Rafael Guedes de Castro*

1.  Introdução 

No mês de agosto de 2007, eclodiu, a partir dos Estados Unidos da América, uma das maiores crises econômicas da história do capitalismo. A concessão de empréstimos hipotecários de alto risco no setor imobiliário, denominado de “sub-prime”, expôs, de forma jamais vista, a fragilidade e a insegurança do sistema financeiro global. Os riscos oriundos das operações realizadas no mercado financeiro foram amplamente questionados, visto que a crise norte-americana afetou a economia em escala mundial.

Certo é que razões políticas e ideológicas determinaram o estabelecimento da economia de mercado, suas diretrizes e formas operacionais que marcaram as relações do Estado e da economia no período. O capitalismo neoliberal, baseado nos pressupostos desregularizadores que viam o afastamento do Estado das relações econômicas como fator benéfico e incentivador de uma política de livre mercado, passa a ser questionado justamente pelo reconhecimento de sua insuficiência em identificar e prevenir os riscos oriundos da atividade financeira.

O presente artigo tem por objetivo analisar o paradigma da desregulamentação e o livre mercado em seu contexto histórico e a crise econômica acima referida como vetores determinantes para a introdução do papel da autorregulação empresarial como instrumento capaz de prevenir os riscos oriundos da atividade financeira. Importante demarcar que o conceito de autorregulação aqui abordado será o de uma combinação entre a presença de uma regulação pública, com seus mecanismos de supervisão igualmente públicos, integrada à necessidade de aproveitar as vantagens que os atores privados possuem no campo da informação, conhecimento e tecnologia para que a eles seja atribuída a responsabilidade de se autorregular e minimizar os riscos sistêmicos que são gerados com sua atividade. Por fim, analisar-se-á a coexistência e a complementaridade entre autorregulação e a adoção de mecanismos internos de políticas de prevenção e gerenciamento do risco na atividade empresarial.

 

2.  O paradigma da desregulamentação e o livre mercado

O período posterior à Segunda Guerra mundial impactou de maneira profunda as relações entre o Estado e Economia. Com as lições aprendidas na 1ª Guerra Mundial e na crise de 1929, os Estados Unidos da América sabiam que o financiamento e o incentivo à reestruturação européia eram fundamentais para evitar a crise de superprodução.

Foi assim que, em 1944, quarenta e quatro países se reuniram e aprovaram o acordo de Bretton Woods, que introduziu modificações no plano econômico mundial tais como (i) o dólar como moeda internacional e conversível em ouro, (ii) a livre conversibilidade das moedas nacionais entre si, a partir de uma paridade fixada em ouro ou em dólar, (iii) e estabeleceu a criação do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial. (PADRÓS, 2003, p. 236).

Foi John Maynard Keynes quem desenvolveu as bases teóricas do acordo, consolidando assim a proposta do Estado de Bem-Estar Social, caracterizado pela intervenção do Estado na economia. O Estado passou a assumir funções econômicas e sociais jamais vistas. No plano econômico visou regular o funcionamento global da economia impulsionando e sustentando a sua expansão; estabeleceu a criação de indústrias vinculadas ao desenvolvimento do Estado de Bem-Estar, de bens de consumos duráveis, bem como promoveu o desenvolvimento de novas regiões industriais tendo o Estado assumindo obras de infra-estrutura. No aspecto social a idéia era a de que o Estado assegurasse o bem-estar social com a adoção de medidas contra riscos de trabalhos, doenças, desemprego, aposentadoria e seguros sociais.  (PADRÓS, 2003, p. 255).

Este Estado intervencionista, em suma, atribuiu à ordem econômica uma finalidade de justiça social, visando assegurar a todos condições dignas de vida e de bem-estar, em oposição modelo de liberal que admitia os princípios da livre iniciativa, liberdade de concorrência e não intervenção estatal no âmbito econômico. Para Adam Smith, em a “Riqueza das Nações”, a regulação econômica dar-se-ia pela “mão invisível” e ao Estado seria reservada apenas a função de manutenção da ordem e da segurança pública

No início dos 70, o sistema de acumulação que marcou as décadas precedentes começa a demonstrar a sua insuficiência e anuncia os questionamentos ao Estado de Bem- Estar Social, eis que este já não suportava os altos encargos oriundos do providencialismo que marcou o período, seja no aspecto social ou no econômico com o alto custo do setor público da economia.

