 (quatro) anos a 8 (oito) anos, e multa.

[4] A estratégia de bloqueio não se aplica ao pregão eletrônico, pois nesta modalidade todas as empresas com propostas dentro dos parâmetros estabelecidos pelo Edital podem participar da fase competitiva, em que são apresentados os lances (art. 29 do Decreto nº 10.024/2019).

[5] SUNDFELD, Carlos Ari et. al. Controle Concorrencial nas licitações: a tese do bloqueio em pregão presencial. Revista Jurídica da Presidência. Brasília, v. 21, n. 125, p. 564-589, Out. 2019/Jan. 2020.

Referências

BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Institui o Código Penal.

BRASIL. Decreto nº 10.024, de 20 de setembro de 2019. Regulamenta a licitação, na modalidade pregão, na forma eletrônica.

CADE. Guia - Combate a Cartéis em Licitação. Disponível em:

https://cdn.cade.gov.br/Portal/Not%C3%ADcias/2019/Cade%20publica%20Guia%20de%20Combate%20a%20Cart%C3%A9is%20em%20Licita%C3%A7%C3%A3o__guia-de-combate-a-carteis-em-licitacao-versao-final-1.pdf.

SUNDFELD, Carlos Ari et. al. Controle Concorrencial nas licitações: a tese do bloqueio em pregão presencial. Revista Jurídica da Presidência. Brasília, v. 21, n. 125, p. 564-589, Out. 2019/Jan. 2020.


ORDEM ECONÔMICA E A (IM)POSSIBILIDADE DE SER CONSIDERADA BEM JURÍDICO AUTÔNOMO

Por: Lívia Maria Alves Teixeira Lima[1]

 

Delimitar os bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal é uma garantia do controle do ius puniendi do Estado contra os cidadãos. O primeiro a desenhar a teoria do bem jurídico foi Franz Birnbaum (século XIX) que dizia que o delito não lesiona direitos, mas sim lesiona bens fundamentais imateriais; esses são valores da existência social, valores esses instituídos pela própria vida em sociedade. Quando ocorre um homicídio, por exemplo, o bem violado é, evidentemente, a vida humana. Ademais, implicitamente são violados de forma secundária a integridade física e a liberdade, pois o corpo da vítima é destruído e seu direito de ir e vir cerceado de forma definitiva e irremediável. No âmbito do direito penal econômico, como a natureza dos bens jurídicos tutelados é transindividual ou metaindividual, há ainda muitas controvérsias e polêmicas sobre quais bens jurídicos são tutelados quando da análise de alguns tipos penais econômicos.

Como ponto de partida, o crime de lavagem de dinheiro ainda levanta dúvidas na doutrina e jurisprudência, nacionais e estrangeiras, de qual seria o bem jurídico violado quando da prática do mencionado fato típico. Existem três correntes distintas sobre qual bem jurídico é ofendido quando da prática do branqueamento de capitais: a primeira defende ser a ordem econômica; a segunda defende ser a administração da justiça e, por último, a mais complexa em que os bens jurídicos tutelados são múltiplos: a administração da justiça, a ordem econômica e o bem jurídico protegido pelo crime antecedente. A dificuldade encontrada pelos órgãos de persecução penal para delimitar as condutas praticadas pelos agentes e para a obtenção de provas coloca em risco as funções de investigar, processar e julgar dos órgãos de justiça criminal.

Os tipos penais econômicos, em sua maioria, são normas penais em branco e crimes de perigo abstrato. Esses tipos penais vazios, geralmente, precisam de complementos de resoluções emanadas de órgãos do Poder Executivo, tais como Banco Central, Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), Conselho Monetário Nacional (CMN), entre outros.

Conceituar o que seria ordem econômica é uma tarefa complexa, pois nem mesmo os especialistas chegaram a um consenso do que objetivamente seria esse “possível” bem jurídico. A Constituição Federal, em seu artigo 170, expressa quais são os fundamentos que norteiam a ordem econômica: a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa. A constitucionalização da ordem econômica mostra o quão ela é importante e cara ao estado democrático de direito, pois ela objetiva assegurar uma vida digna e igualitária para todos os cidadãos.

Existem diversas leis esparsas que tipificam condutas contra a ordem econômica, mas no presente artigo destacam-se duas legislações: a lei 8.137/90, conhecida como crimes contra a ordem tributária e a lei 8.176/91. A primeira, nos incisos do seu artigo 4º, elenca as condutas contra a ordem econômica, consideradas crimes. A segunda, as condutas tipificadas estão previstas no artigo 1º da referida lei. O Código de Processo Penal Brasileiro, em seu artigo 312, também traz o termo “ordem econômica” de forma muito vaga, pois como decretar prisão preventiva baseado em termos genéricos (ordem econômica, ordem pública)?

O professor Luís Greco, catedrático da Universidade Humboldt de Berlim, em um vídeo para o canal no YouTube intitulado Senhor Criminologia[2], com apoio da Universidade Federal de Minas Gerais, afirma que ele tem tendências a não aceitar a ordem econômica como bem jurídico autônomo, porém ele afirma ser necessário um estudo mais aprofundado do tema e análise dos tipos penais. Essa palestra ministrada pelo professor Greco trouxe uma inquietude nessa que vos escreve sobre o tema apontado no título e objeto desse artigo. Ele menciona também que provavelmente, quando da análise dos tipos penais ditos ofensivos a ordem econômica, concluiríamos que em todos esses tipos penais existe um perigo abstrato para bens individuais (patrimônio, propriedade) ou bens coletivos, por exemplo, a concorrência (professor Luís Greco considera como um bem jurídico).

As leis 8.137/90 e a lei 8.176/91, a título de exemplo, possuem em seu bojo um tipo penal conhecido como “cartel”: acordo feito entre duas ou mais empresas do mesmo ramo, que combinam os preços dos seus produtos a fim de maximizar os lucros e estabelecer clientes e mercados de atuação, entre outras finalidades. Podemos perceber de plano que a livre concorrência é afetada, pois as outras empresas que não participam do processo de cartelização inevitavelmente vão perder espaço no mercado e, por consequência, serão obrigadas a encerrar seus empreendimentos. Os consumidores também são afetados porque não possuem direito a escolha do melhor produto em termos de qualidade e preço, forçando-os a comprarem produtos por preços abusivos. É instantâneo a nossa vontade de apontar a ordem econômica como bem jurídico autônomo, mas a conclusão que se chega é que bens jurídicos individuais são afetados com esse tipo de conduta, sobretudo o patrimônio.

A ordem econômica, possivelmente, não pode ser entendida como um bem jurídico autônomo, mas a base de outros bens jurídicos que fundamental a tutela penal (concorrências, relações de consumo, administração pública, entre outros). Os crimes contra a ordem econômica nada mais são que delitos que ofendem um conjunto de princípios de um sistema amplo de normas; a ordem econômica é atingida através dos bens jurídicos nos quais ela se presta a regulamentar, mas aquela, por si só, não é capaz de ser lesada de forma independente. A ordem econômica precisa de um complemento: ordem econômica + bem jurídico individual ou supraindividual penalmente relevante. Há a diminuição do patrimônio das empresas que não formalizaram o cartel e, claro, dos consumidores. Não há um entendimento claro sobre isso, nem tão pouco pacífico sobre se a ordem econômica figura como bem jurídico autônomo no direito penal econômico. Considerações mais aprofundadas e atentas, no futuro, serão de grande utilidade e fonte de debates e reflexões acerca desse assunto.

Ainda pairam muitas dúvidas acerca desse tema, uma temática inclusive pouco explorada pela doutrina especializada. O objetivo primordial do presente texto não é esgotar ou trazer respostas definitivas ao tema; a finalidade é fomentar a reflexão do que podemos ou não considerar bens jurídicos tutelados pelo direito penal, haja vista que não se pode considerar tudo como bem jurídico penalmente relevante.

A maioria dos autores que produzem sobre Direito Penal, sobretudo o Direito Penal Econômico não fazem maiores questionamentos, aceitando de pronto a ordem econômica como bem jurídico. O recrudescimento da chamada sociedade de risco de Ulrich (1986) não pode legitimar a desenfreada “intromissão” do Direito Penal em condutas que podem ser combatidas pelo direito administrativo ou civil. Se o Estado não souber os seus limites, até onde pode punir e como punir, abre-se espaço para arbitrariedades e flexibilização de garantias constitucionais, ainda mais em um ramo do direito em que se cerceia a liberdade, bem jurídico este tão caro que não pode ser restituído, pois o tempo perdido não pode mais ser recuperado, nem mesmo com indenizações na esfera cível. Há de se ter um olhar mais cuidadoso dos estudiosos em delimitar quais bens jurídicos merecem a tutela penal e quais podem ser preservados por outros ramos do direito.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Disponível em: www.planalto.gov.vr/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm Acesso em: 01 out. 2021

BRASIL. Lei n. 8.137, 1990. Define crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, e dá outras providências. Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8137.htm. Acesso em: 01 out. 2021

BRASIL. Lei n. 8.176, 91. Define crimes contra a ordem econômica e cria o Sistema de Estoques de Combustíveis. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8176.htm Acesso em: 01 out. 2021

SOUZA, Luciano Anderson. Análise da legitimidade da tutela penal da ordem econômica. 2011. Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Direito Penal, USP, São Paulo.

WUNDERLICH, Alexandre, et al. Direito penal econômico: crimes financeiros e correlatos. São Paulo: Saraiva, 2011


[1] Graduada em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis; Pós-graduanda em Direito Penal Econômico pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Advogada.

