Por: Guilherme Brenner Lucchesi[1] e Maria Victoria Costa Nogari[2]

No que se refere ao preceito primário dos dispositivos penais, a nova lei, em sua maior parte, operou continuidade normativo-típica.

Foi promulgada a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos – lei 14.133, de 2021. O inciso I do art. 190 da nova Lei determinou a revogação dos crimes previstos nos arts. 89 a 108 da lei 8.666, de 1993, e introduziu dentro do rol dos “Crimes Contra a Administração Pública” o Capítulo II-B intitulado “Dos crimes em licitações e contratos administrativos”. Assim, na nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos não há mais previsões específicas quanto a crimes licitatórios, tal como dispunha a Lei n.º 8.666.

Foram inseridos onze tipos no Código Penal – arts. 337-E a 337-O -, mas apenas o último é novo tipo penal incriminador (“omissão grave de dado ou de informação por projetista”). Em relação às condutas que já eram criminalizadas pela Lei n.º 8.666 – arts. 337-E a 337-N -, a maioria sofreu modificações no preceito secundário, com o aumento das penas cominadas e alteração do regime de detenção para reclusão (novatio legis in pejus). Aliás, o crime de violação de sigilo em licitação (art. 337-J, CP) foi o único que manteve integralmente o preceito secundário da antiga redação, prevista na Lei n.º 8.666.

No que se refere ao preceito primário dos dispositivos penais, a nova lei, em sua maior parte, operou continuidade normativo-típica1, com a manutenção da incriminação das condutas criminalizadas pela lei 8.666. Consequentemente, permanece hígida a persecução penal dos fatos cometidos antes da vigência desses novos (já conhecidos) tipos penais.

A exceção ficou por conta do art. 337-E do Código Penal (“contratação direta ilegal”), que reproduziu apenas parcialmente a redação do art. 89 da lei 8.666 e, assim, opera-se a abolitio criminis da conduta de “deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade”.

Observe-se que o art. 89 da lei 8.666 criminalizava as condutas de “dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade“. Repare-se que o novo art. 337-E, introduzido no CP pela lei 14.133, criminaliza a conduta de “admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei”. O legislador, claramente, deixou de fora uma das condutas criminalizadas pelo revogado art. 89:

Art. 89.  Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade:

Pena – detenção, de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa.

Parágrafo único.  Na mesma pena incorre aquele que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público.

Art. 337-E. Admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei:

Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.

 

Para ficar ainda mais claro, sublinha-se que o art. 89 da lei 8.666 veiculava três tipos penais mistos alternativos, de ação múltipla ou de conteúdo variado (aquele em que a prática simultânea/sucessiva de mais de uma conduta configura crime único): (i) “dispensar”, (ii) “inexigir” licitação fora das hipóteses previstas em lei ou (iii) “deixar de observar as formalidades” a ela pertinentes2. A incriminação destas condutas foi mantida em sua maior parte no art. 337-E do CP.

Houve, porém, a abolitio criminis quanto à conduta omissiva própria de “deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade”. Disso decorre a incidência retroativa do art. 337-E do CP – na parte que descriminalizou a conduta – mesmo aos processos judiciais com sentença transitada em julgado, conforme determina o parágrafo único do art. 2.º do CP.

Frise-se que, em relação à conduta descrita na segunda parte do art. 89 da lei 8.666 não houve continuidade normativo-típica, tal como nos demais crimes em licitações agora previstos no CP. Isso porque, na vigência da lei 8.666, o tipo penal abolido incidia justamente quando se tratasse de uma situação que autorizaria a dispensa ou inexigibilidade de licitação, mas ao fazê-la o servidor público descumpria algum dos preceitos normativos previstos na lei de regência para proceder essa dispensa ou essa inexigibilidade3.

Vale dizer, aquele que deixa de observar as formalidades relativas à dispensa ou inexigibilidade de licitação não pratica a conduta de contratação direta ilegal. Assim, “deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade” não se amolda aos preceitos veiculados no novo art. 337-E – “admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei”. Deste modo, não é possível sustentar a manutenção da criminalização da conduta prevista no art. 89 da lei 8.666 pelo novo art. 337-E do CP.

Essa mudança em benefício do acusado é surpreendente se cotejada com o maior rigor empregado pela nova lei aos crimes em licitações de um modo geral. Repisa-se que nove das dez condutas que já eram criminalizadas pela lei 8.666 sofreram novatio legis in pejus, tendo suas penas aumentadas e/ou alterado o seu regime de detenção para reclusão.

À vista disso, embora a abolitio criminis da modalidade prevista na segunda parte do art. 89 da lei destoe do espírito punitivista que permeia as alterações promovidas nos dispositivos penais pela lei 14.133, a doutrina já há algum tempo posiciona-se pela inconstitucionalidade da criminalização4 ou mesmo pela irrelevância penal da conduta em questão5.

Mesmo no âmbito legislativo, a Comissão de Juristas destinada à elaboração do Anteprojeto de Código Penal no Senado – composta por Luiz Flávio Gomes e Luiz Carlos Gonçalves, sob a presidência de Gilson Dipp – também já debatia em 2012 sobre a necessidade de se estabelecer a desnecessidade de pena em relação à conduta de “deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade”6.