Segundo Peltzman (2004, p. 85) o movimento de desregulação foi uma reação às condições políticas e econômicas do final da década de 70, período caracterizado pelo incremento da inflação e pela já reconhecida ineficácia da intervenção estatal.

Neste sentido, no final da década de 80 se estabeleceu a consolidação de tendências econômicas marcadamente liberais que levaram à conclusão de que o Estado de Bem-Estar Social havia se esgotado.

O insucesso dos modelos intervencionistas mostrou a necessidade de o Estado pensar em novas formas de geração de riquezas. Abandonou o encargo de promoção do bem-estar atrelado à função de distribuição de justiça social com o retorno às idéias liberais e a concepção da presença do Estado na economia como um ente garantidor e regulador da atividade econômica baseado na livre iniciativa, na liberdade de mercado, na desestatização econômica e redução sistemática dos encargos sociais para garantir equilíbrio nas contas públicas. (FIGUEIREDO, 2012, p. 44)

Assim, foi editado um conjunto de medidas a partir de um encontro entre economistas, instituições financeiras e administradores latino-americanos, ocorrido no ano de 1989, na cidade de Washington, denominado Consenso de Washington, no qual originou quatro grandes diretrizes para o desenvolvimento econômico, quais sejam (i) liberalizar, (ii) desregular, (iii) privatizar, (iv) globalizar. (NUSDEO, 2013, p. 226)

Referido consenso demarcou a implantação do chamado neoliberalismo, que avançou e perdurou até a crise do sistema financeiro americano que se espalhou pelo mundo no ano de 2008. (NUSDEO, 2013, p.227)

3.  A crise econômica de 2008

De fato, a crise financeira de 2008 inaugurou uma nova era. Os mercados financeiros apresentaram riscos potenciais muito graves para todas as economias nacionais, assim como para o sistema econômico mundial, como visto nos EUA, bem como colocou em dúvida os pressupostos desregulamentadores da economia de livre mercado.

Apesar de não existir uma explicação exata para a crise econômica, ela estaria nos objetivos do neoliberalismo, nos seus instrumentos utilizados para buscá-lo e nas suas próprias contradições. A hegemonia dos Estados Unidos, a busca por altas rendas, combinada com as realizações associadas à financeirização e à globalização são fatores identificáveis do fenômeno. (DUMENIL; LÉVY, 2014, p. 42).

Como dito, o referido autor destaca que um aspecto crucial que marca as décadas neoliberais após os anos 70 é a financeirização, que significa o incremento de mecanismos financeiros que alcançaram níveis sem precedentes de sofisticação e expansão das instituições financeiras. Após o ano 2000, esses mecanismos de expansão tiveram crescimento ainda maior com a introdução de procedimentos inovadores que afetaram sobremaneira o livre comércio de capitais no mundo todo, a globalização dos procedimentos monetários e financeiros, significando a construção de uma estrutura financeira frágil ante a dificuldade de controlar taxas de juros, de câmbio e empréstimos em um mundo de livre circulação de capital. (DUMENIL; LÉVY, 2014, p. 42).

O que a princípio seria uma crise de liquidez com o declínio do mercado imobiliário, era apenas um dos problemas dentro de um conjunto muito mais amplo dos fatores determinantes que deflagaram a crise.

Segundo Dumenil e Levy (2014, p. 48):

O colapso de muitos instrumentos financeiros desestabilizou a estrutura

financeira geral. No início de 2008, evidenciou-se o aumento de prejuízos das instituições financeiras, com o início de uma epidemia de falência de bancos. Em março, o Bear Stearns faliu e se revelaram as primeiras manifestações de fraqueza dos gigantes Fannie Mae e Freddie Mac. A partir de então, a situação de deteriorização do setor financeiro se degenerou numa crise de oferta de crédito para famílias e corporações não financeiras, conhecidas como o “arrocho de crédito” (…) Faliram o Lehman Borthers, o Washington Mutual Bank e outros gigantes financeiros.