[2]CALHAU, Lélio. Senhor Criminologia. Criminalidade Econômica – Professor Luís Greco – UFMG/Canal Senhor Criminologia. YouTube, Maio 2021. Disponível em: https://youtu.be/L9UCXag6cPo


O ESCRIVÃO E O MINISTRO

Por: Beno Brandão e Alessi Brandão

É fato que todos os advogados, ainda que neófitos, têm alguma passagem pitoresca para relatar do dia a dia da relação com a Justiça. Histórias de audiências conturbadas, de bons ou maus atendimentos nos fóruns, delegacias ou outros órgãos públicos. Muitas delas são recheadas de nulidades e salpicadas de situações que requerem do advogado, além do conhecimento jurídico, um certo traquejo para contorná-las, ou, ao menos, para minorar o desgaste do momento.

Dentro desse contexto, recentemente vivemos duas situações, ne- gativas infelizmente, contendo alto grau de desprezo com a atuação pro- fissional do advogado, ocorridas em competências, digamos, diametral- mente opostas do nosso sistema processual. Em uma delas, a negativa de acesso aos autos pela defesa, cuja ordem emanou de um integrante da mais alta Corte do país, no Inquérito n. 4781, conhecido como o Inquérito das Fake News; o outro caso, o impedimento de acesso à defesa, oposta por um escrivão de Polícia Civil, a um mero boletim de ocorrência e de- poimento dos policiais militares antes da realização do interrogatório.

Comecemos pela situação de piso, ocorrida ao final de uma noite, quando solicitados a atender um cliente, que se encontrava na Delegacia da Mulher de Curitiba, acusado de ter agredido sua esposa. Embora não seja algo absoluto, não se pode negar que boa parte das vezes os advoga- dos sofrem certo preconceito quando defendem investigados de prática de agressão contra mulheres; o mesmo ocorre quando se trata de crime contra crianças e adolescentes. Nesse panorama é que se desenrolou o caso em apreço.

Logo no primeiro contato com o cliente, um senhor de mais de 60 anos que havia, pouco tempo antes, se submetido a uma cirurgia na prós- tata para a retirada de um tumor e que lhe rendeu uma incontinência urinária, verificou-se que ele havia se urinado e estava com uma das mãos algemada a um pedaço de ferro no interior da delegacia; não havia tido a oportunidade de ir ao banheiro, apesar de suas súplicas para os policiais que lá estavam.

Após breve conversa com o cliente, pediram os advogados que a família lhe trouxesse uma outra calça, posto que já passava de meia-noite e certamente a madrugada seria longa até que fosse lavrado o flagrante, pois a delegacia estava com muitas ocorrências. Perto das 3 horas da ma- drugada e sem nenhum sinal de início do seu interrogatório, solicitou-se aos policiais que entregassem a calça limpa e um casaco ao detido, que, apesar da idade avançada e sem registro de antecedentes, permanecia sendo tratado como uma pessoa de alta periculosidade: algemado a um cano no interior da delegacia. Um dos policiais até chegou a se sensibili- zar com a situação, ali, na fria madrugada curitibana, todo urinado e al- gemado. Contudo, foi repreendido por outra policial, que disse que se ele, o cliente, quisesse se trocar, que o fizesse após ser interrogado. A sensação que se tem – e cremos que muitos colegas já a tiveram – é de que para alguns não bastam as penalidades previstas no Código Penal após a con- denação. O escárnio e o constrangimento já são impostos na partida, já no início do procedimento investigatório.

Mas esse não é o ponto forte do nosso relato; apenas serve como pano de fundo para a arbitrariedade maior que veio a ocorrer. Pouco an- tes do interrogatório, isso já passado das 4 horas da madrugada, verificou- se que a sedizente vítima havia cansado de esperar sua inquirição, pelo que deixou a delegacia sem prestar esclarecimentos – e, portanto, forma- lizar a acusação contra o cliente; pediram os advogados, então, para ler os depoimentos prestados pelos policiais militares que atenderam a ocor- rência e verificar exatamente o que havia sido registrado no respectivo boletim. Medida básica que qualquer advogado tomaria: ter ciência pré- via da acusação para poder instruir o cliente para seu interrogatório. Regra básica, que tem como pressuposto lógico um direito comezinho, o de ter franqueado o acesso ao que já foi documentado.

Apesar dos abusos e constrangimentos já cometidos naquela noite, o escrivão apresentou o gran finale, transformando aquele senhor, subme- tido a uma situação humilhante, na personificação de Josef K., o famoso personagem de Franz Kafka, na obra O Processo, de leitura obrigatória a qualquer profissional do direito, onde se critica fortemente o autoritaris- mo do Estado e toda a estrutura judicial.

Munido de toda a sua autoridade – destaque-se que não participou do ato a delegada que subscreveu o termo posteriormente – o escrivão disse que não permitiria a leitura da acusação, ou seja, o que continha o boletim de ocorrência e nem o que tinham os policiais militares dito em seus depoimentos; afirmou que se os advogados ali presentes lessem es- sas peças, o cliente teria que ser acompanhado por outro advogado ou poderia até ser interrogado sem a presença de um defensor. A situação era dantesca. Tudo isso poderia ser passível de dúvida sobre sua efetiva ocorrência, não fosse por um detalhe: o indeferimento do escrivão restou consignado no termo de interrogatório. Diante da manifesta ilegalidade, a orientação da defesa técnica não poderia ser outra que não o do interro- gado permanecer em silêncio; além disso, solicitaram-se providências ad- ministrativas na Corregedoria da Polícia Civil e criminais ao Ministério Público, pela prática do crime do art. 32, da Lei n. 13.869/19, que prevê detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa àquele que

“Negar ao interessado, seu defensor ou advogado acesso aos au- tos de investigação preliminar, ao termo circunstanciado, ao in- quérito ou a qualquer outro procedimento investigatório de in- fração penal, civil ou administrativa, assim como impedir a obtenção de cópias, ressalvado o acesso a peças relativas a dili- gências em curso, ou que indiquem a realização de diligências futuras, cujo sigilo seja imprescindível”.

O outro caso que se passa a citar é de interesse nacional. Trata-se do Inquérito 4781, em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal e, em que pese já decidido por maioria ampla do Plenário daquela Corte ser legal a sua instauração, certamente ainda gerará muito questiona- mento sobre sua licitude. Falamos do que se convencionou chamar de o Inquérito das Fake News.

Há uma certa limitação no que se pode expor aqui sobre o conteúdo do processo, vez que ele tramita, infelizmente, sobre segredo de justiça, a despeito de alguns advogados que atuam no caso já terem solicitado a sua publicização (exatamente para que que toda a imprensa e a população te- nham pleno conhecimento de seu conteúdo). Trata-se, pois, de fazer valer o princípio da publicidade, estabelecido expressamente na Constituição Federal, em seu art. 5º, LX, art. 93, inciso IX e art. 37, caput. Esse princípio ao mesmo tempo não só de resulta numa garantia às partes no processo, mas, concomitantemente, na efetivação da transparência necessária para o controle democrático da atuação do Poder Judiciário, conforme ensina Simone Schreiber.1

No entanto, a decretação desse segredo foi tão fortemente encarna- da pelo seu relator (que foi nomeado – e não sorteado – para presidi-lo), que os próprios advogados dos investigados tiveram e ainda continuam a ter toda uma série de limitações para acessar a investigação.

Apropriado um rápido histórico acerca desse Inquérito n. 4781. Foi ele instaurado por ordem do Presidente daquela Corte, Ministro Dias Toffoli, através da Portaria GP. n. 69, de 14 de março de 2019. Designou-se como relator o Ministro Alexandre de Moraes, o qual esta- beleceu em 19 de março de 2019 o objeto da investigação como sendo notícias fraudulentas ( fake news), falsas comunicações de crimes, de- nunciações caluniosas, ameaças e demais infrações revestidas de ani- mus caluniandi, diffamandi ou injuriandi, que estariam a atingir a hono- rabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros; bem como de seus familiares, quando houver relação com a dignidade dos Ministros, inclusive o vazamento de informações e documentos sigilosos, com o intuito de atribuir e/ou insinuar a prática de ilícitos por membros da Suprema Corte, por parte daqueles que têm o dever legal de preservar o sigilo; e a verificação da existência de esquemas de finan- ciamento e divulgação em massa nas redes sociais, com o intuito de lesar ou expor a perigo de lesão a independência do Poder Judiciário e ao Estado do Direito.

A razão que levou a presidência do Supremo Tribunal Federal do país a proceder dessa forma teve como estopim a notícia de um artigo, no qual um Procurador da República no Paraná e então integrante da Força Tarefa da Lava Jato publicar sobre o Poder Judiciário, criticando a competência da Justiça Eleitoral para julgar casos de corrupção, visto que, nas palavras do Procurador, publicadas no site “O Antagonista”, “a Justiça Eleitoral histori- camente, não condena e não manda ninguém para a prisão.”

Referido inquérito, que até hoje, transcorrido mais de ano, não veio a público em sua integralidade, mas que se diz já contar com mais de 10 mil páginas, parece investigar um número indefinido de assuntos, en- tre eles, inclusive, o fato envolvendo o ex-Procurador-Geral da República,

Rodrigo Janot, que disse certa feita ter ido armado ao Supremo Tribunal Federal, com a intenção de assassinar o Ministro Gilmar Mendes. Contudo, não se sabe ao certo o que exatamente existe dentro desse inquérito.

