AS IMPLICAÇÕES DO ANPP NAS ESFERAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR

Jéssyca Priscila Hayume Tamiya e Joelson Pereira Alves
O Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) é um instituto que foi inserido
no art. 28-A do CPP, a partir da vigência da Lei 13.964/2019, conhecida como pacote ou lei
anticrime. É válido salientar que a justiça penal negocial não é recente na legislação brasileira,
uma vez que a Lei 9.099/95 já elencava a possibilidade de transação penal e a suspensão
condicional do processo, ao lado do acordo de leniência (Lei 12.846/2013) e da colaboração
premiada (Lei 12.850/13).
Por certo, começaram a surgir inúmeras críticas por parte da doutrina. A
saber, não era nítido como o Acordo de Persecução Penal reagiria diante dos princípios da
segurança jurídica, da indisponibilidade da ação penal pública, da impessoalidade, da ampla
defesa, do contraditório e, de certa forma, como responderia diante do devido processo legal
em geral. Afinal, esse instituto veio para aprimorar o consenso, o diálogo, ou seja, a justiça
negociada no processo penal.
Em suma, o ANPP é um negócio jurídico extrajudicial que acontece
mediante proposta do Ministério Público para o investigado que deve estar sendo assistido
pelo seu defensor em todas as tomadas de decisões. Caso o acordo seja aceito pelo
investigado, deverá ser, em seguida, homologado pelo juízo competente, no qual será passado
para o mesmo todas as condições do acordo, ou seja, as condições não privativas de liberdade,
que geralmente é algum tipo de serviço comunitário e/ou multa, em troca do compromisso de
o Parquet não oferecer a denúncia, tendo em vista, que esse acordo acontece, geralmente, antes da persecução penal iniciar. Assim sendo, se o acordo for cumprido integralmente, a
punibilidade do agente é extinta.
Com efeito, pode ser celebrado independentemente da natureza do
procedimento investigatório – seja ele um inquérito policial ou um PIC – procedimento
investigatório criminal. Nessa toada, em observância ao sistema acusatório, outorgou-se ao
titular da ação penal pública a legitimidade para o oferecimento do referido instituto
despenalizador.
O art. 28-A, §3º, CPP dispõe que: “O acordo de não persecução penal será
formalizado por escrito e será firmado pelo membro do Ministério Público, pelo investigado e
por seu defensor.” Logo, Note-se que o Ministério Público detém a legitimidade para propor o
ANPP “desde que necessário e suficiente para reprovação do crime” diante dos requisitos de
confissão formal e circunstancial da prática da infração penal, sem violência ou grave ameaça
e com pena mínima inferior a quatro anos.
Vale ressaltar que, a confissão formal e circunstanciada do crime tem esse
problema: a partir do momento que a pessoa confessa, de forma detalhada, essa confissão
pode ser levada a outros processos. Mas como faz? Porque o ANPP só atinge a esfera penal,
como que faz lá no PAD, na Improbidade.
Nesse sentido, é visível as dificuldades que surgem com o acordo
extrajudicial e pré-processual, razão pela qual deve haver uma diferenciação do que seja um
ilícito penal e administrativo. Por um lado, se o réu confessar o crime de forma detalhada
conseguirá a não persecução penal, já por outro lado, toda essa confissão detalhada poderá ser
utilizada em uma possível Improbidade administrativa e até mesmo em um PAD.
A Lei 12.850/13, em seu artigo 4º, § 10, estabelece que: “As partes podem
retratar-se da proposta, caso em que as provas autoincriminatórias produzidas pelo
colaborador não poderão ser utilizadas exclusivamente em seu desfavor.” Assim, é evidente
que havendo a retratação, as provas produzidas não poderão ser utilizadas. No entanto, o
debate acerca da possibilidade de valer-se da confissão como meio de prova após a rescisão
do ANPP gera polêmica.