A identificação do estabelecimento de uma estrutura financeira frágil, a partir de pressupostos desregularizadores que marcaram as décadas precedentes associada à crise que desestruturou o sistema financeiro em geral, gerou, no campo que interessa à presente pesquisa, a necessidade de debate público acerca da necessidade de reforma dos sistemas de regulação e fiscalização dos mecanismos financeiros como forma de proteção e prevenção do sistema financeiro global, surgindo assim, a questão da autorregulação. (SANCHEZ; FERNANDES, 2013, p.78)

Da mesma forma, Calado (2009, p. 22) observa que nessa nova perspectiva e dinâmica “constitui-se de fundamental importância a presença do (auto) regulador atuante para garantir um ambiente institucional mais seguro”, garantindo assim estabilidade econômica em um momento marcado por significativas alterações no contexto global.

4.  Autorregulação e recuperação do sistema financeiro internacional

A redução da atuação do Estado na ordem econômica implicou em um novo modelo de intervenção, chamada de indireta, por via da regulação. Como observado no primeiro ponto do presente trabalho, o reconhecimento da insuficiência do modelo interventivo direto na economia fez com que o Estado assumisse a função interventiva indireta ao monitorar e normatizar a exploração da atividade econômica. Neste prisma, Leonardo Figueiredo (2012,

  1. 109) afirma que:

A intervenção indireta, por via da regulação da atividade econômica surgiu como pressão do Estado sobre a economia para devolvê-la à normalidade, isto é, para garantir um regime de livre-concorrência, evitando-se práticas abusivas pelos agentes mais fortes em face dos mais fracos, bem como em detrimento do mercado e, por conseqüência, de toda sociedade.

Ainda que tal fenômeno possa ser identificado em momentos distintos nos Estados Unidos da América e na Europa, é certo que no Brasil esse processo é oriundo do início da década de 90, com a legitimação das premissas neoliberais atinentes à desestatização de diversas atividades antes exploradas pelo Estado, devolvendo-as à iniciativa privada.

Ao abordar a perspectiva européia sobre o assunto, Moncada (2004, p. 367) observa que o processo de privatização se constituiu em uma realidade em alguns setores da economia com um claro propósito de liberalização. Contudo, não significou o desaparecimento do Estado, mas a substituição de um modelo direto de intervenção, alicerçada no tradicional serviço público de propriedade e gestão estatal, por novas formas de regulação, ou seja, pela intervenção indireta.

Com a crise financeira ocorrida no ano de 2008, que mostrou ao mundo a vulnerabilidade de uma economia baseada no livre mercado, de característica marcadamente neoliberal, colocou em pauta novamente o tema sobre a regulação e a posição do modelo de intervenção do Estado. O paradigma ideológico que via como benéfica a desregulamentação para o exercício do livre mercado passa a ser desacreditado e questionado, tendo em vista a complexidade das relações econômicas no mercado financeiro e a dificuldade de fiscalização das instituições financeiras nas relações globais.

É este o enfoque que se deu na discussão sobre a regulação após a crise econômica. Abordou-se, com ênfase, a função e o alcance dos organismos reguladores de supervisão normativa que deveriam caracterizar o mercado financeiro, o fortalecimento de certas normas e regulamentos existentes, a melhora da qualidade de aplicação, cumprimento, a necessidade de fortalecer a cooperação global no âmbito da regulação e supervisão, imprescindível para supervisionar o mercado transnacional, e a definição das atividades que podem conduzir potencialmente a uma situação de risco sistêmico.

A par das importantes discussões travadas, parece elementar ter como premissa a conclusão de Oksandro Gonçalvez e Antônio Porto (2014, p. 18), no artigo intitulado “O vetor axiológico do movimento de saneamento do Sistema Financeiro Nacional”, que chama a atenção para o fato de que não se pode resolver problemas atuais atrelados a conceitos passados sob o enfoque de uma visão maniqueísta de luta entre o bem o mal (intervenção versus liberalismo).

Pelo contrário, uma dinâmica que perpetue a situação em que os reguladores e atores privados se coloquem em lados opostos, sempre em um clima de constante tensão e enfrentamento, não se faz nada mais do que elevar o nível de complexidade dos mercados financeiros globais e agravar o risco potencial sistêmico.

