O QUE É “CEGUEIRA DELIBERADA” EM DIREITO PENAL?

Por Guilherme Brenner Lucchesi[i]

A jurisprudência utiliza a “cegueira deliberada” para condenar por dolo eventual os acusados que alegam desconhecer alguma circunstância fática elementar do delito imputado. Os critérios para atribuir dolo eventual a tais situações de desconhecimento – ou, melhor, de ausência de comprovação de conhecimento pela acusação – têm sido estabelecidos caso a caso, sem qualquer compromisso com a lei ou com a dogmática penal.

A partir do estudo de casos[ii], é possível identificar alguns critérios comuns para a aplicação da cegueira deliberada como substituto do dolo eventual: o autor deve, cumulativamente, (1) ter ciência da elevada probabilidade de estar envolvido em algum crime, (2) manter-se indiferente quanto a tal ciência e (3) evitar aprofundar o seu conhecimento acerca do crime em que desconfia estar envolvido.

Há alguns problemas nesta lógica, no entanto. Primeiramente, tem-se um grave problema de direito comparado. Muito se diz que a cegueira deliberada tem sua origem na willflul blindness do direito da common law. Ocorre que o direito penal anglo-saxão possui critérios de imputação muito diferentes daqueles impostos pela legislação penal brasileira,[iii] o que não é (mas deve ser) explorado antes da importação de conceitos jurídicos.

Além disso, não há correspondência entre os conceitos de willful blindness e cegueira deliberada, tendo sido acrescentada a esta a exigência de “indiferença” por parte do autor. Desconfia-se que isso tenha sido feito de caso pensado para aproximar a cegueira deliberada do dolo eventual, pois costuma-se associar (incorretamente) o dolo eventual com uma atitude interna de indiferença com a produção do resultado.

De uma análise da legislação, no entanto, resta evidente que o art. 18 do CP – dolo é “querer o resultado” ou “assumir o risco de produzi-lo” – não é suficiente para conceituar dolo. Segundo o art. 20 do CP, o conhecimento é elemento indispensável, pois desconhecimento exclui o dolo.

É possível verificar, com isso, que a cegueira deliberada, do modo como aplicada pelos tribunais brasileiros, funciona como uma categoria que visa à expansão do alcance do dolo para além do campo delimitado pelo legislador brasileiro, invadindo o território da culpa. Como a punição da culpa é excepcional (art. 18, p. ún., CP), não sendo possível em diversos crimes como lavagem de dinheiro, caracterizar um fato como doloso ou culposo influi diretamente na sua punibilidade.

O dolo somente pode ser reconhecido nos casos em que seus pressupostos legais já estejam presentes. Sendo assim, a cegueira deliberada não pode alterar nem ampliar o conceito legal de dolo.

Se os critérios para identificação da cegueira deliberada no Brasil são diferentes dos critérios para a identificação da willful blindness e se cegueira deliberada deve corresponder ou ao menos se inserir no conceito de dolo, não há sentido em se desenvolver uma teoria nesses termos. A tentativa de se englobar pela cegueira deliberada condutas que não seriam puníveis pela aplicação dos critérios legais do dolo viola o princípio da legalidade.


[i] Advogado. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Presidente do IBDPE.


[ii] Em especial, o voto da ministra Rosa Weber no caso do “Mensalão” (STF, APn 470, Rel. Joaquim Barbosa, DJe 22.4.13. p.1295-1302) e o julgamento da Apelação 5009722-81.2011.4.04.7002 no TRF-4 (Rel. Sergio Fernando Moro, DJe 23.9.13).

[iii] LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a culpa como dolo: o uso da cegueira deliberada no Brasil. São Paulo: Marcial Pons, 2018. p.123-132.


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Delitos Cometidos no Âmbito Empresarial e a Posição Jurídica do Compliance Officer

Ana Cristina Reolon[i]

Lilian Christine Reolon[ii]

Diante da especialização dos setores empresariais, da complexidade das estruturas organizacionais, dos modelos de gestão, e da incapacidade financeira e técnica, por parte do Estado, para assumir os altos custos de um processo de regulamentação, supervisão e aplicação de sanções, contemporaneamente tem-se transferido às próprias empresas a responsabilidade de regular seus sistemas internos, prevenindo a ocorrência de ilícitos.

As empresas e organizações estão sendo compelidas a criar os chamados Compliance Officers, que teriam a responsabilidade de avaliar os riscos da empresa e criar controles internos, objetivando diminuir riscos da prática de ilícitos.

Instalado um efetivo programa de conformidade, podem ocorrer situações de eventual descumprimento (non-compliance) pelos membros e funcionários da empresa, gerando dúvidas acerca da imputação penal. Deste cenário surge a discussão de quem deveria responder pelos ilícitos praticados no interior de uma instituição financeira: se (i) os responsáveis por formular, implementar e pôr em prática o criminal compliance (Compliance Officers), ou (ii) se a responsabilidade penal deve recair sobre o topo da organização, já que possuem o dever originário de garante no seu âmbito funcional.

A posição de garante do empresário decorre da criação de uma fonte de perigo – a empresa –, em que ele assume o domínio organizativo e os controles sobre os riscos. É justamente o “domínio fático sobre os elementos perigosos do estabelecimento e o poder de mando sobre os trabalhadores subalternos”[iii] que o tornam um garante de vigilância.

Para Roxin, uma das peculiaridades dessa responsabilidade é justamente o acréscimo do pressuposto do direito de direção, que incumbe, em regra, ao topo da empresa. Para ele, a exigência também é necessária para afirmar a posição de garante daqueles que recebem um âmbito de tarefas e atividades por delegação, “caso em que a delegação das atividades de vigilância do garantidor originário deveria incluir também a delegação do correlato direito de direção, pena de não se constituir o delegado em garantidor”[iv].

A via mais comumente aceita nos casos de criminalidade empresarial é a omissiva, casos em que o dirigente da empresa acaba por não impedir condutas criminosas de seus subordinados. Nessa esteira, Silveira e Saad-Diniz afirmam que “os superiores hierárquicos de uma estrutura empresarial encontrar-se-iam em uma real posição de garante, assumindo um dever de vigilância para com os acontecimentos dados naquela dimensão empresarial”.

Estellita aponta que a omissão típica pressupõe uma situação que se exija a intervenção do agente para evitar a ocorrência do resultado. Partindo do disposto no artigo 13, § 2°, do Código Penal, a verificação de omissão de um garantidor não estará, normalmente, descrita no tipo penal, cabendo fazer uma análise da situação de perigo.

O Decreto 8.420, de 18 de março de 2015, prevê, em seu artigo 42, inciso IX, a figura do “responsável pela aplicação do programa de integridade e fiscalização de seu cumprimento”, inovando nosso ordenamento jurídico. O artigo citado elenca o rol de parâmetros a serem avaliados na determinação da efetividade dos programas de compliance, dentre os quais se destaca a previsão de um setor independente voltado à aplicação e fiscalização dos programas de integridade. Esse setor, segundo Lobato e Martins[v], compõe-se dos chamados compliance officers.

De um modo geral, compete ao compliance officer, como atribuições básicas, o desenvolvimento e gestão do programa de integridade; a informação, comunicação e capacitação dos membros da empresa, bem como seu posterior assessoramento; e a supervisão, controle e comunicação, aos dirigentes, das infrações ocorridas no seu âmbito de vigilância.[vi]

Esse rol de tarefas pode ser utilizado como exemplificativo das incumbências de um encarregado de vigilância em áreas ainda não reguladas, mas, conforme aponta Estellita[vii], a falta de uma regulamentação geral sobre essas funções e atividades acarreta ampla liberdade de conformação para o desempenho dos deveres de vigilância.

Se os deveres de controle e vigilância da empresa, próprios dos diretores, são, ao menos de forma parcial, passíveis de serem transferidos ao compliance officer[viii], a ele poderia ser incumbida a responsabilidade penal pelo descumprimento de deveres inerentes à empresa.

Dessa forma, o Tribunal de Justiça Federal da Alemanha (Bundesgerichtshof)[ix] pronunciou-se, em 2009, no sentido de que a eles (compliance officers) também são incumbidos deveres de impedir o cometimento de ilícitos no interior da empresa, tornando-os verdadeiros garantidores penais. No caso julgado, o tribunal alemão condenou um compliance officer por entender que este, ao assumir a responsabilidade pela prevenção de crimes no interior da empresa, assume também uma posição de garante e, portanto, deve ser punido criminalmente por ter assumido a responsabilidade de impedir o resultado. No caso concreto, a condenação se deu em razão dele ter criado um programa de compliance que não se mostrou eficaz e permitiu que a empresa fosse utilizada para a prática de crimes.

No Brasil, um primeiro sinal nesse sentido foi dado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região[x]:

Desse modo, é forçoso reconhecer que as operações marginais de mero ingresso de valores no país por parte dos clientes das instituições financeiras são atípicas, remanescendo apenas a possibilidade de eventual prática de sonegação fiscal, que, como é cediço, pressupõe a constituição definitiva do crédito tributário, o que não é caso, ou ainda a punição dos gestores da instituição financeira clandestina pelo delito do artigo 16 e pelo crime de lavagem de dinheiro por violação dos deveres de compliance, quando perpetrado no âmbito de instituição financeira autorizada. (grifo nosso).

