A POSIÇÃO DE GARANTE NA RESPONSABILIDADE PENAL DOS GESTORES DA PESSOA JURÍDICA
Por Ronaldo dos Santos Costa[i] e Isadora Sartori Ried[ii]
A democratização dos riscos, que passaram a afetar todos os indivíduos, independemente de classe social, somada à sensação de insegurança que permeia a sociedade contemporânea, firma a necessidade de gestores de riscos, a fim de que o sentimento de insegurança se reduza frente à suscetibilidade aos danos, ao menos de modo a possibilitar a convivência em coletividade, tornando suportáveis as novas ameaças.
Por essa razão, a aproximação ao debate da omissão imprópria no direito penal contemporâneo demonstra necessariamente a tendência expansiva do direito penal, em especial em seu ramo econômico. Enquanto aparato mais forte, incisivo e deletério da esfera jurídica, pode ser utilizado para controlar esses riscos. Seu emprego, no entanto, não pode ser desenfreado, mesmo diante ao clamor para que seja continuamente expansível.
O tipo omissivo tem um aspecto objetivo e um subjetivo que apresentam características diferentes, eis que possuem uma estrutura diversa do tipo comissivo doloso. Dessa forma, no tipo omissivo não se requer um nexo de causação entra a conduta proibida, distinta da devida, e o resultado, mas se recorre ao nexo de evitação, ou seja, a alta probabilidade de que a conduta não realizada interromperia o processo causal que concluiu o resultado. [iii]
Nas palavras do Professor Zaffaroni, “esse nexo de evitação é estabelecido por uma hipótese mental similar à que empregamos para estabelecer o nexo de causação na estrutura típica ativa: se imaginamos a conduta devida e com isto desaparecer o resulta típico, haverá um nexo de evitação; enquanto que, se imaginamos a conduta e o resultado permanece, não existirá um nexo de evitação.”[iv]
A incumbência de distinguir fundamentalmente os delitos omissivos próprios e impróprios é voltada ao resultado. Dessa forma, singelamente, omissões próprias poderiam ser classificadas como os que estão expressamente tipificadas na lei, contendo um simples mandado geral e indistinto de ação. Enquanto os delitos de omissão imprópria, por sua vez, seriam aqueles em que o objeto do mandado abarcaria os deveres especiais de evitar determinados resultados, isto é, dano ou perigo de lesão a bens jurídicos penalmente tutelados. Este comando incumbe àquele que está em posição de garantidor, ou seja, ao responsável pela preservação do bem jurídico eleito.[v]
O Código Penal Brasileiro, em afinidade com a teoria formal do dever jurídico, previu ser relevante a omissão quando alguém: a) tenha por lei a obrigação de cuidado; b) tenha, por outra forma, assumido a responsabilidade de evitar o resultado; ou ainda c) por comportamento anterior tenha criado risco de ocorrência de lesão. No entanto, no estudo de cada uma dessas hipóteses é possível submeter à incidência da criminalização a limites específicos.[vi]
É assim que prevê o § 2º, do art. 13, do Código Penal, quando em sua parte inicial assim dispõe: “a) omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado”. Portanto, entendem-se como requisitos indispensáveis à caracterização dessa modalidade de crimes: “a) a abstenção da atividade que a norma impõe; b) a superveniência do resultado típico em vista a omissão; c) a ocorrência da situação de fato de que deflui o dever de agir”. Isto é, como esclarece Cirino dos Santos, “o tipo de omissão de ação imprópria exige, ainda, a produção do resultado típico como consequência causal da omissão da ação mandada”[vii]
A discussão recai sobre a formação da posição de garante do empresário, no momento de responsabilização penal, quanto a possíveis ofensas ou colocação em perigo de bens jurídicos de terceiros. Zaffaroni e Batista sintetizam três posições:
- a) no caso de um dever imposto por lei, como nos deveres de informação e advertência sobre a periculosidade de um produto, por exemplo, como consequência permitida ou como defeito posteriormente observado (art. 8º do Código de Defesa do Consumidor, Lei 8078/90), enquadra a posição de garantidor sem maiores questionamentos na hipótese do art. 13, § 2º, alínea “a” do Código penal;
- b) na hipótese da empresa que desenvolve atividades potencialmente perigosas em face de bens jurídicos de terceiros, dentro da legalidade (isto é, no âmbito pelo risco permitido), a posição de garante estaria integrada no critério material do controle de uma fonte de perigo, situação que seria abarcada pela assunção voluntária prevista no art. 13, § 2º, alínea “b” do Código penal; e
- c) quando se parte do pressuposto de que a empresa funciona na clandestinidade, não atendendo os requisitos legais e administrativos de licenciamento, razão pela qual seus produtos não autorizados ou perigosos em potencial acarretam a identificação da posição de garantidor com base na alínea “c” do art. 13, § 2º, do Código penal.[viii]
O incremento desta forma de imputação parte do pressuposto do Estado não mais comportar a regulação de todos os atos da vida econômica, passando ao particular, por meio da autorregulação. É clara a constituição de uma tendência a transferência da fiscalização sobre a observância de normas regulatórias aos próprios atores empresariais. [ix]
Tendo isso em mente, legisladores ao redor do mundo tradicionalmente aderem ao princípio societas delinquere non potest. Empresas podem, assim como seres humanos, possuir direitos e deveres de acordo com leis privadas, mas não podem ser tidas como portadoras de intenções que lhes possibilitem ser sujeitos ativos da lei penal, salvo, em delitos contra o meio ambiente, expressamente previsto na Constituição Federal e o artigo 3º, da Lei 9605/98.
Art. 3º As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade. Parágrafo único. A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato.
É, no entanto, óbvio que as empresas possam causar dano substancial. Elas foram as condutoras da industrialização e da globalização da economia. Sua negligência resultou em graves lesões a indivíduos, grupos e ao meio ambiente, e seus deliberados abusos de poder têm destacado a sua aparentemente posição privilegiada em relação a outras pessoas e entidades.
O poder de algumas corporações modernas, especialmente empresas multinacionais, pode tornar difícil às autoridades públicas aplicar mecanismos de controle legal e diminuição de riscos. As dificuldades normalmente vão além da simples aplicação das influências políticas nos processos de tomada de decisão. Estruturas corporativas descentralizadas e procedimentos internos complexos podem, cada vez mais, impedir a identificação do garante dentro de uma empresa e a consequente aplicação da lei penal.
O estigma e sanções da legislação peal prometem maior dissuasão sobre a má conduta corporativa e mais oportunidades para a recuperação de ativos. Ao mesmo tempo, as peculiaridades de personalidade jurídica e as restrições colocadas por princípios do devido processo legal podem limitar a capacidade dos legisladores de punir a atuação das corporações empregando o Direito Penal.
Em suma, nas estruturas hierarquizadas das sociedades comerciais, os ocupantes dos cargos mais altos devem assumir um dever de exercer o devido controle sobre terceiros, os seus subordinados. Assumindo-o, podem vir a ser responsabilizados por não observá-lo. Esses deveres são classificados, normalmente, como de proteção ou de vigilância. Conforme explica SÁNCHEZ [x]
“[...] a posição de garantia dos administradores tem uma dupla dimensão: uma dimensão ad intra, orientada a evitar resultados lesivos para a própria empresa, que faz do administrador um garante de proteção; e uma dimensão ad extra, orientada a evitar resultados lesivos que se produzam sobre pessoas externas a partir da atividade dos membros da própria empresa, em razão da qual o administrador aparece como um garante de controle”.[xi] [xii]
Sob o pretexto e que este sistema de responsabilização traria inconvenientes à punibilidade de certos atos, principalmente no âmbito da autoria e das provas, pugna-se por um sistema de coautoria vertical, de cima para baixo, dos níveis superiores para os inferiores. Por esse modelo, busca-se primeiro nos superiores hierárquicos quem teria o dever de evitar o cometimento de crimes no interior da organização empresarial, invertendo se, assim, a lógica do razoável, com a intenção de perseguir “lacunas de punibilidade”. Isso facilitaria, pelo discurso manifesto, a análise de provas, haja vista o órgão acusador entender que os dirigentes deteriam maiores informações do funcionamento da atividade, para que possam colaborar com a justiça.[xiii]
Além da posição de garante dos mais altos membros da empresa, como sócios proprietários, acionistas, administradores e gestores, em geral, existe a outra ponta, dos colaboradores que não possuem poderes de direção comercial ou administrativa, pois executam ordens, e, por fim, os intermediários, que cumulam funções de subordinados e chefes-gerentes. Esses têm atribuições de simples execuções de tarefas, mas exercem decisões, dentro dos limites estabelecidos pelos diretores, por essa razão, podem responder penalmente por seus atos, em cumprimento de ordem superior, quando pelos atos daqueles subordinados que cumprem os seus comandos.
Isso decorre do fato de que, na grande maioria dos casos em direito penal empresarial, não será somente aquele que executa a ação o responsável pelo fato típico. Distingue-se, aqui, aquele que executa a conduta material ilícita de quem efetivamente será o responsável pelo delito, dado que a hierarquia própria do meio empresarial e a divisão de funções importam em cadeia de delegação, na qual se atribuem diferentes competências e responsabilidades.[xiv]
O garante pode delegar seu dever, como no caso do Compliance. No entanto, permanece, ainda que residualmente, dotado por alguma medida do dever de vigilância sobre o delegado. O respeito ao risco permitido e ao princípio da confiança, quando preenchidos seus requisitos, afastam a criação do risco e, assim, a responsabilidade. [xv]
Vê-se, portanto, que a posição de garante, no cerne da responsabilidade penal da pessoa jurídica, é extremamente complexa e requer, além do preenchimento dos pressupostos básicos do direito penal, como a individualização da conduta e o nexo de evitabilidade do resultado delituoso, análise da vinculação ao cargo dentro da sociedade empresarial. Todos os fatores, inclusive a delegação de parte da responsabilidade a demais membros da empresa, devem ser analisados para imputar ao garante responsabilidade pelo cometimento de condutas ilícitas.
[i] Advogado Sócio do escritório Gilson Bonato Advocacia Criminal. Conselheiro do IBDPE e Procurador da ABRACRIM do Estado do Paraná.
[ii] Advogada Associada do escritório Gilson Bonato Advocacia Criminal. Especialista em Direito Penal e Processo Penal – ABDConst.
[iii] KAUFMANN, Dogmática de los delitos de omisión, op. cit., p. 84. Rocha arremata: “No âmbito do tipo objetivo dos crimes omissivos impróprios, a atribuição do resultado ao agente depende da evitabilidade do resultado em decorrência da execução (hipotética) da conduta ordenada pela norma penal. Essa é a essência da chamada teoria da evitabilidade, dominante na doutrina”. Cf. ROCHA, A relação de causalidade no direito penal, op. cit., p. 188.
[iv] ZAFFARONI, Eugênio Raul ; BATISTA, Nilo et all. Direito penal brasileiro. 2º v. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 350
[v] COSTA, V. C. R. S. Crimes omissivos impróprios: tipo e imputação objetiva. 1. ed. Belo Horizonte: Editora D'Plácido, 2017
[vi] Schünemann apresenta outro critério, partindo da premissa de que a grande maioria dos crimes por ação se caracterizariam pelo fato do sujeito ativo possuir domínio do fato. Tendo em vista a equiparação entre ação e omissão, seria correto, por meio de um raciocínio analógico, aproximar o critério do domínio do fato nos delitos ativos também para a omissão. É isso que faz ao propor o critério do “domínio sobre o fundamento do resultado”, que elege como elemento central da teoria da posição de garante
[vii] SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. Florianópolis: Conceito, 2012.
[viii] ZAFFARONI, Eugênio Raul ; BATISTA, Nilo et all. Direito penal brasileiro. 2º v. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 350
[ix] COSTA, V. C. R. S. Crimes omissivos impróprios: tipo e imputação objetiva. 1. ed. Belo Horizonte: Editora D'Plácido, 2017
[x] SILVA SÁNCHEZ. Jesús-María. Deberes de vigilância y compliance empresarial. In: Compliance y teoria delderecho penal. Madrid: Marcial Pons, 2013, p.80
[xi] Essa classificação não é pacífica, tem sofrido críticas da doutrina por não apresentar uma diferenciação clara do ponto de vista do fundamento material de cada posição, pelo que dela não se poderiam extrair consequências sistemáticas confiáveis. Diz-se que ambos os deveres obrigariam seu portador a guardar o bem jurídico da mesma forma. BERMEJO, Mateo. PALERMO, Omar. La intervención delectiva del compliance officer.
[xiii] COSTA, V. C. R. S. Crimes omissivos impróprios: tipo e imputação objetiva. 1. ed. Belo Horizonte: Editora D'Plácido, 2017
[xiv] COSTA, V. C. R. S. Crimes omissivos impróprios: tipo e imputação objetiva. 1. ed. Belo Horizonte: Editora D'Plácido, 2017
[xv] SCANDELARI. Gustavo Britta. As posições de garante na empresa e o criminal compliance do Brasil: primeira abordagem. In: DAVID. Décio Franco. Compliance e Direito Penal. Atlas. 2015. p. 173
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O crime nas organizações empresariais: entre os fatores ambientais e o processo de decisão do autor.
Por Rafael Guedes de Castro[i]
Não é recente a discussão sobre como as organizações empresariais são capazes de determinar comportamentos criminosos. Em 1939, Edwin SUTHERLAND apresentou ao mundo, em discurso proferido à American Sociological Society, o termo e respectivo conceito do que chamou de White collar crime. Este seria uma espécie de crime praticado por pessoas respeitáveis, de elevado status social e no exercício de sua ocupação profissional.
A partir de então, Sutherland inaugurou uma nova perspectiva criminológica baseada na análise do comportamento de políticos e empresários no cometimento de crimes econômicos, bem como relacionou o estudo da Teoria da Associação Diferencial, anteriormente desenvolvida para estudo da delinquência juvenil, com os crimes do colarinho branco. Esse estudo representa uma primeira forma de análise da maneira como se estabelecem as relações em ambientes empresariais e como a prática de condutas criminosas poderia advir da associação diferencial.[ii]
SUTHERLAND identificou que algumas empresas pareciam mais férteis ao cometimento de crimes do que outras, e que algumas dessas empresas e indústrias possuíam uma cultura própria, permissiva e de incentivo à prática de ilícitos criminais. Essa é uma das razões pelas quais, dentro da estrutura empresarial, o processo de contratação de funcionários, afirmava, não é direcionado a delinquentes, mas essas características peculiares influenciam e explicam o fato de algumas organizações serem formadas por pessoas íntegras, as quais, influenciadas pela ambição que marca uma economia de mercado baseada no resultado, aderem a condutas antiéticas e criminosas.[iii]
Sob outra perspectiva, no ano de 2016, o Professor da Harvard Business School, EUGENE SOLTES, publicou o livro Why they do it: inside the mind of White-collar criminal, e ofereceu nova e importante contribuição sobre a temática incialmente tratada por SUTHERLAND. Para o autor, a análise dos fatores criminógenos ínsitos às organizações empresariais não se mostrariam suficientes para descrever o fenômeno da criminalidade empresarial.