É neste sentido que Gonzales e Berini (2013, p. 75) sustentam que o debate público sobre o tema regulação é contraditória e descontextualizada visto que, em geral, trazem a idéia de que a solução para prevenir riscos futuros de uma crise financeira passa pela necessidade de incremento de maior regulação do Estado. Entretanto, nenhuma das propostas aborda explicitamente o papel da autorregulação da indústria como parte da transformação da regulamentação a longo prazo bem como a sua importância.

Neste aspecto, qualquer reforma significativa de regulamentação a longo prazo no setor financeiro, deve considerar seriamente o papel potencial que a autorregulação tem como mecanismo fundamental para controlar e minimizar o risco. Os tópicos subseqüentes analisarão de que forma se dá a proposta da autorregulação, sua ligação com o tema regulação e suas vantagens.

  • Conceito

A visão convencional da atividade reguladora do Estado enfatiza dois pontos de vista, quais sejam: liberdade e controle ou, em uma abordagem de sistemas políticos contrapostos, liberalismo e estatismo. Ocorre que entre eles existe uma pluralidade de sistemas intermediários que podem se revelar melhores para conjugar os interesses privados e coletivos (VILA, 2013, p. 44)

Segundo Calabro (2010, p. 53), o conceito de autorregulação, apesar de equívoco, seu significado em todas as áreas do direito parece convergir para a capacidade de um organismo de entrar em equilíbrio interno e em equilíbrio com o ambiente externo, sendo conceituada como a capacidade de um organismo de perceber estímulos internos e externos e de estabelecer suas próprias regras de estruturação e funcionamento para responder a esses estímulos de forma que melhor garanta seu equilíbrio.

Moreira (1997, p. 60) identifica que o próprio conceito de autorregulação traz duas origens distintas, eis que pode surgir de uma iniciativa das organizações profissionais, bem como resultar de uma iniciativa e criação estadual.

Na primeira hipótese, a autorregulação pode ser, consoante os casos, ignorada, consentida, reconhecida, incentivada ou mesmo oficializada e cooptada pelo Estado. Na segunda hipótese a autorregulação é promovida pelo Estado como forma de desregulação estadual ou de prevenção de regulação estadual. Na primeira hipótese, a autorregulação espontânea traduz-se em geral no fenômeno de ampliação da regulação, criando-a onde ela não existia; na segunda modalidade, a autorregulação traduz em geral um processo de desregulação estadual ou uma alternativa a uma regulação pública que sem autorregulação se tornaria necessária. (MOREIRA, 1997, p.60)

Hodiernamente, o crescente influxo de informações que envolve os mais diversos ramos das atividades econômicas geradoras de riqueza não acompanham o processo legislativo regulador que, muitas vezes moroso e carente de tecnicidade, cria regras obsoletas que não acompanham a evolução do mercado.

Assim, a autorregulação é uma forma de regulação que não pressupõe a ausência desta, se constituindo, na essência, em uma espécie do gênero regulação, deve ser coletiva e não estatal, mas pode ter a origem de ser promovida pelo Estado como forma de prevenção da regulação. (MOREIRA, 1997, p. 53)

O conceito de autorregulação aqui esposado não é o de um sistema unicamente privado de regulação da atividade econômica e, como conseqüência a completa ausência de qualquer intervenção reguladora do governo, mas sim de buscar uma articulação que propõe uma nova forma de regular, que combine a presença normativa oriunda do próprio setor financeiro com um sistema de controle adequado na mão do Estado.

Ainda que a autorregulação se mostre tendência, esta não substitui a tarefa normativa institucional, nem a supervisão, mediante entidades públicas de controle, da imposição direta da responsabilidade de regular e minimizar o risco sistêmico que elas mesmas geram com sua atividade. O novo modelo de regulação, segundo Omarova (2013, p. 690), é, portanto, aumentar a capacidade dos participantes no mercado privado em adotar e fazer cumprir as regras que regem suas atividades e negócios e, ao mesmo tempo, combinar essa tendência com uma responsabilidade maior e cada vez mais explícita das empresas pelos efeitos econômicos e sociais de suas atividades de risco.

Calado (2009, p.59) observa que uma abordagem sobre o tema dispõe que a regulação deve oferecer aos participantes do mercado o arcabouço básico para o relacionamento entre os participantes, regulando o que pode ser chamado de macroambiente. Ocorre que é importante a concorrência entre reguladores e autorreguladores para normatizar pormenores, no que o autor denomina de microambiente, tendo em vista a capacidade de interação dos próprios participantes do mercado.