Esse dever de impedir o surgimento de crimes na empresa, entretanto, não é assumido pelo compliance officer de forma originária, já que, segundo Planas[xi], a função de fazer com que a organização empresarial cumpra com a legislação em vigor é tarefa primordial de seus diretores. Assim, o autor entende que a posição de garantia do compliance officer se dá de forma derivada, isso é, por delegação dos deveres que competem à direção da empresa.

Ao compliance officer poderia ser delegada, de acordo com Estellita[xii], dois tipos de tarefas: àquelas ligadas aos deveres de garantidores de proteção e às ligadas aos deveres de garantidores de vigilância. Nesse último caso, o objeto da vigilância delegada estender-se-ia a infrações contra bens jurídicos de terceiros e da coletividade praticadas por integrantes da empresa.

Cavero afirma que, quando o criminal compliance é imposto legalmente à empresa, com a exigência de se nomear um responsável pelo cumprimento do programa, poder-se-ia afirmar a competência jurídica-penal do compliance officer pelo delito cometido na empresa, constituindo um “dever quase institucional de controlar certos riscos em setores especialmente sensíveis”[xiii], com o que seria possível sustentar sua responsabilidade penal por meio de uma competência institucional.

Caso diverso é quando a lei não prevê, especificamente, a nomeação de um oficial de cumprimento, sendo a constituição do compliance officer uma decisão interna tomada pelos dirigentes, que delegam parte de suas funções de controle dos riscos.[xiv]

Como ponto de partida para considerar a existência da posição de garante ao compliance officer, deve-se ter em mente que os titulares indiscutidos dessa posição são os membros da direção da empresa, já que são eles que decidem acerca do domínio de uma fonte de perigo. Nesse sentido, Bermejo e Palermo[xv] afirmam que a delegação das funções de controle e vigilância de uma área de competência da direção supõem, também, a delegação da posição de garantidor à pessoa encarregada.

Os programas de compliance devem estabelecer as competências e funções da direção e do compliance officer, de forma que se possa determinar quais são as expectativas normativas de cada um, assim como os deveres e as instâncias de controle interno e externo, de forma que se constitua um sistema formal de divisão de funções[xvi], evitando-se a difusão de responsabilidade por meio de uma definição clara dos âmbitos de competência do compliance officer, da direção e dos empregados.

Em linhas gerais, poder-se-ia dizer que a maioria das tarefas de garante, conforme entendem Silveira e Saad-Diniz[xvii], implica a verificação e o controle de focos de perigo comuns a quase todas as empresas, assumindo, assim, uma posição institucional de dever. Havendo, no entanto, um programa de compliance, torna-se recomendável a delegação dessas tarefas – originalmente incumbidas aos gestores da empresa –, a um agente externo. Essa posição é justificável na medida em que um agente externo à empresa teria maior independência para trabalhar com as falhas estruturais da organização, e, mais do que tudo, possibilitaria as devidas denúncias.[xviii]

Em verdade, as funções assumidas pelo compliance officer, por regra, serão mais amplas que o controle interno das infrações, alcançando, também, a intervenção em todo o processo de gestão do risco que implica o programa de cumprimento. Por certo, não se imagina que o compliance officer assuma todas as responsabilidades da empresa; ele assume, entretanto, de forma delegada, “a responsabilidade de vigilância sobre as condutas limites da empresa”[xix]. Dessa forma, afirma Planas[xx]:

[...] el responsable de cumplimiento no asume la completa posición de garantía de control o vigilancia por delegación del órgano competente, ni tampoco se genera uma nueva posición de garantía con el mismo contenido, sino que lo asumido es sólo una parte: el deber de investigar y transmitir información al órgano superior – auténtico copetente primario de la evitación de delitos en la empresa.

 

Inobstante, não se deve infravalorar sua importância para o correto desempenho da competência de vigilância e controle do garante primário, tendo em vista que o compliance officer dispõe de informações relevantes para o cumprimento daquela função, situando-se em uma posição privilegiada na empresa e condicionando a atuação do órgão diretivo.[xxi] Ainda, mesmo que careça de faculdades de decisão e execução, o descumprimento, por parte do compliance officer, das competências assumidas, determina a impossibilidade dos diretores de exercer tais faculdades.

A grande dificuldade encontrada para se examinar a questão da responsabilidade penal do compliance officer é, além da falta de definição legal a respeito de suas obrigações – cujos limites de atribuição e atuação variam de empresa para empresa –, a divergência e a falta de aprofundamento da (pouca) doutrina acerca do tema.

É certo, porém, que o responsável pelo cumprimento não assume completa posição de garantia de controle ou vigilância por delegação do órgão competente, tampouco faz criar uma nova posição de garantia com o mesmo conteúdo, tendo em vista possuir somente o dever de investigar e transmitir informações ao órgão superior, autêntico competente para impedir a ocorrência de delitos na empresa.[xxii]

Dessa forma, a presença de um compliance officer em nada obstaculiza a imputação do delito também aos dirigentes da empresa, quando se manifestar como uma infração de deveres assumidos por eles. Nessa perspectiva, Cavero afirma que “queda claro que esta propuesta dogmática no excluye la posibilidad de que concurra también uma responsabilidad penal del directivo, como delegante de las funciones de control, si es que infringe alguno de los deberes residuales[xxiii].

Segundo Planas[xxiv], três seriam os pressupostos fundamentadores da responsabilidade penal do compliance officer: (i) que sua omissão refira-se a um delito que ainda não foi cometido; (ii) que a omissão se dê em relação a uma conduta cuja realização, em tese, faria supor a não ocorrência do delito; e (iii) que o risco do delito a ser evitado integre o rol daquelas atividades ou condutas que o compliance officer comprometeu-se concretamente a impedir que ocorressem.

Em relação ao primeiro pressuposto, de fato, no ordenamento jurídico brasileiro, não há possibilidade de incriminar-se a conduta de um particular que não denuncia às autoridades competentes a ocorrência de algum crime já consumado no interior da empresa. Dessa forma, sua omissão deve ocorrer em face de um delito cuja ocorrência podia impedir e cuja realização está em curso ou cuja execução está na iminência de se iniciar.[xxv]

Para Bermejo e Palermo[xxvi], a responsabilidade do compliance officer surgiria nos casos em que, apesar de existir um adequado desenho e implementação do programa, ele deixa de cumprir com os deveres de controle e vigilância o qual é encarregado.

A afirmação de uma competência penal do compliance officer, no entanto, não o torna responsável por todos os delitos cometidos no âmbito das atividades da empresa, sendo necessário estabelecer uma vinculação entre as funções assumidas por ele e o delito concretamente cometido pelo membro da empresa.

Conforme Cavero[xxvii], para poder responsabilizar penalmente o compliance officer, será necessário estabelecer que o cumprimento adequado de algumas de suas funções (informação, comunicação e capacitação, assessoramento, supervisão, controle e reporte) teria evitado ou, quando menos, dificultado a realização da infração penal por parte do membro da empresa.

Nessa senda, poderia cogitar-se uma atuação penalmente relevante pelo compliance officer quando alguma das medidas preventivas estabelecidas pelo programa não é observada pelo trabalhador por puro desconhecimento. Aqui, o que justificaria a responsabilização penal seria o descumprimento do dever de assessoramento do compliance officer, na medida em que, se o trabalhador tivesse contado com o assessoramento correto, o delito não teria sido realizado.

Importante referir que a imputação dos delitos praticados pelos trabalhadores nem sempre entrará no âmbito de competência do compliance officer. Primeiramente, porque o delito pode não ter referência com a atividade empresarial, e, em segundo lugar, mesmo tratando-se de um delito referente à atividade da empresa, o controle pode estar fora do âmbito assumido pelo compliance officer.

Por outro lado, não há dúvidas que a ausência de controle e supervisão favorece a realização de infrações penais por parte dos membros da empresa. Assim, a negligência dos deveres de supervisão, controle e reporte, por parte do compliance officer, também poderia caracterizar uma omissão penalmente relevante. Ou seja, se a correta comunicação de uma operação suspeita[xxviii] ou de alguma irregularidade constatada pudesse ter evitado a consumação ou a continuidade de uma conduta delitiva, o compliance officer poderia ser responsabilizado por omissão.[xxix]

Na visão de Pereyra[xxx], quem assume a posição de compliance officer dentro de uma instituição financeira se constitui como uma espécie de barreira para evitar que a instituição seja utilizada como instrumento para legitimar ativos provenientes de atividades ilícitas. Assim, se sabendo e podendo evitar a prática criminosa não o faz, responderia como se tivesse cometido ele próprio a conduta.

No Brasil, analisando a prática das varas federais e da doutrina, é possível identificar três correntes[xxxi].

A primeira, que entende que, como não há na Lei 9.613/98 um tipo penal específico para o descumprimento dos deveres de colaboração, deve-se recorrer aos artigos da Lei 7.492/86 para coibir eventual descumprimento, relacionando, normalmente, a conduta com os crimes tipificados nos artigos 16[xxxii] e 22[xxxiii], e, eventualmente, no artigo 4º[xxxiv][xxxv].

