Por: Bibiana Fontella[1]

A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos foi promulgada pela Presidência da República, em 1º de abril de 2021, sob o n. 14.133. O objetivo do presente artigo é fazer algumas reflexões sobre o art. 178 da referida lei, o qual trata das infrações penais no âmbito das licitações e dos contratos administrativos, que foram retirados  da lei especial e incluídos no Código Penal.

Com a Nova Lei de Licitações foi incluído no Código Penal, o Capítulo II-B – Dos Crimes em Licitações e Contratos Administrativos, assim, os delitos licitatórios estão localizados nos artigos 337-E – 337-O, do Código Penal.

A inclusão dos crimes no âmbito das licitações e contratos administrativos no Código Penal é a política criminal mais adequada, visto que os tipos penais podem estar previstos no Código Penal ou podem estar elencados em Leis Específicas (Código de Trânsito Brasileiro, Estatuto do Idoso, Estatuto do Torcedor e vários outros). Contudo, esta não é a postura legislativa mais recomendada, se for levado em conta o próprio sistema penal. Em regra, os tipos penais estão localizados em um único diploma legal, este composto pela parte geral, que traz a dogmática penal, e, uma segunda parte com o rol de infrações penais. Entretanto, no sistema penal brasileiro houve uma enxurrada de legislações especiais trazendo tipos penais específicos fora do Código Penal, como acontecia com a revogada Lei n. 8.666/1993. Assim, apesar de vários pontos que devem ser alvo de crítica da Nova Lei de Licitações, aqui há um ponto a ser celebrado, pois colocou os crimes dentro do diploma legal mais adequado, resguardando a segurança jurídica, a previsibilidade e a proporcionalidade entre as penas, dentro da própria lógica sistêmica do Código Penal.[2]

Dos onze tipos penais incluídos no Código Penal, apenas um – art. 337-O – é novo em comparação com as condutas já previstas na revogada Lei n. 8.666/93, o qual trata da omissão grave de dado ou de informação por projetista. Em geral a Lei n. 14.133/2021 representa claro espírito punitivista, com maior rigor no preceito secundário de praticamente todos os tipos, com exceção somente do crime de violação de sigilo em licitações (art. 337-J, CP), que manteve a mesma pena da revogada Lei de Licitações.

Entretanto, em meio ao espírito punitivista é possível identificar uma abolitio criminis[3], o crime de contratação direta ilegal teve a sua redação alterada, com exclusão da parte final do tipo anterior:

 

Art. 89. Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou inexigibilidade:

Pena – detenção, de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa.

Parágrafo único. Na mesma pena incorre aquele que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público.

Art. 337-E. Admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei:

Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.

 

Além da exclusão da hipótese do parágrafo único, a segunda parte do tipo previsto no art. 89 restou excluída no art. 337-E, assim, a conduta de deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou inexigibilidade foi descriminalizada, podendo retroagir a fatos pretéritos, pois beneficia o réu, nos termos do art. 5º, XL, da Constituição da República. Apesar da descriminalização da segunda parte do tipo anteriormente descrito no antigo art. 89 só ter sido consagrada pela Lei n. 14.133/2021, a doutrina já se posicionava pela inconstitucionalidade daquela criminalização ou até mesmo pela irrelevância penal da conduta.[4]

Nos demais dispositivos legais não há significativas alterações no preceito primario, mas, com apenas duas exceções, no preceito secundário praticamente todos os tipos tiveram as sanções agravadas.

Os crimes de (i) violação de sigilo em licitação (art. 337-J) e de (ii) impedimento indevido de participação em licitação (art. 337-N) permaneceram com a mesma pena cominada.