Além de os fatores ambientais de uma organização não ter o potencial de afetar todos os seus membros, o chamado triângulo da fraude, descrito com base nos estudos desenvolvidos por DONALD CRESSEY, aluno de SUTHERLAND que se ocupou em desenvolver sua teoria nos anos que se seguiram, composta pela (i) pressão, (ii) oportunidade e (iii) racionalização, não explicaria algo fundamental quando se está a tratar das peculiaridades do crime empresarial: o aspecto da cognição humana, ou seja, o processo subjetivo de decisão do autor no contexto da atividade econômica.
Em outras palavras, a teoria desenvolvida por SUTHERLAND e CRESSEY não se ocuparia em descrever o motivo pelo qual o gestor optou pela prática criminosa quando opções legais estavam à sua disposição.
Assim, SOLTES passou a investigar como se daria processo cognitivo de tomada de decisão do indivíduo na prática do ilícito e em dezenas de entrevistas diretamente com gestores e ex-gestores de empresas, processados ou condenados pela prática de crimes empresariais, chegou à conclusão de que nenhuma dessas pessoas fazia uma análise minuciosa e racional no momento do cometimento do crime. [iv]
O autor então descartou a ideia de que o crime ocorreria sob a perspectiva de análise entre custo e benefício, a partir da teoria da escolha racional descrita pelo economista e Professor da Universidade de Chicago GARY BECKER, e concluiu que as múltiplas decisões tomadas no âmbito empresarial não comportariam um processo minucioso de escolhas realizadas de maneira racional. Assim, a suposta racionalidade do gestor, teoricamente existente no cometimento do crime do colarinho branco seria superestimada.
A pesquisa encontra-se embasada em estudos da Neurociência, em especial de JOHN BARGH, Psicólogo social e Professor da Universidade de Yale, e TANYA CHARTRAND, Psicóloga social Professora na Universidade Duke, no sentido de que muitas decisões não são tomadas conscientemente. O comportamento humano seria (i) dirigido por um automático e intuitivo processo de reação e (ii) o processo de reflexão humana também não comportaria a tomada de decisões racionais ao mesmo tempo, principalmente quando se está a falar do contexto da atividade econômica empresarial.[v] A teoria da escolha racional enxerga o aspecto reflexivo como dominante em todo processo de decisão, no entanto as pesquisas demonstram que a reflexão humana é muito menos presente na prática.
De outro lado, o autor acentua que a característica do dano causado pela prática do crime econômico e a forma como as sociedades empresariais se constituíram a partir do início do século XX explicariam o fenômeno. Ao contrário da criminalidade clássica, o dano econômico não é físico, é abstrato e impessoal. Essa característica dos efeitos da prática criminosa não teria o mesmo impacto psicológico na subjetividade do ofensor. O distanciamento dos gestores dos negócios, em oposição à característica familiar na estruturação das empresas, também afetaria a psicologia do dano e conduziria ao distanciamento do ofensor dos atos lesivos causados.[vi]
O fato é que tanto o estudo sobre os fatores ambientais das organizações, quanto o aspecto cognitivo do processo de decisão do gestor, (i) contribuem para entender o fenômeno do crime corporativo, ajudando a estabelecer padrões que se adequem melhor às modernas técnicas de autorregulação empresarial bem como (ii) para estabelecer limites à imputação penal individual.[vii]
Entender que uma empresa possui fatores criminógenos íncitos à sua própria existência, que potencializam o risco de cometimento de condutas ilícitas no desenvolvimento de sua atividade e desmistificar a ideia de que o crime econômico sempre partiria de uma escolha racional do sujeito se constituem nos desafios do presente tema.
SANCHEZ RIOS, Rodrigo; GUEDES DE CASTRO, Rafael. A Responsabilização Criminal Individual em Estruturas Empresariais Complexas: uma análise aplicada. Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, v. 69, p. 71-100, 2016.
SOLTES, Eugene. Why they do it: Inside the mind of the white collar criminal. Public Affairs. New York. 2016.
SUTHERLAND. Edwin Hardin. White Collar Crime.United States: Yale University, 1983.
[i] Advogado. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná e especialista em Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Direito Penal Econômico pela Universidade Federal do Paraná, pela Universidade de Coimbra – Portugal e pela Universidade Castilla La Mancha, Toledo, Espanha.
[ii] SUTHERLAND. Edwin Hardin. White Collar Crime. United States. Yale University, 1983, p. 49.
[iii]SUTHERLAND. Edwin. “White collar criminals, like professional thieves, are seldom recruited from juvenile delinquents. As part of the process of learning practical business, a young man with idealism and thoughtfulness for others is inducted into white collar crime. In many cases he is ordered by managers to do things which he regards as unethical or illegal, while in other cases he learns from those who have the same rank as his own how they make a success. He learns specific techniques of violating the law, together with definitions and situations in which those techniques may be used. Also, he develops a general ideology. This ideology grows in part out of the specific practices and is in the nature of generalization from concrete experiences, but in part it is transmitted as a generalization by phrases such as “We are not in business for our health”, “Business is business”, and “No business was ever built on the beatitudes.” These generalizations, whether transmitted as such or constructed from concrete practices, assist the neophyte in business to accept illegal practices and provide rationalizations for them”. In: SUTHERLAND. Edwin Hardin. White Collar Crime. United States. Yale University, 1983, p. 50.
[iv] SOLTES, Eugene. Why they do it: Inside the mind of the white collar criminal. PublicAffairs. New York. 2016. p.34
[v] SOLTES, Eugene. Why they do it: Inside the mind of the white collar criminal. PublicAffairs. New York. 2016. p.34
[vi] SOLTES, Eugene. Why they do it: Inside the mind of the white collar criminal. PublicAffairs. New York. 2016. p.34
[vii] SANCHEZ RIO, Rodrigo; GUEDES DE CASTRO, Rafael. A Responsabilização Criminal Individual em Estruturas Empresariais Complexas: uma análise aplicada.. Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, v. 69, p. 71-100, 2016. p, 77.
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E quem filmou? Omitir-se também é crime: Caso Carrefour
Por Catharina Araújo Lisbôa[i] e Pablo Domingues Ferreira de Castro[ii].
E no Brasil (e no mundo) continuam-se as atrocidades, violências, crimes e, lamentavelmente, o aumento vertiginoso de um perfil de pessoas para quem é mais importante fazer um registro de um evento que podem lhe render (quem sabe) uns bons likes do que tentar intervir em um acontecimento criminoso.
Esta cultura de intensificação dos valores e padrões que as redes sociais vêm impondo (um novo standard de comportamento) mudou e vem mudando o modo de agir e de interagir das pessoas.
Vamos ao caso carrefour e, por responsabilidade ética e técnica, se restringirá a fazer considerações de modo abstrato, sob a ótica da Dogmática Penal e o ponto central deste breve artigo é saber: quem assiste uma situação de evento criminoso ocorrendo e nada faz pode ser Responsabilizada criminalmente? De pronto (em resposta ao “pode”), é sim. No Direito Penal adotou-se a teoria monista (ou unitária) da ação e a omissão penalmente relevante equipara a uma não ação (inação) a uma ação.
Ou seja, em algumas situações a lei nos obriga a sair do estado de inércia (e pior que isso, no caso em análise, de “cameraman” da desgraça alheia) para que tomemos posição proativa-ativa. De tentar evitar que o fato criminoso se ultime.
Eis o caso carrefour: para além das responsabilidades criminais daqueles que ativamente agiram para praticar um homicídio doloso (indiscutivelmente houve um homicídio doloso e é, insustentável, na hipótese, uma legítima defesa pelo o tal soco dado antes pela vítima, por uma razão simples: esta excludente de ilicitude pressupõe moderação e proporção na resposta. O excesso descaracteriza a legítima defesa). Portanto, sem que se queira temer o que agora se é dito: foi crime.
Especialmente tem-se como hipótese deste artigo é: a pessoa que filma a ação e não adota qualquer providência de evitação do resultado também é penalmente responsável.
Sim. O código Penal, como já dito, a dota a teoria unitária da ação, segundo a qual havendo concurso de pessoas na prática delitiva, todos responderão pelo crime, independente de serem autores ou partícipes (é a dicção do art. 29 do CP – concurso de pessoas).
Este dispositivo (com as críticas doutrinárias que lhe merecerem), notadamente para o caso em exame, precisa ser analisado em conjunto com o art. 13, paragrafo 2º do CP, para quem “A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) e b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado”
As imagens amplamente divulgadas pelos veículos de mídias jornalísticas[iii], para além de demonstrarem as cenas de extermínio de uma vida humana, evidenciaram outra circunstância igual (e penalmente) importante: um fiscal da rede de supermercados que gravou todo o evento. Nada fez. Não tentou impedir. Simplesmente colocou-se como voyeur de um crime em curso.
A par das discussões que envolvem as motivações do delito (e ter sido de cunho racial ou não), o que, apesar de ser inteiramente importante e merecer uma análise própria, não é o objeto deste artigo.
Com efeito, esta Fiscal poderia ser penalmente responsável. As imagens demonstram um lapso razoável em que esta pessoa se dedica a filmar a agressão sofrida pela vítima, como o que se importasse, naquele momento, fosse o registo do ato, e não a interrupção de um crime em curso.
Há pessoas, escolhidas pela lei, que têm o dever de agir pois têm a “obrigação de cuidado, proteção ou vigilância” ou, ainda, sou responsabilizadas pois “de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado”.
É claro que é necessário apurar-se quais eram as atribuições reais de uma Fiscal vinculada àquela rede de supermercados e se ser Fiscal arroga-lhe como uma das atribuições uma obrigação de proteção ou vigilância, que, a rigor, são próprias de “Fiscais”.
Seja como for, preocupar-se apenas em filmar um evento criminoso (ao menos aparentemente) configura uma assunção de um dever de agir, de impedir o resultado. Não era apenas uma pessoa “comum” que estava por lá passando circunstancialmente e, sim, uma Fiscal do próprio Carrefour que, ao invés de interferir, de algum modo, na consumação do ato, optou (e oportunamente deverá dizer as razões que as motivaram) apenas fazer uma filmagem do ocorrido. Não agiu quando deveria agir.
E não se quer defender aqui uma ação sobre-humana de quem quer que seja, nem o direito penal espera de alguém isso. Portanto, não seria pôr sua própria vida em risco para tentar salvar a de terceiros. Quer-se dizer que se deveria ter adotado uma conduta de agir proficiente (diferente de filmar apenas o evento) com fins de se impedir a consumação do delito ou minorar suas consequências (o que decerto não se conseguiria com o registro de imagens).
Por outro lado, têm-se ciência também que não se pode – e seria uma impropriedade jurídica – equiparar-se a intensidade da sanção penal que cada um, em tese, após um devido processo legal, possa sofrer (HC 70.662 do STF), o que não significa uma irresponsabilidade criminal. Quem agiu materialmente para a prática do crime dever ter uma punição penal diferente daquele que filmou.
Esta questão, trata-se, como já dito, de equiparação de uma conduta omissa a uma por comissão, “Nessa ambiência, os omitentes respondem pelo resultado (não por o terem causado, numa acepção naturalística), uma vez que, podendo, não agiram em defesa do bem jurídico com a finalidade de evitar a concretização da ofensa.” (STF - RvC: 5450 DF - DISTRITO FEDERAL 0007963-48.2015.1.00.0000, Relator: Min. EDSON FACHIN, Data de Julgamento: 29/10/2017
Então, não é questão de imputar criminalmente uma conduta a uma pessoa mesmo sem ter, ela própria, causado o evento em sua concepção. É avaliar que esta pessoa não agiu, quando poderia, em defesa de um bem jurídico para impedir (ou tentar) que a ofensa se perfizesse. (Parasse de filmar e tentasse dar alguma contribuição para que aquela violência cessasse, oras!).
Esse novo padrão de comportamento, a que nós nomearíamos de starndard de costume da pós-modernidade, em que o mais importante é exibir do que realmente ser, está fomentando este tipo de conduta em que, é mais relevante, em um sopesamento de valores, gravar um ato violento para depois dar-lhe a destinação que seja, do que, eventualmente, agir para que uma vida fosse preservada.
É uma nova era, mas que o antigo Código Penal, apesar de arcaico, tem soluções ainda eficazes. Vidas importam.
[i] Advogada criminalista, especialista em Ciências Criminais, professora da pós-graduação em Ciências Criminais da Faculdade Baiana de Direito.
[ii] Advogado criminalista, doutorando pelo IDP(DF), mestre pela UFBA, especialista pelo IBCCRIM, pós-graduado pela UFBA, professor de cursos de pós-graduação, coordenador adjunto da pós-graduação em Ciências Criminais da Faculdade Baiana de Direito.
[iii]https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2020/11/22/video-cameras-mostram-cronologia-do-assassinato-de-joao-alberto-em-supermercado-do-carrefour.ghtml?utm_source=push&utm_medium=app&utm_campaign=pushg1 – veja-se a partir do 03:29)
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A (não) conduta penal de contratação pública de advogado por inexigibilidade de licitação.
Por João Vieira Neto[1]
A criminalização e ataque à advocacia comumente divulgada nos meios de comunicação, decerto, expõe uma série de idiossincrasias reveladoras por persecuções pautadas em ostensividade à própria atuação defensiva.
Porém, é apenas uma das facetas incriminadoras da espécie como se poderá perceber quanto à dispensa de licitação referente à contratação de escritório de advocacia para prestar serviços jurídicos à gestão pública pautada, essencialmente, em ato formal de liame subjetivo-fático a desbordar equivocadamente em condutas típicas penais, a despeito da satisfação das exigências albergadas nos artigos 13 e 25 da Lei nº 8.666/93.
De imperativo, com a negativa de provimento do RE 593.727 (do STF), em repercussão geral, a advocacia tem um papel fundamental no exercício amplo e com o propósito de assegurar, demonstrada a expertise do contratado, ao contratante o resguardo dos direitos e repercussões positivas, como é o seu próprio exercício constitucional (CF/88, art. 133).
