Por: Douglas Rodrigues da Silva

A faculdade de direito, de uma forma geral, não costuma preparar os estudantes e futuros profissionais para lidarem com fatos do processo ou com problemas estruturais na comprovação da verdade. Na realidade, uma análise geral dos currículos de cursos de graduação e especialização demonstra que a preocupação da academia jurídica, em grande medida, reside na busca de critérios interpretativos na aplicação de uma norma jurídica em detrimento de um estudo mais aprofundado ou sistêmico dos instrumentos de construção da verdade jurídica.

Falta-nos uma solidez epistemológica em relação ao fato jurídico.

Como se sabe, o ponto principal do processo – por mais estranho que possa parecer – não está necessariamente em se saber qual a melhor interpretação que se deva dar à norma jurídica. É óbvio, claro, que o direito consiste na aplicação de normas e, por isso mesmo, não se pode olvidar da extrema importância do estudo de seus critérios de interpretação, da sua dogmática e de outras vertentes teóricas. Entretanto, como é sabido, o direito apenas tem espaço quando há, no contexto tratado, um fato comprovado que detenha relevância jurídica, pois sem isso, o direito não tem o seu objeto de atuação.

Não há direito sem fatos. E por isso mesmo o fato, antes mesmo da norma jurídica, deveria merecer maior atenção de todos aqueles personagens do cotidiano forense. Com mais razão aqueles que atuam na seara penal e processual penal.

E aqui, especificamente, adquire crucial importância a solidez da epistemologia judiciária.

Só cabe falar em aplicação adequada da norma ao fato se, diante dos parâmetros aceitáveis de construção do conhecimento, puder se confirmar que o fato realmente existiu. É preciso, pois, que antes de se entender por tal ou qual solução jurídica, entenda-se se tal ou qual fato pode ser visto como algo concretizado, como algo demonstrado, e, por conseguinte, digno de apreciação jurídica. Sem isso, por evidente, de nada adianta esvaziar toneis de tinta para escrever linhas sobre a hermenêutica ou a dogmática sem ter como se apontar um fato como demonstrado.

Segundo Taruffo (2014, p. 17), “o direito define e seleciona os fatos”, portanto, o fato que interessa ao direito deve ter, antes de tudo, uma dimensão jurídica, capaz de torná-lo relevante. Mas, apesar disso, o fato também demanda uma dimensão empírica, já que adquire relevância como “[…] base de um caso jurídico somente quando pode ser dito que existem no mundo empírico”. Um homicídio, por exemplo, é um fato com dimensão jurídica, posto que criminalizado, mas, concretamente, só adquire espaço no âmbito processual quando realmente se está diante da comprovação de que um ser humano ceifou a vida de outro. Sem isso, tudo não passa de mera especulação teórica, e por esse motivo se clama tanto pela compreensão mais pungente do que seja a epistemologia judiciária.

O objetivo do processo penal, se pudéssemos resumi-lo, é a legitimação do poder punitivo do Estado, o qual somente se dá quando, diante do julgamento concreto, se consegue verificar que o exercício do poder se deu amparado em critérios racionais capazes de dar um grau mínimo de confiabilidade às conclusões exaradas na decisão (BADARÓ, 2019, p. 18). O papel do processo penal, pois, está na reconstrução histórica de um fato juridicamente relevante, a partir de critérios racionais e confiáveis, que permitam ao julgador, em primeiro plano, concluir pela ocorrência desse fato para, na sequência, poder optar pela melhor norma ou interpretação jurídica cabível. A intenção do julgador, ao fim e ao cabo, deve residir na busca da verdade.

Sem adentrar no mérito do que se possa compreender pela verdade – e muito menos dividi-la em graus, como parte da doutrina costuma fazer –, partimos desde logo da ideia de que a verdade é uma só, assim como descreve Schünemann (2013, p. 245). Porém, e aqui é um ponto importante, sabe-se que a verdade (no caso, conhecimento sobre ela), ao menos no que atine à reconstrução histórica de fatos, é aproximativa. Ou seja, a partir de métodos racionais de busca dessa verdade, pautados em critérios epistemológicos, é que poderemos apontar com o mínimo de segurança e probabilidade que determinada situação ocorreu no mundo dos fatos e, só a partir daí, conseguiremos buscar a melhor solução.