Um dos requisitos para que aconteça o Acordo de Não Persecução Penal é a
exigência de confissão formal e circunstanciada do investigado, ou seja, na prática o
investigado deverá confessar o crime, com detalhes. Logo, na esfera penal, depois de
cumprida as exigências, e extinta a punibilidade, o Ministério Público poderá se valer dessa
confissão formal e circunstanciada para usar no direito administrativo sancionador.
Sobre isso, afirma a doutrina:
“A unidade do jus puniendi do Estado obriga a transposição de garantias
constitucionais e penais para o direito administrativo sancionador. As
mínimas garantias devem ser: legalidade, proporcionalidade, presunção de
inocência e ne bis in idem” (OLIVEIRA, Ana Carolina. Direito de
Intervenção e Direito Administrativo Sancionador, 2012, p. 241).
A partir dessa compreensão, é visível que, o princípio do ne bis in idem, está
elencado para que não haja condenação nas duas esferas, ou seja, se o investigado fez o
Acordo de Não Persecução Penal, indicando e confessando com detalhes o ilícito, essa
confissão não deve ser utilizada para que o mesmo seja condenado no âmbito administrativo,
como, por exemplo, perdendo a função pública que exerce.
Com isso, vale ressaltar o artigo 935 do Código Civil, o qual disciplina que:
“A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a
existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem
decididas no juízo criminal.”
Destarte, se as questões já foram decididas no juízo criminal, mesmo com
natureza administrativa, não se deve falar em responsabilização no âmbito administrativo,
uma vez que as questões já foram resolvidas através de um Acordo de Não Persecução Penal.
A Constituição Federal anuncia, no art. 37, § 4º, uma noção de
independência entre as diferentes esferas sancionadoras:
“Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos
políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário,
na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.”
4
Explica-se: o subsistema do direito penal comina, de modo geral, sanções
mais graves do que o direito administrativo sancionador. Isso significa que mesmo que se
venha a aplicar princípios penais no âmbito do direito administrativo sancionador – premissa
com a qual estamos totalmente de acordo, o escrutínio do processo penal será sempre mais
rigoroso. A consequência disso é que a compreensão acerca de fatos fixada definitivamente
pelo Poder Judiciário no espaço do subsistema do direito penal não pode ser revista no âmbito
do subsistema do direito administrativo sancionador. Todavia, a construção reversa da
equação não é verdadeira, já que a compreensão acerca de fatos fixada definitivamente pelo
Poder Judiciário no espaço do subsistema do direito administrativo sancionador pode e deve
ser revista pelo subsistema do direito penal – este é ponto da independência mitigada.

REFERÊNCIA
OLIVEIRA, Ana Carolina. Direito de Intervenção e Direito Administrativo Sancionador,
2012, p. 241.


Jéssyca Priscila Hayume Tamiya: Pós-graduanda em Direito Penal Econômico pela Pontifícia Universidade Católica – PUC/PR, campus
Londrina-PR. Advogada.
Joelson Pereira Alves: Estudante de Direito na Universidade Federal do Paraná - UFPR.


Da (im)prescindibilidade do periculum in mora nas medidas cautelares patrimoniais no processo penal

Por: Gabriel Henrique Halama e Pedro Henrique Nunes

A fim de assegurar os efeitos da condenação consistentes na perda do produto do crime e na reparação do dano causado pelo delito (art. 91, I e II, CP), o Código de Processo Penal prevê, no Capítulo VI do Título VI, as "medidas assecuratórias", também denominadas "medidas cautelares patrimoniais". Tendo em vista a disposição do CPP, a doutrina costuma dividi-las em: (i) sequestro de bens (arts. 125 a 132), (ii) especialização e registro da hipoteca legal (arts. 134 a 135) e (iii) arresto prévio e de bens móveis (arts. 136 e 137)1.

 

De modo geral, são necessários dois elementos para a decretação dessas medidas: (i) o fumus commissi delicti, traduzido na necessidade de indícios suficientes de autoria e materialidade delitiva; e (ii) o periculum in mora, o qual "se relaciona aos riscos provenientes da natural demora da prestação jurisdicional dita principal, vale dizer, do perigo concreto que a delonga no acertamento do direito pode acarretar à eficácia prática de futura sentença"2.

 

Quanto ao segundo elemento, a acusação deve demonstrar que o réu estaria praticando atos que poderiam acarretar a alteração ou a redução do seu patrimônio, capazes de colocar em risco eventual ressarcimento ao lesado, o pagamento de penas pecuniárias, as despesas processuais e o perdimento dos proventos do crime. Para tanto, não basta a manifestação de um risco abstrato ou suposição (presunção) de que, como decorrência do recebimento da denúncia, ocorrerá o desfazimento ou dissipação dos bens pelo réu3.

 

Ocorre que a necessidade de demonstração do periculum in mora para a decretação das medidas cautelares patrimoniais no processo penal tem sido relativizada pela jurisprudência pátria. Observa-se o alastramento de precedentes propugnando ser dispensável a demonstração concreta do perigo na demora do acautelamento dos bens do acusado.