Uma abordagem bastante defendida rege que a regulação do mercado deve fornecer o arcabouço básico dentro qual se dá o relacionamento entre os diversos participantes, regulando o que pode ser denominado macroambiente. Igualmente importante é a concorrência entre reguladores e autorreguladores. Nessa perspectiva, à autorregulação cabe normatizar pormenores do processo ou microambiente, visto que, nesse palco, os próprios participantes do mercado são os mais capacitados a interagir, discutir e propor as melhores práticas.

É conjugando essa espécie mista de regulação pública e privada como forma de superar e introduzir um novo marco na discussão da regulação estatal e sua efetividade, que estamos diante do que pode ser chamado de Autorregulação regulada.

Assim destaca Sanchez e Fernandes, (2013, p.96)

Se trata da necessidade de reformar o sistema regulatório do setor financeiro e econômico, mediante o estabelecimento de um regime misto que inclua a participação ativa e equilibrada dos atores públicos e privados, com o fim de garantir o cumprimento real e efetivo do marco normativo que vigora a atividade. A investigação empírica mostra que as organizações são mais propensas a cumprir com seus compromissos de autorregulação quando elas mesmas estão sujeitas à estrita vigilância de um ente institucional estabelecido.

Essa nova visão refere-se à forma de regulação estatal do mundo empresarial caracterizada pela incorporação do ente privado no processo de regulação, mas de forma subordinada aos concretos fins e interesse público predeterminados pelo Estado. Neste sentido, existem três possíveis modelos de cumprimento desta regulação regulada, quais sejam (i) o estado delega pontualmente a faculdade de regulação mas, mantém a faculdade de supervisão e sanção (ii) o estado pode transferir o poder de regulação, supervisão e sanção, mas manter o poder revisão (iii) co-regulação – o estado trabalha junto com a empresa na elaboração de sistemas específicos de regulação. Esses três modelos seriam os que melhor corresponderiam ao interesse do estado de reorientar a atuação regulatória. (VILA, 2013, p. 54)

Com o escopo de garantir efetividade, a regulação do sistema financeiro não deve substituir a tarefa normativa estatal, nem mesmo a supervisão. Assim, a vigilância e o controle do governo, são fundamentais para assegurar que a atividade privada promova o interesse público geral.

A proposta da autorregulação é prevenir o risco de quebra e que esteja firmemente arraigada ao interesse público geral e aos objetivos políticos, pretendendo entender o mundo como um sistema complexo, dinâmico, intrincado em que as múltiplas forças governamentais e não governamentais em uma constante interconexão pactuam e renegociam os limites entre as esferas públicas e privadas da vida econômica e social. (GONZALES; BERRINI, 2013, p. 79)

Assim, quando se fala em autorregulação, não se está dizendo que esta decorre de normas oriundas do próprio mercado sem a necessidade de interferência do Estado, isto porque, o objeto do presente estudo cinge-se à análise da autorregulação como atribuição a partir de um processo de regulação pelo Estado. Ou seja, uma espécie de atribuição de deveres de auto-disciplina aos agentes econômicos na condução de sua atividade adaptada à realidade que norteia o mercado e as relações econômicas.

 

  • Vantangens

Após discorrer sobre o contexto histórico que permeia a presente discussão e o viés que a perspectiva de um processo de autorregulação pode trazer à economia de mercado, cabe destacar algumas vantagens que esta teria em face da regulação direta

Leonardo Figueiredo (2012, p. 111) ao citar José Joaquim Gomes Canotilho, afirma que na moderna concepção do Estado frente à economia, este assume postura de regulador das atividades econômicas, podendo, inclusive, delegá-la a entidades administrativas independentes, não diretamente subordinadas ao poder político governamental, fundamentando-se na verificação de que muitas competências e atribuições estatais necessitam de conhecimentos específicos, técnicas e profissionais que se encontram fora do aparelho estatal.

Esta parece ser a constatação primordial para determinar as vantagens que um sistema de autorregulação possui, qual seja, o de que o agente econômico, em seu ramo específico, está muito mais habilitado a conhecer, solucionar e prevenir riscos oriundos de sua atividade.

