Por: Monique Pena Kelles [1]

Com a tendência expansionista do âmbito de proteção do direito penal como um todo, pode-se dizer que os delitos contra a ordem econômica, do ramo que compõe o que se convencionou chamar de direito penal econômico, representam grande contribuição para o alargamento do direito penal.

O conceito de bem jurídico nesse ramo do direito ainda hoje é motivo de discordâncias entre os estudiosos do tema. Afinal, há um bem jurídico bem delimitado quando se fala em delitos de cunho econômico? Ou estamos diante de uma proteção pouco compreendida, sujeita a interpretações variadas?

Pensar o bem jurídico no direito penal ainda se faz muito relevante, merecendo espaço de destaque para que se forme base sólida na aplicação da lei penal, sem atropelar os pilares essenciais do direito penal e por consequência, do Estado de Direito.

Em conformidade com o pensamento de Hassemer, a tendência que se nota é a de flexibilização de conceitos sólidos e bem delimitados, em nome da segurança, ou, sensação desta. Ou seja,

o ideal antropocêntrico, particularizado, com referencial individual, voltado ao erigimento de um elemento crítico limitador da gravosa intromissão juridico-criminal nos direitos fundamentais do cidadão apenas em situações imprescindíveis para harmônica convivência social, passa assim a ser abandonada em nome de outro modelo, qual seja, de gerenciamento de riscos, isto é, de pretensa segurança social. [2]

O direito penal certamente não foi e não é formulado para dar conta de fenômenos dessa magnitude. Daí o esforço de parte da doutrina em se voltar para um direito penal que seja capaz de enfrentar os problemas aos quais se propõe, sem que a intervenção penal seja chamada a “resolver” conflitos de demasiada amplitude.

Quando se pensa o direito penal, com suas clássicas modalidades de pena e responsabilização, é o homem e sua responsabilidade individual que está no centro da punição. Já na proteção da chamada “ordem econômica”, está-se em direção a uma impossibilidade de responsabilização individual no plano da fático, afinal, a proteção dada pelo direito penal é indiscutivelmente supraindividual e de certa forma, abstrata.

Mesmo diante de um desafio de trazer concretude ao tema, o que não se pode fazer, é criar subdivisões no direito sempre que nos deparamos com desafios intrincados nas mais diversas matizes. Ao pensar o direito penal econômico, como próprio nome diz, trata-se de uma linha do direito penal, deve-se, portando, ser tratado com as garantias e postulados formulados pelo direito penal clássico.

Com isso não se está querendo dizer que não se reconheça os avanços da sociedade. Naturalmente a lei penal deve acompanhar o desenvolvimento da sociedade, e a ela se adaptar para protegê-la nos limites a que se propõe.

O que aqui se chama atenção, é para um grande entrave ao lidar com esse ramo de delitos econômicos, que tem como característica lidar com fatos potencialmente delituosos, que são frutos de ações ou omissões advindos de uma ordem de fatores e agentes muitas vezes difícil de se delimitar.

Além disso, por se tratar de delitos que potencialmente lesam um grupo grande de atividades, surgem os tipos penais que punem os que intervieram ilegalmente nas chamadas ordens econômica, financeira, tributária, fiscal etc.[3] Pensando num contexto prático, punir penalmente um agente que dê causa a delitos dessa natureza, pode ser da ordem do impossível, uma vez que se pretenda punir nos moldes dos princípios básicos do direito penal como individualização da pena; culpabilidade; imputação subjetiva e demais.

Assim, face a dificuldade de constatação linear para prosseguir com uma clássica persecução penal, faz-se necessário pensar afundo como o direito penal pode lidar com esses casos que, sem dúvida, serão cada vez mais frequentes e diversos.

Ou seja, não se está dizendo que o direito penal deva sair de cena por completo, e sim, que talvez a resposta até então oferecida, através das tradicionais medidas penais, não seja a melhor resposta.

Na prática, o que se nota em países como o Brasil é a administrativização do direito penal na seara econômica, o que é negativo, visto que consagradora de ilegítima utilização deste gravoso meio de intervenção do Estado.[4]

Com o reduzido espaço nesse texto, será possível apenas apresentar a chamada teoria da intervenção de Winfried Hassemer, elaborada no final do século passado, que em muito contribui para a construção de um direito penal mais racional e condizente com os problemas atuais no que diz respeito aos delitos econômicos.