Importante destacar, máxime a criativa persecução penal contra escritórios de advocacia diretamente contratados por inexigibilidade de licitação, sob o manto da responsabilidade penal (objetiva), por seletividade, há de se ponderar a necessidade da demonstração inequívoca de direcionamentos ocultos, até da instauração de procedimento de investigação calcado em ilações, pois, ao revés, estar-se-ia a buscar criminalizar a própria advocacia, inobstante a obrigação de apresentar ligação entre a conduta praticada (ser contratado) e a concreta (atividade de prestação jurídica) a se enquadrar em tipo legal, face à coexistência do evidente nexo causal (fato e resultado), como explica o Prof. Miguel Reale Jr.[2]:“Para que se qualifique uma ação como crime, é necessário, segundo a doutrina predominante, que não só haja identidade entre a conduta paradigmática e a conduta concreta, mas é preciso também que essa conduta seja antijurídica e culpável.”
Deve-se ter a devida compreensão de que o fato-colaborador de assessoria jurídica do resultado de uma contratação por inexigibilidade, ainda assim, não é suficiente para gerar a responsabilização penal por automaticidade, quiçá de persecução, porque, só poderão ser punidos os fatos incidente em dolo direto, em virtude da imprescindibilidade da existência de um liame psicológico.
A imunidade profissional do advogado não poderá ser relativizada por ser essencial à administração da Justiça, sobretudo diante da contratação por inexigibilidade, sob a pecha de se investigar o próprio objeto da contratação pública, a despeito de satisfeitas as exigências legais, a exemplo da singularidade, capacidade técnica e caráter específico da prestação por assessoria jurídica.
Nesse desiderato, o Supremo Tribunal Federal tem concluído que “... é abusiva a responsabilização do parecerista à luz de uma alargada relação de causalidade entre seu parecer e o ato administrativo do qual tenha resultado dano ao erário. Salvo demonstração de culpa ou erro grosseiro, submetida às instâncias administrativo disciplinares ou jurisdicionais próprias, não cabe a responsabilização do advogado público pelo conteúdo de seu parecer de natureza meramente opinativa” (STF - MS 24631, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA).
Não por menos, cumpre ressaltar, no Inquérito nº 3.077/AL, sob a relatoria do Min. Dias Toffoli, há avaliação vertical do preenchimento dos requisitos e, uma vez demonstrados, deverá ser afastada a responsabilidade punitiva por atipicidade, verbis:
“O que a norma extraída do texto legal exige é a notória especialização, associada ao elemento subjetivo confiança. Há, no caso concreto, requisitos suficientes para o seu enquadramento em situação na qual não incide o dever de licitar, ou seja, de inexigibilidade de licitação: os profissionais contratados possuíam notória especialização, comprovada nos autos, além de desfrutarem da confiança da Administração. Ilegalidade inexistente. Fato atípico”.(STF – INQ 3.077/AL, PLENO, Min. DIAS TOFFOLI, j. 29/03/2012, p. DJe 25/09/2012)
A bem da verdade, o Supremo Tribunal Federal (no leading case – Inquérito nº 3.704/SC), com brilhantismo, reavivou a importância da Advocacia e reconheceu a atipicidade de crime (de “inexigibilidade de licitação”) em razão da contratação direta de escritório de advocacia para consultoria jurídica e patrocínio judicial à gestão pública, e essas são as afirmações do Min. Roberto Barroso, a saber:
“I. CONTRATAÇÃO DIRETA DE ESCRITÓRIO DE ADVOCACIA PARA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS JURÍDICOS 3. O art. 37, XXI, da Constituição prevê que a contratação de obras e serviços por parte da Administração Pública será realizada mediante licitação na qual se assegure igualdade de condições aos participantes, ressalvados os casos especificados na legislação1. Nesses termos, a própria ordem constitucional admite a possibilidade de o legislador criar exceções pontuais ao dever de licitar.
- Regulamentando a previsão constitucional, a Lei nº 8.666/93 enumera situações em que o certame é considerado inexigível, dada a impossibilidade de competição. Dentre as hipóteses, o art. 25, inciso II, faz referência à contratação de profissionais dotados de notória especialização para a execução de serviços técnicos diferenciados, referidos no art. 13 do mesmo Diploma. Esse segundo dispositivo menciona expressamente: a elaboração de pareceres (inciso II), no que se pode incluir os de natureza jurídica; e (ii) o patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas (inciso V).”
(...)
“5. Duas considerações podem justificar o afastamento do dever de licitar nesses casos: (i) a peculiaridade dos próprios serviços, quando sejam marcados por considerável relevância e complexidade; e (ii) a falta de parâmetros para estruturar a concorrência entre diferentes prestadores especializados. Imagine-se, e.g., a contratação de advogados para o fim de auxiliar na renegociação de empréstimos vultosos tomados pelo Poder Público junto a uma entidade estrangeira. Certamente é possível identificar um conjunto de profissionais dotados de prestígio nessa área de atuação, mas não se pode estabelecer uma comparação inteiramente objetiva entre os potenciais habilitados. A atribuição de um encargo como esse pressupõe uma relação de confiança na expertise diferenciada do prestador, influenciada por fatores como o estilo da argumentação, a maior ou menor capacidade de desenvolver teses inovadoras, atuações pretéritas em casos de expressão comparável, dentre outros.”
Para além de tudo isto, a Lei nº 14.039/2020, publicada em 17 de agosto de 2020, com acréscimo do dispositivo incrustrado no art. 3º-A da Lei nº 8906/94 (Estatuto da OAB), regulamentou os critérios da inexigibilidade de licitação e, portanto, há de ser trancada qualquer investigação, ou até mesmo ação penal, baseada exclusivamente na formalização do processo de dispensa e contratação dos serviços jurídicos por escritório de advocacia.
Portanto, não é crível e, muito menos, justificada a propositura de persecuções penais com intento de criminalizar o profissional do Direito contratado pela Administração Pública, seja ela direta ou indireta, através de inexigibilidade de licitação, sob alegações genéricas de não enquadramento nas condições previstas em norma, especialmente porque a advocacia tem papel fundamental e primordial no exercício da própria Justiça.
[1] Advogado criminalista. Sócio do escritório João Vieira Neto Advocacia Criminal. Conselheiro Estadual da OAB-PE. Presidente da Comissão de Direito Penal da OAB-PE. E-mail: joao@jvn.adv.br.
[2] REALE JR., Miguel. Teoria do Delito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, p. p. 38, 173/174.
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A LEGITIMIDADE DOS CRIMES DE PERIGO ABSTRATO E A TUTELA PENAL DO CONSUMIDOR.
Bibiana Fontella.[i]
O artigo 7º da Lei nº 8137/1990 prevê os crimes contras as relações de consumo. No referido dispositivo há nove incisos, sendo que todos eles descrevem condutas de perigo abstrato[ii]. Isto é, de forma simplista, a mera realização da ação descrita no tipo consumaria o crime.
No artigo em questão há, além da questão da estrutura do delito, outros problemas envolvendo dogmática penal. Destacam-se: a) ao final do artigo há um paragrafo único com determinação no sentido de que os crimes previstos no incisos, II, III e IX também podem ser punidos na modalidade culposa; b) o artigo faz referências, em determinados momentos, sobre o produto ou serviço estar de acordo com as previsões legais ou, na maioria dos casos, os tipos são abertos. Isto gera um problema, bastante discutido na dogmática penal, no que toca às leis penais em branco.
Contudo, em que pese todos os problemas levantados, a questão fundamental deste artigo será, exclusivamente, a legitimidade dos crimes de perigo abstrato, em especial dentro da tutela do consumidor.
Sobre o crime de perigo abstrato há discussões sobre a inconstitucionalidade da estrutura típica por falta de ofensa – dano ou perigo de dano – ao bem jurídico obejto de proteção.[iii] Contudo, ressalta-se desde já que a questão da inconstitucionalidade do crime de perigo abstrato já foi objeto de discussão pela Corte Constitucional Brasileira e esta entendeu pela constitucionalidade desta estrutura típica.[iv] Chama-se atenção, ainda, que esse entendimento não é só do Supremo Tribunal Federal brasileiro. Em Portugal o Tribunal Constitucional entendeu da mesma maneira, quando julgou uma arguição de inconstitucionalidade do crime de perigo abstrato.[v]
Assim, pelo que se verifica no primeiro grupo de críticas à legitimidade do crime de perigo abstrato a questão também fundamental é aquela que se refere ao bem jurídico, tomando-se como referência concretizada o fato de o bem jurídicoser fundamental a todo o Direito Penal, haja vista que é ele que lhe dá legitimidade desde as ideias iluministas.[vi] Por este motivo, em todo momento que se falar em legitimidade do poder punitivo é necessário pensar e analisar a Teoria do Bem Jurídico.
Com o desenvolvimento do princípio da ofensividade diretamente relacionado às questões de legitimidade do poder punitivo, a Teoria do Bem Jurídico se tornou o núcleo fundamental para uma pretensão de limitação do Direito Penal. Isso porque, com a necessidade de ofensa a bens jurídicos criam-se limites mais concretos à criminalização de condutas. Contudo, na história recente a preocupação de restrição de criação de novos tipos penais teria sido invertido, tendo, agora, como ponto de maior relevância a criminalização de novas condutas, estas consideradas apenas perigosas. Para confirmar isso, basta dar uma rápida passada de olhos nas legislações das últimas três décadas. Em tal período tem sido produzidas muitas leis criminalizando condutas antes permitidas. Contudo, a questão mais relevante atinente a estes tipos penais atuais é a sua estrutura delitiva. Grande parte deles é crime de perigo abstrato, o que propicia diversas críticas, essencialmente no que toca à Teoria do Bem Jurídico. Por isso, é importante analisar os discursos atuais da legitimidade do Direito Penal pela proteção de bens jurídicos.
Os atuais discursos sobre a legitimidade do Direito Penal pela proteção de bens jurídicos se dividem em quatro posturas díspares:a)limitadoras[vii] – a proteção de bens jurídico serviria como critério de ação do Direito Penal, ou seja, só seria permitida a criminalização de condutas lesivas a bens jurídicos.Quaisquer outrasações, distintas destas, seriam consideradas ilegítimas; b) legitimadoras[viii] – a proteção de bens jurídicos traria a legitimidade ao Direito Penal, contudo, seria possível haver criminalizações de condutas não lesivas a bens jurídicos. Isso dentro de um rol taxativo; c) relativa[ix] – a proteção de bens jurídicos não poderia dar respostas a todas as questões do Direito Penal atual. Por esse motivo, a restrição da atuação penal pela proteção de bens jurídicos só poderia ser aplicada ao Direito Penal de tutelas individuais. No Direito Penal de tutela coletiva a resposta deveria ser outra, não haveria necessidade de restrição do poder punitivo pela proteção de bens jurídicos;d) vigência da norma[x] – há, todavia, um entendimento mais expansionista, no sentido que a legitimidade do Direito Penal não estaria vinculada à proteção de bens jurídicos, mas expressa no texto constitucional e a sua função seria manutenção das expectativas normativas.
Por conseguinte, verifica-se que aqui a questão é a legitimidade do Direito Penal pela proteção de bens jurídicos. Diante disso, cabe indagar qual seria o bem jurídico protegido pelo art. 7º da Lei nº 8.137/1990. Na doutrina encontra-se a seguinte relação de bens: interesses econômicos e sociais do consumidor – diretamente – e a vida, saúde e patrimônio – indiretamente.[xi]
Conquanto, toda essa questão de ausência de ofensa a bens jurídicos há, ainda, a problemática acerca da estrutura delitiva do crime de perigo abstrato.
A interpretação geralmente feita do crime de perigo abstrato diz que para a sua consumação basta a realização da conduta proibida. Em comparação com o crime de perigo concreto, a presunção feita naquele é absoluta, isto é, no tipo de perigo abstrato seria desnecessária a demonstração do perigo ao bem jurídico tutelado, haja vista que a conduta proíbida seria considerada, em si, perigosa.[xii] Todavia, qual seria o resultado?No entendimento de D’Avila, aquela ideia de que a previsão de tiposde perigo abstrato seria no sentido de criar uma prevenção do dano deve ser deixada para trás.[xiii]Dentre as várias hipóteses aquela com maior destaque é a criação do risco ao bem jurídico, utilizando-se a Teoria da Imputação Objetiva.[xiv] Esta traz dois referenciais fundamentais: a necessidade de criação de um risco não permitido e a efetivação deste risco no resultado. Assim, faz-se necessário que com a conduta haja a criação de um risco não permitido (perspectiva ex ante) e que este esteja realizado no resultado (perspectiva ex post), apoiando-se nos conceitos do princípio da confiança e na violação de dever.
Desta forma, é necessário que com a conduta descrita nos tipos penais do art. 7º da Lei nº 8137/1990 haja a criação de um risco ao bem tutelado, ou seja, interesses econômicos e sociais do consumidor, e que este risco possa ser materializado em um perspectiva ex post. Isto é, que após a realização da conduta possa ser visualizada a situação de perigo ao bem jurídico, ainda que com certa distância na sua concretude. Diferentemente do que ocorre com os crimes de perigo concreto, nos quais é possível demonstrar a concreta colocação do bem jurídico em perigo, de tal forma, que a lesão só não teria ocorrido por circunstâncias alheias à vontade do autor. Logo, ao contrário do que é visto, com frequência, nos Tribunais, o crime de perigo abstrato não pode ser interpretado como a mera realização da conduta, mas deve ser analisada dentro da potencialidade de eventual dano ao bem jurídico tutelado.[xv]
[i] Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Advogada Criminal. Professora de Direito Penal.
[ii] STJ, REsp 1163095/RS, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 09/11/2010, DJe 22/11/2010.
[iii] GOMES, Luiz Flávio. Embriaguez ao volante (Lei 11.705/2008): exigência de perigo concreto indeterminado. Disponível em: <http://www.lfg.com.br> Acessado em 13 de setembro de 2012. SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 2ª ed., rev. e ampl. Curitiba: ICPC – Lumen Juris, 2007. p. 110 – 111.
[iv]Habeas Corpus 109.269.
[v]Acórdão nº 95/2011 e Acórdão nº 144/04.
[vi]MATA y MARTÍN, Ricardo M. Bienes jurídicos intermedios y delitos de peligro. Estudios de Derecho Penal dirigidos por Carlos Maria Romeo Casabona. Granada: Comares, 1997. p. 1 e 2.
[vii] ALAGIA, Alejandro; BATISTA, Nilo; SLOKAR, Alejandro; ZAFFARONI, Eugenio Raul. Direito penal brasileiro. v. 1. 4ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011. p. 38 – 40, 133 – 135. HASSEMER, Winfried. Lineamientos de una teoria personaldelbien jurídico. Trad. Patricia S. Ziffer. In: Doctrina penal – teoría y prácticaenlascienciaspenales. N. 46/47, AÑO 12, abril-setiembre. TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 3ª ed., rev. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 197 – 202.