Isto porque, após a crise, ficou demonstrado, ante a crescente complexidade do mercado financeiro, de suas atividades bem como de seu alcance global, a incapacidade das autoridades reguladoras para detectar, prevenir ou ao menos minimizar o risco sistêmico.

Calado (2009, p. 58) observa que “uma entidade autorreguladora, ao obter adesão dos participantes do mercado, está mais próxima das atividades que propõe regular, dispondo, portanto de maior sensibilidade e destreza para avaliar as condições e normatizá-las”. Isso facilita a compreensão da regulação, aumenta a capacidade de prevenção de riscos oriundos da atividade e também diminui a possibilidade de intervenção estatal.

Logo, a autorregulação possui vantagens sobre a regulação direta do governo, como, por exemplo, a (i) capacidade superior de acesso e avaliação econômica e a (ii) capacidade para vigiar e regular suas próprias operações. (OMOROVA 2010, p. 668)

Vital Moreira (2001, p. 92) descreve que a autorregulação possui as seguintes vantagens para o estado (i) desoneração da carga excessiva, tanto de política como administrativa e financeira, (ii) maior eficácia da regulação, derivada da aceitabilidade e observância menos litigiosa por parte dos regulados, (iii) maior flexibilidade e mais fácil adequação às mudanças de circunstâncias, (iv) distanciamento e preservação da legitimidade estatal, (v) substituição do instrumentário penal, por via de regra moroso e oneroso, pela autodisciplina profissional, (vi) melhor adequação da regulação à crescente diferenciação e complexidade das esferas reguladoras, (vii) única via disponível para a regulação de certas áreas onde a cooperação dos regulados é condição indispensável.

De outro lado, a articulação de um sistema misto de implantação de regime de autorregulação se mostra eficaz na medida em que evidências empíricas mostram que, geralmente, as organizações que desenvolvem suas atividades em um marco jurídico estritamente dissuasório demonstram cometer maior quantidade de infrações legais. Ao contrário, aquelas que se comprometem voluntariamente a autorregular-se alcançam melhores resultados observando o regramento normativo. (GOZALES; BERRINI, 2013, p. 101)

Acrescente-se a tudo isso o fato de que a autorregulação atua como forma de recuperar a confiança dos investidores, baseado na reiterada demonstração de cumprimento dos requisitos regulatórios. Calado (2009, p. 40) observa que o termo confiança define de forma muito precisa em que consiste o mercado financeiro. Como os contratos são realizados envolvendo direitos e obrigações a serem exercidos em data posterior, a confiança de que serão honrados no futuro é fator primordial para os consumidores e pequenos investidores.

Também, importante destacar que autorregulação não está adstrita a foros, podendo conferir eficácia internacionalmente, sendo assim o resultado indeclinável da necessária evolução do modo como os Estado regula o mundo empresarial

 

5.    Políticas de Prevenção e gerenciamento do risco: Os programas de compliance e o reforço da autorregulação

Conforme observado ao longo do presente trabalho, o contexto da autorregulação utilizado se refere globalmente a um regime regulatório e normativo que abrange todo um setor sujeito a um determinado sistema de autorregulação. Gonzales e Berrini (2013, p. 83) ao fazerem referência ao trabalho de Saule Omarova, Rethinking the future of self-regulation in the financial industry, aduzem que a amplitude deste conceito é superior a qualquer sistema interno de gestão de risco de uma determinada corporação, pois individualmente esta possuiria um poder muito limitado de identificação dos riscos.

No entanto, os próprios autores sustentam que os dois sistemas podem coexistir e se complementar bem como a discussão acerca da adoção de políticas internas de prevenção e de gerenciamento do risco através de sistemas autorreferenciais de autorregulação regulada têm ganhado espaço para discussão.

Entre os conceitos mais usados para nominar esses programas estão risk management, value managemant and corporate governance, business ethics, inegrity codes, codes of conduct and corporate social responsability, ou como mais utilizado, simplesmente chamados de programas de compliance., cujo termo advém do verbo inglês to comply, que significa estar em conformidade, adequar-se ou realizar algo imposto.