E o papel da epistemologia judiciária merece proeminência justamente nesse estado de coisas. Se consideramos que o processo só tem razão de ser se pautado na verdade dos fatos ali apreciados, é certo que apenas caberá confirmar a legitimidade da decisão adotada se, antes de tudo, se puder falar que o fato é verdadeiro, seguiu parâmetros racionais de confirmação e refutação e, ao final de tudo, superou todos os “testes”.

No processo penal, em específico, a hipótese a ser provada é uma só: aquela que consta do enunciado fático da denúncia. Toda a atividade probatória se fixará no intento de confirmar a hipótese (acusação) ou de refutá-la ou apresentar uma hipótese alternativa mais favorável (defesa). Mas essa atividade, quando necessita ser valorada pelo julgador, não pode ficar à mercê de uma leitura subjetiva ou por mera coerência (por ser mais “crível”). O juiz precisa indicar, racionalmente, de que maneira entendeu ocorrido o fato do processo ou, se muito, porque acredita que ele não ocorreu. E isso somente se faz possível pela epistemologia. Não há outro caminho.

É pelo estudo da epistemologia, por exemplo, que se pode definir quais são os melhores parâmetros que possibilitam crer que um fato está comprovado ou não. É pela epistemologia também que se podem fixar, de forma racional, o standard de prova mais adequado e, principalmente, verificar se ele foi ou não alcançado no caso concreto, ainda mais no processo penal, em que se fala tanto em “provas acima da dúvida razoável” (ou seja, não é qualquer comprovação da verdade que serve).

No ponto, alerta Badaró (2019, p. 84):

 

 

Por ser algo frequente ao longo de toda a vida e realizado de modo natural, quase automático, há uma crença comum de que valorar provas no processo é algo que se aprende quase que intuitivamente, não sendo necessário para tanto que adquirir conhecimentos específicos ou dominar técnicas epistemológicas mais sofisticadas. Essa equivocada concepção de que “os julgamentos sobre fatos constituem simples constatações da realidade”, muitas vezes, leva a uma acrítica recepção e aceitação dos juízos de fatos realizados pelos magistrados no processo. Se os juízes têm feito um mal uso do seu ‘livre convencimento’, o remédio não será eliminar esse princípio de valoração livre, mas estabelecer e aplicar mecanismos racionais e procedimentais que possam assegurar o bom uso da discricionariedade nas escolhas feitas na valoração da prova.

 

 

A epistemologia judiciária, portanto, não merecia ser tão menosprezada como se costuma fazer entre nós. É somente por meio dela que se podem retirar critérios seguros de construção do conhecimento juridicamente relevante a fim de apontar a veracidade ou não de um fato. Mas não só. É dela que surgem mecanismos de controle decisórios tão importantes quanto os critérios hermenêuticos tão debatidos atualmente. Sem antes definir quando o juiz pode dizer que algo realmente ocorreu num passado não tão distante, não adianta se debruçar em tantas regras e princípios de como interpretar a lei.

Por isso, como dito no título deste texto, devemos lutar por uma solidez epistemológica no processo penal.

 

REFERÊNCIAS

 

BADARÓ, Gustavo Henrique. Epistemologia judiciária e prova penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.

 

SCHÜNEMANN, Bernd. Um olhar crítico ao modelo processual penal norte-americano. In. Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 240-261.

 

TARUFFO, Michele. A prova. São Paulo: Marcial Pons, 2014.

 

Douglas Rodrigues da Silva

Mestre em Direito (UNICURITIBA)

Especialista em Direito Penal e Processo Penal (UNICURITIBA)

Bacharel em Direito (UNICURITIBA)

Professor de Direito Penal Econômico e Legislação Penal Especial nas Faculdades da Indústria de São José dos Pinhais (FIEP-IEL)

Advogado Criminal em Curitiba, Paraná.