[viii] ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do direito penal. Trad. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 11 – 36. DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal – parte geral – tomo I – questões a doutrina geral do crime. 2ª ed. reimp. Coimbra: Coimbra Editora, 2011. p. 114 – 117.FRANCO, Alberto Silva. Do princípio da intervenção mínima ao princípio da máxima intervenção. In: DIAS, Jorge de Figueiredo (director). Revista Portuguesa de ciência criminal. Ano 6, Fasc. 1º, janeiro – março 1996. Coimbra: Coimbra Editora, 1996. p. 175 – 187.
[ix] STRATENWERTH, Günter. Sobre o conceito de “bem jurídico”. Trad. Luís Greco. In: GRECO, Luís; TÓRTIMA, Fernanda Lara. (Coord). O bem jurídico como limitação do poder estatal de incriminar? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 101 -115. STRATENWETH, Günter. Derecho Penal – Parte especial I – El hechopunible. Trad. Manuel CancioMeliá y Marcelo A. Sancinetti. 4ª ed. Buenos Aires: Hammurabi, 2005. p. 64 a 69.
[x] JAKOBS, Günther. Derecho penal – parte general – fundamentos y teoría de laimputación. Trad. Joaquim CuelloContreras e Jose Luis Serrano Gonzalez de Murillo. 2ª ed., cor. Madrid: Marcial Pons, 1997. p. 47 -58.
[xi]Nestesentido: PRADO, Luiz Regis. Direito penal econômico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p.182.
[xii]DIAS, Op. Cit., p. 309.
[xiii]D’AVILA, Fábio Roberto. Ofensividade e crimes omissivos próprios – contributo à compreensão do crime como ofensa ao bem jurídico. Coimbra: Coimbra, 2005. p. 94 e ss.
[xiv]ROXIN, Op. Cit., p . 342 a 411. GRECO, Luís. Um panorama da teoria da imputação objetiva. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
[xv]BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 251 – 255.
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Ninguém é obrigado a fornecer a senha do seu celular
Por Luiz Flávio Borges D'Urso[1]
A questão principal é se o cidadão pode manter esta senha em sigilo absoluto, não a revelando a ninguém, nem mesmo à polícia ou a um juiz de Direito, mesmo no caso de apreensão do aparelho.
O aparelho celular tem se tornado, cada vez mais, um dispositivo no qual armazenamos praticamente tudo sobre nossas vidas. Desde nossa agenda de telefones, até fotos, documentos, anotações e mensagens.
Pelo celular recebemos e transmitimos nossos e-mails e mensagens, de modo que ali se encontram nossas conversas profissionais, pessoais e íntimas. Talvez por uma falha do fabricante, não se exige uma senha específica para acessar alguns aplicativos e os e-mails, quando o usuário já tiver desbloqueado o celular.
Habituamos a registrar as nossas vidas, por meio de milhares de fotos e vídeos que são armazenadas no álbum de fotografias do celular, de maneira que, por elas, se pode verificar, facilmente, por onde andamos, quais locais visitamos, com quem estivemos, o que apreciamos, etc. Por este dispositivo, nossa vida é desnudada.
Muitos documentos, inclusive os mais importantes, que outrora estavam no cofre ou em gavetas trancadas em nossas casas e escritórios, agora estão conosco, acompanhando-nos todo o tempo, podendo ser acessados por qualquer pessoa que obtenha a senha do nosso celular.
Nossa agenda diária de compromissos, que antes era feita no papel e descartada ao final de cada ano, agora acumula informações ano após ano, na palma da mão, registrando o passado, o presente e o futuro.
Não há dúvida, que neste aspecto, o aparelho celular se assemelha às gavetas, arquivos e cofres do cidadão, cujo acesso, reitera-se, é extremamente facilitado, bastando inserir uma senha (numérica, biométrica ou de reconhecimento facial) para escancarar todo o seu conteúdo.
A questão principal é se o cidadão pode manter esta senha em sigilo absoluto, não a revelando a ninguém, nem mesmo à polícia ou a um juiz de Direito, mesmo no caso de apreensão do aparelho. A resposta é positiva. O cidadão não está obrigado a fornecer esta senha a ninguém, nem, tampouco, a desbloquear seu celular.
Em outras palavras, caso se obtenha acesso ao conteúdo do celular, sem autorização do seu proprietário ou sem uma ordem judicial, tudo o que for ali encontrado não poderá ser utilizado como prova contra o dono do celular.
Este foi o entendimento da 5ª turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), cujos Ministros decidiram, por unanimidade, no julgamento do RHC 89.981, que a conversa por WhatsApp não pode ser utilizada como prova, quando o seu acesso não foi autorizado pela Justiça, pois será uma invasão, além de uma prova ilegal.
O inciso X do artigo 5º da Constituição Federal brasileira veda o acesso a estas informações, quando estabelece, a inviolabilidade a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. Assim decidiu o ministro relator Reynaldo Soares da Fonseca, no RHC citado, ao analisar o acesso a mensagens, sem prévia autorização judicial, concluindo que houve violação dos dados armazenados no celular, e em razão disso, determinou o desentranhamento dos autos, das conversas pelo WhatsApp.
Conforme se verifica, as garantias individuais protegem as informações e dados do cidadão constantes do celular, assim, de acordo com a lei, um policial não pode, para produzir provas, obrigar ninguém a informar a senha do celular ou a desbloqueá-lo.
Dúvida persistiria, nos casos em que a apreensão do celular se dá por ordem judicial, ou mesmo quando um Juiz de Direito ordena (ilegalmente), que lhe seja fornecida a referida senha. Nestes casos, o cidadão estaria obrigado a obedecer à ordem judicial e caso não o fizesse, responderia por algum crime?
A resposta é simples. Em nenhuma hipótese o cidadão estará obrigado a fornecer a senha de seu celular a quem quer que seja, nem mesmo a um Juiz de Direito. O aparelho pode ser apreendido, o juiz poderá determinar a realização de perícia e a tentativa da quebra do sigilo da senha, mas não poderá ordenar ou compelir o cidadão a revelar a senha desse aparelho.
Ademais, outro fundamento para esta conclusão decorre do princípio de que ninguém está obrigado a fazer prova contra si mesmo (nemo tenetur se detegere) e também do Pacto San José da Costa Rica (art. 8º, 2, g), do qual o Brasil é signatário, que garante o direito da pessoa de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada.
Diante de tudo isto, verifica-se que a não obrigatoriedade de fornecimento da senha para desbloqueio do celular visa proteger o conteúdo da vida do cidadão, vida esta, que por um fenômeno da atualidade, encontra-se armazenada no seu celular, razão pela qual, este conteúdo precisa estar amparado e protegido pela lei
[1] Luiz Flávio Borges D'Urso é advogado criminalista do escritório D'Urso e Borges Advogados Associados, mestre e doutor em Direito Penal pela USP, presidente da OAB/SP por três gestões, conselheiro Federal da OAB, presidente de honra da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (ABRACRIM).
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MPPR promove iniciativa pioneira de justiça restaurativa em processo criminal
Fonte: Assessoria de Comunicação do MPPR
Imagine sugerir a uma pessoa que praticou um assalto que forneça mensalmente alimentos à vítima e sua família como forma de reparar o crime. Pois esse foi um dos itens de acordo celebrado em Curitiba que, a partir da mediação do Núcleo de Prática e Incentivo à Autocomposição do Ministério Público do Paraná (Nupia), foi abordado por meio de metodologias de justiça restaurativa. O acordo foi homologado pela 9ª Vara Criminal de Curitiba e está em fase de cumprimento dos compromissos assumidos pelo réu.
O caso – Em abril de 2016, utilizando uma imitação de arma de fogo e na companhia de outra pessoa, ambos em uma motocicleta, João* abordou Ana*, que caminhava com suas duas filhas por ruas próximas à sua residência, e roubou seus telefones celulares. Algumas horas depois, policiais em uma viatura nas proximidades prenderam em flagrante os responsáveis e recuperaram os aparelhos. O autor do fato foi colocado em liberdade provisória e denunciado pelo MPPR por roubo majorado. Após o ocorrido, João tornou-se microempreendedor, abrindo uma pizzaria. Algum tempo depois, ele compareceu à casa das vítimas para pedir perdão pelo ato praticado, manifestando seu arrependimento e disposição para reparar o dano cometido.
Mediação – Ao identificar a possibilidade de o processo ser tratado a partir de uma perspectiva mais humana e responsabilizadora do que a comumente adotada na esfera criminal, a Promotoria de Justiça responsável pelo processo propôs que o caso fosse encaminhado para práticas restaurativas. Diferente do sistema de justiça convencional, que tem seu processo focado na identificação de culpados e a consequente imposição de penas, a justiça restaurativa busca, por meio do diálogo entre as partes, opções alternativas de responsabilização, reconhecimento e reparação das consequências dos crimes.
Com o apoio do Nupia, cuja equipe multidisciplinar é formada por assessores jurídicos e psicólogos com formação e experiência no tema, foi dado início ao estudo do caso e ao planejamento da abordagem. Foram realizados alguns encontros individuais do autor do crime e das vítimas com os mediadores, para que cada uma das partes pudesse expor sua visão sobre o ocorrido, serem apresentados à justiça restaurativa e avaliarem seu interesse em participar da proposta restaurativa. Com a concordância de todos os envolvidos –condição para que um processo ocorra no âmbito da justiça restaurativa –, foi então realizado o contato entre o autor e as vítimas, com a mediação dos profissionais do MPPR e na modalidade a distância, pela internet, em razão da pandemia de coronavírus.
Relações humanas – “Na justiça restaurativa, não ignoramos a existência do conflito, ao contrário, optamos por abordá-los e compreendê-los de forma aprofundada, em uma perspectiva que valorize dimensões das relações humanas que muitas vezes são deixadas de lado pelo mundo jurídico convencional”, explica o assessor jurídico do Nupia Mário Fischer, que atuou no caso. Mário destaca ainda o cuidado que a metodologia tem com cada pessoa envolvida, especialmente aquelas que sofreram a prática criminosa. “É o que aconteceu nesse caso, com o encaminhamento de uma das vítimas a atendimento psicológico, uma vez que, mesmo concordando em participar da mediação, ela demonstrava um quadro de estresse pós-traumático. Esse acolhimento é muito importante”, esclarece a psicóloga do MPPR Cecília Gagetti, que participou da mediação.
Na avaliação de Marcelo Rogoski Andrade, também psicólogo do MPPR, que atua desde 1998 na Promotoria de Justiça do Juizado Especial Criminal e atualmente também no Nupia, a restauração muitas vezes apresenta desafios ainda maiores aos envolvidos. “Para muitos, é mais difícil passar por um processo de justiça restaurativa do que receber uma pena no sistema tradicional, pois é no espaço da mediação que as pessoas têm a oportunidade de lidar com sentimentos como medo, culpa e vergonha”. Marcelo ressalta o que considera uma das maiores vantagens dessa modalidade: “A justiça restaurativa permite que o autor do crime responsabilize-se de forma ativa pelo delito cometido, diferente de quando ele apenas recebe uma pena e a cumpre, passivamente, muitas vezes não concordando com ela”.
Proposta de reparação – Ao final da mediação, os envolvidos concordaram, como medida reparadora, com o fornecimento mensal de duas pizzas para a família das vítimas durante três meses, pela empresa de João, que faria a entrega pessoalmente. Além disso, foi acordado que ele pagaria mensalmente, durante seis meses, uma cesta básica destinada a uma paróquia da comunidade que realiza trabalhos assistenciais.
Justiça restaurativa – O caso, que tramita na 9ª Promotoria de Justiça de Curitiba, ilustra bem as vantagens e possibilidades de utilização de métodos restaurativos para a resolução de conflitos criminais, inclusive os que envolvem violência ou grave ameaça. Na metodologia, a vítima ocupa papel de protagonismo, sendo ouvida não apenas como narradora dos fatos, como geralmente ocorre no processo comum, mas como alguém que expõe suas necessidades e propõe alternativas para seu atendimento e responsabiliza o autor da ofensa. As principais normas que disciplinam a justiça restaurativa são a Resolução 2002/2012 do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas e a Resolução 225/2016 do Conselho Nacional de Justiça.
Pioneirismo – O promotor de Justiça Willian Lira de Souza, que atua no Nupia, elenca alguns fatores pelos quais o caso pode ser considerado pioneiro no sistema de justiça brasileiro: “Trata-se de um acordo firmado em um crime de roubo, que é considerado grave, no qual houve grave ameaça às vítimas. Além disso, todo o processo de mediação foi conduzido diretamente pelo Nupia-MPPR, a partir de uma metodologia ainda pouco utilizada, que é a mediação vítima-ofensor”. Outra particularidade do processo foi a mediação autocompositiva haver ocorrido integralmente por meios remotos. O resultado obtido também é enfatizado pelo promotor. “Ser alimentado por alguém é algo que demanda uma relação de confiança, e acredito que exatamente por isso o caso simboliza bem os resultados positivos que a justiça restaurativa pode alcançar”.
A solução restaurativa foi comentada pelo promotor de Justiça Jacson Zilio, que atuou no processo: “O caso desconstruiu dois mitos recorrentes: primeiro, que as soluções conciliatórias não se aplicam às situações graves; segundo, que a resposta penal é sempre um caminho necessário, mesmo que inútil. Na verdade, a pena de prisão só reproduz desigualdade social e aumenta significativamente os conflitos sociais. Portanto, o uso da prisão, como regra, deveria ser evitado. A solução restaurativa, por outro lado, funciona como motor de resgate do sentido republicano das penas criminais: afinal, consegue reparar e recriar as relações cívicas danificadas pela injustiça social e pelo delito. O castigo, assim, precisa ter uma prática inclusiva. O regresso, portanto, ao mundo cívico normal pressupõe compreensão da ação realizada e dos danos que provocou na vítima. Está claro que esse comportamento do acusado, voluntário e consciente, repercute na culpabilidade, seja pela exclusão do juízo de reprovação, seja pela compensação. De qualquer modo, prestadas as condições pactuadas de forma livre, os fins das penas são excluídos ou amenizados”, afirmou.