Em 26 de maio de 2020 o relator do Inquérito 4781 determinou o afastamento do sigilo bancário e fiscal, busca e apreensão e bloqueio em redes sociais de diversas pessoas, entre eles deputados federais, influencia- dores digitais e empresários (estes últimos no pressuposto de que, possivel- mente, financiariam perfis que promoveriam fake news). A questão posta neste artigo não se relaciona aprofundar o acerto ou desacerto da decisão, não se discute sequer se há ofensa ou não aos direitos de expressão e livre manifestação do pensamento. O ponto é outro. Tal qual o que ocorreu no primeiro caso, onde um escrivão de polícia, fazendo as vezes de um delega- do de polícia, feriu prerrogativas do advogado, o mesmo ocorreu – e ainda continua – no caso em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal.

Com efeito, no mesmo dia da operação os advogados dos atingidos pela busca e apreensão imediatamente requereram formalmente no Supremo Tribunal Federal cópia do processo e, principalmente, da deci- são, posto que ela não instruiu os respectivos mandados. O decisum, e somente ele, foi disponibilizado no site daquela Corte no dia seguinte à operação. Não obstante os esforços de todos os advogados constituídos nos autos, o acesso ao processo demandou vários dias.

Nesse ínterim, foram impetrados vários habeas corpus visando combater a ilegalidade de não concessão de vista, valendo destacar os writs do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (HC 186492) e da Associação Nacional de Membros do Ministério Público – MP. Pró Sociedade (HC 185500). Posteriormente se constatou que de fato o Ministro relator havia, dois dias após a operação, decidido por dar aces- so parcial do inquérito; contudo, a burocracia, que tanto o judiciário pro- cura combater, imperou no caso, vez que por se tratar do inquérito físico, todas as intimações dos advogados estavam e continuam sendo feitas por correio. Se não bastasse, os defensores tiveram ainda que esperar que os autos voltassem da Procuradoria Geral da República, sendo, que de fato, o primeiro contato havido com algum elemento concreto do malsinado inquérito ocorreu somente 10 dias após. Isso sem contar que durante esse período ocorreram algumas audiências para inquirição dos investigados, sobre os fatos que permaneciam sigilosos. Na prática, ocorreu a mesma si- tuação do caso relatado na Delegacia da Mulher de Curitiba: interrogatório sem franqueamento prévio à defesa do dos elementos probatórios. Em face disso, alguns alvos do Inquérito 4.781 permaneceram em silêncio.

O problema não se findou por aí. Com surpresa, os vários defenso- res que atuam no caso verificaram que não foi disponibilizado o inquéri- to em si, mas, sim, uma parte pequena, constituída basicamente por do- cumentos selecionados, de pouca importância, que passaram a formar o denominado Apenso 70. Da análise do referido apenso, constatou-se a ausência de vários relatórios, que foram expressamente citados na deci- são do relator, que decidira então pela busca e apreensão, quebras de sigi- los bancário e fiscal e bloqueio (indevido) de perfis dos investigados nas redes sociais. De fato, por ocasião da imposição das cautelares, o relator fez expressa referência a esses documentos (relatórios), os quais não esta- vam no Apenso 70.

Assim, foram requeridos os documentos que foram a base funda- mental para a decretação das medidas em comento. Invocou-se no pleito, como é curial, não só o Estatuto da Advocacia e da OAB (Lei n. 8.906/94, art. 7°, incs. XIII, XV e XXI), como também a Súmula Vinculante n. 14 do STF, a qual estabelece que “É direito do defensor, no interesse do repre- sentado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”.

O pedido foi indeferido ao argumento de que haveria ainda dili- gências pendentes de realização ou ainda em curso.

De fato, a jurisprudência tem temperado e retirado o caráter abso- luto de um direito de acessar todo e qualquer procedimento investigató- rio. Nesse sentido, vale citar a Reclamação n. 29.958, de relatoria do Ministro Alexandre de Moraes, onde restou consignado que o direito do defensor de acesso aos autos esbarra em diligências ainda em andamento. Há nisso uma certa subjetividade e falta de precisão no que exatamente consistiria o conceito de diligências em andamento. Por diligências em andamento, por óbvio, não se pode confundir investigação em curso. O que se pode compreender como razoável, que necessariamente não deva ainda ser acessível ao investigado e seu advogado, é aquela diligência que, descoberta a sua existência, poderá vir a ser frustrada seu resultado, pos- to que ainda não finalizada. Exemplo disso é a interceptação telefônica, pois, sabendo o investigado que está sendo monitorado, lógico que irá cessar suas comunicações; outro exemplo é o agente infiltrado, com a fi- nalidade de descobrir crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes (art. 190-A, da Lei n. 8.96/90), bem como também a infiltra- ção de policial em crimes praticados por organização criminosa (art. 3°, VII, da Lei n. 12.850/13).

Deveras, tendo havido no bojo do referido inquérito – que tramita desde seu nascedouro em sigilo e onde inclusive foi determinada a censu- ra prévia da Revista Crusoé e do site O antagonista – a decretação das cau- telares de busca e apreensão de dispositivos eletrônicos, em especial tele- fones celulares, quebra de sigilos bancário e fiscal e, para o espanto da comunidade jurídica, de perfis nas mídias sociais, a conclusão lógica é de que os relatórios citados na decisão constituem prova já realizada. Prova já encartada aos autos, tanto que foram utilizadas para a promoção de medidas invasivas.

Portanto, a menos que num futuro incerto se demonstre o oposto, com a publicização da investigação, ou ao menos disponibilização às de- fesas, as provas que materializam ditos relatórios constituem-se atos de investigação finalizados e concluídos. Não é demais ressaltar que a fase ostensiva da operação (rectius: as buscas e apreensões) foram em maio de 2020, passados, portanto, meses sem que nenhum advogado tenha tido conhecimento das provas que alicerçaram o decisum do relator.

Amplamente noticiado que a decisão de bloquear os perfis dos inves- tigados, inclusive no exterior, sofreu relativa resistência das redes sociais, em especial do Facebook. No entanto, a ameaça de penas de multa altíssimas e até a prisão do seu presidente no Brasil, fizeram com que a ordem fosse cumprida. E os processos, ou parte significativa deles, de interesse direto da defesa, continuam inacessíveis. Na prática, as defesas continuam às es- curas, sem poder ter a real dimensão das provas (no pressuposto de que de fato há algo de concreto). Não há, nesse panorama, como exercer de fato uma defesa eficaz. Como bem apontam Alberto Zacharias Toron e Alexandra Lebelson Zafir, “Advogados cegos, ‘blind lawyers’, poderão, quem sabe, confortar afetivamente seus assistidos, mas, juridicamente, prestar-se-ão, unicamente, a legitimar tudo o que no inquérito se fizer con- tra o indiciado.”2

O ponto nevrálgico é que a decisão da busca e apreensão, bloqueio e quebra de sigilos, baseia-se em provas (relatórios) já encartadas ao pro- cesso, que não poderia por essa razão serem sonegadas ao conhecimento dos atingidos pelas medidas impostas. Tomando por base o magistério de

Paulo Rangel, “Por conclusão, os princípios da verdade real e da igualda- de das partes na relação jurídico-processual fazem com que as provas car- readas para os autos pertençam a todos os sujeitos processuais, ou seja, dão origem ao princípio da comunhão das provas.”3

O postulado da comunhão das provas é bem explorado em diver- sas decisões do Supremo Tribunal Federal, tendo no decano da Corte, Ministro Celso de Mello, a melhor expressão de sua importância. Sua excelência, na Reclamação n. 18399, com maestria peculiar ensina que “a prova penal, uma vez regularmente introduzida no procedimento persecu- tório, não pertence a ninguém, mas integra os autos do respectivo inqué- rito ou processo, constituindo, desse modo, acervo plenamente acessível a todos quantos sofram, em referido procedimento sigiloso, atos de perse- cução penal por parte do Estado”.4

Os tais relatórios apenas deixaram de constar do Apenso 70, que constitui de peças as mais esparsas possíveis, sem uma ordem clara, sele- cionadas sem um critério claro. Mas é fato que tais relatórios, omitidos nas peças entregues aos inúmeros advogados do feito (visto que também são inúmeros os investigados), certamente integram o Inquérito das Fake News, que se diz possuir mais de 10.000 páginas. O fato de estarmos em fase de investigações, e não de ações penais propriamente ditas, não des- legitima a necessidade da atuação da defesa por advogado. Como bem lembrado por Carlos Hélder Carvalho Furtado Mendes, Marcos Eugênio Vieira Melo e Tiago Bunning Mendes, “a efetivação do direito de defesa na fase de investigação é um dos passos necessários para uma investiga- ção mais democrática”.5

O conhecimento sobre dois casos, um da Delegacia da Mulher de Curitiba e outro do Supremo Tribunal Federal, ocorridos ainda nesse fatídi- co ano de 2020, servem para bem ilustrar que ilegalidades jurídicas são co- metidas em qualquer lugar, independentemente da posição de seus autores. Cotidianamente, por esse país de proporções continentais, infelizmente, não é surpresa para a maioria dos advogados e serve bem para ilustrar que estamos retrocedendo no campo da violação aos direitos da defesa. O exem- plo que vem de cima, pode ser para o bem ou para o mal. Se a mais alta Corte de Justiça do Brasil demora semanas para dar acesso aos autos, e quan- do o faz, seleciona as peças, não ofertando exatamente aquilo que seria o essencial e que foi a base para decisão de busca e apreensão e outras medidas, o que se esperar de outras autoridades, espalhadas pelos rincões do Brasil?

Os exemplos mostram as batalhas diárias que são colocadas a nós, advogados, em situações que a princípio deveriam ser simples e não neces- sitariam energia alguma: ter ciência da acusação e das provas coligidas.