 

À vista disso, foram levantados, selecionados e analisados acórdãos do Tribunal Regional Federal da 4ª região (TRF-4) proferidos nos últimos dois anos, a fim de compreender quais os fundamentos de que os julgadores se valem para embasar a dispensa desse requisito das medidas cautelares patrimoniais4.

 

A partir do exame realizado, averiguou-se que o TRF-4, em uníssono, entende ser prescindível a demonstração concreta de que há algum perigo na satisfação final do processo para o acautelamento patrimonial. Vale mencionar, não foi encontrada nenhuma decisão em sentido contrário, isto é, exigindo que a acusação demonstre o perigo na dissipação dos bens. Ademais, observou-se que a maior parte das decisões encontradas tem o tema por consolidado jurisprudencialmente, razão pela qual a fundamentação não ultrapassa o fundamento de que "o periculum in mora é pressuposto pela lei, conforme precedentes".

 

Por exemplo, há reiterados votos do Desembargador Federal João Pedro Gebran Neto de que "não há necessidade de se evidenciar com elementos concretos e específicos o periculum in mora, pois este é pressuposto pela lei, notadamente nos casos de crimes praticados contra a administração pública". Este trecho é reproduzido em vários julgados, em alguns casos acompanhado de poucos acréscimos5. Por vezes, suas decisões trazem complemento no sentido de que por conta do "risco de não ser garantido o valor fixado na sentença a título de reparação de danos, deve vigorar nesse momento processual o elemento da cautelaridade".

 

Do mesmo modo, há julgados de relatoria dos Desembargadores Federais Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, Danilo Pereira Junior, Cláudia Cristofani, Márcio Antônio Rocha e Marcelo Malucelli apontando para a jurisprudência já consolidada daquela Corte de que o periculum in mora, nas cautelares penais, se dá por presunção legal, prescindindo de demonstrações de dilapidação do patrimônio ou má-fé do acusado6.

 

Em todos esses precedentes, a despeito da menção abstrata à presunção do periculum in mora na decretação das medidas cautelares patrimoniais, deixa-se de indicar o fundamento legal de que se extrai tal entendimento. Quando muito, são citados acórdãos do próprio TRF-4, em um movimento jurisprudencial que se retroalimenta.

 

No recorte jurisprudencial analisado, os votos da Desembargadora Federal Salise Monteiro Sanchotene foram os que mais se destacaram, porquanto fundamentam com maiores detalhes os decretos de medidas constritivas. Também prepondera em seus votos a presunção quanto ao periculum in mora nas medidas cautelares patrimoniais, porém se avança um pouco mais ao adaptar o fundamento jurídico ao caso concreto. No julgamento da Apelação n.º 5008589-29.2019.4.04.7000, referente à "Operação Integração II", por exemplo, o acórdão adota como norte a natureza dos delitos imputados (corrupção, fraude em licitações, peculato, associação criminosa e lavagem de dinheiro, entre outros) para fundamentar a imposição das medidas assecuratórias em desfavor dos acusados. Especificamente nos casos de lavagem de capitais, consigna-se que o periculum in mora seria presumido, pois "a própria natureza do crime em tela, que tem na sua estrutura as fases de dissimulação, ocultação e integração, autorizam presumir uma disposição dos agentes envolvidos em não facilitar o acesso aos bens ou valores". Outrossim, retoma-se o argumento acima exposto no sentido de que haveria "uma plausível possibilidade de dissipação do patrimônio existente até o trânsito em julgado, ao saber que são investigados"7. No que tange aos delitos contra a Administração Pública, - diferentemente dos demais precedentes analisados - o acórdão faz referência a dispositivos legais em que embasa a presunção do periculum in mora nas medidas impostas. Aduz-se que "os delitos imputados podem configurar atos de improbidade que importem em enriquecimento ilícito, tendo as apelantes como beneficiárias", de modo que "a indisponibilidade dos bens obtidos decorre de imposição constitucional e legal, prescindindo da demonstração de perigo de demora para sua decretação, nos termos do art. 37, § 4º, da Constituição Federal e artigos 6º e 7º da lei 8.429/1992".