Ulrich Sieber (2013, p. 66) aponta que todos esses programas de cumprimento estão, em primeiro plano, atrelados ao conceito de ética empresarial, em uma cultura empresarial cuja ética normativa se manifesta em deveres de atuar conforme regras de conduta previamente definidas, em especial regras de cumprimento da Lei, que obviamente pode estar em colisão com as mais diversas situações quotidianas da atividade empresarial. (BACIGALUPO, 2013, p.33).

Segundo Nuria Pastor (2005, p. 11), as empresas que seguem esses programas, que já são muitas, têm introduzido diretrizes éticas de comportamento seguindo as recomendações da Lei com o fim de adotar as condutas daquilo que se revela juridicamente permitido bem como de agir conforme o direito.

Exemplo de exigência de programas internos de cumprimento normativo é o Dodd- Frank Wall Street Reform and Consumer Protection Act, norma federal dos Estados Unidos, promulgada em 21 de julho de 2010, que põe em prática a regulação financeira após a crise, como resposta drástica à grave recessão econômica. A citada Lei implementou uma série de mudanças no que tange à vigilância e supervisão de instituições que operam com recursos financeiros para evitar o risco sistêmico, proteger a economia e os consumidores. No campo da autorregulação, há a atribuição de novas funções e a previsão whistleblowers, espécie de denunciantes internos que tem o dever de informar às agencias governamentais possíveis infrações normativas. Portanto, exige-se um programa de cumprimento das entidades financeiras. (GONZALES; BERINI, 2013, p.141)

No Brasil, ao discorrer sobre essas denominadas políticas de gerenciamento do risco e de conformidade com a Lei, podemos citar como exemplo o Código de autorregulação bancária editado pela FEBRABAN – Federação Brasileira dos Bancos, que foi criado no intuito de harmonizar normas e fortalecer regras de controle já existentes. De acordo com o seu conteúdo, os signatários, dentre diversos preceitos, deverão observar princípios de ética e legalidade, respeito ao consumidor, comunicação eficiente, melhoria contínua bem como respeitar regras normativas específicas da atividade bancária.

Dentre essas normas específicas, em especial, podemos citar o normativo 11/2003, disponível para consulta pública pelo sítio eletrônico www.febraban.org.br, que institui normas de combate à lavagem de dinheiro, ao financiamento ao terrorismo e estabelece diretrizes que traduzem as melhores práticas de combate a esses delitos por suas signatárias por entender que se constituem em um objetivo para um sistema financeiro saudável, ético e eficiente, em conformidade com a lei, considerado como condição essencial para o desenvolvimento econômico e social do Brasil.

Da análise do referido normativo podemos observar que o seu parágrafo 2º materializa os preceitos de uma autorregulação regulada atrelados à assunção do compromisso de estabelecimento de políticas internas de gerenciamento do risco tratados ao longo do presente trabalho, eis que estabelece que na elaboração das diretrizes considerar-se-ão (i) as leis e regulamentos do Sistema Financeiro Nacional; (ii) as normas do Sistema de Autorregulação Bancária; (iii) os usos e costumes em matéria comercial e bancária.

No ano de 2012, entrou em vigor no Brasil a Lei 12.683/2012, que alterou a Lei 9613/1998, de Lavagem de Capitais, e estabeleceu diversos deveres de controle, dentre eles de identificação de operações suspeitas e sua comunicação às autoridade competentes. O art. 5º do normativo que estabelece a adesão das instituições financeiras signatárias aos compromissos ali descritos prescreve o compromisso de autorregulação a partir da lei bem como estabelece a necessidade de desenvolvimento de políticas de controle internos como instrumento de prevenção à lavagem de capitais.

Essas regras de controle interno são compostas por um conjunto de ações descritas no artigo 6º que devem ser adotadas, como, por exemplo, a de necessidade de conhecimento e obtenção de informações de clientes, funcionários, fornecedores, parceiros, correspondentes, avaliação de produtos e serviços, monitoramento de operações, comunicação de operações suspeitas, treinamento e estruturação institucional da área de prevenção à lavagem de dinheiro, atreladas ao compromisso descrito no artigo de número 39 de criar áreas de prevenção que terão atribuições de instituir políticas de compliance para prevenir qualquer colaboração ou contato com o delito, tendo por base as normas legais, regulamentares.