Nupia – No Ministério Público do Paraná, a adoção de práticas restaurativas como forma de valorizar o papel das vítimas e possibilitar uma abordagem que privilegie as relações humanas dos conflitos é incentivada especialmente por meio do Nupia, desde 2018, quando o Núcleo foi criado (Resolução 7.105/2018). A unidade apoia as Promotorias de Justiça em todo o estado nos casos em que é identificada a possibilidade de uma resolução consensual dos conflitos, além de o próprio Núcleo poder atuar diretamente na mediação dos acordos. A procuradora de Justiça Samia Saad Gallotti Bonavides, coordenadora do Nupia, acredita que o caso é emblemático por ter sido alcançada uma solução consensual entre vítimas e réu em um crime no qual a ação penal é incondicionada (ou seja, o oferecimento de denúncia criminal por parte do Ministério Público independe de representação das vítimas). “Diferentemente de outros países, onde a justiça restaurativa é amplamente utilizada em processos criminais, no Brasil, a tendência é de que a metodologia seja mais empregada em casos de família ou de aplicação de medidas socioeducativas. Mas a realidade está aí para nos mostrar o quanto é possível esse outro olhar também para os crimes mais graves”, defende.
Samia Saad Gallotti Bonavides esclarece uma confusão que acredita ainda ser comum na aplicação da justiça restaurativa: “De maneira alguma deixa de haver a responsabilização do autor do crime. Mas, diferente da justiça convencional, que aplica uma pena que muitas vezes não satisfaz a vítima, a justiça restaurativa busca uma solução que seja suficiente para a reparação do dano causado e, o que é mais importante, em um processo com ampla participação dos envolvidos e no qual a vítima tem o protagonismo”.
Conclusão do processo – Com a homologação do acordo restaurativo, o processo fica suspenso para o cumprimento do ajuste firmado. Se integralmente cumprido, caberá ao Ministério Público e ao advogado de defesa proporem ao Juízo a solução jurídica para o processo, que poderá implicar desde uma atenuação da pena, em caso de condenação, até o próprio arquivamento da denúncia.
Semana - A propósito do tema, tem início hoje a "Semana da Justiça Restaurativa" uma campanha que acontece anualmente na terceira semana de novembro em diferentes países com a finalidade de divulgar e consolidar os princípios e ações da Justiça Restaurativa. No MPPR, o Nupia participa de atividades de capacitação e sensibilização em metodologias de justiça restaurativa.
Conheça mais sobre o trabalho do Nupia e o MP Autocompositivo.
DIREITO PENAL ECONÔMICO E RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA
Por Marlus H. Arns de Oliveira[i]
Com o advento da Primeira Grande Guerra[ii] e, posteriormente, a quebra da bolsa de Nova Iorque[iii], verificamos a efetiva intervenção do Estado na economia e seus efeitos no ordenamento jurídico. Surge, então, o Direito penal econômico para criminalizar condutas abusivas à ordem econômica, financeira e tributária. Afirma Manuel A. ABANTO VÁSQUEZ que o “punto de encuentro evidente entre el Derecho Penal y la Economia”[iv] é chamado de “Derecho Penal económico”.
Evidentemente, casos isolados que poderiam se caracterizar como Direito penal econômico são intercorrentes na história universal, mediante punições à especulação, à venda de bens deteriorados, à violação de normas sobre exportação de determinados bens e a delitos contra a propriedade e o patrimônio. Tanto na Grécia antiga quanto no Direito romano aceitava-se a punição de corporações pelos delitos praticados[v].
A análise sociológica de E. SUTHERLAND[vi], em meados de 1940, serviu para caracterizar os delitos econômicos como aqueles de cunho eminentemente empresarial e atentatórios aos instrumentos econômicos da sociedade moderna, praticados pelos chamados “criminosos de colarinho branco”.
O direito penal econômico, como é visto hoje, começou a ser desenhado em meados de 1950, na Alemanha. Klaus TIEDEMANN e Claus ROXIN colaboraram na elaboração do projeto alternativo de 1966 (Alternativ-Entwurf), que se tornou, como lembra Daniel LAUFER, “ponto de referência inescusável para todas as investigações científicas desenvolvidas posteriormente em matéria de delitos socio-económicos.”[vii] No mesmo sentido, ressaltando a importância da experiência alemã para o desenvolvimento do Direito penal econômico, Manuel A. ABANTO VÁSQUEZ explica que: [...] en atención a las recomendaciones de la 49ª Jornada de Juristas y de las Comisiones de Expertos, entre cuyos miembros se encontraba el insigne penalista KLAUS TIEDEMANN, se inició todo un proceso criminalizador de la delincuencia económica. Fundamentalmente se trató de comprender penalmente aquellas conductas fraudulentas atentatorias contra los principales instrumentos económicos de la sociedad moderna.[viii]
Dessa forma, somente após o Estado assumir a condição de Estado dirigente, com intervenção na área econômica, pode se falar em Direito penal Econômico. Explica Klaus TIEDEMANN que “para poder cumplir su cometido principal, que no es outro que el de posibilitar la financiación de las empresas, los mercados de capitales y de créditos necesitan una protección penal que tenga visos de realidad”.[ix]
Não há, inclusive, unidade terminológica em relação à própria nomenclatura da disciplina. Na Alemanha, recebe o nome de direito penal econômico (Wurtchaftsstrafrecht); na França, é ora denominada direito penal econômico (droit penal économique), ora direito penal dos negócios das empresas (droit penal des affaires); nos Estados Unidos da América, criminalidade de colarinho branco ou das corporações (White-Collar-Criminality).
Apesar dessa divergência terminológica, identificam-se alguns elementos comuns nos diversos conceitos de Direito penal econômico. Klaus TIEDEMANN explica que “una economía de mercado presupone, esencialmente, actividad empresarial. A ello corresponde la expresión criminológica ‘corporate crime’; conseguientemente, el Derecho Penal económico también se puede comprender en gran medida como ‘Derecho Penal de la empresa’”[x].
Não há, portanto, um conceito preciso de Direito penal econômico, restando claros apenas pontos de convergência quanto ao fato de tratar-se de um conjunto de normas penais que criminalizam condutas relativas à ordem econômica e financeira, às relações de consumo e ao meio ambiente, sendo crível afirmar ser a criminalidade empresarial o núcleo do Direito penal econômico.
Verificada a existência da chamada criminalidade empresarial, o foco da discussão passa a ser o da responsabilidade penal das pessoas jurídicas. A manutenção da responsabilidade individual fundada nos dogmas do Direito penal clássico ocupa o centro do debate. Em sentido contrário, estão as questões de política criminal[xi], necessárias diante dos altos índices de delitos causados no âmbito empresarial, bem como recomendações advindas de diversos órgãos governamentais, como é o caso do Comitê de Ministros Europeus[xii], e também de órgãos não governamentais, como Congressos Internacionais de Direito Penal. [xiii]
Estando em discussão a validade e a manutenção do antigo dogma societas delinquere non potest, fundamentado na inexistência de capacidade de ação, culpabilidade e possibilidade de punirem-se os entes coletivos, a doutrina se divide. Os resquícios da teoria da ficção, segundo a qual as pessoas jurídicas são mera criação jurídica, não tendo consciência nem vontade próprias, bem como da teoria da realidade, considerando as empresas e corporações como entes sociais que não podem ser desconhecidos da realidade jurídica, acabam por influenciar decisivamente no rumo a ser tomado pelo novo Direito penal[xiv].
Em estudo sobre o futuro do Direito penal, Claus ROXIN, antevendo a necessidade de um diálogo constante e imprescindível entre a dogmática penal e a política criminal, demonstra que a criminalidade econômica tem origem em grandes corporações, e identifica as dificuldades para individualizar a autoria do fato criminoso no interior dessas empresas, apontando a importância das sanções aos entes coletivos: “Las sanciones contra entes colectivos ya existe actualmente en algunos países y en las formas más variadas. Pero ellas son ajenas al espíritu del Derecho penal tal como ha sido desarrollado en la tradición europea. Pues la pena siempre se recondujo a la culpabilidad individual de una sola persona. Societas delinquere non potest: éste era el dicho rector de un Derecho penal que se mueve de la responsabilidad por el resultado en la edad media hacia la imputación individual.”[xv]
Portanto, com a possível responsabilização penal das pessoas jurídicas buscam-se soluções para enfrentar os novos desafios, advindos das constantes e profundas transformações tecnológicas que afetam as relações sociais e laborais, os quais não são superados por meio de critérios de imputação clássicos, válidos exclusivamente para o indivíduo. Surgem, assim, necessidades de modificarem-se as estruturas básicas de imputação e a de criação de novas regras específicas para os entes coletivos.
Na realidade brasileira, o Direito penal econômico converteu-se em aspecto de grande relevância, sendo preciso analisar a responsabilidade penal das pessoas jurídicas com base na Constituição Federal que, em seus arts. 173, § 5º (“A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular”) e 225, § 3º (“As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.”), admite expressamente tal possibilidade, independentemente da responsabilidade individual de seus dirigentes.
A premissa constitucional bem demonstra a preocupação de oferecer resposta à criminalidade praticada pelos entes coletivos, em especial, nos campos da ordem econômico-financeira, economia popular e do meio ambiente, bem como, segundo nosso entendimento, sobre qualquer outro merecedor de orientação político-criminal e que o legislador considerar relevante.
O art. 175, § 3º, possibilita a incriminação das pessoas jurídicas quando os delitos praticados ofenderem bens jurídicos supraindividuais ligados à ordem econômica, enquanto o art. 225 garante a todos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, e claramente expõe em seu parágrafo 3º a possibilidade de responsabilizarem-se penalmente as pessoas jurídicas quando estas praticarem crimes ambientais.
A legislação ambiental infraconstitucional vem colocando em prática a orientação constitucional de imputar responsabilidade penal às pessoas jurídicas. A Lei n.º 9.605/98 regulamentou o dispositivo constitucional, fazendo com que os entes coletivos sejam responsabilizados penalmente quando a infração for cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade, não excluindo a responsabilidade das pessoas físicas autoras, coautoras ou partícipes do mesmo fato, adotando-se um sistema de dupla imputação.
Esse posicionamento já repercute na jurisprudência[xvi] e na doutrina especializada em Direito penal ambiental.
Cumpre observar que a superação da dogmática penal tradicional tem sido propugnada pelos posicionamentos teóricos de inúmeros autores, como é o caso do de Silvina BACIGALUPO[xvii]: “Se debe concluir, pues, que el sujeto del Derecho Penal clásico, el individuo, no se adecua y resulta insuficiente para responder, desde el Derecho penal, a la comisión (omisión) de injustos penales en la sociedad moderna. Los ejemplos más frecuentes para esta afirmación se encuentran en las numerosas conductas ilícitas realizadas dentro del marco del Derecho penal económico, de los delitos ecológicos o de los fraudes de subvenciones en el marco del Derecho comunitario, realizados a partir de una organización empresarial, es decir, por una persona jurídica. La distribución de competencias dentro de una organización compleja, como tiene una persona jurídica, impide en la mayoría de los casos imputar el injusto a un sujeto concreto. Por lo tanto, ese sujeto insuficiente debe ser reestructurado para poder dar una explicación a los injustos penales cometidos por personas jurídicas en el tráfico jurídico de la sociedad moderna. La reestructuración de la idea del sujeto en el Derecho penal significa, en consecuencia, una ampliación del ámbito de imputabilidad que abarca desde el individuo hasta una persona jurídica, cambiando el paradigma ‘societas delinquere non potest’ que, por otra parte, como se ha demonstrado a lo largo de esta investigación nunca ha sido tan claro en la doctrina como alguno de sus defensores pretenden hacer creer.[xviii]
A responsabilidade penal dos entes morais deve ser analisada também sob a óptica dos bens jurídicos tutelados, ressaltando a orientação funcional teleológica de Claus ROXIN, pois não há como dissociar a dogmática penal da política criminal. Ao proteger a economia e o meio ambiente o Direito penal está objetivando o livre desenvolvimento da pessoa humana dentro do atual modelo de sociedade, tutelando bens jurídicos supraindividuais. Trata-se de defender interesses difusos e coletivos que dizem respeito a toda sociedade, pois, quando ofendidos, não geram efeitos para um único indivíduo, mas sim para coletividade. Assim, a transição paradigmática da defesa de bens jurídicos de caráter individual para a tutela da ordem econômica, tributária e financeira, do meio ambiente e das relações de consumo, decorre diretamente da intervenção estatal na atividade econômica, dos novos desafios impostos pelo avanço tecnológico e das consequentes modificações de relações socioeconômicas, consumo e trabalho. Logo, no atual modelo de Estado, o Direito penal deve estar assentado não somente na defesa dos tradicionais bens jurídicos individuais, mas também na tutela de bens jurídicos supraindividuais, que representam o elo entre a dogmática penal e a atual orientação político-criminal. Negar essa realidade é ignorar a forma de atuação deste novo modelo de sociedade e impedir que o sistema penal seja repressivo de maneira uniforme a todas as pessoas, físicas ou jurídicas. Evidentemente, a legitimação deste novo modelo penal dá-se quando observadas as garantias penais e processuais penais contidas na moderna orientação constitucional do princípio do devido processo legal.
O mandamento constitucional para que sejam adequadas as penalidades às características da pessoa jurídica provoca necessária alteração de dogmas do Direito penal, não excluindo a responsabilidade individual dos mandatários dos entes coletivos, mas admitindo novas modalidades de penas aplicáveis às pessoas jurídicas.
O Direito penal, ao tutelar bens de caráter coletivo dentro de uma concepção econômica supraindividual, possibilita a realização do indivíduo na sociedade[xix], revelando a importância social do sistema financeiro e da ordem tributária, das relações de consumo e do meio ambiente.
Se concordarmos que o Direito penal pode tutelar direitos individuais e coletivos essenciais, então, a intervenção na ordem econômica é legítima, e até mesmo necessária, mesmo do ponto de vista do Direito penal clássico. A dogmática penal passa, então, a dirigir seu olhar para a criação de tipos penais que tutelam a ordem econômica, o meio ambiente, o sistema financeiro e as relações de consumo. Tal legitimação resta bastante clara na lição de Carlos MARTINEZ-BUJÁN PÉREZ: “Em suma, si se admite el recurso al Derecho penal para proteger bienes jurídicos individuales tradicionales (como la salud o el patrimonio) frente a las agresiones características de la sociedad moderna, que se desarrollan en el marco de los ‘contextos de acción colectivos’, hay que tener en cuenta que la única técnica de tutela imaginable es la de acudir a los delitos de peligro y, fundamentalmente, a través de los delitos de peligro abstracto. Una cosa implica la otra. El delito de peligro abstracto comporta el empleo de una técnica que va indisolublemente ligada a la protección penal anticipada de aquellos bienes jurídicos. Es más, creo que hay que compartir la opinión de SHÜNEMANN, cuando con carácter general afirma que la radical oposición de la escuela de Frankfurt al delito de peligro abstracto supone hacer fracasar el Derecho penal en su tarea de protección de bienes jurídicos (fundamentales), al ignorar las condiciones de actuación de la sociedad moderna. Y ello resulta entonces reaccionario porque – entre otras razones – bloquea la necesaria aportación de la Ciencia penal a una legitimación críticamente constructiva de dichos tipos.[xx]
Os críticos da atuação do Direito penal na defesa de bens jurídicos supraindividuais, em especial os partidários da Escola de Frankfurt, afirmam ser o Direito penal econômico plena manifestação do “direito penal do perigo”, também chamado “direito penal do risco”, que abandona a tutela do bem jurídico individual e busca a proteção do sistema. Consideram ser o Direito penal clássico o verdadeiro baluarte do Estado de direito, instrumento de defesa ante um Estado que atua de forma indiscriminada e prepotente. Peter-Alexis ALBRECHT adverte que o Direito penal do perigo intervém ilimitadamente, tornando a moderna legislação penal misteriosa para os cidadãos, bem como inchada e incompreensível.[xxi]
De qualquer sorte, é inegável a importância prática de responsabilizarem-se penalmente as pessoas jurídicas, pois sua estrutura, cada vez mais complexa, pode ser utilizada para possibilitar a prática de infrações penais ou mesmo como escudo, fazendo com que os autores individuais da conduta delituosa não possam ser identificados.