 

Dentre as decisões analisadas, esta última foi a que mais forneceu elementos para compreender os fundamentos da presunção absoluta do "perigo na demora" para a decretação das medidas assecuratórias. Porém, trata-se de fundamentação que não pode ser aplicada a todo e qualquer caso, vez que se refere especificamente a crimes de lavagem - considerando os atos de dissimulação patrimonial que inexoravelmente se conectam a esse tipo de delito -, ou a condutas que, além de punidas penalmente, configurem atos de improbidade - utilizando-se como fundamento legal, neste caso, a lei 8.429/1992.

 

A partir do observado, é possível concluir que o entendimento do TRF-4 acerca da presunção legal de periculum in mora para a decretação de medida cautelares patrimoniais, dispensando a demonstração concreta de sua ocorrência, viola uma série de princípios inerentes às medidas cautelares.

 

De início, o entendimento jurisprudencial ora exposto viola a necessária preventividade das medidas cautelares, princípio segundo o qual a finalidade desse tipo de tutela é a prevenção da ocorrência de um dano irreparável ou de difícil reparação, como a dilapidação do patrimônio8. Por se tratar de medidas que visam garantir um provimento final - este, sim, de caráter definitivo -, as medidas assecuratórias não podem ser consideradas como um fim em si mesmas. Somente podem ser aplicadas quando demonstrado o perigo na eficácia do mencionado provimento final, sob pena de com este se confundirem e de possibilitar sua aplicação automática em todo e qualquer caso. Isso também viola a provisoriedade da medida, vez que inexistiriam argumentos aptos a possibilitar a sua revisão.

 

Além disso, salienta-se que as medidas cautelares não se baseiam em um juízo de certeza, mas em cognição sumária sobre os elementos constantes no inquérito policial ou na ação penal. Tendo em vista essa particularidade, a inexigibilidade do periculum in mora ofende o estado de inocência, uma vez que antecipa os efeitos patrimoniais da condenação - a indisponibilidade dos bens - sem que exista uma condenação criminal, baseando-se apenas em indícios de autoria e na materialidade do delito9.

 

Ademais, as medidas cautelares patrimoniais existem exatamente para assegurar a eficácia dos efeitos da condenação declarados em sentença nas hipóteses em que se aguardar até o trânsito em julgado da condenação pode tornar ineficaz o provimento final. Sob essa perspectiva, negar a necessidade de demonstração do "perigo na demora" significa negar uma característica da própria medida cautelar aplicada10.

 

Não se pode olvidar, ainda, que as medidas assecuratórias incorrem em restrição ao patrimônio do acusado sem a existência de uma cognição exauriente sobre os fatos imputados, razão pela qual deve ser demonstrada a efetiva necessidade de sua aplicação, sob pena de se violar o princípio da proporcionalidade11.

 

Os precedentes analisados também afrontam o princípio da motivação, uma vez que, ao não enfrentarem devidamente a questão da necessidade de demonstração do periculum in mora, limitando-se a alegar uma suposta presunção abstrata do requisito, sem apresentar um fundamento legal para tanto, há o descumprimento do dever constitucional de fundamentação das decisões (art. 93, IX, CF), o que dificulta, ainda, o exercício do direito ao recurso pelos acusados.

 

Por fim, eventual argumentação no sentido de que a lei processual penal não exige expressamente a demonstração do periculum in mora para a concessão de medidas cautelares patrimoniais perdeu sentido com a previsão do §1º do art. 315 do CPP (introduzido pela lei 13.964/2019). O dispositivo determina que "na motivação da decretação da prisão preventiva ou de qualquer outra cautelar, o juiz deverá indicar concretamente a existência de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada". Essa exigência de apresentação de "fatos novos ou contemporâneos" representa o fundamento legal do periculum in mora, uma vez que as medidas cautelares - inclusive as patrimoniais - não podem ser aplicadas com base em presunções abstratas, tal como sustentou os acórdãos analisados12.

 

Ante o exposto, o entendimento jurisprudencial - mais especificamente, do Tribunal Regional Federal da 4ª região para fins desse estudo - de que o periculum in mora é presumido pela lei, de modo a não se exigir a sua demonstração para a decretação das medidas assecuratórias, não se coaduna aos princípios inerentes às medidas cautelares, do que decorre a urgência de um olhar mais detido sobre este posicionamento, evitando-se que seja aplicado de modo automático sem um enfrentamento ponderado acerca do tema.

 

O conteúdo desta coluna é produzido pelos membros do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da Universidade Federal do Paraná - NUPPE UFPR.

 

*Gabriel Henrique Halama De Lima é acadêmico de Direito da UFPR. Estagiário do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Membro do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da UFPR.