Da mesma forma, entrou em vigor no mês de fevereiro de 2014, a Lei 12846/2013, chamada de Lei Anticorrupção, que estabelece a responsabilização no âmbito civil e administrativo de forma objetiva pelos atos lesivos praticados contra a administração pública nacional ou estrangeira disposto no artigo 5º da mesma Lei, tais como a promessa de vantagem indevida a agente público, o que reforça a idéia de prevenção e adoção de programas de autorregulação e gerenciamento do risco.

Por fim, Adam Nieto (2013, p. 12) identifica que as características dessa forma de autorregulação regulada, com o reforço de programas internos de prevenção e gerenciamento do risco, se mostram eficazes, eis que é melhor incentivar e confiar na capacidade de adoção e implementação de regras internas. Essa postura contribui para o afastamento de condutas lesivas à atividade econômica bem como, em um primeira momento, diminui o risco sistêmico e a adoção de medidas repressivas pelo Estado.

 

6.  Conclusão

As idéias expostas ao longo do presente artigo identificaram que o modelo intervencionista do pós-guerra, baseado no providencialismo e no Estado de bem-estar social, se mostrou ineficiente ante a realidade econômica a partir da década de 70. Tal realidade motivou o retorno de tendências marcadamente liberais, baseadas na liberalização, desregulamentação e privatização, características essas denominadas de neoliberais.

A crise financeira ocorrida no de 2008, nos Estados Unidos da América, demonstrou o risco sistêmico e a fragilidade dos pressupostos desregularizadores que marcaram as décadas precedentes. Tais fatos geraram a necessidade de um debate público acerca da necessidade de reforma dos sistemas de regulação e fiscalização dos mecanismos financeiros como forma de proteção e prevenção do sistema financeiro global, surgindo assim, a questão da autorregulação.

Entretanto, verificou-se que o debate público sobre o tema regulação é contraditória e desconetxtualizada visto que, em geral, trazem a idéia de que a solução para prevenir riscos futuros de uma crise financeira passa pela necessidade de incremento de maior regulação do Estado, eis que a discussão é comumente travada sob um viés maniqueísta e puramente ideológico

Rompendo esse obstáculo, qualquer reforma significativa de regulamentação a longo prazo no setor financeiro, deve considerar seriamente o papel potencial que a autorregulação tem como mecanismo fundamental para controlar e minimizar o risco. Quando se fala em autorregulação, não se está dizendo que esta decorre de normas oriundas do próprio mercado sem a necessidade de interferência do Estado, até porque a finalidade do presente estudo

cingiu-se à análise daquela como atribuição, a partir de um processo de regulação pelo Estado. Ou seja, atribuição de deveres de autodisciplina aos agentes econômicos na condução de sua atividade adaptadas à realidade que norteia o mercado e as relações econômicas.

A autorregulação é uma espécie de sistema misto e possui diversas vantagens sobre a regulação direta do governo, como, por exemplo, a (i) capacidade superior de acesso e avaliação econômica; (ii) capacidade para vigiar e regular suas próprias operações; e (iii) atuar como forma de recuperar a confiança dos investidores, baseado na reiterada demonstração de cumprimento dos requisitos regulatórios, bem como não está adstrita a foros, podendo conferir eficácia internacionalmente. Assim, a autorregulação é o resultado indeclinável da necessária evolução do modo como os Estado regula o mundo empresarial

Ao final, foi demonstrado que a discussão acerca da adoção de políticas internas de prevenção e de gerenciamento do risco na atividade empresarial, através de sistemas autorreferenciais de autorregulação regulada, denominados de compliance, tem ganhado espaço para discussão a fim de incentivar a adoção e a implementação de regras internas. Essa postura contribui para o afastamento de condutas lesivas à atividade econômica bem como, em um primeiro momento, diminui o risco sistêmico e a adoção de medidas repressivas pelo Estado

 

7.  Referências

 

BACIGALUPO, Enrique. Compliance y Derecho Penal. Pamplona: Thomson Reuters, 2011.

 

CALADO, Luiz Roberto. Regulação e Autorregulação do Mercado Financeiro. São Paulo: Saint Paul, 2009.

 

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* Advogado, Mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Estado do Paraná, Professor de Direito Processual Penal da Faculdade Metropolitana de Curitiba – PR.