A realidade demonstra estar praticamente pacificado o entendimento quanto à necessária aplicação de penalidades às pessoas jurídicas criminosas, sendo que aqueles que não admitem a responsabilidade penal destas defendem a aplicação de sanções administrativas e civis; outros, em posição intermediária, defendem a aplicação de medidas de segurança, e aqueles que aceitam a imputação penal aos entes coletivos admitem a verdadeira responsabilização penal com a aplicação de penas aos mesmos.
Superando o dogmatismo penal clássico, diversas modalidades de pena vêm sendo sistematicamente aplicadas às pessoas jurídicas, tais como: a) advertência; b) pena de multa; c) pena de confisco ou perda de bens; d) pena de intervenção na empresa; e) pena de interdição de direitos; f) pena de divulgação de sentença; g) pena de prestação de serviços a comunidade; h) pena de fechamento temporário; e i) pena de fechamento definitivo. Enfatiza Claus ROXIN que, no futuro, as sanções aos entes coletivos terão destacado papel[xxii], afinal, a criminalidade econômica e ambiental provém das grandes empresas.
A aplicação das penalidades acima descritas atendem à orientação constitucional, e também as prementes necessidades político-criminais que possibilitam ser responsabilizadas penalmente as pessoas jurídicas.
Finalmente, neste atual modelo de sociedade não resta dúvida do papel que empresas e corporações vêm desempenhando, tendo a Constituição Federal traçado novos caminhos para o Direito penal, obrigando uma reavaliação do dogma societas delinquere non potest, com a consequente criação de sistema próprio para tratar da imputação penal às pessoas jurídicas.
Cabe a nós, diante desses novos desafios, adequar a orientação político criminal à dogmática penal, pois considerar possível a responsabilização penal das pessoas jurídicas nada mais significa do que conceder aos entes coletivos a idêntica importância jurídica que a sociedade já concedeu.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[i] Advogado, Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUC/PR
[ii] DIAS, Jorge de Figueiredo, ANDRADE, Manuel da Costa. Problemática Geral das Infrações contra a economia nacional. In: Temas de Direito Penal Econômico. Roberto Podval (Org.). São Paulo: RT, 2001.
[iii] RIGHI, Esteban. Derecho penal económico comparado. Buenos Aires: Editoriales de Derecho reunidas. p. 8.
[iv] VÁSQUEZ, Manuel A. Abanto. Derecho Penal Económico. Consideraciones jurídicas y económicas. Lima: Idemsa, 1997. p. 18.
[v] Sobre o histórico apresentado, vide Walter Claudius Rothenburg. ROTHENBURG, Walter Claudius. A pessoa jurídica criminosa. Curitiba: Juruá, 1997. p. 29. Importante ressaltar que o referido autor valeu-se dos ensinamentos de Affonso Arinos de Mello FRANCO, em sua clássica obra Responsabilidade criminal das pessoas jurídicas.
[vi] Importante destacar a Conferência proferida por SUTHERLAND em 27 de dezembro de 1939 perante a Sociedade Americana de Sociologia, posteriormente publicada como “White-Collar-Criminality”, sendo um dos marcos de início do estudo do fenômeno da delinquência econômica. A pesquisa de E. SUTHERLAND tem diversos méritos. O maior talvez seja o de superar a ideia enraizada entre os estudiosos de que o indivíduo que prática um delito carece de um déficit de socialização. Esta representação estaria sendo compensada pelo processo de ressocialização, supostamente capaz de fazer desaparecer o próprio delito. Contudo, esta tese não prospera perante a conduta delitiva praticada por um indivíduo inserido numa estrutura empresarial. Destacando a contribuição pioneira de E. SUTHERLAND, vide SCHÜNEMANN, Bernd. La punibilidad de las personas jurídicas desde la perspectiva europea. In: Hacia un Derecho Penal Económico Europeo. Jornadas en honor del Profesor Klaus Tiedemann. Madrid : Boletin Oficial del Estado, 1995. p. 571.
[vii] LAUFER, Daniel. Responsabilidade Penal dos Órgãos Diretivos da Empresa. Monografia de conclusão de curso. PUCPR, 2001. p. 7
[viii] VÁSQUEZ, Manuel A. Abanto. Op. cit. p. 27. Cita o autor que entre aquelas condutas estavam “el otorgamiento de créditos y subvenciones, el sistema de seguros y de inversiones de capital, así como el uso de computadoras.” No âmbito da produção científica da doutrina penal alemã, visando consolidar o Direito penal econômico, especial destaque merece a obra de SCHÜNEMANN, Bernd, “Criminalidad y empresa” de 1979, e seus mais recentes estudos entre os quais basta citar: “Ofrece la reforma del Derecho penal econômico alemán um modelo o um escarmiento?” publicado em Jornadas sobre la “Reforma del Derecho Penal em Alemania”. Consejo del Poder Judicial, Madrid, 1992. p. 31-47.
[ix] TIEDEMANN, Klaus. Presente y futuro del Derecho Penal Económico. In: Hacia un Derecho Penal Económico Europeo. Libro homenaje a Klaus Tiedemann. Madrid: Boletin Oficial del Estado, 1995. p. 41.
[x] TIEDEMANN, Klaus. Op. cit. p. 34. Esse autor estabelece dois conceitos de Direito penal econômico, o primeiro é um conceito limitado que coincidiria com a proteção a ordem econômica, sendo definido como o direito estatal de dirigir a economia, e outro, mais amplo, que se identifica com a regulamentação da produção e repartição dos bens econômicos. TIEDEMANN, Klaus. El concepto de derecho económico, de derecho penal económico y de delito económico. Madrid. Cuadernos de Política Criminal n. 28, 1986, p. 65 e ss.
[xi] Conforme noticia Mercedes García ARÁN, o incremento da atuação económica das pessoas jurídicas provoca também “el incremento de la delincuencia cometida a su amparo, hasta el punto de que un estudio del Max-Planck-Institut sitúa en torno al 80% el porcentaje de delitos económicos cometidos en el seno o bajo la cobertura de personas jurídicas, lo que deja planteada, de entrada, la considerable peligrosidad de las mismas para los bienes jurídicos a los que afecta su actuación. Este fenómeno criminológico tiene una de sus explicaciones en la capacidad de la estructura de las empresas para dar cobertura a nuevas formas de delincuencia.” (ARÁN, Mercedes García. Algunas consideraciones sobre la responsabilidad penal de las personas jurídicas. In: I Congreso Hispano-Italiano de Derecho Penal Económico. Dirección de Carlos Pérez Martínez-Buján. Coruña: Edición Universidad da Coruña. Abril, 1998. p. 45). Neste sentido, a conclusão de SCHÜNEMANN ao responder a seguinte questão: “Necesitamos medidas jurídico-penales especificas contra la entidade colectiva em cuanto tal o pueden ser satisfechas las necesidades politico-criminales por médio de uma configuración más eficaz del Derecho Penal individual?”. Afirma o autor categoricamente que “sólo se puede alcanzar uma eficiência preventiva del Derecho Penal equivalente a la que existe en el âmbito de la actuación individual si, en correspondencia al entrecruzamiento de mecanismos de acción colectiva y de acción individual se conmina también una combinación de sanciones individuales y colectivas; si, por tanto, expresado con otras palabras, se completa el Derecho Penal individual con un Derecho sancionatorio dirigido contra la empresa en cuanto tal. La respuesta a la pregunta número 1 reza, por tanto, que las necesidades político-criminales no pueden ser satisfechas sólo mediante una más eficaz configuración del Derecho Penal individual, sino que exigen medidas jurídico-penales especificas contra el grupo como tal.” (op. cit. p. 581.)
[xii] A título de exemplo vide a Recomendação nº 88 de 20 de outubro de 1998 que propôs a aplicação de responsabilidade e de sanções penais as empresas quando a natureza da infração, a gravidade da culpabilidade da empresa e a necessidade de prevenir outras infrações assim o exigirem.
[xiii] Vide, i.e, o XV Congresso Internacional de Direito Penal realizado no Rio de Janeiro em setembro de 1994 que posicionou-se pela responsabilidade penal das pessoas jurídicas em crimes ambientais.
[xiv] A doutrina brasileira é vasta sobre o tema, já desde a década de 90 em obra coletiva coordenada por Luiz Flávio GOMES: Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica e Medidas Provisórias e Direito Penal. São Paulo : RT, 1999; ROTHENBURG, Walter Claudius. A pessoa jurídica criminosa. Curitiba : Juruá, 1997. Vide também número especial da Revista Brasileira de Ciências Criminais – IBCCRIM – sobre o Seminário Internacional de Direito Penal Econômico, n.º 11, julho/setembro, 1995. Ainda vide obra coletiva sob a coordenação de Luiz Regis PRADO: Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica. São Paulo : RT, 2001. No cenário da experiência comparativa na doutrina penal espanhola vide: BACIGALUPO, Silvina. La responsabilidad penal de lãs personas jurídicas. Barcelona: Bosch, 1998 ; PÉREZ, Carlos Martinez-Buján. Derecho Penal Económico.Parte General. Valencia: Tirant lo blanch, 1998; vide também obra coletiva sob coordenação de S. Mir PUIG e D. M. Luzón PEÑA. Responsabilidad penal de las empresas y sus órganos y responsabilidad por el producto. Barcelona: Bosch, 1996; e obra coletiva de publicação das palestras conferidas no I Congreso Hispano-Italiano de Derecho Penal Económico, sob direção de Carlos Martinez-Buján PÉREZ, Coruña: Universidade de Coruña, 1998. Em Portugal, vide DIAS, Jorge de Figueiredo. Sobre a autonomia dogmática do direito penal econômico. – Uma reflexão à luz do novo direito penal econômico português-. In: Estudos Penales y Criminologicos IX. Santiago de Compostela : Secretariado de publicaciones de la Universidad de Santiago, 1986.
[xv] ROXIN, Claus. El desarrollo del Derecho Penal en el siguiente siglo. (“Zur Entwicklung des Strafrechts im kommenden Jahrhundert”.) Trad. do alemão por Manuel Abanto Vásquez. In: Dogmática penal y política criminal. Lima: Idemsa, 1998. p. 461.
[xvi] Em 25/04/2002 o d. Juízo da 1ª Vara Federal de Criciúma proferiu sentença condenando uma empresa pela prática de crime ambiental (Autos 2001.72.04.002225-0/SC). A condenação consistiu no pagamento de R$ 10.000,00 (dez mil reais) para o custeio de programas ambientais.
[xvii] BACIGALUPO, Silvina. Op. cit. p. 363-4.
[xviii] Contudo, explica a autora que: “La ampliación propuesta, sin embargo, no significa renunciar a los principios fundamentales de un Derecho penal garantista, como la mayoría de los autores están convencidos. Por el contrario, tras el reconocimiento de realidades que el Derecho penal clásico no puedo afrontar, el entendimiento de mi propuesta debe ser compreendido como una consecuencia deseable para el sistema y su buen funcionamiento.” BACIGALUPO, Silvina.Op. cit. p. 364.
[xix] Claus ROXIN tratou deste ponto ao conceituar bem jurídico como “as circunstâncias dadas ou finalidades que são úteis para o indivíduo e seu livre desenvolvimento no âmbito de um sistema social global estruturado sobre a base da concepção dos fins ou para o funcionamento do próprio sistema.” (ROXIN, Claus. Derecho Penal: Parte General. Tomo I. Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. Trad. Diego-Manuel Luzon Peña. Madrid: Civitas, 1997.p. 56).
[xx] PÉREZ. Carlos Martinez-Buján. Algunas reflexiones sobre la moderna teoría del Big Crunch en la selección de bienes jurídicos-penales (especial referencia al ámbito económico). In: Libro Homenaje Cerezo Mir. Madrid: Tecnos, 2002. p. 416.
[xxi] Denomina este atual movimento do Direito Penal como “Contrailustración” e exemplifica: “El programa de la Ilustración consistió en la supresión de mitos y en la liberación de las personas de su minoría de edad arrastrada por la tradición y aprovechada por el Estado y por la Iglesia. Fue la invitación a las personas a tomar las riendas de su destino y de su sociedad. El programa de la actual Constrailustración penal pasa de nuevo por la construcción de mitos.” (ALBRECHT, Peter-Alexis. La insostenible situación del Derecho penal. Granada: Comares, 2000, p. 476). Carlos Martinez-Buján Peréz criticando a Escola de Frankfurt afirma: “Sí hay, en concreto, una idea que se repite hasta la saciedad, especialmente por parte de los autores de la escuela de Frankfurt, y que a mi juicio tiene que ser, desde luego, relativizada. Me refiero a las continuas apelaciones que, para restringir la esfera de intervención del Derecho penal desde un concepto personal del bien jurídico, se efectúan a la libertad [...] del infractor de la norma penal! Sin dejar de subrayar la perversión de valores en la que se puede desembocar a raíz de este planteamiento, no estaría de más recordar que el Ordenamiento jurídico no sólo tiene que proteger la libertad de quienes infringen las normas sino también – y fundamentalmente – la libertad de quienes las cumplen. En fin, tomando prestada la conocida frase feliz de FERNANDO DE LOS RÍOS, podemos concluir afirmando que, si queremos hacer al hombre libre, hay que convertir a la economía en esclava.” (PÉREZ, Carlos Martínez-Buján. Op. cit. p. 431.)