Uma segunda corrente defende que a responsabilidade pela inobservância dos deveres de compliance seria meramente administrativa, nos termos dos artigos 12 e 13 da Lei 9.613/98. Nesse caso, a punição se daria por sanções de advertência ou multa, pelo órgão regulador da respectiva instituição ou, em sua ausência, o COAF. Esse entendimento foi reforçado pela nova lei de lavagem, que disciplinou a aplicação de multa às pessoas referidas no artigo 9º.

Por fim, os autores sinalizam para o risco de, em breve, o descumprimento dos deveres de compliance serem associados à posição de garante, gerando uma terceira corrente doutrinária.

No âmbito da Lei 12.846/2013, a “existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva dos códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica”, será levada em consideração no momento da aplicação das sanções previstas nessa Lei. Insta salientar que hoje a implantação de programas de cumprimento dentro da empresa pode resultar em, no máximo, mera atenuação de pena. Assim, conforme lecionam Estellita e Bastos[xxxvi]: “não se admite o afastamento completo da responsabilidade sob nenhuma hipótese, ainda que comprovado que todos os esforços e recursos disponíveis foram empregados no sentido da prevenção contra a prática de atos ilícitos contra a administração pública”.

Sarcedo chama a atenção para o fato de que a existência de um compliance officer dentro de uma organização empresarial não representa que esse profissional seja uma espécie de “laranja ou testa de ferro”[xxxvii], escolhido para assumir todo e qualquer tipo de responsabilização penal: “a responsabilidade penal desse profissional só pode derivar dos deveres por ele efetivamente assumidos, dentro do alcance real e material da delegação recebida da organização empresarial”[xxxviii].

Como se pode ver, apesar de o objetivo de um programa de compliance ser a prevenção de responsabilidade penal, a partir de uma série de controles internos, a sua concretização parece criar condições para que, dentro da empresa ou instituição financeira, “identifique-se uma cadeia de responsabilização penal, pois a forma como os compliance officers têm sido constituídos acaba por colocá-los na posição de garante”[xxxix].

A doutrina diverge significativamente acerca da possibilidade de responsabilização penal do compliance officer. De qualquer forma, cumpre ter em mente que eventual responsabilidade do gestor do programa de integridade será sempre delegada e decorrente de transferência – ainda que parcial – da posição de garantia dos dirigentes da empresa.

Deste modo, inobstante a conquista técnica de previsão legal dos programas de conformidade no ordenamento jurídico pátrio, a questão ainda é muito atual e precisa ser debatida pela doutrina. Apesar disso, nos parece que o compliance mostra-se adequado e eficaz para prevenir e atenuar os riscos inerentes à empresa, contribuindo para minorar a crescente criminalidade econômica.

A questão acerca da possibilidade de responsabilização penal do compliance officer permanece em aberto, ante a falta, principalmente, de previsão normativa. Percebe-se, no entanto, a tendência, a partir das práticas internacionais, dos deveres do compliance officer serem associados, em breve, a uma posição de garantidor na empresa, podendo gerar, assim, uma cadeia de responsabilização interna.

 

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[i] Advogada. Graduada em Direito pela PUCRS. Especializanda em Direito Empresarial pela PUCRS. Especializanda em Direito Penal Econômico pela PUCMG.

[ii] Advogada. Especialista em Direito Público pela UNIJUÍ. Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS.


[iii] SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito penal empresarial: a omissão do empresário como crime. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016, p. 187.

[iv] ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresas por omissão: Estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017.

[v] LOBATO, José Danilo Tavares; MARTINS, Jorge Washington Gonçalves. Considerações preliminares acerca da responsabilidade criminal do compliance officer. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 24, n. 284, p. 12-14, jul. 2006.

[vi] CAVERO, Percy García. Criminal Compliance. Lima: Palestra Editores, 2014.

[vii] ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresas por omissão: Estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017, p. 212.

[viii] PLANAS, Ricardo Robles. El responsable de cumplimento (Compliance Officer) ante el derecho penal. In: SÁNCHEZ, Jesús-María Silva (dir.); FERNÁNDEZ, Raquel Montaner (coord.). Criminalidad de empresa y Compliance: Prevención y reacciones corporativas. Moià: Atelier, 2013, p. 324.

[ix] ALEMANHA. Tribunal de Justiça Federal da Alemanha. BGH 5 StR 394/08. Acórdão de 17 de julho de 2009. Disponível em: <https://www.hrr-strafrecht.de/hrr/5/08/5-394-08-1.pdf>. Acesso em: 03 mai. 2018.

[x] BRASIL. Tribunal Federal Regional da 4ª Região. Apelação Criminal n.º 5008326-03.2010.404.7100. Apelante: Ministério Público Federal. Apelado: Carlos Fernando de Conto. Relator: Paulo Afonso Brum Vaz. Porto Alegre, 22 nov. 2010. Processo Eletrônico. Disponível em: <https://jurisprudencia.trf4.jus.br/pesquisa/inteiro_teor.php?orgao=1&documento=3715061>. Acesso em: 21 mai. 2018.

[xi] PLANAS, Ricardo Robles. El responsable de cumplimento (Compliance Officer) ante el derecho penal. In: SÁNCHEZ, Jesús-María Silva (dir.); FERNÁNDEZ, Raquel Montaner (coord.). Criminalidad de empresa y Compliance: Prevención y reacciones corporativas. Moià: Atelier, 2013, p. 319-331.

[xii] ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresas por omissão: Estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017, p. 212.

[xiii] CAVERO, Percy García. Criminal Compliance. Lima: Palestra Editores, 2014, p 106.

[xiv] Ibidem.

[xv] BERMEJO G., Mateo; PALERMO, Omar. La Intervención Delictiva del Compliance Officer. In: KUHLEN, Lothar; et. al. Compliance y teoria del Derecho penal. Madrid: Marcial Pons, 2013, p. 180.

[xvi] Ibidem, p. 180.

[xvii] Ibidem, p. 180.

[xviii] SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; SAAD-DINIZ, Eduardo. Compliance, Direito Penal e Lei Anticorrupção. São Paulo: Saraiva, 2015.

[xix] Ibidem, p. 145.

[xx] PLANAS, Ricardo Robles. El responsable de cumplimento (Compliance Officer) ante el derecho penal. In: SÁNCHEZ, Jesús-María Silva (dir.); FERNÁNDEZ, Raquel Montaner (coord.). Criminalidad de empresa y Compliance: Prevención y reacciones corporativas. Moià: Atelier, 2013, p. 324-325.

[xxi] PLANAS, Ricardo Robles. El responsable de cumplimento (Compliance Officer) ante el derecho penal. In: SÁNCHEZ, Jesús-María Silva (dir.); FERNÁNDEZ, Raquel Montaner (coord.). Criminalidad de empresa y Compliance: Prevención y reacciones corporativas. Moià: Atelier, 2013, p. 324-325.

[xxii] Ibidem.

[xxiii] CAVERO, Percy García. Criminal Compliance. Lima: Palestra Editores, 2014, p. 108.

[xxiv] PLANAS, Ricardo Robles. El responsable de cumplimento (Compliance Officer) ante el derecho penal. In: SÁNCHEZ, Jesús-María Silva (dir.); FERNÁNDEZ, Raquel Montaner (coord.). Criminalidad de empresa y Compliance: Prevención y reacciones corporativas. Moià: Atelier, 2013, p. 325-326.

[xxv] SARCEDO, Leandro. Compliance e responsabilidade penal da pessoa jurídica: construção de um novo modelo de imputação baseado na culpabilidade coorporativa. São Paulo: LiberArs, 2016.

[xxvi] BERMEJO G., Mateo; PALERMO, Omar. La Intervención Delictiva del Compliance Officer. In: KUHLEN, Lothar; et. al. Compliance y teoria del Derecho penal. Madrid: Marcial Pons, 2013.

[xxvii] CAVERO, Percy García. Criminal Compliance. Lima: Palestra Editores, 2014, p. 109.

[xxviii] Esse dever é trazido pela Lei 9.613/1998 em seu artigo 10, inciso II: “manterão registro de toda transação em moeda nacional ou estrangeira, títulos e valores mobiliários, títulos de crédito, metais, ou qualquer ativo passível de ser convertido em dinheiro, que ultrapassar limite fixado pela autoridade competente e nos termos de instruções por esta expedidas.”. (BRASIL. Lei n.º 9.613, de 3 de março de 1998. Brasília, DF: Congresso Nacional, 1998. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9613compilado.htm>. Acesso em: 12 mai. 2018.).

[xxix] CAVERO, Percy García. Criminal Compliance. Lima: Palestra Editores, 2014.

[xxx] PEREYRA, Nicolás. La responsabilidad penal del oficial de cumplimiento. Revista de derecho. Uruguay, año 10, n. 20, p. 47-57, 2011.

[xxxi] SARLET, Ingo Wolgang; SAAVEDRA, Giovani Agostini. Judicialização, reserva do possível e compliance na área da saúde. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, Vitória, v. 18, n. 1, p. 257-282, jan./abr. 2017.