Nos demais tipos, todas as penas privativas de liberdade foram majoradas, em alguns a pena mínima foi duplicada:

 

Tipo Pena Anterior[5] Pena Atual[6]
Contratação direta ilegal (art. 337-E) Detenção, de 3 a 5 anos. Reclusão, de 4 a 8 anos.
Frustração do caráter competitivo de licitação (art. 337-F) Detenção, de 2 a 4 anos. Reclusão, de 4 a 8 anos.
Patrocínio de contratação indevida (Art. 337-G) Detenção, de 6 meses a 2 anos. Reclusão, de 6 meses a 3 anos.
Modificação ou pagamento irregular em contrato administrativo (art. 337-H) Detenção, de 2 a 4 anos. Reclusão, de 4 a 8 anos.
Perturbação do processo licitatório (art. 337-I) Detenção, de 6 meses a 2 anos. Detenção, de 6 meses a 3 anos.
Violação de sigilo em licitação (art. 337-J) Detenção, de 2 a 3 anos. Detenção, de 2 a 3 anos.
Afastamento de licitante (art. 337-K) Detenção, de 2 a 4 anos. Reclusão, de 3 a 5 anos
Fraude em licitação ou contrato (art. 337-L) Detenção, de 3 a 6 anos. Reclusão, de 4 a 8 anos.
Contratação inidônea (art. 337-M) Detenção, de 6 meses a 2 anos Reclusão, de 1 a 3 anos.
Impedimento indevido (art. 337-N) Detenção, de 6 meses a 2 anos. Reclusão, de 6 meses a 2 anos.
Omissão grave de dado ou de informação por projetista Sem previsão anterior Reclusão, de 6 meses a 3 anos.

 

Verifica-se que com exceção dos crimes de (a) perturbação do processo licitatório e (b) violação de sigilo em licitação, que permanecem com pena de detenção, todos os demais delitos do comparativo acima são punidos com pena de reclusão. Além disso, destacam-se os crimes de (i) frustração do caráter competitivo de licitação e de (ii) modificação ou pagamento irregular em contrato administrativo em que as penas, tanto mínima quanto máxima, foram duplicadas. De tal forma que, dependendo do caso concreto, se a pena definitiva ficar acima do mínimo legal não será possível a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos e, possivelmente, o acusado terá que cumprir a pena em regime semiaberto ou fechado.

Inevitável observar que tal exasperação de pena assemelha-se ao atual discurso de combate à corrupção no cenário nacional[7], sendo importante destacar que a corrupção que se fala aqui é aquela vista a lato sensu, não delimitada aos tipos penais dos artigos 317 e 333 do Código Penal, mas aquela questionada em mídias sociais, pelo jornalismo oficial através de meios de comunicação e própria sociedade. As licitações como ferramenta das contratações públicas pode ser terreno fértil ações consideradas corruptas.[8] A exasperação das penas nos crimes licitatórios está na mesma linha de combate a corrupção presente nos últimos julgamentos do Supremo Tribunal Federal[9] e Superior Tribunal de Justiça[10] no tocante às alterações interpretativos do crime de corrupção passiva.

 


[1] Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professora de Direito Penal. Secretária-Geral do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico. Advogada Criminal.


[2] Neste sentido: ROCHA JUNIOR, Francisco Monteiro. Aspectos penais da nova de licitações. Disponível em https://www.migalhas.com.br/depeso/343097/aspectos-penais-da-nova-de-licitacoes. Acessado em 28.04.2021.

[3] LUCCHESI, Guilherme Brenner; NOGARI, Maria Victoria Costa. Nova lei de licitações: Em meio ao espírito punitivista, uma abolitio criminis. Disponível em https://www.migalhas.com.br/depeso/343497/nova-lei-de-licitacoes-em-meio-ao-espirito-punitivista. Acessado em 29.04.2021.

[4] BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito penal das licitações. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 148.

[5] Lei n. 8.666/93

[6] Código Penal (Lei n. 14.133/2021)

[7] De forma muito semelhante com o que ocorreu no discurso de caça as bruxas durante a inquisição. (Neste sentido: ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O nascimento da criminologia crítica: spee e a cautio criminalis. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020.)

[8] Neste sentido: ROCHA JUNIOR, Francisco Monteiro. Aspectos penais da nova de licitações. Disponível em https://www.migalhas.com.br/depeso/343097/aspectos-penais-da-nova-de-licitacoes. Acessado em 28.04.2021.

[9] STF, AP 695, Rel. Min. Rosa Weber, Primeira Turma, j. 06/09/2016.STF, Inq 4506, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 17/04/2018, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-183 DIVULG 03-09-2018 PUBLIC 04-09-2018.

[10] STJ, RESP 1745410, Relatora para Acórdão Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma. DJE 23 de outubro de 2018.


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