 

**Pedro Henrique Nunes é acadêmico de Direito da UFPR. Estagiário do escritório Lamers Advogados. Membro fundador e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da UFPR.

 

__________

 

1 BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 8. ed. São Paulo: RT, 2020. p. 1263.

 

2 SOUZA, Alexander Araújo de. O abuso do direito no requerimento de medidas cautelares típicas e atípicas no processo penal vol. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. [Ebook].

 

3 TORNAGHI, Hélio. Curso de processo penal vol. 1. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 210.

 

4 Para melhor compreender a fundamentação, também foram analisados os acórdãos citados ao longo dos julgados encontrados.

 

5 Com esses exatos termos, todos de relatoria do Des. Fed. João Gebran Neto, pela 8.ª Turma: ACR 5030548-22.2020.4.04.7000, j.  25 fev. 2021; ACR 5061219-62.2019.4.04.7000, j. 9 dez. 2020; ACR 5032072-88.2019.4.04.7000, j. 15 out. 2020; ACR 5031321-04.2019.4.04.7000, j. 24 jun. 2020; ACR 5031320-19.2019.4.04.7000, j. 21 mai. 2020.

 

6 Nesse sentido, todos do TRF-4: ACR 5020767-98.2019.4.04.7100, 7ª T, Rel. Des. Fed. Danilo Pereira Junior, j. 10 jun. 2021; ACR 5041275-84.2013.4.04.7000, 8ª T, Rel. Des. Fed. Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, j. 19 dez. 2019; ACR 5001092-66.2017.4.04.7118, 7ª T, Rel. Des. Fed. Cláudia Cristina Cristofani, j. 28 nov. 2019; ACR 5002476-04.2016.4.04.7117, 7ª T, Rel. Des. Fed. Márcio Antônio Rocha, j. 18 abr. 2017; ACR 5009018-35.2015.4.04.7000, 7ª T, Rel. Des. Fed. Marcelo Malucelli, j. 14 out. 2015.

 

7 TRF-4, 7ª T, ACR 5008589-29.2019.4.04.7000, Rel. Des. Fed. Salise Monteiro Sanchotene, j. 21 ago. 2019. Fundamento semelhante atrelado ao risco de dissipação dos bens devido ao conhecimento das investigações, foi utilizado em outros recursos de sua relatoria, tais como na ACR 5019811-91.2019.4.04.7000, julg. 07 nov. 2019 e na ACR 5008581-52.2019.4.04.7000, julg. 21 ago. 2019.

 

8 BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018. p. 939.

 

9 ESSADO, Tiago. A perda de bens e o novo paradigma para o processo penal brasileiro. Tese (Doutorado em Direito) - Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo - SP, 2014. p. 195-196.

 

10 Ibid, p. 941-942.

 

11 LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal.18. ed. São Paulo: Saraiva, 2021. p. 659.

 

12 DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de processo penal. 7ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021[Ebook].


“O DUPLO BINÁRIO COMO SUPER TRUNFO NOS FATOS ECONÔMICOFINANCEIROS: APROXIMAÇÃO CRÍTICA À LUZ DA VEDAÇÃO AO BIS IN IDEM”

Por: Marco Jorge Eugle Guimarães

Há muito se constrói um racional, em nosso mundo jurídico, que as esferas cível, administrativa e penal são independentes entre si e, eventual fato poderá ser objeto de avaliação judicante em todos os ramos do direito, ressalvada a hipótese de reconhecimento, pela esfera penal, de que o fato não constitui delito ou não se tenha verificado que o imputado seja o autor do fato.

Nesse norte, a doutrina1 acerca de tal temática se debruça numa interpretação literal de nossa Carta Magna, a qual, em seu arquétipo analítico, não fez consignar o impedimento do cognominado bis in idem interdisciplinar ou transversal e, muito pelo contrário, reforçou a possibilidade persecutória nas instâncias administrativo sancionatória e penal, quando determinado fato jurídico comporte responsabilização em ambas as esferas. Por exemplo, no âmbito de questões que envolvam atos de improbidade administrativa, o artigo 37, §4º da Lex Legum aduz que, uma vez constatados tais fatos e, erigido um julgamento procedente da demanda, “importarão na suspensão de direitos políticos, perda da função pública, a indisponibilidade dos bens do autor dos fatos e o ressarcimento ao erário, sem prejuízo de ação penal cabível”.