[xxxii] “Art. 16. Fazer operar, sem a devida autorização, ou com autorização obtida mediante declaração (Vetado) falsa, instituição financeira, inclusive de distribuição de valores mobiliários ou de câmbio” (BRASIL. Lei n.º 7.492, de 16 de junho de 1986. Brasília, DF: Congresso Nacional, 1986. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7492.htm?>. Acesso em: 21 mai. 2018.).

[xxxiii] “Art. 22. Efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do País” (Ibidem.).

[xxxiv] “Art. 4º Gerir fraudulentamente instituição financeira” (Ibidem.).

[xxxv]       Contra essa posição, argumenta-se no sentido de que as Leis 7.492/86 e 9.613/98 regulam fenômenos diferentes, sendo que só a segunda trata de deveres de compliance, deveres esses que não se destinam à tutela do sistema financeiro, mas somente à identificação de movimentações financeiras que indicariam a possibilidade de se estar diante de um crime de lavagem de capitais.

[xxxvi] ESTELLITA, Heloísa; BASTOS, Frederico. Cultura de cumprimento deveria excluir responsabilidade. Revista Consultor Jurídico, São Paulo, 29 ago. 2013. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2013-ago-29/cultura-cumprimento-deveria-causa-exclusao-responsabilidade>. Acesso em: 14 mai. 2018.

[xxxvii] Nas palavras do autor: “De acordo com o Dicionário Houaiss, o termo laranja, nessa acepção, significa ‘indivíduo que cede seu nome para ser usado em negócios ilícitos’, sendo correlato de testa-de-ferro, cujo significado é ‘quem se fazer passar por responsável de ato ou empreendimento de outrem’. Em língua espanhola, utiliza-se o termo cabeza de turco.” (SARCEDO, Leandro. Compliance e responsabilidade penal da pessoa jurídica: construção de um novo modelo de imputação baseado na culpabilidade coorporativa. São Paulo: LiberArs, 2016, p. 57.).

[xxxviii] Ibidem.

[xxxix] SARLET, Ingo Wolgang; SAAVEDRA, Giovani Agostini. Judicialização, reserva do possível e compliance na área da saúde. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, Vitória, v. 18, n. 1, p. 257-282, jan./abr. 2017.


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O Mandado de Segurança como meio de Impugnação de Ato Judicial que Decreta Medida Cautelar Patrimonial

João Rafael de Oliveira[i]

O tema atinente ao cabimento do mandado de segurança contra decisão que decreta medida cautelar real (sequestro, arresto e hipoteca legal), a despeito da clareza solar do disposto no artigo 5º, II, da Lei 12.016/2009[ii] (Lei do Mandado de Segurança), ainda se encontra controverso no âmbito jurisprudencial.

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça há diversas decisões que replicam antigo entendimento, segundo o qual é  descabida  a  utilização do mandado de segurança  como  forma  de impugnar decisões judiciais proferidas em medidas cautelares de natureza penal (sequestro de bens, intervenção judicial em pessoa jurídica, quebra de sigilo bancário etc.), ante a proibição de manejo do mandado de segurança como substituto recursal - óbices do art. 5º, II, da Lei n. 12.016/2009 e do enunciado n. 267 do  STF: "Não cabe mandado de segurança contra ato judicial passível de  recurso  ou  correição[iii]".

A supracitada súmula do Supremo Tribunal Federal data de 1995, época em que inexistia previsão legal de cabimento do writ of mandamus contra ato jurisdicional. Não obstante, rápida pesquisa na jurisprudência da Suprema Corte nos leva a diversos julgados que, mesmo em tal contexto, excepcionalmente, flexibilizavam o enunciado sumular para admitir o mandado de segurança impetrado contra decisão judicial impugnável mediante recurso desprovido de efeito suspensivo (RTJ 36/651 - RTJ 42/714 - RTJ 47/716 - RTJ 70/516 - RTJ 71/876 - RTJ 136/287, v.g.)[iv]

A questão, parece-nos, portanto, estar fundada na natureza jurídica do ato jurisdicional que se quer atacar, bem como na existência (ou não) de previsão de recurso, com efeito suspensivo, para impugná-lo.

Destarte, como é cediço, a decisão que decreta a medida cautelar patrimonial  de sequestro de bens, arresto ou hipoteca legal, possui natureza jurídica de decisão interlocutória, proferida em incidente processual, que não possui força de definitiva, eis que, diante da própria natureza cautelar da medida, pode ser revogada a qualquer momento.

O Código de Processo Penal, por sua vez, não prevê o cabimento de nenhum recurso contra tal decisão, razão pela qual a sua impugnação, quando presente o direito líquido e certo, deve ser por meio da ação constitucional de mandado de segurança.

É o que leciona Eugenio Pacelli de OLIVEIRA, para quem “como exemplos de hipóteses de cabimento do mandado de segurança em matéria penal, alinharíamos o caso de decisão de indeferimento de habilitação do assistente( art. 268, CPP); de indeferimento de vista dos autos fora de cartório, em juízo (...); nos procedimentos de sequestro, arresto[v] (...)”.

Na mesma linha de raciocínio, ensina o eminente professor Gustavo Henrique BADARÓ que o sequestro poderá ser atacado por meio de mandado de segurança contra ato judicial. (...) Os embargos do acusado, para atacar o sequestro, não são recurso e, muito menos, têm efeito suspensivo[vi]”.

Veja-se, tal raciocínio não se aplica à decisão proferida em incidente de restituição de coisa apreendida, que prolatada em procedimento com contraditório, possui força de decisão definitiva, atacável, neste caso, por Apelação, nos termos do artigo 593, II, do Código de Processo Penal.

De mais a mais, mesmo se adotássemos interpretação criativa que entendesse ser a decisão decretadora de medida cautelar recorrível por apelação, com base no artigo 593, II, do CPP, imperioso observar que tal recurso não é dotado de efeito suspensivo, consoante se infere do art. 597, do mesmo diploma normativo.

Com efeito, quer seja por um fundamento (não cabimento de recurso) ou por outro (cabimento de recurso carente de efeito suspensivo), não resta dúvida sobre a admissibilidade do mandado de segurança para impugnar ato jurisdicional que impõe medida cautelar patrimonial.

Convenha-se, não poderia ser diferente, pois não é difícil se imaginar situações em que a constrição cautelar indevida, e por vezes abusiva, demanda impugnação expedita, atingível apenas pela via do writ of mandamus. Pense-se, por exemplo, nos casos de constrição cautelar excessiva que, ao extrapolar o suposto dano ao erário objeto da investigação, inviabilize a atividade empresarial do acusado. Em tais hipóteses, seria desnecessário dizer, não se pode exigir do jurisdicionado que aguarde o processamento e julgamento do recurso de apelação.

Dessarte, não é sem razão que o legislador expressamente positivou na lei 12.016/2009 o excepcional cabimento do mandado de segurança para impugnação de ato jurisdicional contra o qual não caiba recurso com efeito suspensivo. Trata-se, como visto, de mecanismo que possibilita ao jurisdicionado, excepcionalmente, combater imediatamente decisão judicial ilegal que atente contra direito líquido e certo, nos termos em que, aliás, já era permitido pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.


[i] Doutorando em Direito pelo IDP. Mestre em Direito Processual Penal pela UFPR. Coordenador da Pós Graduação em Direito Penal e Processual Penal da ABDCONST. Professor de Direito Processual Penal do Centro Universitário Unibrasil. Diretor Financeiro do IBDPE. Advogado Criminal, sócio no Monteiro Rocha Advogados.


[ii] Art. 5o  Não se concederá mandado de segurança quando se tratar: II - de decisão judicial da qual caiba recurso com efeito suspensivo;

[iii] RMS RMS 44.807/GO, Rel. Ministro REYNALDO
SOARES   DA   FONSECA, QUINTA  TURMA,  julgado  em  16/8/2016.

[iv] Julgados citados no RMS 26.265 AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 16.9.2014.

[v] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 17ª ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 957-958.

[vi] BADARÓ, Gustavo Henrique. PROCESSO PENAL. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 1058-1059.


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Expansão do Direito Penal, Terrorismo e Direito Penal Econômico

Por Ronaldo dos Santos[1] Costa e Emily Teixeira Arcanjo[2]

 

Nas últimas décadas, a política criminal tem abalizado certa expansão do direito penal, como resposta às emergências surgidas, sobretudo após o 11 de setembro de 2001, de forma global. Comumente, vê-se a instituição de tipos penais afastados da orientação da efetiva ofensa a bens jurídicos, ao passo que se criminaliza o estado prévio da dita lesão, proporcionando um “direito penal da colocação em risco”.

A lógica expansionista do direito penal tem como uma de suas consequências, a mudança de foco do fato delituoso, causador de dano a um bem jurídico para orientação voltada ao autor, classificado como “outro”, com uma identidade social definida.

Ainda, a expansão do direito penal é influenciada por fatores sociopolíticos aliados ao risco globalizado, supranacional e independente de classe social. Contudo, não se pode perder de vista que a percepção dos riscos não compreende as dimensões reais das ameaças, uma vez que a própria conscientização do risco é que determina sua existência e extensão.