Chegamos a um ponto que, como disse Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay:

“Para nós, advogados, exercer a advocacia passou a ser também fazer o enfrentamento político. Não a política partidária, mas a defesa da Constituição. A advocacia vive e sobrevive dentro do Estado democrático de Direito e dele depende, pois há de exercer seu papel indispensável à administração da Justiça sempre com fiel observância à lei e à Constituição. E não se trata de mera op- ção profissional! É um dever, que impõe ao advogado grande comprometimento com toda e qualquer luta contra arbitrarieda- des e violências às liberdades, aos Poderes da República, ao devi- do processo legal, ao direito de defesa.”6

A advocacia, notadamente a advocacia criminal, é uma atividade de resistência, contra os abusos dos Estado e seus agentes, em quaisquer ní- veis. Aquele que se presta ingressar nas trincheiras da defesa da liberdade, do respeito ao devido processo legal, contra a tirania e o autoritarismo, jamais pode se esquecer de Sobral Pinto, o advogado dos advogados, que imortalizou a frase de que “A advocacia não é profissão de covardes”.

De nada adianta termos leis e mais leis assegurando direitos à defe- sa, como a recente Lei n. 13.869, de 5 de setembro de 2019. Magistrados e membros do Ministério Público devem compreender que a advocacia, notadamente a defensiva, necessita ser respeitada, não podendo, ainda que em um pensamento inconfesso, ser entendida como um estorvo ao processo ou à investigação. Marta Saad, com muito discernimento e olhar

crítico, já anotou e notou que “a Constituição vem sendo reiteradamente interpretada de forma a restringir as garantias constitucionais lá escancara- das, reduzindo-se a nada o direito de defesa (art. 5º, LV) e o direito à assis- tência de advogado (art. 5º, LXXIV, arts. 133 e 134), já na persecução prepa- ratória ou prévia”7. Convém lembrar que a atual Constituição, nas palavras do Ministro Luís Roberto Barroso, “é o símbolo maior de uma história de sucesso: a transição de um Estado autoritário, intolerante e muitas vezes violento para um Estado democrático de direito”8.

Bem observou o advogado Leônidas Ribeiro Scholz, em artigo que merece atenta leitura, que “O grande desafio da advocacia criminal no Brasil reside em lutar incansavelmente pela observância do devido pro- cesso legal, que não é favor, não é indulgência do Estado; é o estrito cum- primento da legislação, que ele próprio, Estado, editou.”9

Parafraseando o Ministro Marco Aurélio, que asseverou que “são tempos estranhos, muito estranhos”, ao se referir à conclamação da socie- dade para os protestos do ano passado, realmente estamos passando por tempos estranhos. O Brasil, que avançou nas décadas passadas, no rumo da democracia plena, vê, vez ou outra, pinceladas de autoritarismo, e de onde jamais poderia se esperar. Interpreta-se a Constituição Federal de forma a renegar o óbvio; tudo é relativizado e entendimentos são modificados da noite para o dia, desnudando um país sem segurança jurídica.

Mais do que nunca a advocacia se faz necessária. Advocacia respei- tosa, mas não subserviente; ética, mas não acovardada. Jamais esqueça- mos de Ruy Barbosa: “O advogado pouco vale nos tempos calmos; o seu grande papel é quando precisa arrostar o poder dos déspotas, apresenta- do perante os tribunais o caráter supremo dos povos livres.”

 

Referências

1           SCHREIBER, Simone. Notas sobre o princípio da publicidade processual no pro- cesso penal. Revista SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 36, 2013, p. 137.

2           TORON, Alberto Zacharias. SZAFIR, Alexandra Lebelson. Prerrogativas profissio- nais do advogado, p. 86, item n. 1, 2006, OAB Editora.

3            RANGEL,  Paulo.  Direito processual penal,  p.  411/412,  item  n.  7.5.1,  8.  ed.,  2004, Lumen Juris.

4           Fonte cit. Os destaques são do original.

5           MENDES, Carlos Hélder Carvalho Furtado. MELO, Marcos Eugênio Vieira. MENDES, Tiago Bunning. A Lei 13.245/2016 e a efetivação das prerrogativas do advo- gado na investigação criminal: garantia constitucional ao direito de defesa na fase preliminar. Artigo publicado na RBCCrim n. 159 (setembro 2019), p. 286.

6           CASTRO. Carlos de Almeida Castro. É a Constituição, estúpido! diz Kakay. Sítio “Poder 360”, publicado em 7/8/20. https://www.poder360.com.br/opiniao/justica/ e-a-constituicao-estupido-esbraveja-kakay/

7           SAAD, Marta. O direito de defesa no inquérito policial. São Paulo: Revista dos Tribunais (Coleção Estudos de Processo Penal Prof. Joaquim Canuto Mendes de Almeida, v. 9), p. 200.

8           BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção de um novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 492.

9           SCHOLZ, Leônidas Ribeiro. “Desafio da advocacia criminal no Brasil” artigo publi- cado no Boletim IBCCRIM n. 207, fevereiro de 2010, p. 13.

BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção de um novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

CASTRO. Carlos de Almeida Castro. É a Constituição, estúpido! diz Kakay. Sí- tio “Poder 360”, publicado em 7/8/20. https://www.poder360.com.br/opi- niao/justica/e-a-constituicao-estupido-esbraveja-kakay/

MENDES, Carlos Hélder Carvalho Furtado. MELO, Marcos Eugênio Vieira. MENDES, Tiago Bunning. A Lei 13.245/2016 e a efetivação das prerrogativas do advogado na investigação criminal: garantia constitucional ao direito de defesa na fase preliminar. Artigo publicado na RBCCrim n. 159 (setembro 2019).

RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal, p. 411/412, item n. 7.5.1, 8. ed., 2004, Lumen Juris.

SAAD, Marta. O direito de defesa no inquérito policial. São Paulo: Revista dos Tribunais (Coleção Estudos de Processo Penal Prof. Joaquim Canuto Men- des de Almeida, v. 9).

SCHOLZ, Leônidas Ribeiro. “Desafio da advocacia criminal no Brasil” artigo publicado no Boletim IBCCRIM n. 207, fevereiro de 2010, p. 13. TORON, Al- berto Zacharias.

SZAFIR, Alexandra Lebelson. Prerrogativas profissionais do advogado, p. 86, item n. 1, 2006, OAB Editora.

SCHREIBER, Simone. Notas sobre o princípio da publicidade processual no processo penal. Revista SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 36, 2013.


DEVEMOS LUTAR PELA SOLIDEZ EPISTEMOLÓGICA NO PROCESSO PENAL

Por: Douglas Rodrigues da Silva

A faculdade de direito, de uma forma geral, não costuma preparar os estudantes e futuros profissionais para lidarem com fatos do processo ou com problemas estruturais na comprovação da verdade. Na realidade, uma análise geral dos currículos de cursos de graduação e especialização demonstra que a preocupação da academia jurídica, em grande medida, reside na busca de critérios interpretativos na aplicação de uma norma jurídica em detrimento de um estudo mais aprofundado ou sistêmico dos instrumentos de construção da verdade jurídica.

Falta-nos uma solidez epistemológica em relação ao fato jurídico.

Como se sabe, o ponto principal do processo – por mais estranho que possa parecer – não está necessariamente em se saber qual a melhor interpretação que se deva dar à norma jurídica. É óbvio, claro, que o direito consiste na aplicação de normas e, por isso mesmo, não se pode olvidar da extrema importância do estudo de seus critérios de interpretação, da sua dogmática e de outras vertentes teóricas. Entretanto, como é sabido, o direito apenas tem espaço quando há, no contexto tratado, um fato comprovado que detenha relevância jurídica, pois sem isso, o direito não tem o seu objeto de atuação.

Não há direito sem fatos. E por isso mesmo o fato, antes mesmo da norma jurídica, deveria merecer maior atenção de todos aqueles personagens do cotidiano forense. Com mais razão aqueles que atuam na seara penal e processual penal.

E aqui, especificamente, adquire crucial importância a solidez da epistemologia judiciária.

Só cabe falar em aplicação adequada da norma ao fato se, diante dos parâmetros aceitáveis de construção do conhecimento, puder se confirmar que o fato realmente existiu. É preciso, pois, que antes de se entender por tal ou qual solução jurídica, entenda-se se tal ou qual fato pode ser visto como algo concretizado, como algo demonstrado, e, por conseguinte, digno de apreciação jurídica. Sem isso, por evidente, de nada adianta esvaziar toneis de tinta para escrever linhas sobre a hermenêutica ou a dogmática sem ter como se apontar um fato como demonstrado.

Segundo Taruffo (2014, p. 17), “o direito define e seleciona os fatos”, portanto, o fato que interessa ao direito deve ter, antes de tudo, uma dimensão jurídica, capaz de torná-lo relevante. Mas, apesar disso, o fato também demanda uma dimensão empírica, já que adquire relevância como “[...] base de um caso jurídico somente quando pode ser dito que existem no mundo empírico”. Um homicídio, por exemplo, é um fato com dimensão jurídica, posto que criminalizado, mas, concretamente, só adquire espaço no âmbito processual quando realmente se está diante da comprovação de que um ser humano ceifou a vida de outro. Sem isso, tudo não passa de mera especulação teórica, e por esse motivo se clama tanto pela compreensão mais pungente do que seja a epistemologia judiciária.