Por mais que a abalizada doutrina clássica e as normas consuetudinárias sustentem a impossibilidade de dupla sanção penal pelo mesmo fato, hodiernamente, o direito penal econômico nos confere facetas que visam estrangular o particular nas mais variadas frentes de atuação, em detrimento de um determinado fato. Fato é que, quando a abordagem da casuística aporta à seara penal, muitas das vezes já o fazem pela mera condição protocolar, visto que a esfera precedente, logrou intento na coleta de todas as evidências, com adoção de medidas acautelatórias pessoais e reais, assim como medidas assecuratórias para garantir o ressarcimento dos danos ao Estado-Persecutor. Trata-se de uma prevalência sem fim do Estado em detrimento do particular, isto é, a hipertrofia do Poder Público2 por meio dos órgãos reguladores e de persecução, em desfavor da hipotrofia do particular, que se encontra desamparado pelo próprio ordenamento jurídico, o qual fomenta esse blitzkrieg persecutório.

Ao nosso sentir, o texto constitucional acima apontado nos permite uma margem interpretativa a partir de remissões do Poder Legislativo, o qual encontra-se incumbido de estabelecer gradações e formas de sanções em casos alusivos ao direito administrativo sancionador que ricocheteiem no direito penal. E é a partir dessa margem interpretativa – que até então não fora clarificada pelo órgão legiferante – que compreendemos pela vedação do bis in idem entre as esferas da administrativização do direito penal e do direito penal originário dos órgãos persecutores.

Há muito, propugna-se, no âmbito do direito penal que, tal ramo do direito tão somente será instado a exercer seu poder coercitivo quando as esferas precedentes – civil ou administrativa – não alcançarem uma satisfação real de tutela do bem jurídico posto à prova. Ou seja, fazendo alusão à Teoria dos Círculos, inicialmente, verifica-se que, se o bem jurídico tutelado é socorrido pela primeira camada de controle social, qual seja, do direito civil. Se houver solução à contenda instalada, restabelecida está a pacificação social. Caso não tenha solucionado adequadamente a celeuma, convém a manutenção da persecução, porém, em outro ramo do direito, qual seja, o direito administrativo. Uma vez mais, se tal ramo jurídico alcançar a resolução do conflito com o restabelecimento da ordem, não se faz necessário a continuação da via crucis sancionatória. No entanto, caso tal esfera jurídica prevarique na obtenção de eficácia plena à luz da casuística, impõe-se o chamamento da ultima ratio para solução da controvérsia.

Vejamos que esse estabelecimento de gradação, com alcance da seara penal, é conferido ao Poder Legislativo, sob o holofote do Princípio da Necessidade Penal3, que ao nosso olhar, data máxima vênia, vem sendo escanteado pelos órgãos de controle social, com fulcro num direito penal midiático.

Alguns exemplos que conseguimos deduzir, de plano, com enfoque no direito penal econômico, seriam: (i) cobranças de débitos tributários e seu respectivo processo administrativo – ausência de pagamento voluntário após procedimento fiscal culmina na imediata comunicação, por meio de representação fiscal para fins penais, ao Ministério Público correlato, para adoção das medidas criminais em desfavor do responsável tributário. Uma vez quitado o valor atinente ao débito tributário no curso da persecutio criminis in judicio acarreta a extinção da punibilidade da pena alusiva ao delito contido na Lei nº. 8.137/1990 e, conseguintemente, ao procedimento fiscal arrecadatório atrelado ao Fisco; (ii) instauração de procedimento administrativo perante a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) por suposta prática de oferta de investimentos coletivos sem autorização legal para tanto – pessoa jurídica que se encontra sujeita a apuração prévia perante a autarquia federal, que será julgada por membros do alto escalão do próprio órgão, está um passo atrás de um fairplay processual administrativo. Ao final desse processo administrativo, é condenado a paralisar suas atividades por determinação da aludida autarquia (stop order), com sujeição à multa arbitrada em valores astronômicos e imediata comunicação o dominus litis, visando a responsabilização penal de seus sócios administradores. Paralelamente, ante o engessamento da sua atividade empresarial decorrente de uma decisão administrativo-estatal (intervenção do estado na liberdade econômica do sujeito), os clientes da empresa voltam-se contra a ela, visando indenização dos valores investidos que não foram ressarcidos.