O risco, quando assume a consciência dos cidadãos, acarreta uma ampliação dos processos de modernização, gerando efeitos na economia, política, esfera pública, assim, sob o manto do perigo iminente, o cenário social toma um novo aspecto e exige uma resposta sistêmica.

Nessa toada, o terrorismo, seu financiamento e a lavagem de dinheiro se tornaram temas de grande relevância e atenção para a comunidade internacional.

A violência e o terror acompanham a humanidade desde tempos imemoráveis. Contudo, os historiadores atribuem o termo terror ao período da Revolução Francesa, em que pese o fenômeno tenha sido experimentado em eras anteriores. O terrorismo é uma técnica tão antiga quanto a própria guerra. Terrere, do latim, significa “fazer tremor”.

A incumbência de estabelecer uma data ou um momento histórico específico para o advento das ações terroristas está suscetível a equívocos, contudo, a principal característica do terror é que este está visceralmente atrelado ao exercício de ações violentas que causem grande temor e medo, atacando diretamente o estado anímico da população.

Por seu turno, a luta contra o terrorismo é marcada pelo embate e ponto de conflito mais severo entre a liberdade e a segurança dos cidadãos. Diante do terror, se experimentam argumentos de relativização de toda ordem de garantias individuais em prol do combate do odioso terrorista, mesmo em ambientes democráticos.

O impacto da globalização trouxe consigo a necessidade de reprimir o terror de forma também global, sobretudo após o atentado às Torres Gêmeas em 2001. Então, a comunidade internacional passou a adotar medidas preventivas e repressivas ao terrorismo, assim, foi estabelecida uma política severa de criminalização, sobretudo no mundo ocidental.

No Brasil, a Constituição de 1988 em seu artigo 5°, inciso XLIII instituiu verdadeiro mandado de criminalização em matéria de terrorismo, para qual a atividade legiferante ordinária deveria se voltar de forma atenta e obrigatória a fim de proteger bens ou interesses eleitos pelo Poder Constituinte originário.

Como norma de eficácia limitada, uma vez que não define o tipo penal primário e secundário, o artigo 5°, inciso XLIII carecia da atuação do legislador ordinário para enfim gerar efeitos no mundo jurídico-penal e adequar o Brasil aos tratados internacionais aos quais era signatário, dentre eles a Convenção Interamericana contra o Terrorismo (Convenção de Barbados), firmada em 3 de junho de 2002 e promulgada pelo Decreto n.º 5.639 de 26 de dezembro de 2005 e a Convenção Internacional sobre a Supressão de Atentados Terroristas com Bombas firmada em 15 de novembro de 1997 e promulgada pelo Decreto n.º 4.394 de 26 de setembro de 2012.

A Convenção de Barbados, dispõe sobre a necessidade de adotar no Sistema Interamericano medidas eficazes para prevenir, punir e eliminar o terrorismo mediante a mais ampla cooperação dos países signatários em vista da necessidade de erradicação do terrorismo. Ainda, o documento frisa que o terrorismo constitui grave ameaça aos valores democráticos e para paz e segurança internacionais.[1]

Na Convenção Internacional sobre a Supressão de Atentados Terroristas com Bombas, se observava com profunda preocupação aos ataques terroristas que se intensificavam em escala mundial, em todas as suas formas e manifestações, colocando em perigo as relações entre os Estados e povos, ameaçando a integridade territorial e a segurança. Por tais razões, esta Declaração visava encorajar os Estados a examinarem com urgência o alcance das disposições jurídicas internacionais vigentes sobre a prevenção, repressão e eliminação do terrorismo.

Ainda, no artigo terceiro da Convenção, se encontra que cada Estado Parte deveria tipificar como crime, de acordo com a sua legislação interna e punir com penas adequadas de acordo com a gravidade da natureza dos delitos indicados no artigo segundo, in verbis:

1. Comete um delito no sentido desta Convenção qualquer pessoa que ilícita e intencionalmente entrega, coloca, lança ou detona um artefato explosivo ou outro artefato mortífero em, dentro ou contra um logradouro público, uma instalação estatal ou governamental, um sistema de transporte público ou uma instalação de infra-estrutura:

a) Com a intenção de causar morte ou grave lesão corporal; ou

b) Com a intenção de causar destruição significativa desse lugar, instalação ou rede que ocasione ou possa ocasionar um grande prejuízo econômico.

2. Também constitui delito a tentativa de cometer qualquer dos delitos enumerados no parágrafo 1.

3. Também constitui delito:

a) Participar como cúmplice nos delitos enunciados nos parágrafos 1 ou 2; ou

b) Organizar e dirigir outros na perpetração dos delitos enunciados nos parágrafos 1 e 2; ou

c) Contribuir de qualquer outra forma na perpetração de um ou mais dos delitos enunciados nos parágrafos 1 ou 2 por um grupo de pessoas que atue com um propósito comum; essa contribuição deverá ser intencional e ocorrer seja com a finalidade de colaborar com a atividade ou o propósito delitiva genérico do grupo, seja com o conhecimento da intenção do grupo de cometer o delito ou delitos de que se trate.

Todavia, em que pese parte da doutrina – v.g. Nucci e Fernando Capez [2] - entendesse que o tema terrorismo já era tratado na Lei de Segurança Nacional n.º 7.170 de 1983 no seu artigo 20, uma vez que menciona o termo “atos de terrorismo”, e, assim, a imprecisão do tipo não poderia deixar de proteger bens jurídicos tuteláveis. [3]O aludido dispositivo não se prestava a isso, na medida em que apenas veiculava menção a atos de terrorismo, sem efetivamente defini-los para fins criminais, tal como exigido pela imposição de taxatividade penal (art. 5°, XXXIX, CRBF/88).

Essa questão foi apreciada pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal na análise de um pedido da República do Peru de prisão preventiva de Segundo Panduro Sandoval pela prática de “crime de terrorismo” (Questão de Ordem na Prisão Preventiva Para Extradição 730 Distrito Federal). [4]

Submetida a questão de ordem ao exame colegiado, o relator Ministro Celso de Mello destacou que até então, a legislação penal brasileira não havia definido o crime de terrorismo, não obstante o esforço significativo da comunidade internacional na busca de um conceito de terrorismo e da constante preocupação com o tema, inexistia um tipo penal de terrorismo no Brasil.

Dada a exigência do requisito da tipicidade ou da dupla incriminação para o deferimento do pedido de extradição, o relator entendeu que a conduta atribuída ao estrangeiro reclamado não encontrava correspondência típica na legislação penal brasileira, questão reafirmada pela jurisprudência da Suprema Corte. Portanto, por unanimidade de votos, a questão de ordem foi resolvida para declarar extinto aquele procedimento preparatório de ulterior ação de extradição passiva.

Por fim, neste voto foi enfatizado que eventual variação terminológica ou diferença no “nomen juris” não obstaria o preenchimento do requisito da dupla incriminação.

Em momento ulterior, o Brasil, ante a pressão de entidades internacionais e às vésperas de um evento internacional – Jogos Olímpicos Rio 2016 –, somente regulamentou e disciplinou o crime de terrorismo na Lei 13.260 de 16 de março de 2016, sancionada pela Presidente Dilma Rousseff.

Com o advento da lei antiterror, findou-se controvérsias acerca da tipificação do delito no Brasil, contudo, outros questionamentos vieram à tona, entre eles, se indaga se as penas previstas são proporcionais e se houve uma definição adequada, clara e suficiente do que vem a ser atos terroristas. Também, se observa a adoção da criminalização de atos preparatórios, que, via de regra, não são puníveis. Em seus vinte artigos, a lei antiterrorismo prevê quatro tipos penais, com penas que variam de cinco a trinta anos de reclusão.

            A dificuldade em estabelecer uma conceituação adequada de terrorismo nas leis penais e tratados internacionais não é matéria recente. Conforme enfatizado pelo Decano Celso de Mello no voto supramencionado:

Mostra-se evidente a importância dessa constatação, pois, como se sabe, até hoje, a comunidade internacional foi incapaz de chegar a uma conclusão acerca da definição jurídica do crime de terrorismo, sendo relevante observar que, até o presente momento, já foram elaborados, no âmbito da Organização das Nações Unidas, pelo menos, 13 (treze) instrumentos internacionais sobre a matéria, sem que se chegasse, contudo, a um consenso universal sobre quais elementos essenciais deveriam compor a definição típica do crime de terrorismo ou, então, sobre quais requisitos deveriam considerar-se necessários à configuração dogmática da prática delituosa de atos terroristas.

(...)

A despeito desse significativo compromisso, os Estados Americanos não definiram os elementos configuradores do crime de terrorismo, o que constitui – segundo penso – motivo de inquietante preocupação no âmbito do sistema interamericano de proteção regional, a evidenciar a já referida ausência de consenso na formulação da própria noção conceitual de terrorismo.[5]

             Para além da problemática que circunda os dispositivos da lei que tipificou o terrorismo no Brasil, exsurge a preocupação com o financiamento do terrorismo, prática visceralmente atrelada a lavagem de dinheiro e, portanto, ao direito penal econômico.

O terrorismo capta recursos espúrios - ou não -  para utilização que é aplicada para além dos atentados propriamente ditos: na promoção de suas ideologias e convicções de extermínio; recrutamento de membros; deslocamento/viagens; manutenção de membros e suas famílias; etc.