O objetivo do processo penal, se pudéssemos resumi-lo, é a legitimação do poder punitivo do Estado, o qual somente se dá quando, diante do julgamento concreto, se consegue verificar que o exercício do poder se deu amparado em critérios racionais capazes de dar um grau mínimo de confiabilidade às conclusões exaradas na decisão (BADARÓ, 2019, p. 18). O papel do processo penal, pois, está na reconstrução histórica de um fato juridicamente relevante, a partir de critérios racionais e confiáveis, que permitam ao julgador, em primeiro plano, concluir pela ocorrência desse fato para, na sequência, poder optar pela melhor norma ou interpretação jurídica cabível. A intenção do julgador, ao fim e ao cabo, deve residir na busca da verdade.

Sem adentrar no mérito do que se possa compreender pela verdade – e muito menos dividi-la em graus, como parte da doutrina costuma fazer –, partimos desde logo da ideia de que a verdade é uma só, assim como descreve Schünemann (2013, p. 245). Porém, e aqui é um ponto importante, sabe-se que a verdade (no caso, conhecimento sobre ela), ao menos no que atine à reconstrução histórica de fatos, é aproximativa. Ou seja, a partir de métodos racionais de busca dessa verdade, pautados em critérios epistemológicos, é que poderemos apontar com o mínimo de segurança e probabilidade que determinada situação ocorreu no mundo dos fatos e, só a partir daí, conseguiremos buscar a melhor solução.

E o papel da epistemologia judiciária merece proeminência justamente nesse estado de coisas. Se consideramos que o processo só tem razão de ser se pautado na verdade dos fatos ali apreciados, é certo que apenas caberá confirmar a legitimidade da decisão adotada se, antes de tudo, se puder falar que o fato é verdadeiro, seguiu parâmetros racionais de confirmação e refutação e, ao final de tudo, superou todos os “testes”.

No processo penal, em específico, a hipótese a ser provada é uma só: aquela que consta do enunciado fático da denúncia. Toda a atividade probatória se fixará no intento de confirmar a hipótese (acusação) ou de refutá-la ou apresentar uma hipótese alternativa mais favorável (defesa). Mas essa atividade, quando necessita ser valorada pelo julgador, não pode ficar à mercê de uma leitura subjetiva ou por mera coerência (por ser mais “crível”). O juiz precisa indicar, racionalmente, de que maneira entendeu ocorrido o fato do processo ou, se muito, porque acredita que ele não ocorreu. E isso somente se faz possível pela epistemologia. Não há outro caminho.

É pelo estudo da epistemologia, por exemplo, que se pode definir quais são os melhores parâmetros que possibilitam crer que um fato está comprovado ou não. É pela epistemologia também que se podem fixar, de forma racional, o standard de prova mais adequado e, principalmente, verificar se ele foi ou não alcançado no caso concreto, ainda mais no processo penal, em que se fala tanto em “provas acima da dúvida razoável” (ou seja, não é qualquer comprovação da verdade que serve).

No ponto, alerta Badaró (2019, p. 84):

 

 

Por ser algo frequente ao longo de toda a vida e realizado de modo natural, quase automático, há uma crença comum de que valorar provas no processo é algo que se aprende quase que intuitivamente, não sendo necessário para tanto que adquirir conhecimentos específicos ou dominar técnicas epistemológicas mais sofisticadas. Essa equivocada concepção de que “os julgamentos sobre fatos constituem simples constatações da realidade”, muitas vezes, leva a uma acrítica recepção e aceitação dos juízos de fatos realizados pelos magistrados no processo. Se os juízes têm feito um mal uso do seu ‘livre convencimento’, o remédio não será eliminar esse princípio de valoração livre, mas estabelecer e aplicar mecanismos racionais e procedimentais que possam assegurar o bom uso da discricionariedade nas escolhas feitas na valoração da prova.

 

 

A epistemologia judiciária, portanto, não merecia ser tão menosprezada como se costuma fazer entre nós. É somente por meio dela que se podem retirar critérios seguros de construção do conhecimento juridicamente relevante a fim de apontar a veracidade ou não de um fato. Mas não só. É dela que surgem mecanismos de controle decisórios tão importantes quanto os critérios hermenêuticos tão debatidos atualmente. Sem antes definir quando o juiz pode dizer que algo realmente ocorreu num passado não tão distante, não adianta se debruçar em tantas regras e princípios de como interpretar a lei.

Por isso, como dito no título deste texto, devemos lutar por uma solidez epistemológica no processo penal.

 

REFERÊNCIAS

 

BADARÓ, Gustavo Henrique. Epistemologia judiciária e prova penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.

 

SCHÜNEMANN, Bernd. Um olhar crítico ao modelo processual penal norte-americano. In. Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 240-261.

 

TARUFFO, Michele. A prova. São Paulo: Marcial Pons, 2014.

 

Douglas Rodrigues da Silva

Mestre em Direito (UNICURITIBA)

Especialista em Direito Penal e Processo Penal (UNICURITIBA)

Bacharel em Direito (UNICURITIBA)

Professor de Direito Penal Econômico e Legislação Penal Especial nas Faculdades da Indústria de São José dos Pinhais (FIEP-IEL)

Advogado Criminal em Curitiba, Paraná.


Autorregulação financeira e gerenciamento do risco: reflexos a partir da crise de 2008.

Rafael Guedes de Castro*

1.  Introdução 

No mês de agosto de 2007, eclodiu, a partir dos Estados Unidos da América, uma das maiores crises econômicas da história do capitalismo. A concessão de empréstimos hipotecários de alto risco no setor imobiliário, denominado de “sub-prime”, expôs, de forma jamais vista, a fragilidade e a insegurança do sistema financeiro global. Os riscos oriundos das operações realizadas no mercado financeiro foram amplamente questionados, visto que a crise norte-americana afetou a economia em escala mundial.

Certo é que razões políticas e ideológicas determinaram o estabelecimento da economia de mercado, suas diretrizes e formas operacionais que marcaram as relações do Estado e da economia no período. O capitalismo neoliberal, baseado nos pressupostos desregularizadores que viam o afastamento do Estado das relações econômicas como fator benéfico e incentivador de uma política de livre mercado, passa a ser questionado justamente pelo reconhecimento de sua insuficiência em identificar e prevenir os riscos oriundos da atividade financeira.

O presente artigo tem por objetivo analisar o paradigma da desregulamentação e o livre mercado em seu contexto histórico e a crise econômica acima referida como vetores determinantes para a introdução do papel da autorregulação empresarial como instrumento capaz de prevenir os riscos oriundos da atividade financeira. Importante demarcar que o conceito de autorregulação aqui abordado será o de uma combinação entre a presença de uma regulação pública, com seus mecanismos de supervisão igualmente públicos, integrada à necessidade de aproveitar as vantagens que os atores privados possuem no campo da informação, conhecimento e tecnologia para que a eles seja atribuída a responsabilidade de se autorregular e minimizar os riscos sistêmicos que são gerados com sua atividade. Por fim, analisar-se-á a coexistência e a complementaridade entre autorregulação e a adoção de mecanismos internos de políticas de prevenção e gerenciamento do risco na atividade empresarial.

 

2.  O paradigma da desregulamentação e o livre mercado

O período posterior à Segunda Guerra mundial impactou de maneira profunda as relações entre o Estado e Economia. Com as lições aprendidas na 1ª Guerra Mundial e na crise de 1929, os Estados Unidos da América sabiam que o financiamento e o incentivo à reestruturação européia eram fundamentais para evitar a crise de superprodução.

Foi assim que, em 1944, quarenta e quatro países se reuniram e aprovaram o acordo de Bretton Woods, que introduziu modificações no plano econômico mundial tais como (i) o dólar como moeda internacional e conversível em ouro, (ii) a livre conversibilidade das moedas nacionais entre si, a partir de uma paridade fixada em ouro ou em dólar, (iii) e estabeleceu a criação do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial. (PADRÓS, 2003, p. 236).

Foi John Maynard Keynes quem desenvolveu as bases teóricas do acordo, consolidando assim a proposta do Estado de Bem-Estar Social, caracterizado pela intervenção do Estado na economia. O Estado passou a assumir funções econômicas e sociais jamais vistas. No plano econômico visou regular o funcionamento global da economia impulsionando e sustentando a sua expansão; estabeleceu a criação de indústrias vinculadas ao desenvolvimento do Estado de Bem-Estar, de bens de consumos duráveis, bem como promoveu o desenvolvimento de novas regiões industriais tendo o Estado assumindo obras de infra-estrutura. No aspecto social a idéia era a de que o Estado assegurasse o bem-estar social com a adoção de medidas contra riscos de trabalhos, doenças, desemprego, aposentadoria e seguros sociais.  (PADRÓS, 2003, p. 255).

Este Estado intervencionista, em suma, atribuiu à ordem econômica uma finalidade de justiça social, visando assegurar a todos condições dignas de vida e de bem-estar, em oposição modelo de liberal que admitia os princípios da livre iniciativa, liberdade de concorrência e não intervenção estatal no âmbito econômico. Para Adam Smith, em a “Riqueza das Nações”, a regulação econômica dar-se-ia pela “mão invisível” e ao Estado seria reservada apenas a função de manutenção da ordem e da segurança pública

No início dos 70, o sistema de acumulação que marcou as décadas precedentes começa a demonstrar a sua insuficiência e anuncia os questionamentos ao Estado de Bem- Estar Social, eis que este já não suportava os altos encargos oriundos do providencialismo que marcou o período, seja no aspecto social ou no econômico com o alto custo do setor público da economia.