As indagações que se colocam são: o Estado-Persecutor não teria meios coercitivos, no âmbito da via administrativa, para exigir a quitação dos tributos em aberto? Precisaria, de fato, submeter uma cobrança fiscal à conhecimento do dominus litis para se deflagrar uma ação penal, visando o recolhimento de tributos? Estaria o Estado lançando mão de uma arrecadação predatória em face do contribuinte, que poderia ser solvida no âmbito do próprio processo administrativo? Quanto ao exemplo lançado acerca da suposta oferta de investimentos coletivos, seria necessária a interrupção das atividades da empresa, afetando inúmeras vidas, direta e indiretamente, máxime a condição reputacional posta em face da empresa alvo das apurações? Qual seria vantagem conferida ao Estado a partir da interrupção de operação de empresa atrelada à investimentos coletivos?

Questionamentos tais deveriam ser aviados ex ante a edição de normas de conotação delitiva.

Como tais indagações não foram consideradas previamente à elaboração das legislações penais extravagantes atinentes à matéria, pressupõe-se a constitucionalidade das normas, até que o órgão judicante Supremo interprete de forma diversa. Logo, se há vigência e aplicação dos mecanismos legais disponíveis ao Estado-Persecutor, temos que as normas procedimentais administrativas acabam por integrar o espectro penal, ainda que de forma relutante, tornando-se um subsistema penal indispensável4, pois sem ele, não se poderá recorrer a última esfera do ramo do direito.

Ante tal explanação, temos que o direito administrativo sancionador, inspirado num viés de intervenção da propriedade do sujeito estabelece, ainda que embrionariamente, um vínculo umbilical com o direito penal substantivo e adjetivo, visto que no âmbito processual, os elementos de informação e provas produzidas na via administrativa, por regra, são aproveitados nas fases preliminar e de instrução criminal, sumarizando as ações persecutórias dos órgãos de controle institucionais.

Vejamos que, em tempos modernos, pode-se suscitar a existência de um modelo processual penal tripartido, quando o enfoque material versar sobre questões atreladas ao direito penal econômico, pois o processo administrativo sancionador, por ricochete, já integra a persecução criminal por tudo que se instrumentaliza em seu bojo e, por tudo que representa no tocante a instrução criminal – como cediço, autarquias e órgãos reguladores servem como assistentes à acusação do Ministério Público, visando fortalecer as teses acusatórias. Estamos diante, verdadeiramente, da caças às bruxas!

De outra banda, inspirados em Tratados e Convenções Internacionais, bem como em decisões reiteradas de Tribunais Internacionais, conseguimos apurar, de maneira mais consolidada, a existência de uma tese fronteiriça entre hipertrofia Estatal e a hipotrofia do particular no âmbito dos processos administrativos sancionadores e penais, qual seja, o Princípio da Independência Mitigada, o qual tem por escopo limitar a elasticidade a imputação pela via do duplo binário.

Tal princípio consiste, precipuamente, na compressão da independência das esferas do ramo do direito, a fim de se evitar sanções que culminem na bancarrota do particular, violando, de forma inconteste, a dignidade da pessoa humana.

Estribado na premissa do direito administrativo sancionador como subsistema do ordenamento jurídico-penal, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), nos idos de 2014, aderiu à tese da vedação de bis in idem entre o direito administrativo sancionador e o direito penal, por compreender que, ante a preexistência da sanção administrativa perante o órgão público respectivo, fulmina a necessidade de uma persecução penal em juízo, visto que já houve um severa punição por fato idêntico, ofendendo assim, as garantias individuais do cidadão, no mesmos termos do que predispõe a Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.

Em oportunidade pretérita, a mesma Corte, analisando uma situação em que envolvia sanções administrativas castrenses do Estado Russo e a persecução penal decorrente do mesmo fato, que imputou a um homem a sanção de 03 (três) dias de detenção, por ter inserido sua namorada em instalações militares, reconheceu que não seria o caso de atribuir nova sanção oriunda do mesmo fato5.

Como fundamento da decisão, se basearam nos “critérios Engel” (Engel criteria) consistente em: (i) analisar o grau de importância do ato perpetrado e, se tal ato já reflete um caráter penal em sua essência; (ii) verificar qual seria a esfera de proteção do bem jurídico tutelado no âmbito do direito administrativo sancionador e, certificar se tal proteção não guarda relações íntimas com o direito penal, e; (iii) apurar se a sanção imposta ao apenado implica em alguma limitação ambulatória. No caso concreto, o ato de desordem na seara militar já se reveste de caráter penal, preenchendo, portanto, o primeiro critério. O bem jurídico tutelado na presente situação se ilustra na ordem pública e na dignidade humana, bens estes que já se encontram protegidos pela ultima ratio. E, por fim, a sanção administrativa de 03 (três) dias de detenção em caserna consignou um caráter penal, pois cerceou o direito de ir e vir do apenado.