Os recursos podem derivar da prática de outros delitos como tráfico, extorsão mediante sequestro, bem como de instituições religiosas fundamentalistas sem fins lucrativos e até de Estados.

A partir do 11 de setembro de 2001, o GAFI/FAFT elaborou recomendações para combater o financiamento do terrorismo, dentre elas, a criação de tipos penais atinentes ao financiamento do terrorismo. Também, prevenir o uso indevido de organizações sem fins lucrativos; evitar a proliferação de armas de destruição em massa; além de rigorosas medidas de cunho econômico.

Os países deveriam assegurar que as leis atinentes a instituições financeiras não inibissem a implementação das Recomendações do GAFI e tenham atuação rigorosa quanto a seus clientes: proibindo a criação de contas anônimas ou fictícias; fiscalizando transações suspeitas e ocasionais; e reportando aos órgãos responsáveis sobre operações suspeitas de lavagem de dinheiro ou financiamento terrorista.

Ou seja, o tema terrorismo toca na questão da criminalidade econômica. Nesse ponto, a baixa incidência de práticas terroristas no Brasil pode revelar um terreno atraente para a prática de ocultação de bens e valores para financiamento de atos de terrorismo.

Não obstante, ainda que tardiamente, o Brasil editou a Lei n.° 13.260/2016, que tipificou o financiamento ao terrorismo. Veja-se:

Art. 6º Receber, prover, oferecer, obter, guardar, manter em depósito, solicitar, investir, de qualquer modo, direta ou indiretamente, recursos, ativos, bens, direitos, valores ou serviços de qualquer natureza, para o planejamento, a preparação ou a execução dos crimes previstos nesta Lei:

Pena - reclusão, de quinze a trinta anos.

Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem oferecer ou receber, obtiver, guardar, mantiver em depósito, solicitar, investir ou de qualquer modo contribuir para a obtenção de ativo, bem ou recurso financeiro, com a finalidade de financiar, total ou parcialmente, pessoa, grupo de pessoas, associação, entidade, organização criminosa que tenha como atividade principal ou secundária, mesmo em caráter eventual, a prática dos crimes previstos nesta Lei.

Do dispositivo legal, se observa a criação do financiamento direto ao terrorismo no seu caput e financiamento indireto, previsto no parágrafo único. Insta salientar, que ainda as condutas previstas no tipo sejam praticadas por meio de ações lícitas, a finalidade deve sempre se voltar ao financiamento de atos terroristas.

A Lei Antiterrorismo segue na perspectiva da relativização de garantias fundamentais, na medida em que visa a proteção de bens jurídicos cada vez mais abstratos, supraindividuais ou coletivos, na tendência de um direito penal (pré)ventivo.

Outro ponto da Lei Antiterrorismo Brasileira que merece atenção é o seu artigo 12, o qual prevê a possibilidade da atuação ex oficio do Juiz no curso da investigação, em que poderá ser decretada medidas assecuratórias de bens, direitos ou valores do investigado ou de interpostas pessoas.

A atuação do magistrado em fase preliminar é outra medida rigorosa e incompatível com um direito penal democrático justamente porque proporciona a figura de um julgador-acusador, incompatível com o princípio dispositivo fundante do sistema acusatório. A atuação do juiz como atividades primordialmente reservadas as partes afronta a imparcialidade e confunde o papel da identidade de cada sujeito no âmbito do processo penal.

Vê-se, portanto, que as facilidades da globalização econômica e do fluxo de capitais podem produzir a ascensão de células terroristas. No entanto, os desafios contemporâneos não devem servir a um direito penal de emergência, que em nome da paz e segurança internacional, relativiza toda ordem de garantias fundamentais, inclusive no que toca ao sigilo a dados fiscais, manipulação de dados, e excesso na tomada de medidas assecuratórias no curso da investigação. No afã de controlar a criminalidade econômica, ambiental e organizada se observa a crescente tomada de decisões de cunho legislativo-penal, incapazes de proporcionar a utópica segurança e reduzir índices de criminalidade.


[1] Advogado Sócio do escritório Gilson Bonato Advocacia Criminal. Conselheiro do IBDPE.

[2] Bacharela em Direito – Unicuritiba. Pós-graduanda em Direito e Processo Penal - Academia Brasileira de Direito Constitucional. Advogada Associada - Gilson Bonato Advocacia Criminal.


[1] < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Decreto/D5639.htm>

[2] “Curso de Direito Penal”, vol. 4/640-650, 2006, Saraiva

[3] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. V. 1. 8. Ed. rev. Atual. E ampl. Rio de Janeiro. Forense. p.392

[4] < http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=7866348>

[5] < http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=7866348> fls. 09/10.


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RHC n. 163.334 do STF e a criminalização do ICMS declarado e não recolhido pelo contribuinte em operação própria

Por Francisco Monteiro Rocha Jr[1] e João Vitor Grycajuk[2]

 

Em 18 de dezembro de 2019[3], o Plenário do Supremo Tribunal Federal julgou o Recurso Ordinário em Habeas Corpus n 163.334 no qual, por maioria, vencidos os Ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio, fixou a seguinte tese: "O contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990"[4].

Pode-se concluir, a partir da decisão em análise, que a Suprema Corte brasileira sedimentou o entendimento de que é passível de sanção penal o mero não pagamento de dívida perante o Estado uma vez que, na hipótese considerada, o contribuinte, sem fraude, declara o valor devido e não realiza o respetivo pagamento. Tem-se assim a criminalização do ICMS declarado e não recolhido pelo contribuinte, em operação própria.

Existem inúmeros pontos controversos na decisão destacada que podem aqui ser abordados. Por conta dos limites impostos ao presente ensaio, optamos por realizar uma discussão topográfica sobre o tema, sem que qualquer aspecto fosse devidamente verticalizado, o que deverá ser realizado em outra oportunidade.

Inicialmente, pode-se sustentar que é incompatível com a Constituição Federal do Brasil a utilização do Direito Penal para os interesses próprios do Estado ou ainda como instrumento de política social e muito menos para instituir um instrumento exclusivamente arrecadatório do Estado. Tal fenômeno já foi definido por vários autores como sendo a administrativização do Direito Penal (TANGERINO, CANTERJI, FIGUEIREDO DIAS, ZAFFARONI, BATISTA, TAVARES) que, resumidamente pode ser definido como a utilização do direito penal não para punir condutas que ofendem bens jurídicos em sentido retributivo ou preventivo, mas para forçar pagamento de dívida. Ao contrário do art. 1º da Lei 8.137/1990 que penaliza os fraudadores do sistema tributário, a interpretação que foi dada pelo STF ao art. 2º teria o condão de institucionalizar a prisão por dívida tributária. Em síntese, trata-se de forçar o cidadão a realizar um pagamento (cujo atraso até então era penalmente irrelevante) para somente assim evitar a intervenção do direito penal.

Outra perspectiva faz exsurgir (mais uma vez!) o debate relacionado à prisão por dívida, assim regulada pela Constituição Federal de 1988: “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel” (art. 5º, inciso LXVII). O âmbito dessa discussão que deve ser trazida à tona diz respeito à existência (ou não) de diferenciação entre prisão civil e prisão tributária. Trata-se de debate já enfrentado por Hugo de Brito Machado, que assim se manifestou sobre o tema:

Admitir que a Constituição, ao vedar a prisão civil por dívida, não está proibindo também a definição da dívida como crime, é outorgar ao legislador ordinário ferramenta que lhe permite destruir completamente a supremacia constitucional. Na interpretação da norma jurídica, especialmente da norma da Constituição, tem-se de ir além do elemento meramente literal. É preciso buscar a realização dos objetivos que a norma tende a alcançar, os valores humanos que tende a realizar.[5]

Rememore-se que abordamos aqui apenas a decisão do RHC nº 163.334/STF que criminalizou o não recolhimento do ICMS declarado como apropriação indébita, sendo que na realidade há apenas uma obrigação tributária não cumprida que gerou uma mera inadimplência com o Fisco. O mesmo autor verticaliza a discussão, em passagem que deve ser citada:

A norma da Constituição que proíbe a prisão por dívida protege o direito à liberdade, colocando-o em patamar superior ao direito de receber um crédito. Isto não quer dizer que o direito de receber um crédito restou sem proteção jurídica. Quer dizer que essa proteção não pode chegar ao ponto de sacrificar a liberdade corporal, a liberdade de ir e vir. Limita-se, pois, a proteção do direito de receber um crédito ao uso da ação destinada a privar o devedor de seus bens patrimoniais, que poder ser afinal desapropriados no processo de execução.[6]

Evidencia-se assim, que a decisão do Supremo Tribunal Federal padece de inconstitucionalidade pelo motivo de possibilitar a prisão por dívida do devedor tributário.

Consigne-se, ainda sobre o ponto, que além da própria Constituição não ter recepcionado o art. 2º, inciso II, da Lei 8.137/90 nos moldes adotados pelo Supremo Tribunal Federal no RHC 163.334, é de incidir na espécie o Pacto São José da Costa Rica do qual o Brasil é signatário, e que nos levaria à mesma conclusão.