Natural que aventassem a desnecessidade de aplicação de pena ao agente público que praticasse essa conduta. Tomada a “higidez” da Administração Pública como bem jurídico tutelado pelo art. 89 da lei 8.666, o delito era classificado como de perigo abstrato7. Ao inexigir ou dispensar licitação quando a lei a impõe, o gestor público pratica uma ação que coloca em perigo a lisura e transparência na contratação pública que, se tivesse sido realizada por meio do procedimento licitatório tal como legalmente imposto, permitiria a ampla competição e a observância da isonomia concorrencial8.

Entretanto, na conduta abolida, a hipótese era mesmo de dispensa ou inexigibilidade de licitação. Vale dizer, são situações em que a própria lei excepciona a exigência do procedimento licitatório para a contratação pública, de sorte que a regra geral de exigência de licitação não teria sido ilegalmente suprimida com a prática da conduta. Simplesmente, o agente público descumpriu uma das formalidades estabelecidas para não licitar, o que não representa nem mesmo um crime de perigo abstrato ao bem jurídico tutelado.

Em suma, com a segunda parte do art. 89 da lei 8.666, o legislador criminalizava mero error in procedendo praticado pelo agente público que erra no aspecto formal da execução do ato administrativo9, o que é, evidentemente, um exagero. Eventual violação nesse sentido pode ser satisfatoriamente resolvida no plano administrativo, com a aplicação das sanções que lhe são próprias. Mais desproporcional ainda tal conduta ser sancionada com a pena de três a cinco anos, a mesma cominada às condutas em que não se realiza o procedimento licitatório nas hipóteses em que não é dispensado ou inexigível.

Absolutamente acertada, portanto, a descriminalização da conduta de “deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade” prevista no art. 89, segunda parte, da lei 8.666, decorrente da nova Lei de Licitações. A razão consiste, basicamente, no fato de não se identificar na conduta descrita um bem jurídico punível pela mais grave das sanções, pelo uso do instrumento de ultima ratio, que é o Direito penal.

A conduta do agente público que comete erro administrativo, descrita na segunda parte do art. 89, não causa lesão ou colocação em perigo a bem jurídico algum – este entendido como “dados ou finalidades necessários para o livre desenvolvimento dos cidadãos, a realização de seus direitos fundamentais”10. Além de que, a respectiva conduta (se for o caso) sujeita-se às sanções da esfera administrativa, de sorte que buscar a sua evitação por meio da ameaça penal viola o princípio da subsidiariedade, em verdadeiro abuso do poder punitivo estatal.

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1 O mesmo ocorreu, v.g., com a revogação do art. 214 do CP (atentado violento ao pudor) e inclusão de seu conteúdo normativo-típico nos arts. 213 (estupro) e art. 217-A (estupro de vulnerável). Ver STJ, 5.ª T., HC 217.531/SP, rel. min. Laurita Vaz, DJe 2 abr. 2013.

2 BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito penal das licitações. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 143.

3 PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 399.

4 Sobre a conduta incriminada na segunda parte do art. 89, comenta BITENCOURT: “A rigor, temos dificuldade em aceitar a constitucionalidade dessa criminalização, que peca pelo excesso, violando, em outros termos, o princípio da proporcionalidade, considerando-se que mero error in procedendo, além de indevidamente criminalizado, e’ sancionado com pena de três a cinco anos de detenção e multa”. BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito penal das licitações. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 148.

5 Sobre a conduta incriminada na segunda parte do art. 89, comenta JUSTEN FILHO: “Se os pressupostos da contratação direta estavam presentes, mas o agente deixou de atender à formalidade legal, a conduta é penalmente irrelevante.” JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 17. ed. São Paulo: RT, 2016. p. 1399.

6 O tipo penal elaborado no Anteprojeto do Código Penal foi redigido da seguinte forma: “Art. 316. Deixar de observar as formalidades legais pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade de licitação, quando cabíveis: Pena – prisão, de um a quatro anos. Parágrafo único. Nos casos em que não houve prejuízo concreto à Administração Pública, o juiz poderá, examinando a culpabilidade do agente, deixar de aplicar a pena por ser desnecessária.” Disponível em: clique aqui. Acesso 7 abr. 2021.

7 LEITE, Alaor. Dolo e o crime de dispensa ou inexigência ilegal de licitação (art. 89 da Lei 8.666/1993) interpretação restritiva do tipo penal, responsabilidade penal do gestor público e a relevância jurídica da opinião técnica da procuradoria do município (STF, Inq. 2.482/MG). Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 104, p. 13-30, set-out. 2013.

8 BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito penal das licitações. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 132.

9 BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito penal das licitações. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 148.

10 ROXIN, Claus. O conceito de bem jurídico crítico ao legislador em xeque. Revista dos Tribunais, vol. 922, p. 291-322, ago. 2012.

 

[1] Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Mestre pela Cornell Law School (EUA). Attorney-at-law inscrito no New York State Bar. Advogado sócio da Lucchesi Advocacia.

[2] Acadêmica de Direito da UFPR. Associada ao Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico. Estagiária da Lucchesi Advocacia.