[xxii] Sobre essas sanções afirma Claus Roxin: “En cambio, las sanciones vinculadas a un fracaso de organización (independientemente de a quién en particular le alcance la culpa) pueden ser muy efectivas preventivamente. Ellas consistirían en medidas que van desde considerables pagos de dinero hasta el cierre de la empresa. Estas sanciones contra entes colectivos, cuya elaboración jurídica todavía está en sus inicios, tampoco constituyen verdaderas penas pues presuponen una conducta humana e imputable a persona y una culpabilidad. Un ente colectivo sólo puede actuar y portar culpabilidad en el sentido analógico de una construcción jurídica: para ello tendrían que elaborarse reglas especiales de imputación que aquí no pueden ser explicadas con más detalle. Pero también la pena contra entes colectivos constituye en todo caso una sanción similar a la penal, vinculada con la realización de tipos penales, y ello es suficiente para confirmar mi tesis de la futura diversificación de las reacciones penales.” ROXIN, Claus.Op. cit. p. 463.
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A importância da reparação do dano em crimes ambientais e a (in)suficiência do Direito Penal
Camila Rodrigues Forigo[i]
Helena Schünemann Buschmann[ii]
Com a ascensão da pauta de crimes ambientais envolvendo pessoas jurídicas no Brasil, imperiosa é a análise sobre essa questão, que deve considerar não só a responsabilização (ou não) da pessoa jurídica que comete a infração, mas também sobre a reparação do dano em crimes ambientais. Trabalhando com casos recentes e de amplo conhecimento nacional[iii], apresentaremos brevemente alguns pontos controversos no direito penal econômico sobre a temática.
Vale destacar a atualidade do tema, tendo em vista o crescente risco de destruição ambiental e o grande poder de devastação pelas novas tecnologias[iv], o que aponta para a necessidade de uma reanálise do tratamento das questões ambientais e, com isso, o estabelecimento de medidas de prevenção mais eficazes e de diretrizes para a recomposição dos danos ambientais quando já ocorridos.
A fim de discutir a temática, podem-se destacar os emblemáticos desastres ambientais de Mariana e Brumadinho. A tragédia de Mariana[v] ocorreu em 05 de novembro de 2015 e consistiu no rompimento da barragem de Fundão, estrutura que continha diversos tipos de minérios e rejeitos, atingindo a cidade de Bento Rodrigues, além de contaminar o rio Doce e sua bacia hidrográfica que abrange diversos municípios de Minas Gerais e do Espírito Santo. Além do grave dano ambiental, o desastre tirou a vida de 19 (dezenove) pessoas.
Já em Brumadinho[vi], em 2019, a barragem da Mina Córrego do Feijão se rompeu e ocasionou a morte de 270 pessoas, além de diversos atentados ao meio ambiente.
No caso de Mariana, já foram oferecidas denúncias tanto em face das pessoas jurídicas quanto das pessoas físicas[vii]. Especificamente quanto às pessoas jurídicas, foram imputados crimes previstos na Lei 9.605/98, como a poluição qualificada, crimes contra a fauna, flora, contra o ordenamento urbano e patrimônio cultural e crimes contra a administração ambiental. Além disso, as pessoas físicas foram também denunciadas pelos crimes de inundação, desabamento/desmoronamento e homicídio, previstos no Código Penal.
Vale destacar que algumas ações apresentadas em face das pessoas físicas foram trancadas pelo TRF1, via habeas corpus, pela ausência de causalidade normativa entre o descumprimento do dever de agir e o resultado[viii].
Em âmbito administrativo a questão já foi encerrada[ix]. A Samarco Mineração S/A foi notificada 73 vezes e recebeu 25 autos de infração do Ibama, num valor total de multa de R$350,7 milhões[x] e buscou o afastamento dessas multas aplicadas pelo Ibama, através de ação judicial[xi].
Observe-se que logo após o acidente, o Ministério Público Federal ajuizou Ação Civil Pública[xii] contra a Samarco Mineração S/A, Vale S/A e BHP Billiton Brasil LTDA, além de diversos entes públicos, como a União, o Estado de Minas Gerais e o Estado do Espírito Santo, pleiteando a reparação pelos danos morais e patrimoniais, entre outros.
Recentemente, em julho de 2020, foram proferidas decisões[xiii] pela 12ª Vara Federal de Belo Horizonte definindo indenizações por danos morais e materiais, até o valor de R$ 94.585,00 para determinadas categorias de trabalhadores que foram afetados pelo desastre.
Relativamente ao caso de Brumadinho, em janeiro de 2020, o Ministério Público Federal ofereceu denúncia[xiv] contra o ex-presidente da Vale, e mais 14 pessoas pelo crime de homicídio qualificado pelas 270 mortes. As pessoas jurídicas denunciadas foram a Vale S/A e Tüv Süv Bureau de Projetos e Consultoria LTDA por crimes contra a fauna, flora e de poluição.
Até o momento, de acordo com a Semad (Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais), foram aplicados 11 autos de infração contra a Vale S/A, no total de R$ 104,9 milhões “por infrações variadas como poluição de recursos hídricos, degradação de ecossistemas, entrega de laudo ou relatório ambiental falso, não atendimento de determinação dos órgãos ambientais, entre outras.” O próprio Ibama também aplicou multas que chegaram ao montante de R$250 milhões. E, ainda multas de R$100 mil por dia até que a Vale apresentasse um plano de salvamento da fauna silvestre e doméstica[xv].
Em junho de 2020[xvi], as Defensorias Públicas dos estados do Espírito Santo e de Minas Gerais, bem como a União, realizaram uma denúncia ao Conselho Nacional dos Direitos Humanos em desfavor da Fundação Renova, Vale, BHP Billiton e Samarco por conta da suspensão de pagamentos dos auxílios financeiros emergenciais, porém, até então, o protocolo foi apenas enviado para análise[xvii].
Além disso, membros da sociedade civil apresentaram uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)[xviii], alegando que foi a negligência do Estado brasileiro que permitiu a ocorrência das tragédias, além da falta de medidas reparatórias efetivas e a ausência de punição dos crimes. Na audiência que ocorreu em 09 de maio de 2019, decidiu-se por 13 medidas a serem tomadas pelo Estado dentre as quais destacam-se a reversão da tendência de enfraquecimento da legislação trabalhista e ambiental, a imposição de limites na atividade minerária para garantir a preservação do meio ambiente, a promoção da célere responsabilização administrativa civil e penal dos diretores das empresas etc.
Esses acontecimentos trazem à tona a importância de o Estado tomar medidas que, mais do que estabelecer reprimendas penais, possibilitem uma efetiva precaução criminal e possibilite uma recomposição dos danos sofridos. Sobre o princípio da precaução, vale observar que foi estabelecido na Conferência de 1972[xix] como uma importante regra para a prevenção ambiental ao estabelecer aos Estados que, existindo ameaça de danos graves ou irreversíveis ao meio ambiente, “a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental”[xx]. Com isso, cria-se uma imposição internacional para que os Estados realizem todas as medidas possíveis para a prevenção de danos ambientais.
Tais elementos reacendem a discussão acerca da responsabilização penal da pessoa jurídica que, muito embora seja prevista para o caso de crimes ambientais, apresenta alguns limites, como a responsabilização síncrona de uma pessoa física e acaba servindo de case para a expansão dessa responsabilização em outros campos.
Todavia, sem pretender apresentar uma resposta para a problemática dessas questões, até pelo limitado espaço do presente artigo, pretende-se problematizar acerca da eficiência e eficácia da responsabilização no que diz respeito à recomposição dos danos causados, especialmente aqueles ambientais.
Não seria mais viável investir em medidas de controle e fiscalização estatal para evitar que tais tragédias ocorram? Será que o estabelecimento de políticas mais rígidas e punições administrativas pesadas em caso de descumprimento não seriam mais eficazes na proteção ambiental?
Uma política sancionatória integral, que considerasse as esferas cível, administrativa e penal não poderia trazer medidas reparatórias mais satisfatórias?
E, após o dano ambiental, sanções administrativas não seriam muito mais efetivas para a recomposição do meio ambiental do que a sanção dos autores desses atos lesivos por meio da tutela penal[xxi]?
Com esses questionamentos, pretende-se apenas levar o leitor à reflexão acerca da discussão de que o direito penal não possui finalidades preventivas e atua apenas quando o dano ocorreu (pos factum), sendo importante considerar que tratando-se de graves e severos danos ambientais, mais importante do que a responsabilização parece ser a recomposição do meio ambiente ao seu estado anterior.
[i] Doutoranda em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Direito Econômico e Desenvolvimento, pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal - ICPC. Conselheira do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico. Secretária da Comissão da Advocacia Criminal da OAB-PR (Triênio 2019 - 2021). Advogada.
[ii] Acadêmica de Direito do 10º Período da Faculdade de Educação Superior do Paraná - FESPPR.
[iii] É importante ter em vista que o presente artigo se baseou em notícias e comunicados divulgados na imprensa e em documentos disponíveis nos canais oficiais do Ministério Público Federal e do Tribunal Regional Federal da 1ª Região.
[iv] FREELAND, Steven. Direitos humanos, meio ambiente e conflitos: enfrentando os crimes ambientais. In: Revista internacional de direitos humanos [online]. 2005, vol.2, n.2, pp.118-145. p. 126.
[v] SAMARCO. Rompimento de Fundão. Disponível em: https://www.samarco.com/rompimento-de-fundao/. Acesso em: 04 out. 2020.
[vi] GREENPEACE. O crime da Vale em Brumadinho. Disponível em: https://www.greenpeace.org/brasil/o-crime-da-vale-em-brumadinho/. Acesso em: 04 out. 2020.
[vii] DENÚNCIA. Ministério Público Federal em face de Samarco S.A., Vale S.A., BHP Billiton Brasil Ltda. e demais pessoas físicas envolvidas. Mariana. 2016, p. 120-121. Disponível em: <http://www.mpf.mp.br/mg/sala-de-imprensa/docs/denuncia-samarco>. Acesso em: 04 out. 2020.
[viii] Veja, a propósito, decisão proferida pelo TRF1 no habeas corpus nº 1029985-02.2018.4.01.0000, disponível em: < https://www.conjur.com.br/dl/trf-tranca-acoes-homicidio-executivos.pdf>.
[ix] G1. Samarco entra na Justiça para tentar anular multas impostas pelo Ibama após tragédia de Mariana. 2019. Online. Disponível em: https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2019/03/13/samarco-entra-na-justica-para-tentar-anular-multas-impostas-pelo-ibama-apos-tragedia-de-mariana.ghtml. Acesso em: 04 out. 2020.
[x] IBAMA. Rompimento da barragem de Fundão: documentos relacionados ao desastre da Samarco em Mariana/MG. Disponível em: http://www.ibama.gov.br/cites-e-comercio-exterior/cites?id=117. Acesso em: 04 out. 2020.
[xi] CAMILO, José Vitor. Justiça Federal nega pedido da Samarco para suspensão de multas aplicadas pelo Ibama. Disponível em: https://www.hojeemdia.com.br/horizontes/justi%C3%A7a-federal-nega-pedido-da-samarco-para-suspens%C3%A3o-de-multas-aplicadas-pelo-ibama-1.734920. Acesso em: 09 out. 2020.
[xii] DENÚNCIA. Ação Civil Pública. Ministério Público Federal em face de Samarco S.A., Vale S.A., BHP Billiton Brasil Ltda. e demais pessoas físicas envolvidas. Mariana. 2016. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/mg/sala-de-imprensa/docs/acp-samarco. Acesso em: 04 out. 2020.
[xiii] Vejam-se: TRF 1. Autos nº 1016742-66.2020.4.01.3800 e 1017298-68.2020.4.01.3800. Disponível em: https://portal.trf1.jus.br/sjmg/comunicacao-social/imprensa/noticias/caso-samarco-justica-federal-determina-o-pagamento-das-indenizacoes-aos-atingidos-pelo-rompimento-da-barragem-de-fundao-em-mariana-mg.htm. Acesso em: 04 out. 2020.
[xiv] RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. Ministério Público Federal em face de Samarco S.A., Vale S.A., BHP Billiton Brasil Ltda. e demais pessoas físicas envolvidas. Disponível em: https://observatorionacional.cnj.jus.br/observatorionacional/index.php/desastre-brumadinho/timeline-brumadinho/412-justica-de-brumadinho-recebe-denuncia-criminal-contra-16-pessoas. Acesso em: 04 out. 2020.
[xv] RODRIGUES, Leo. Agência Brasil. Vale paga multas ao governo mineiro, mas questiono cobranças do Ibama. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-01/vale-paga-multas-ao-governo-mineiro-mas-questiona-cobrancas-do-ibama. Acesso em: 04 out. 2020.
[xvi] Redação Folha Vitória. Fundação Renova por suspensão de pagamentos a afetados por lama no Rio Doce. Disponível em: https://www.folhavitoria.com.br/geral/noticia/07/2020/defensorias-denunciam-fundacao-renova-por-suspensao-de-pagamentos-a-afetados-por-lama-no-rio-doce. Acesso em 08 out. 2020.
[xvii] Fundação Renova é acusada de omissão em relação à denúncia envolvendo o Programa 9 do TAC do Tsulama da Samarco. Disponível em: https://blogdopedlowski.com/2020/08/10/fundacao-renova-e-acusada-de-omissao-em-relacao-a-denuncia-envolvendo-o-programa-9-do-tac-do-tsulama-da-samarco/. Acesso em: 09 out. 2020.
[xviii] CAETANO, Bruna. Brasil de fato. Sociedade civil denuncia Vale na Comissão Interamericana de Direito Humanos. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2019/05/10/sociedade-civil-denuncia-vale-na-comissao-interamericana-de-direitos-humanos. Acesso em: 04 out. 2020.
[xix] BROCHADO NETO, Djalma Alvarez; MONT’ALVERNE, Tarin Cristino Frota. Ecocídio: proposta de uma política criminalizadora de delitos ambientais internacionais ou tipo penal propriamente dito? In: Rev. Bras. Polít. Públicas, Brasília, v. 8, nº 1, 2018. p.214.
[xx] NAÇÕES Unidas - Brasil. Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, Rio de Janeiro, 1992. Disponível em http://www.onu.org.br/rio20/img/2012/01/rio92.pdf. Acesso: 05 jun. 2020.
[xxi] Acerca dessa questão: HASSEMER, Winfried. A preservação do ambiente através do direito penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 6, n. 22, p. 27-35., abr./jun. 1998 e COSTA, Helena Regina Lobo da; Proteção ambiental, direito penal e direito administrativo. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2007.