Além da (in)constitucionalidade da prisão por dívida no RHC 163.334, salienta-se que a tese oriunda do julgamento fere determinados princípios do Direito Penal que estabelecem a não criminalização da conduta analisada, tais como o a) in dubio pro reo; b) o princípio da legalidade; c) a lesividade/ofensividade; e d) a intervenção mínima.

Pode-se sustentar que o princípio do in dubio pro reo ou da presunção de inocência seria atacado na medida em que a decisão analisada consente com uma modalidade de dolo presumido incompatível com o regime jurídico aplicável à espécie. Sobre o ponto, merece destaque trecho do Recurso Ordinário Constitucional interposto pela Defensoria de Santa Catarina.

Porque o ICMS pode não ser repassado, de modo que a tipicidade dependeria da demonstração efetiva desse repasse, não bastando partir de uma presunção baseada na “prática costumeira”, sob pena de ofensa à presunção de inocência.[7]

O princípio da legalidade, por seu turno, é corolário tanto do Direito Penal quanto do Direito Tributário e está previsto no art. 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal. Pode-se perceber sua violação em ao menos dois momentos.

Primeiramente, porque a tipificação do delito de apropriação indébita tributária diz respeito apenas aos casos de substituição tributária. Assim, presumir que o tipo penal também se relaciona com o ICMS em operação própria caracteriza analogia in malam partem, o que é vedado pelo referido princípio, como já nos explicou MACHADO:

A elementar “tributo cobrado” diz respeito aos casos de substituição tributária, de modo que subsumir ao tipo penal também a hipótese de ICMS próprio “cobrado” dos consumidores significaria uma violação à legalidade penal (proibição de analogia)[8].

Na mesma senda, a tese emanada pelo Supremo Tribunal Federal criou nova tipificação penal por via jurisprudencial, uma vez que o art. 2º, inciso II, da Lei 8.137/90 não pode simplesmente ser comparado e aproximado do delito de apropriação indébita, analogicamente ou por fusão de elementares do tipo, dando origem a um novo tipo penal denominado apropriação indébita tributária e ferindo diretamente o princípio da legalidade. Como explicam ESTELLITA e PAULA JÚNIOR:

A possibilidade da criação doutrinária e/ou jurisprudencial de uma nova figura penal a partir da fusão de elementares de normas incriminadoras em vigor para ampliar o espectro de incidência de uma restrição a direito fundamental é de duvidosa constitucionalidade (princípio da legalidade, art. 5º, XXXIX, CF)[9].

Temos em terceiro plano o princípio da ofensividade ou lesividade que aduz que não há crime se não há lesão ou perigo real de lesão ao bem jurídico tutelado pelo Direito Penal. Portanto, o mero inadimplemento do ICMS sem uma conduta fraudulenta não pressupõe perigo, muito menos lesão, ao bem jurídico tutelado.

Segundo o princípio da intervenção mínima, o Direito Penal apenas interferirá em questão de máxima importância em que as demais áreas do Direito não sejam capazes de resolver. No caso do RHC nº 163.334/STF resta evidenciado que houve uma intervenção penal além do devido, uma vez que a questão poderia ter sido resolvida sem a coerção estatal, mediante novo parcelamento, por exemplo.

Para que exista a caracterização o delito de “apropriação indébita tributária”, é imprescindível que haja uma conduta extra para que a mera inadimplência tributária se torne mais reprovável e realmente atinja um bem jurídico, uma vez que é proibida a criminalização de meras desobediências.

Portanto, pode-se concluir que a decisão do Supremo Tribunal Federal no Recurso Ordinário Constitucional em Habeas Corpus nº 163.334 foi equivocada, uma vez que contraria princípios fundamentais do Direito Penal e da Constituição Federal. Trata-se de uma indevida administrativização do direito penal, da constitucionalização de uma modalidade de prisão por dívida, de ofensa à legalidade, além de um ataque à intervenção mínima.


[1] Professor Adjunto do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Doutor, Mestre e Especialista pela UFPR. Coordenador geral da área de Direito e Processo Penal da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst). Ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico (IBDE). Advogado criminalista.

[2] Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela ABDConst. Pós-graduado em Direito Penal Econômico pela PUCMG. Bacharel em Direito pela UFPR. Advogado criminalista.


[3] O acórdão respectivo não foi publicado até a data em que vem a público esse rápido ensaio.

[4] Art. 2° Constitui crime da mesma natureza: (...) II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;

[5] MACHADO, Hugo de Brito. Crimes contra a ordem tributária. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 414.

[6] Idem

[7] STF - RHC: 163334 SC - SANTA CATARINA, Relator: Min. ROBERTO BARROSO, Data de Julgamento: 11/02/2019, Data de Publicação: DJe-029 13/02/2019.

[8] Idem.

[9] ESTELLITA, Heloisa. PAULA JUNIOR, Aldo de. O STF e o RHC 163.334: uma proposta de punição da mera inadimplência tributária? Jota. 10/12/2019. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/penal-em-foco/o-stf-e-o-rhc-163-334-uma-proposta-de-punicao-da-mera-inadimplencia-tributaria-10122019#sdfootnote2anc>. Acesso em: 20.fev.2020.


 


O Projeto de Lei 1588/2020: Certificação de Programas de Compliance e impactos na Responsabilidade Criminal

Por Rafael Guedes de Castro[1]

 

No ano de 2016 começou a tramitar no Senado Federal o Projeto de Lei 435/2016, de autoria do Senador Antônio Anastasia, que inclui no artigo 7o, inciso VIII, da Lei 12846/2014, Lei Anticorrupção, a necessidade de certificação de programas de compliance por gestor de sistema de integridade devidamente preparado para a função. Ainda, insere um segundo parágrafo ao mesmo artigo ao prever as funções básicas desse chamado gestor de integridade, quais sejam, (i) gerir de forma autônoma, contribuindo para o seu aperfeiçoamento contínuo, (ii) o dever de atuar de forma constante e engajada nas interações da empresa com as autoridade públicas bem como de (iii) manter atualizada documentação relativa ao programa de integridade.

O Projeto foi aprovado no Senado Federal e, em 06 de abril de 2020, foi encaminhado à Câmara dos Deputados. Lá passou a tramitar sob o número 1588/2020 e atualmente aguarda despacho da Presidência para início do processo legislativo.

A proposta pretende alterar significativamente o modo como as organizações empresariais estruturam seus mecanismos de integridade, estabelecendo, em suma, a necessária (i) certificação do programa por alguém devidamente preparado para a função, com (ii) plena autonomia na gerência do mecanismo de integridade e (iii) autuação constante e engajada com as autoridade públicas.

Sem a pretensão de esgotar o tema, o presente artigo busca provocar uma reflexão sobre a proposta legislativa, especialmente no que concerne ao processo de certificação e a respectiva atuação do Compliance Officer.

Não é novidade que existe um certo consenso sobre os elementos básicos que estruturam um programa de compliance tais como o comprometimento da alta direção, a identificação de riscos, elaboração de código de conduta, elaboração canais de denúncia, dentre outros.

Por outro lado, a mesma constatação não ocorre quanto a determinação dos critérios de qualidade e validação, ou mais comumente chamados de processos de certificação. No ordenamento jurídico comparado, a submissão facultativa dos programas de compliance adotados pelas empresas a um sistema de certificação é um dos pontos mais avançados de discussão no âmbito da temática que envolve o compliance.[2]

A certificação dos programas de compliance é um fenômeno que se adequa bem à técnica da autorregulação. Há tempos os Estados têm se valido de instrumentos declarativos, como selos, marcas, etiquetas e certificados emitidos por terceiros para obter o compromisso de conformidade da empresa com as regras técnicas do setor. Da mesma forma, o administrador que submete o seu programa de compliance a um processo de certificação independente, de alguma maneira assegura que sua política de gestão de riscos responde a um critério organizacional de uma administração diligente e ordenada.[3]

Existem alguns modelos no direito comparado que indicam os critérios de qualidade e procedimentos de certificação dos programas de compliance. No Chile, por exemplo, a Lei 20.393/2009, que estabeleceu a responsabilidade penal das pessoas jurídicas contém indicações sobre os elementos que devem possuir os programas de compliance, bem como ofereceu à empresa que adotou o modelo de prevenção a possibilidade de submetê-lo a um processo de certificação.[4] A Lei considera a possibilidade, e não obrigatoriedade, de submissão do programa de compliance a um critério de certificação. Este certificado constará ter a empresa atingido todos os requisitos estabelecidos na Lei, estabelece que tais certificações poderão ser expedidas pelas empresas de auditoria externa, classificadoras de riscos ou outras entidades registradas na Superintendência de Valores e Seguros, o equivalente a SEC - Security Exchange Comission dos Estados Unidos da América.[5]

Além de classificar o programa de compliance de acordo com a sua qualidade e atenção aos postulados regulamentadores dispostos em Lei, no campo processual, em caso de ocorrência de algum ilicito no âmbito da atividade econômica empresarial, as certificações podem se revestir de alto valor probatório e servir como prova documental para atestar a eficiência do programa[6] e que todas as cautelas devidas foram devidamente tomadas na sua elaboração e execução. ACUÑA acentua neste ponto que a certificação dos programas de compliance poderia servir como um atestado de bom comportamento prévio, uma espécie de certificação de atuar prudente da empresa e, consequentemente, causa de atenuação da pena a ser aplicada.[7] Também, não se pode dizer que as certificações terão um valor absoluto visto que no direito processual penal não há hieraquia de provas bem como elas estão submetidas à livre convicção motiva da autoridade jurisdicional.