Segundo Peltzman (2004, p. 85) o movimento de desregulação foi uma reação às condições políticas e econômicas do final da década de 70, período caracterizado pelo incremento da inflação e pela já reconhecida ineficácia da intervenção estatal.

Neste sentido, no final da década de 80 se estabeleceu a consolidação de tendências econômicas marcadamente liberais que levaram à conclusão de que o Estado de Bem-Estar Social havia se esgotado.

O insucesso dos modelos intervencionistas mostrou a necessidade de o Estado pensar em novas formas de geração de riquezas. Abandonou o encargo de promoção do bem-estar atrelado à função de distribuição de justiça social com o retorno às idéias liberais e a concepção da presença do Estado na economia como um ente garantidor e regulador da atividade econômica baseado na livre iniciativa, na liberdade de mercado, na desestatização econômica e redução sistemática dos encargos sociais para garantir equilíbrio nas contas públicas. (FIGUEIREDO, 2012, p. 44)

Assim, foi editado um conjunto de medidas a partir de um encontro entre economistas, instituições financeiras e administradores latino-americanos, ocorrido no ano de 1989, na cidade de Washington, denominado Consenso de Washington, no qual originou quatro grandes diretrizes para o desenvolvimento econômico, quais sejam (i) liberalizar, (ii) desregular, (iii) privatizar, (iv) globalizar. (NUSDEO, 2013, p. 226)

Referido consenso demarcou a implantação do chamado neoliberalismo, que avançou e perdurou até a crise do sistema financeiro americano que se espalhou pelo mundo no ano de 2008. (NUSDEO, 2013, p.227)

3.  A crise econômica de 2008

De fato, a crise financeira de 2008 inaugurou uma nova era. Os mercados financeiros apresentaram riscos potenciais muito graves para todas as economias nacionais, assim como para o sistema econômico mundial, como visto nos EUA, bem como colocou em dúvida os pressupostos desregulamentadores da economia de livre mercado.

Apesar de não existir uma explicação exata para a crise econômica, ela estaria nos objetivos do neoliberalismo, nos seus instrumentos utilizados para buscá-lo e nas suas próprias contradições. A hegemonia dos Estados Unidos, a busca por altas rendas, combinada com as realizações associadas à financeirização e à globalização são fatores identificáveis do fenômeno. (DUMENIL; LÉVY, 2014, p. 42).

Como dito, o referido autor destaca que um aspecto crucial que marca as décadas neoliberais após os anos 70 é a financeirização, que significa o incremento de mecanismos financeiros que alcançaram níveis sem precedentes de sofisticação e expansão das instituições financeiras. Após o ano 2000, esses mecanismos de expansão tiveram crescimento ainda maior com a introdução de procedimentos inovadores que afetaram sobremaneira o livre comércio de capitais no mundo todo, a globalização dos procedimentos monetários e financeiros, significando a construção de uma estrutura financeira frágil ante a dificuldade de controlar taxas de juros, de câmbio e empréstimos em um mundo de livre circulação de capital. (DUMENIL; LÉVY, 2014, p. 42).

O que a princípio seria uma crise de liquidez com o declínio do mercado imobiliário, era apenas um dos problemas dentro de um conjunto muito mais amplo dos fatores determinantes que deflagaram a crise.

Segundo Dumenil e Levy (2014, p. 48):

O colapso de muitos instrumentos financeiros desestabilizou a estrutura

financeira geral. No início de 2008, evidenciou-se o aumento de prejuízos das instituições financeiras, com o início de uma epidemia de falência de bancos. Em março, o Bear Stearns faliu e se revelaram as primeiras manifestações de fraqueza dos gigantes Fannie Mae e Freddie Mac. A partir de então, a situação de deteriorização do setor financeiro se degenerou numa crise de oferta de crédito para famílias e corporações não financeiras, conhecidas como o “arrocho de crédito” (...) Faliram o Lehman Borthers, o Washington Mutual Bank e outros gigantes financeiros.

A identificação do estabelecimento de uma estrutura financeira frágil, a partir de pressupostos desregularizadores que marcaram as décadas precedentes associada à crise que desestruturou o sistema financeiro em geral, gerou, no campo que interessa à presente pesquisa, a necessidade de debate público acerca da necessidade de reforma dos sistemas de regulação e fiscalização dos mecanismos financeiros como forma de proteção e prevenção do sistema financeiro global, surgindo assim, a questão da autorregulação. (SANCHEZ; FERNANDES, 2013, p.78)

Da mesma forma, Calado (2009, p. 22) observa que nessa nova perspectiva e dinâmica “constitui-se de fundamental importância a presença do (auto) regulador atuante para garantir um ambiente institucional mais seguro”, garantindo assim estabilidade econômica em um momento marcado por significativas alterações no contexto global.

4.  Autorregulação e recuperação do sistema financeiro internacional

A redução da atuação do Estado na ordem econômica implicou em um novo modelo de intervenção, chamada de indireta, por via da regulação. Como observado no primeiro ponto do presente trabalho, o reconhecimento da insuficiência do modelo interventivo direto na economia fez com que o Estado assumisse a função interventiva indireta ao monitorar e normatizar a exploração da atividade econômica. Neste prisma, Leonardo Figueiredo (2012,

  1. 109) afirma que:

A intervenção indireta, por via da regulação da atividade econômica surgiu como pressão do Estado sobre a economia para devolvê-la à normalidade, isto é, para garantir um regime de livre-concorrência, evitando-se práticas abusivas pelos agentes mais fortes em face dos mais fracos, bem como em detrimento do mercado e, por conseqüência, de toda sociedade.

Ainda que tal fenômeno possa ser identificado em momentos distintos nos Estados Unidos da América e na Europa, é certo que no Brasil esse processo é oriundo do início da década de 90, com a legitimação das premissas neoliberais atinentes à desestatização de diversas atividades antes exploradas pelo Estado, devolvendo-as à iniciativa privada.

Ao abordar a perspectiva européia sobre o assunto, Moncada (2004, p. 367) observa que o processo de privatização se constituiu em uma realidade em alguns setores da economia com um claro propósito de liberalização. Contudo, não significou o desaparecimento do Estado, mas a substituição de um modelo direto de intervenção, alicerçada no tradicional serviço público de propriedade e gestão estatal, por novas formas de regulação, ou seja, pela intervenção indireta.

Com a crise financeira ocorrida no ano de 2008, que mostrou ao mundo a vulnerabilidade de uma economia baseada no livre mercado, de característica marcadamente neoliberal, colocou em pauta novamente o tema sobre a regulação e a posição do modelo de intervenção do Estado. O paradigma ideológico que via como benéfica a desregulamentação para o exercício do livre mercado passa a ser desacreditado e questionado, tendo em vista a complexidade das relações econômicas no mercado financeiro e a dificuldade de fiscalização das instituições financeiras nas relações globais.

É este o enfoque que se deu na discussão sobre a regulação após a crise econômica. Abordou-se, com ênfase, a função e o alcance dos organismos reguladores de supervisão normativa que deveriam caracterizar o mercado financeiro, o fortalecimento de certas normas e regulamentos existentes, a melhora da qualidade de aplicação, cumprimento, a necessidade de fortalecer a cooperação global no âmbito da regulação e supervisão, imprescindível para supervisionar o mercado transnacional, e a definição das atividades que podem conduzir potencialmente a uma situação de risco sistêmico.

A par das importantes discussões travadas, parece elementar ter como premissa a conclusão de Oksandro Gonçalvez e Antônio Porto (2014, p. 18), no artigo intitulado “O vetor axiológico do movimento de saneamento do Sistema Financeiro Nacional”, que chama a atenção para o fato de que não se pode resolver problemas atuais atrelados a conceitos passados sob o enfoque de uma visão maniqueísta de luta entre o bem o mal (intervenção versus liberalismo).

Pelo contrário, uma dinâmica que perpetue a situação em que os reguladores e atores privados se coloquem em lados opostos, sempre em um clima de constante tensão e enfrentamento, não se faz nada mais do que elevar o nível de complexidade dos mercados financeiros globais e agravar o risco potencial sistêmico.

É neste sentido que Gonzales e Berini (2013, p. 75) sustentam que o debate público sobre o tema regulação é contraditória e descontextualizada visto que, em geral, trazem a idéia de que a solução para prevenir riscos futuros de uma crise financeira passa pela necessidade de incremento de maior regulação do Estado. Entretanto, nenhuma das propostas aborda explicitamente o papel da autorregulação da indústria como parte da transformação da regulamentação a longo prazo bem como a sua importância.

Neste aspecto, qualquer reforma significativa de regulamentação a longo prazo no setor financeiro, deve considerar seriamente o papel potencial que a autorregulação tem como mecanismo fundamental para controlar e minimizar o risco. Os tópicos subseqüentes analisarão de que forma se dá a proposta da autorregulação, sua ligação com o tema regulação e suas vantagens.

  • Conceito

A visão convencional da atividade reguladora do Estado enfatiza dois pontos de vista, quais sejam: liberdade e controle ou, em uma abordagem de sistemas políticos contrapostos, liberalismo e estatismo. Ocorre que entre eles existe uma pluralidade de sistemas intermediários que podem se revelar melhores para conjugar os interesses privados e coletivos (VILA, 2013, p. 44)

Segundo Calabro (2010, p. 53), o conceito de autorregulação, apesar de equívoco, seu significado em todas as áreas do direito parece convergir para a capacidade de um organismo de entrar em equilíbrio interno e em equilíbrio com o ambiente externo, sendo conceituada como a capacidade de um organismo de perceber estímulos internos e externos e de estabelecer suas próprias regras de estruturação e funcionamento para responder a esses estímulos de forma que melhor garanta seu equilíbrio.