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ANOTAÇÕES SOBRE A REPARAÇÃO CIVIL NAS SENTENÇAS PENAIS CONDENATÓRIAS
Danyelle Galvão[i]
Há muito se trata sobre a possibilidade de reparação civil decorrente de ilícito penal, tendo previsão legal em vários diplomas diferentes no país. O Código Civil, em seu art. 935, prevê que a responsabilidade civil independe da criminal, mas estabelece que não se pode mais questionar, na esfera cível, sobre “a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal”.
Por sua vez, o Código de Processo Civil dispõe, em seu art. 515, inciso VI, inciso II, que a sentença penal condenatória é título executivo judicial. Já no âmbito penal, a disposição do art. 91, inciso I do Código Penal estabelece que é efeito da condenação criminal “a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime”. E, por sua vez, o Código de Processo Penal prevê (art. 63) a execução da sentença penal para o efeito de reparação do dano, sem excluir a possibilidade de proposição de ação civil ex delicto no juízo cível (art. 64).
Uma leitura atenta e dependente dos artigos supra mencionados conduzem à conclusão que, apesar das searas penal e civil serem independentes, têm estreita e direta ligação no que se refere ao dever de indenizar.
Apesar de todas estas disposições legais e da independência das instâncias, o Código de Processo Penal foi alterado em 2008 para incluir o inciso IV ao art. 387 e possibilitar a fixação, perante o juízo criminal, de valor indenizatório.
Diante deste panorama, tem-se como objetivo analisar a disposição legal relativa à fixação de valor mínimo de reparação civil pelo juízo criminal quando da sentença condenatória e algumas questões controvertidas sobre o tema.
1) Critérios de fixação de valor mínimo pelo juízo criminal
Como dito, a Lei n. 11.719/2008, que alterou o Código de Processo Penal, inovou ao permitir, no art. 387, inciso IV, pretensão indenizatória cível na seara criminal, pois dispõe que o juiz, ao proferir sentença condenatória, “fixará valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido”. Além disto, a mesma lei incluiu um parágrafo único ao art. 63 do Código de Processo Penal, que trata da execução da reparação do dano poderá ser efetuada pelo valor fixado em sentença (art. 387, IV, CPP), sem prejuízo de eventual liquidação no juízo cível.
Apesar da importância de estabelecimento de critérios para fixação do valor mínimo no juízo criminal, o assunto não encontra muita discussão na doutrina. Evidentemente que só poderá haver fixação de valor mínimo indenizatório quando o acusado for condenado, afinal, trata-se de pedido secundário na ação penal e detém relação de dependência com o pedido condenatório propriamente dito. Ademais, só pode haver condenação quando houver ação ou omissão do agente, dano, prova da sua ocorrência e que “permitam ao juiz aferir a extensão do dano ou ao menos ter algum parâmetro para tanto”[ii].
Para a fixação de valor de reparação civil em sentença penal, além da autoria e materialidade do crime, devem ser utilizados os mesmos critérios adotados pelo juízo cível para a fixação do quantum indenizatório[iii], destacando-se que “a reparação do dano não pode converter-se em fonte de enriquecimento da vítima”[iv].
Entende-se que a melhor forma de fixação de valor a título de dano material, mesmo que em seu patamar mínimo, é de acordo com o estabelecido no art. 944 do Código Civil, medindo-se a indenização em razão da extensão do dano[v], sempre de acordo com critérios de razoabilidade e proporcionalidade.
Com relação ao dano moral[vi], solução é trazida pela doutrina e consagrada na jurisprudência. Segundo Rui Stoco, “impõe-se a obediência ao que podemos chamar de ‘binômio do equilíbrio’, cabendo reiterar e insistir que a compensação pela ofensa irrogada não deve ser fonte de enriquecimento sem causa para quem recebe, nem causa da ruína para quem dá. Mas também não pode ser tão apequenada que não sirva de punição e desestímulo ao ofensor, ou tão insignificante que não compense e satisfaça o ofendido, nem o console e contribua para a superação do agravo recebido”[vii].
Entretanto, a condenação à reparação de danos em sentença penal deve guardar consonância direta com a ação/omissão praticada pelo agente e a medida da sua culpabilidade, sob pena de ofensa à individualização da pena e enriquecimento ilícito do beneficiário dos valores indenizatórios. Este aspecto vem ganhando espaço de discussão no âmbito da jurisprudência dos tribunais pátrios, especialmente após o início da Operação Lava Jato, cujas denúncias geralmente apresentam pedido de condenação em reparação civil sem apontamento específico – ou qualquer correlação – entre ação/omissão do agente e valores pleiteados, apontando-se apenas o valor total a ser ressarcido pelos acusados.
Sobre estes pedidos de reparação total de forma solidária entre todos os acusados, sem qualquer distinção em relação à ação de cada agente, vem o Superior Tribunal de Justiça dispondo que “o valor do dano deva estar diretamente vinculado à conduta do agente e àquilo que foi a ele imputado no processo”, e que a condenação “não pode gerar para o recorrente o dever de indenizar que ultrapasse os limites da vantagem cujo recebimento lhe foi imputado”[viii].
Com razão este posicionamento jurisprudencial, por algumas razões. Primeiro porque o art. 927 do Código Civil, que inicia a disciplina sobre a responsabilidade civil – justamente a questão ora discutida, mesmo que fixada no âmbito penal -, estabelece que “aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”.
Por sua vez, o art. 186 do mesmo diploma legal dispõe expressamente que comete ato ilícito aquele que, por “ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral”. Não restam dúvidas que o Código Civil condiciona a reparação do dano à existência de uma ação ou omissão do agente. Assim, não atende aos postulados de direito civil a eventual condenação à reparação de danos que não foram causados pelas suas ações ou omissões, merecendo reforma, tal como vem sendo operada pelo Superior Tribunal de Justiça, apontado acima.
Depois porque, tal como a pena criminal (privativa de liberdade, restritiva de direitos ou multa), a reparação de danos requerida no âmbito penal está diretamente ligada à conduta do agente, sob pena de responsabilização por fato de terceiro e ofensa aos parâmetros previstos no art. 59 do Código Penal.
2) Termo inicial da execução e liquidação da sentença penal que fixa valor mínimo de reparação de danos
Proferida sentença condenatória criminal com a fixação de valor mínimo de reparação civil, passa-se a discutir o termo inicial para que seja promovida a execução na esfera cível, além do regime submetido e meios de defesa cabíveis.
A Constituição Federal, no seu art. 5o, inciso LVII, prevê que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”[ix]. Recentemente o Plenário do Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento das Ações Diretas de Constitucionalidade n. 43. 44 e 54, estabeleceu que a execução da sentença penal condenatória somente é possível após o trânsito em julgado, garantindo-se, portanto, efeito suspensivo aos recursos especiais e extraordinários.
Apesar do valor mínimo de reparação civil ter natureza indenizatória, entende-se que foi fixada em sentença criminal, sendo indissociável do restante da condenação contida naquele decisum. Desta forma, tal como é feito em relação às penas privativas de liberdade, restritivas de direito ou de multa fixadas pelo juízo criminal, é imprescindível observância da garantia da presunção de inocência – e efeito suspensivo dos recursos - também para a condenação em reparação civil[x].
O próprio Código de Processo Civil, no seu art. 515, inciso VI, dispõe expressamente sobre o tema quando dispõe que é título executivo judicial a sentença penal condenatória transitada em julgado. Ou seja, a execução do valor mínimo fixado na sentença criminal só será possível após o trânsito em julgado da decisão, não havendo o que se falar em autonomia dos capítulos da sentença que embasaria eventual execução provisória da parte indenizatória[xi].
3) Conclusão - apontamentos críticos sobre a fixação de valor mínimo de reparação civil na esfera criminal
É fácil verificar que a aplicação deste novo instituto vem causando debates e controvérsias. O apontamento de Antonio do Passo Cabral, feito há 10 anos, permanece atual: “aplicação prática destes novos dispositivos vem criando uma série de problemas e fomentando grande número de indagações sobre seu correto tratamento”[xii].
Ao nosso ver, a modificação legislativa operada no Código de Processo Penal, que tinha como intuito dar maior importância à vítima e garantir a celeridade processual para satisfazer dever indenizatório, não alcançou todos seus objetivos de maneira plena.
Primeiro porque há enorme discussão, sobre a legitimidade para a realização do pedido nos autos, exigindo-se, na maioria das vezes, a intervenção do ofendido ou representante como assistente litisconsorcial[xiii].
Depois porque a fixação de valor relativo ao dano depende de prova, mas a persecução penal tem como intuito primeiro a verificação sobre a existência do fato, sua autoria e materialidade, não a discussão alongada e instrução probatória sobre eventual extensão do prejuízo de natureza civil.
Ademais, porque compete ao juízo criminal apenas a fixação de valor mínimo a título de reparação de danos. Ou seja, tem-se uma sentença parcialmente líquida para posterior execução no cível, restando possível ainda rediscussão e/ou apuração do valor efetivo em sede de liquidação de sentença ou ação civil própria.
Melhor seria, portanto, manter o tratamento anterior dado à matéria, com a independência relativa das instâncias e possibilidade de execução cível da sentença penal transitada em julgado (art. 63, caput, CPP), ou propositura de ação civil de conhecimento para reparação de danos (art. 64, CPP), revogando-se o parágrafo único do art. 63, bem como do inciso IV do art. 387, ambos do Código de Processo Penal.
No entanto, considerando a atual vigência do dispositivo, o melhor é o estabelecimento de critérios precisos para a fixação dos valores cíveis no âmbito criminal, especialmente quanto a necessária correlação entre a conduta do agente e o valor a ser reparado, evitando-se responsabilização por fato de terceiro ou ofensa aos ditames dos arts. 186 e 927 do Código Civil e art. 59 do Código Penal.
Referências bibliográficas
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CÂMARA, Alexandre Freitas. Efeitos civis e processuais da sentença condenatória criminal – reflexões sobre a Lei n. 11.719/2008. RDPP, n. 56, jun/jul 2009.
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Galvão, Danyelle da Silva. Aspectos polêmicos da sentença penal condenatória que fixa valor mínimo de reparação de danos e sua execução e liquidação no juízo cível. In: Revista brasileira de ciências criminais, v. 24, n. 123, set. 2016.
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MORAES, Maurício Zanoide de. Presunção de inocência no processo penal brasileiro: análise de sua estrutura normativa para elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
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STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil. Doutrina e Jurisprudência. 8a edição. São Paulo: RT, 2011.
[i] Advogada, Mestre e Doutora em Direito Processual pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, galvaodanyelle@gmail.com
[ii] CABRAL, p. 310. O mesmo autor, na p. 326, defende que poderá haver condenação em danos morais caso haja provas nos autos, em que pese reconhecer que para a reparação deste dano muitas vezes é necessária prova mais alongada.
[iii] Neste sentido também, tem-se HERTEL, p. 68.
[iv] STOCO, p. 152. Clóvis do Couto e Silva aponta importância de se impedir que “através da reparação, a vítima possa ter benefícios, vale dizer, possa estar numa situação econômica melhor do que aquela em que se encontrava anteriormente ao ato delituoso”. COUTO E SILVA, p. 11.
[v] Com este posicionamento, tem-se STOCO, p. 152; HERTEL, p. 68.
[vi] Parte da doutrina sustenta que o pedido e eventual condenação são impossíveis, visto que “a expressão valor mínimo é indicativa de que os danos a serem considerados são os materiais”. SILVA, p. 594 e no mesmo sentido FILIPPO, p. 108; PACELLI, FISCHER, 2020, p. 771; e SILVA, FREITAS, p. 594. Inclusive este foi o posicionamento do TJSP – apelação n. 0006566-81.2008.8.26.0002 - 14a CCrim – rel. Miguel Marques e Silva – j. 12/02/2015 – registro 25/02/2015: “a indenização por danos morais ou extrapatrimoniais é pretensão que não compete ao juízo criminal conhecer, cumprindo, acaso expressamente requerida pela vítima ou seus familiares, o que não também é o caso, ser apreciada no âmbito cível”. Por outro lado, com posicionamento com o qual se concorda, tem-se doutrina que defende a possibilidade de cumulação de dano moral, ante a inexistência de restrição na disposição legal. CABRAL, p. 316; HERTEL, p. 67; RANGEL, p. 579 e BADARÓ, p. 372.
[vii] STOCO, p. 152.
[viii] STJ – 5ª T. - AgRg no REsp 1765139 – rel. Min. Felix Fischer – j. 23/04/2019 - DJe 09/05/2019 - RSTJ vol. 254 p. 994. Do acórdão ainda se extrai que “não se mostra razoável admitir que o réu seja condenado a arcar, sozinho, com todo esse montante, já que inexiste prova de que ele tenha sido beneficiado com o valor integral”.
[ix] Trata-se da garantia da presunção de inocência. A este respeito, vide a obra de MORAES, 2010.
[x] Apesar de não adentrar à discussão específica sobre o termo inicial, Daniel Roberto Hertel estabelece que é executável a sentença transitada em julgado. HERTEL, p. 69.
[xi] Com posicionamento diverso, tem-se Alexandre Mota Brandão de Araújo ao sustentar a possibilidade de execução provisória do capítulo da sentença condenatória relativa à indenização civil, desde que apresentada caução, por aplicação analógica do art. 475-O do Código de Processo Civil. ARAÚJO, p. 106. Sabe-se que após o trânsito em julgado da sentença condenatória, desde que sejam cumpridos determinados requisitos legais, surge a possibilidade de propositura de revisão criminal. Desta forma, entende-se que em havendo reversão da condenação, haverá a extinção da execução e/ou liquidação da sentença sem ônus ao acusado. E em já tendo sido satisfeita a obrigação na esfera cível, nasce o direito ao acusado de propor ação de regresso para reaver o valor pago indevidamente.
[xii] CABRAL, p. 307. Uma análise mais aprofundada sobre o tema é encontada em Galvão, 2016.
[xiii] A legitimidade é a questão mais controvertida na doutrina ao tratar do tema de reparação civil pela sentença penal. Isto porque são, pelo menos, quatro posicionamentos conflitantes a este respeito. Renata Caroline Kroska aponta que o pedido pode ser feito pelo Ministério Público, “não havendo necessidade de que seja aduzido pela vítima”. KROSKA, p. 75. Antonio do Passo Cabral entende há uma legitimidade extraordinária do Ministério Público não prevista em lei, defendendo que o legislador dispensou o pedido ou requerimento, “até porque a vítima muitas vezes desconhece o direito à indenização ou possui algum temor em ajuizá-lo”. CABRAL, p. 313. No mesmo sentido, CÂMARA, p. 74. Em outra direção, tem-se posicionamento de Alexandre Mota Brandão de Araújo restringindo a legitimidade do Ministério Público apenas às hipóteses de vítimas pobres. ARAÚJO, p. 99.
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