O diagnóstico do autor é no sentido de que, considerando o período pós Nuremberg, o direito penal passa por reformas expansionista, onde é permitido a modificação de conceitos que formavam até então a base do direito penal.

No caso específico do bem jurídico, o problema parece se acentuar ao longo do tempo, afinal “no tienen como objeto de preteccion sólo bienes jurídicos universales sino asimismo que estos bienes jurídicos están formulados de forma especialmente vaga”. (1995, p. 32)

O autor tem a pessoa humana como o centro da proteção penal, assim, seria incompatível com as garantias penais em conjunto com os princípios e valores democráticos, buscar a criminalização indiscriminada de condutas que simbolizam uma ordem social, construindo tipos penais abertos, além de ter na coletividade sua principal proteção.

Em termos gerais, cada vez mais se busca na punição penal a resposta para lidarmos com conflitos dos mais diversos e complexos, em nome de uma suposta segurança. É o que se observa na tendência de formulação de tipos penais de perigo abstrato e bens jurídicos que não dialogam com as propostas do direito penal clássico.

Construindo uma ponte entre direito penal e direito administrativo sancionador, a teoria da intervenção propõe uma resposta aos delitos econômicos, com previsão de uma maior interdisciplinaridade entre os ramos do direito. Seria essa uma espécie de terceira via que se situa entre o direito penal clássico e o direito administrativo sancionador, extraindo de cada um, as respostas mais adequadas ao lidarmos com a ordem econômica e áreas afins.

O que torna essa teoria peculiar no próprio pensamento de Hassemer, é que há possibilidade de sanção aplicada à bens jurídicos supraindividuais, justamente por concordar que há uma dificuldade peculiar em se traçar uma responsabilidade penal individual em delitos econômicos.

O direito de intervenção se desenvolveria a partir de regras mercadológicas, com a possibilidade de um controle estatal mais sutil e preventivo (ante a possibilidade de adoção de regras de controle interno e externo escoradas no direito de polícia), passando ao largo das questões relativas à imputação e à culpabilidade e sem as amarras de um processo hermético como é o processo penal, garantindo-se ao acusado, a seu turno, a certeza da impossibilidade de submissão a penas privativas de liberdade.[5]

A nota marcante do direito de intervenção seria, pois, a adoção de um complexo sistema de regras de prevenção técnica, aglutinando em um único ramo do direito normas sancionadoras oriundas do direito administrativo, do direito civil (responsabilidade civil por danos), do direito tributário, do trabalho e do direito penal, ocupando-se de uma contenção prematura de perigos em lugar de uma resposta penal posterior à lesão do bem jurídico. [6]

Hassemer apresentou propostas também nessa temática, nos fornecendo substrato para desenvolver ainda mais sua teoria da intervenção. Cabe a nós estudarmos as melhores propostas deixadas por quem se dedicou exaustivamente ao tema, elaborando como poderia se dar sua aplicação no contexto atual.

Eis o cenário que se põe para os pensadores do direito penal constitucional daqui em diante. Formular propostas e estratégias no campo dogmático, bem como no processo legislativo e de política criminal, que possibilite a expansão do direito penal, mas, sempre na direção correta, além de manter as garantias individuais intactas, em plena conformidade com a limitação do poder punitivo e do fortalecimento de Estado de Direito.


[1] Advogada e mestranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais


[2] SOUZA, Luciano Anderson. 2012, P. 162

[3] DISSENHA, Rui Carlo. Bem Jurídico penal supraindividual e a obrigatoriedade de repressão. P. 295

[4] SOUZA, Luciano Anderson de. Direito Penal Econômico. Fundamentos, Limites e Alterantivas p. 169

[5] MENTOR, Diogo. Teoria da. Intervenção: a alternativa de Winfried Hassemer à inflação dos crimes econômicos. p. 86

[6] HASSEMER, Winfried. Perspectivas del derecho penal futuro. 1998, p.40

Referências

DISSENHA, Rui Carlo. Bem Jurídico penal supraindividual e a obrigatoriedade de repressão. Grupo de Pesquisa, Liberdades Públicas e Direito Econômico

HASSEMER, Winfried. Perspectivas del derecho penal futuro.  Revista Penal, ano 1. 1998,

MENTOR, Diogo. Teoria de intervenção: a alternativa de Winfried Hassemer à inflação dos crimes econômicos. Rio de Janeiro. Lumen Juris. 2016

SOUZA, Luciano Anderson de. Direito Penal Econômico – Fundamentos, Limites e Alternativas. São Paulo. Quartier Latin, 2012.


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