Moreira (1997, p. 60) identifica que o próprio conceito de autorregulação traz duas origens distintas, eis que pode surgir de uma iniciativa das organizações profissionais, bem como resultar de uma iniciativa e criação estadual.

Na primeira hipótese, a autorregulação pode ser, consoante os casos, ignorada, consentida, reconhecida, incentivada ou mesmo oficializada e cooptada pelo Estado. Na segunda hipótese a autorregulação é promovida pelo Estado como forma de desregulação estadual ou de prevenção de regulação estadual. Na primeira hipótese, a autorregulação espontânea traduz-se em geral no fenômeno de ampliação da regulação, criando-a onde ela não existia; na segunda modalidade, a autorregulação traduz em geral um processo de desregulação estadual ou uma alternativa a uma regulação pública que sem autorregulação se tornaria necessária. (MOREIRA, 1997, p.60)

Hodiernamente, o crescente influxo de informações que envolve os mais diversos ramos das atividades econômicas geradoras de riqueza não acompanham o processo legislativo regulador que, muitas vezes moroso e carente de tecnicidade, cria regras obsoletas que não acompanham a evolução do mercado.

Assim, a autorregulação é uma forma de regulação que não pressupõe a ausência desta, se constituindo, na essência, em uma espécie do gênero regulação, deve ser coletiva e não estatal, mas pode ter a origem de ser promovida pelo Estado como forma de prevenção da regulação. (MOREIRA, 1997, p. 53)

O conceito de autorregulação aqui esposado não é o de um sistema unicamente privado de regulação da atividade econômica e, como conseqüência a completa ausência de qualquer intervenção reguladora do governo, mas sim de buscar uma articulação que propõe uma nova forma de regular, que combine a presença normativa oriunda do próprio setor financeiro com um sistema de controle adequado na mão do Estado.

Ainda que a autorregulação se mostre tendência, esta não substitui a tarefa normativa institucional, nem a supervisão, mediante entidades públicas de controle, da imposição direta da responsabilidade de regular e minimizar o risco sistêmico que elas mesmas geram com sua atividade. O novo modelo de regulação, segundo Omarova (2013, p. 690), é, portanto, aumentar a capacidade dos participantes no mercado privado em adotar e fazer cumprir as regras que regem suas atividades e negócios e, ao mesmo tempo, combinar essa tendência com uma responsabilidade maior e cada vez mais explícita das empresas pelos efeitos econômicos e sociais de suas atividades de risco.

Calado (2009, p.59) observa que uma abordagem sobre o tema dispõe que a regulação deve oferecer aos participantes do mercado o arcabouço básico para o relacionamento entre os participantes, regulando o que pode ser chamado de macroambiente. Ocorre que é importante a concorrência entre reguladores e autorreguladores para normatizar pormenores, no que o autor denomina de microambiente, tendo em vista a capacidade de interação dos próprios participantes do mercado.

Uma abordagem bastante defendida rege que a regulação do mercado deve fornecer o arcabouço básico dentro qual se dá o relacionamento entre os diversos participantes, regulando o que pode ser denominado macroambiente. Igualmente importante é a concorrência entre reguladores e autorreguladores. Nessa perspectiva, à autorregulação cabe normatizar pormenores do processo ou microambiente, visto que, nesse palco, os próprios participantes do mercado são os mais capacitados a interagir, discutir e propor as melhores práticas.

É conjugando essa espécie mista de regulação pública e privada como forma de superar e introduzir um novo marco na discussão da regulação estatal e sua efetividade, que estamos diante do que pode ser chamado de Autorregulação regulada.

Assim destaca Sanchez e Fernandes, (2013, p.96)

Se trata da necessidade de reformar o sistema regulatório do setor financeiro e econômico, mediante o estabelecimento de um regime misto que inclua a participação ativa e equilibrada dos atores públicos e privados, com o fim de garantir o cumprimento real e efetivo do marco normativo que vigora a atividade. A investigação empírica mostra que as organizações são mais propensas a cumprir com seus compromissos de autorregulação quando elas mesmas estão sujeitas à estrita vigilância de um ente institucional estabelecido.

Essa nova visão refere-se à forma de regulação estatal do mundo empresarial caracterizada pela incorporação do ente privado no processo de regulação, mas de forma subordinada aos concretos fins e interesse público predeterminados pelo Estado. Neste sentido, existem três possíveis modelos de cumprimento desta regulação regulada, quais sejam (i) o estado delega pontualmente a faculdade de regulação mas, mantém a faculdade de supervisão e sanção (ii) o estado pode transferir o poder de regulação, supervisão e sanção, mas manter o poder revisão (iii) co-regulação – o estado trabalha junto com a empresa na elaboração de sistemas específicos de regulação. Esses três modelos seriam os que melhor corresponderiam ao interesse do estado de reorientar a atuação regulatória. (VILA, 2013, p. 54)

Com o escopo de garantir efetividade, a regulação do sistema financeiro não deve substituir a tarefa normativa estatal, nem mesmo a supervisão. Assim, a vigilância e o controle do governo, são fundamentais para assegurar que a atividade privada promova o interesse público geral.

A proposta da autorregulação é prevenir o risco de quebra e que esteja firmemente arraigada ao interesse público geral e aos objetivos políticos, pretendendo entender o mundo como um sistema complexo, dinâmico, intrincado em que as múltiplas forças governamentais e não governamentais em uma constante interconexão pactuam e renegociam os limites entre as esferas públicas e privadas da vida econômica e social. (GONZALES; BERRINI, 2013, p. 79)

Assim, quando se fala em autorregulação, não se está dizendo que esta decorre de normas oriundas do próprio mercado sem a necessidade de interferência do Estado, isto porque, o objeto do presente estudo cinge-se à análise da autorregulação como atribuição a partir de um processo de regulação pelo Estado. Ou seja, uma espécie de atribuição de deveres de auto-disciplina aos agentes econômicos na condução de sua atividade adaptada à realidade que norteia o mercado e as relações econômicas.

 

  • Vantangens

Após discorrer sobre o contexto histórico que permeia a presente discussão e o viés que a perspectiva de um processo de autorregulação pode trazer à economia de mercado, cabe destacar algumas vantagens que esta teria em face da regulação direta

Leonardo Figueiredo (2012, p. 111) ao citar José Joaquim Gomes Canotilho, afirma que na moderna concepção do Estado frente à economia, este assume postura de regulador das atividades econômicas, podendo, inclusive, delegá-la a entidades administrativas independentes, não diretamente subordinadas ao poder político governamental, fundamentando-se na verificação de que muitas competências e atribuições estatais necessitam de conhecimentos específicos, técnicas e profissionais que se encontram fora do aparelho estatal.

Esta parece ser a constatação primordial para determinar as vantagens que um sistema de autorregulação possui, qual seja, o de que o agente econômico, em seu ramo específico, está muito mais habilitado a conhecer, solucionar e prevenir riscos oriundos de sua atividade.

Isto porque, após a crise, ficou demonstrado, ante a crescente complexidade do mercado financeiro, de suas atividades bem como de seu alcance global, a incapacidade das autoridades reguladoras para detectar, prevenir ou ao menos minimizar o risco sistêmico.

Calado (2009, p. 58) observa que “uma entidade autorreguladora, ao obter adesão dos participantes do mercado, está mais próxima das atividades que propõe regular, dispondo, portanto de maior sensibilidade e destreza para avaliar as condições e normatizá-las”. Isso facilita a compreensão da regulação, aumenta a capacidade de prevenção de riscos oriundos da atividade e também diminui a possibilidade de intervenção estatal.

Logo, a autorregulação possui vantagens sobre a regulação direta do governo, como, por exemplo, a (i) capacidade superior de acesso e avaliação econômica e a (ii) capacidade para vigiar e regular suas próprias operações. (OMOROVA 2010, p. 668)

Vital Moreira (2001, p. 92) descreve que a autorregulação possui as seguintes vantagens para o estado (i) desoneração da carga excessiva, tanto de política como administrativa e financeira, (ii) maior eficácia da regulação, derivada da aceitabilidade e observância menos litigiosa por parte dos regulados, (iii) maior flexibilidade e mais fácil adequação às mudanças de circunstâncias, (iv) distanciamento e preservação da legitimidade estatal, (v) substituição do instrumentário penal, por via de regra moroso e oneroso, pela autodisciplina profissional, (vi) melhor adequação da regulação à crescente diferenciação e complexidade das esferas reguladoras, (vii) única via disponível para a regulação de certas áreas onde a cooperação dos regulados é condição indispensável.

De outro lado, a articulação de um sistema misto de implantação de regime de autorregulação se mostra eficaz na medida em que evidências empíricas mostram que, geralmente, as organizações que desenvolvem suas atividades em um marco jurídico estritamente dissuasório demonstram cometer maior quantidade de infrações legais. Ao contrário, aquelas que se comprometem voluntariamente a autorregular-se alcançam melhores resultados observando o regramento normativo. (GOZALES; BERRINI, 2013, p. 101)

Acrescente-se a tudo isso o fato de que a autorregulação atua como forma de recuperar a confiança dos investidores, baseado na reiterada demonstração de cumprimento dos requisitos regulatórios. Calado (2009, p. 40) observa que o termo confiança define de forma muito precisa em que consiste o mercado financeiro. Como os contratos são realizados envolvendo direitos e obrigações a serem exercidos em data posterior, a confiança de que serão honrados no futuro é fator primordial para os consumidores e pequenos investidores.