Pelos procedimentos punitivos instaurados guardarem os mesmos fatos, substancialmente, determinou-se o afastamento de eventual sanção criminal com fulcro na vedação do ne bis in idem.

Já em território tupiniquim, tivemos a grata surpresa de, ao final de 2020, sermos agraciados com uma posição semelhante às Cortes Internacionais.

Nosso Pretório Excelso enfrentou a temática no âmbito de Reclamação Constitucional em sede Ação Civil Pública por atos de Improbidade Administrativa, haja vista a preexistência de um trancamento de Ação Penal, escorado de Habeas Corpus, com fundamento elementar na negativa de autoria do recorrente. Na espécie, o Ministro Relator, sua Exa. Gilmar Mendes6, aprofundando seus estudos na narrativa de ambos os procedimentos existentes em face do recorrente, vislumbrou que havia: (i) identidade de narrativas; (ii) identidade de conjunto fático e acervos probatórios na fundamentação dos procedimentos

paralelos.

O douto Ministro Relator passou a avaliar o artigo 37, § 4º, da Carta Constitucional e, estruturou, a partir de tal verbete, o Princípio da Independência Mitigada no âmbito do ordenamento jurídico pátrio. Em seus fundamentos, se estabeleceu, casuisticamente, uma lógica irrefutável sob a seguinte óptica: a profundidade do processo penal no tocante a coleta de evidências e demais provas é infinitamente maior do que de uma Ação Civil Pública por atos de Improbidade Administrativa. Ainda, a seleção desse arcabouço probatório para edificar um édito condenatório no âmbito do processo penal é muito mais rigoroso frente a um processo administrativo sancionador. Como, no caso concreto, o recorrente fora beneficiado pelo trancamento de Ação Penal, haja vista a sua ausência de autoria ou participação na empreitada criminosa, não havia motivos ótimos para sua manutenção da Ação de Improbidade Administrativa, em sede de processo administrativo sancionador, com espeque nos princípios da proporcionalidade, subsidiariedade e da necessidade.

Concluímos que, diante de tudo o que fora abordado no presente texto, o Estado arrimado na sua tríplice função, tem o dever constitucional de, inicialmente, analisar os projetos de leis incriminatórios – novatio legis incriminador – abalizados no Princípio da Necessidade Penal e seus corolários (Princípio da Fragmentariedade, Subsidiariedade e Intervenção Mínima) e desvencilhados de qualquer repercussão simbólica ou midiática, confrontar as normas administrativo-sancionatórias para checar se estas não supririam, a contento, o ajuste pretendido.

Superada a fase de lege ferenda, cabe ao Poder Judiciário o necessário controle, não só das normas postas, mas também dos excessos e arbítrios das Autoridades que se valem de super trunfos ou blitzkriegs procedimentais para, não só, alcançar seu intento persecutório, como também açoitar a dignidade humana do particular. Controle dos excessos são necessários!


Advogado Criminalista, Pós-Graduado em Direito e Tecnologia da Informação pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (POLI-USP) e Pós-Graduando em Direito Penal Econômico pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP).


1 CAVALLI, Marcelo Costenaro. Fundamento e limites da repressão penal da manipulação do mercado de capitais: uma análise a partir do bem jurídico da capacidade funcional alocativa do mercado. Tese para obtenção do título de Doutor em Direito. Universidade de São Paulo – USP. 2017.

2 MALAN, Diogo. Processo Penal aplicado à criminalidade econômico-financeira. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. 2015. RBCCrim 114.

3 MARTINELLI, João Paulo Orsini. DE BEM, Leonardo Schmitt. Lições fundamentais de direito penal – parte geral. 3ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2018, p. 173.

4 OLIVEIRA, Ana Carolina. Direito de Intervenção e Direito Administrativo Sancionador: o pensamento de Hassamer e o direito penal brasileiro 2012. Tese para obtenção do título de Mestre em Direito. Universidade de São Paulo – USP. 2012.

5 Öztürk c. Allemagne (Requête n. 8544/79), ECHR, 21 de fevereiro de 1984.

6 STF, Rcl. 41.557/SP, 2ª Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 14.12.2020.