Também, importante destacar que autorregulação não está adstrita a foros, podendo conferir eficácia internacionalmente, sendo assim o resultado indeclinável da necessária evolução do modo como os Estado regula o mundo empresarial

 

5.    Políticas de Prevenção e gerenciamento do risco: Os programas de compliance e o reforço da autorregulação

Conforme observado ao longo do presente trabalho, o contexto da autorregulação utilizado se refere globalmente a um regime regulatório e normativo que abrange todo um setor sujeito a um determinado sistema de autorregulação. Gonzales e Berrini (2013, p. 83) ao fazerem referência ao trabalho de Saule Omarova, Rethinking the future of self-regulation in the financial industry, aduzem que a amplitude deste conceito é superior a qualquer sistema interno de gestão de risco de uma determinada corporação, pois individualmente esta possuiria um poder muito limitado de identificação dos riscos.

No entanto, os próprios autores sustentam que os dois sistemas podem coexistir e se complementar bem como a discussão acerca da adoção de políticas internas de prevenção e de gerenciamento do risco através de sistemas autorreferenciais de autorregulação regulada têm ganhado espaço para discussão.

Entre os conceitos mais usados para nominar esses programas estão risk management, value managemant and corporate governance, business ethics, inegrity codes, codes of conduct and corporate social responsability, ou como mais utilizado, simplesmente chamados de programas de compliance., cujo termo advém do verbo inglês to comply, que significa estar em conformidade, adequar-se ou realizar algo imposto.

Ulrich Sieber (2013, p. 66) aponta que todos esses programas de cumprimento estão, em primeiro plano, atrelados ao conceito de ética empresarial, em uma cultura empresarial cuja ética normativa se manifesta em deveres de atuar conforme regras de conduta previamente definidas, em especial regras de cumprimento da Lei, que obviamente pode estar em colisão com as mais diversas situações quotidianas da atividade empresarial. (BACIGALUPO, 2013, p.33).

Segundo Nuria Pastor (2005, p. 11), as empresas que seguem esses programas, que já são muitas, têm introduzido diretrizes éticas de comportamento seguindo as recomendações da Lei com o fim de adotar as condutas daquilo que se revela juridicamente permitido bem como de agir conforme o direito.

Exemplo de exigência de programas internos de cumprimento normativo é o Dodd- Frank Wall Street Reform and Consumer Protection Act, norma federal dos Estados Unidos, promulgada em 21 de julho de 2010, que põe em prática a regulação financeira após a crise, como resposta drástica à grave recessão econômica. A citada Lei implementou uma série de mudanças no que tange à vigilância e supervisão de instituições que operam com recursos financeiros para evitar o risco sistêmico, proteger a economia e os consumidores. No campo da autorregulação, há a atribuição de novas funções e a previsão whistleblowers, espécie de denunciantes internos que tem o dever de informar às agencias governamentais possíveis infrações normativas. Portanto, exige-se um programa de cumprimento das entidades financeiras. (GONZALES; BERINI, 2013, p.141)

No Brasil, ao discorrer sobre essas denominadas políticas de gerenciamento do risco e de conformidade com a Lei, podemos citar como exemplo o Código de autorregulação bancária editado pela FEBRABAN - Federação Brasileira dos Bancos, que foi criado no intuito de harmonizar normas e fortalecer regras de controle já existentes. De acordo com o seu conteúdo, os signatários, dentre diversos preceitos, deverão observar princípios de ética e legalidade, respeito ao consumidor, comunicação eficiente, melhoria contínua bem como respeitar regras normativas específicas da atividade bancária.

Dentre essas normas específicas, em especial, podemos citar o normativo 11/2003, disponível para consulta pública pelo sítio eletrônico www.febraban.org.br, que institui normas de combate à lavagem de dinheiro, ao financiamento ao terrorismo e estabelece diretrizes que traduzem as melhores práticas de combate a esses delitos por suas signatárias por entender que se constituem em um objetivo para um sistema financeiro saudável, ético e eficiente, em conformidade com a lei, considerado como condição essencial para o desenvolvimento econômico e social do Brasil.

Da análise do referido normativo podemos observar que o seu parágrafo 2º materializa os preceitos de uma autorregulação regulada atrelados à assunção do compromisso de estabelecimento de políticas internas de gerenciamento do risco tratados ao longo do presente trabalho, eis que estabelece que na elaboração das diretrizes considerar-se-ão (i) as leis e regulamentos do Sistema Financeiro Nacional; (ii) as normas do Sistema de Autorregulação Bancária; (iii) os usos e costumes em matéria comercial e bancária.

No ano de 2012, entrou em vigor no Brasil a Lei 12.683/2012, que alterou a Lei 9613/1998, de Lavagem de Capitais, e estabeleceu diversos deveres de controle, dentre eles de identificação de operações suspeitas e sua comunicação às autoridade competentes. O art. 5º do normativo que estabelece a adesão das instituições financeiras signatárias aos compromissos ali descritos prescreve o compromisso de autorregulação a partir da lei bem como estabelece a necessidade de desenvolvimento de políticas de controle internos como instrumento de prevenção à lavagem de capitais.

Essas regras de controle interno são compostas por um conjunto de ações descritas no artigo 6º que devem ser adotadas, como, por exemplo, a de necessidade de conhecimento e obtenção de informações de clientes, funcionários, fornecedores, parceiros, correspondentes, avaliação de produtos e serviços, monitoramento de operações, comunicação de operações suspeitas, treinamento e estruturação institucional da área de prevenção à lavagem de dinheiro, atreladas ao compromisso descrito no artigo de número 39 de criar áreas de prevenção que terão atribuições de instituir políticas de compliance para prevenir qualquer colaboração ou contato com o delito, tendo por base as normas legais, regulamentares.

Da mesma forma, entrou em vigor no mês de fevereiro de 2014, a Lei 12846/2013, chamada de Lei Anticorrupção, que estabelece a responsabilização no âmbito civil e administrativo de forma objetiva pelos atos lesivos praticados contra a administração pública nacional ou estrangeira disposto no artigo 5º da mesma Lei, tais como a promessa de vantagem indevida a agente público, o que reforça a idéia de prevenção e adoção de programas de autorregulação e gerenciamento do risco.

Por fim, Adam Nieto (2013, p. 12) identifica que as características dessa forma de autorregulação regulada, com o reforço de programas internos de prevenção e gerenciamento do risco, se mostram eficazes, eis que é melhor incentivar e confiar na capacidade de adoção e implementação de regras internas. Essa postura contribui para o afastamento de condutas lesivas à atividade econômica bem como, em um primeira momento, diminui o risco sistêmico e a adoção de medidas repressivas pelo Estado.

 

6.  Conclusão

As idéias expostas ao longo do presente artigo identificaram que o modelo intervencionista do pós-guerra, baseado no providencialismo e no Estado de bem-estar social, se mostrou ineficiente ante a realidade econômica a partir da década de 70. Tal realidade motivou o retorno de tendências marcadamente liberais, baseadas na liberalização, desregulamentação e privatização, características essas denominadas de neoliberais.

A crise financeira ocorrida no de 2008, nos Estados Unidos da América, demonstrou o risco sistêmico e a fragilidade dos pressupostos desregularizadores que marcaram as décadas precedentes. Tais fatos geraram a necessidade de um debate público acerca da necessidade de reforma dos sistemas de regulação e fiscalização dos mecanismos financeiros como forma de proteção e prevenção do sistema financeiro global, surgindo assim, a questão da autorregulação.

Entretanto, verificou-se que o debate público sobre o tema regulação é contraditória e desconetxtualizada visto que, em geral, trazem a idéia de que a solução para prevenir riscos futuros de uma crise financeira passa pela necessidade de incremento de maior regulação do Estado, eis que a discussão é comumente travada sob um viés maniqueísta e puramente ideológico

Rompendo esse obstáculo, qualquer reforma significativa de regulamentação a longo prazo no setor financeiro, deve considerar seriamente o papel potencial que a autorregulação tem como mecanismo fundamental para controlar e minimizar o risco. Quando se fala em autorregulação, não se está dizendo que esta decorre de normas oriundas do próprio mercado sem a necessidade de interferência do Estado, até porque a finalidade do presente estudo

cingiu-se à análise daquela como atribuição, a partir de um processo de regulação pelo Estado. Ou seja, atribuição de deveres de autodisciplina aos agentes econômicos na condução de sua atividade adaptadas à realidade que norteia o mercado e as relações econômicas.

A autorregulação é uma espécie de sistema misto e possui diversas vantagens sobre a regulação direta do governo, como, por exemplo, a (i) capacidade superior de acesso e avaliação econômica; (ii) capacidade para vigiar e regular suas próprias operações; e (iii) atuar como forma de recuperar a confiança dos investidores, baseado na reiterada demonstração de cumprimento dos requisitos regulatórios, bem como não está adstrita a foros, podendo conferir eficácia internacionalmente. Assim, a autorregulação é o resultado indeclinável da necessária evolução do modo como os Estado regula o mundo empresarial

Ao final, foi demonstrado que a discussão acerca da adoção de políticas internas de prevenção e de gerenciamento do risco na atividade empresarial, através de sistemas autorreferenciais de autorregulação regulada, denominados de compliance, tem ganhado espaço para discussão a fim de incentivar a adoção e a implementação de regras internas. Essa postura contribui para o afastamento de condutas lesivas à atividade econômica bem como, em um primeiro momento, diminui o risco sistêmico e a adoção de medidas repressivas pelo Estado

 

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* Advogado, Mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Estado do Paraná, Professor de Direito Processual Penal da Faculdade Metropolitana de Curitiba – PR.