Embora a certificação de programas de compliance se constitua em necessária evolução normativa, ao contrário do estabelecido no Projeto de Lei 1588/2020, não é recomendável que a referida atribuição seja do mesmo gestor que o concebeu e executa. Como visto na experiência do direito comparado, a certificação compreenderia um processo legal de validação independente, seja ele público ou privado, que analisaria os padrões adotados e estaria sob constante monitoramento.

Também se denota uma evidente cumulação das atribuições do Compliance Officer. Além de ser o gestor do programa, terá a incumbência legal de certificá-lo, validando-o para todos os efeitos legais. Assim, não obstante as atribuições próprias decorrentes de sua função surge uma nova imposição legal ao profissional de compliance ao exigir que este seja o “certificador” do seu próprio programa.

A temática relativa à responsabilidade criminal do Compliance Officer não é tema novo na dogmática penal. Do modo como está, a certificação pelo próprio profissional tem o potencial de aumentar o escopo da sua posição de garante na organização empresarial, uma vez que a Lei estará ampliando o seu dever de cuidado, proteção e vigilância. Isso fica ainda mais claro quando a Projeto de Lei estabelece que as suas funções básicas devem guiar-se pela autonomia, engajamento e interação com autoridades públicas e constante atualização e disponibilidade de documentações.

Por óbvio é que a responsabilidade criminal do Compliance Officer implica em inúmeras discussões no âmbito da dogmática penal, sendo evidente a impossibilidade de sua responsabilização objetiva. Todavia há, de fato, um significativo incremento de sua responsabilidade e também do risco que decorre da sua função, principalmente em caso de falha do programa.

O Projeto de Lei 1588/2020, da forma como está, estabelece um processo de certificação de programas de compliance pouco eficaz, uma vez que não estaria a presente a independência necessária para a avaliação. De outro lado, amplia os deveres do Compliance Officer na organização empresarial, o que impacta na sua posição de garante, não estando de acordo como melhor aprimoramento do instituto.


[1] Advogado. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná e especialista em Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Direito Penal Econômico pela Universidade Federal do Paraná, pela Universidade de Coimbra – Portugal e pela Universidade Castilla La Mancha, Toledo, Espanha.


[2] SÁNCHEZ RIOS, Rodrigo. ANTONIETTO, Caio. Criminal Compliance – Prevenção e minimização de riscos na gestão da atividade empresarial. In, Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 114/2015, p. 341-375, mai./jun. 2015,p. 13.

[3]MARTIN, Adan Nieto. Fundamentos y Estructura de los programas de cumplimientos normativo. In: Manual de cumplimiento normativo penal em la empresa. MARTÍN, Adan Nieto. (Coord). Valencia: Tirant lo Blanch, 2015p. 116.

[4]MARTIN, Adan Nieto. Fundamentos y Estructura de los programas... op. cit., p. 115.

[5]ACUÑA. Jean Pierre Matus. La certificación de los programas de cumplimiento. In: El Derecho Penal Económico em la era Compliance, org. Luis Arroyo Zapatero e Andán Nieto Martín,  Tirant lo Banch, Valência, 2013. p. 147.

[6]MARTIN, Adan Nieto. Fundamentos y Estructura de los programas... op. cit., p. 116.

[7]ACUÑA. Jean Pierre Matus. La certificación de los programas... op. cit., p.151.


Este artigo reflete a opinião de seus autores e não necessariamente a opinião do IBDPE.

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A corrupção passiva e a alteração interpretativa jurisprudencial acerca da (des)necessidade do ato de ofício.

Por Bibiana Fontella[1]

 

Tradicionalmente a doutrina nacional entendeu aplicável ao tipo penal de corrupção passiva (art. 317, CP[2]) a exigência do ato de ofício prevista no crime de corrupção ativa (art. 333, CP[3]). Assim, se a vantagem recebida indevidamente pelo funcionário público não estivesse vinculada a um ato de ofício, não haveria nem corrupção ativa nem corrupção passiva. Justamente neste sentido foi o entendimento do Supremo Tribunal Federal na Ação Penal 307, que rejeitou a denúncia em face de Fernando Collor de Mello, haja vista a ausência da vinculação de ato de ofício à vantagem indevida no crime de corrupção passiva.[4]

Em 2003 os crimes de corrupção – ativa e passiva – sofreram alteração legislativa, pela Lei n. 10.763, com reflexos tão-somente na sanção penal. A descrição típica permaneceu inalterada.

Contudo, o entendimento jurisprudencial começou a ser alterado na Ação Penal 470 (Caso Mensalão), sendo, ainda, mantida a exigência de vinculação a ato de ofício, mas flexibilizou a determinação no momento das ações de solicitar e receber.[5]

A legislação brasileira conta apenas com dois tipos de corrupção – passiva e ativa – sem qualquer especificação quanto a função exercida pelo funcionário público, podendo ser um guarda de trânsito ou parlamentar. Neste ponto residem os problemas de política criminal, se o ato de ofício for exigível no momento do recebimento ou da solicitação da vantagem indevida, seriam punidos apenas os ilícitos de menor gravidade e aquela corrupção considerada sistêmica permaneceria ilesa.[6]

A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, em nova interpretação do tipo de corrupção passiva, entendeu pela desnecessidade da subsunção entre o específico ato de ofício e as vantagens indevidas, bastando apenas a subsunção causal entre as atribuições do funcionário público e as vantagens indevida, passando a atuar em prol de interesse particular, desvirtuando a função pública.[7]

Contudo, o Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial n. 1.745.410[8], de relatoria da Ministra Laurita Vaz, interpretou o termo “em razão da função” de forma inédita, alargando ainda mais a esfera de abrangência do tipo de corrupção passiva (art. 317, CP). Assim, entendeu-se que a expressão em razão da função não é equiparável ao ato de ofício da corrupção ativa (art. 333, CP), sendo admitida a condenação ainda que as ações ou omissões indevidas não estejam dentro das atribuições formais do funcionário público. [9]

Concretamente, dois dos recorrentes teriam sido denunciados pelo crime de corrupção passiva – dentro outros – em razão de terem, aceitado promessa de vantagem indevida, oferecida por terceiro, consistente no valor de R$ 1.000,00 (mil reais). Assim, caberia aos aeroportuários esperar o desembarque do estrangeiro em vôo que chegava ao Brasil e no corredor de desembarque recebê-lo e escolta-lo até as áreas restritas do aeroporto. Além disso, estaria dentro da promessa de vantagem indevida o acompanhamento do estrangeiro até que fosse possível a passagem furtiva pelo serviço de imigração.

O Juízo sentenciante entendeu pela atipicidade do crime de corrupção passiva, haja vista a ausência de competência dos funcionários públicos para permitir a entrada de estrangeiro em território brasileiro. Desta forma, não haveria nexo causal entre a promessa de vantagem indevida e o ato praticado. Assim, entendeu-se na sentença pela desclassificação para o crime de introdução irregular de estrangeiro em território nacional (art. 125, XII, da Lei n. 6.815/1980).

Ministro Sebastião Reis Júnior, relator originário do RESP 1.745.410, fez diferenciação entre os tipos de corrupção ativa e corrupção passiva. Sendo que na forma ativa há a exigência legal da existência de determinado ato de ofício e na forma passiva há apenas a descrição típica da solicitação, aceitação ou recebimento de promessa indevida em razão da função ocupada pelo funcionário público.

Embora o tipo de corrupção passiva não faça menção ao ato de ofício, há a expressão “em razão dela”, representando o necessário vínculo entre a vantagem indevida e a função exercida pelo agente. Neste sentido, para Sebastião Reis Júnior é indispensável a existência de nexo de causalidade entre a conduta do agente público e a realização de ato funcional de sua competência. Para corroborar colacionou-se diversos julgados do Superior Tribunal de Justiça[10] no sentido a necessidade do nexo causal entre as competências funcionais e a conduta do agente público no ato de corrupção passiva.

Entretanto, a Ministra Laurita Vaz abriu divergência parcial ao voto do Ministro Relator, quanto aos requisitos da configuração do crime de corrupção passiva.

O entendimento da Ministra Relatora foi no sentido de que a opção legislativa teria sido direcionada para ampliar a abrangência da incriminação por corrupção passiva, se comparada ao tipo de corrupção ativa. Desta forma, a proteção ao bem jurídico – probidade da administração pública[11] – seria potencializada.

Neste sentido, proferiu voto pelo parcial provimento do recurso especial a fim de reconhecer a prática do crime de corrupção passiva.

O legislador brasileiro optou por dois tipos penais diversos de corrupção, com contornos diferentes. Inegavelmente a modalidade ativa possui a restrição da vinculação do ato de ofício. Por algum tempo o entendimento doutrinário e jurisprudencial foi no sentimento de aplicação extensiva do requisito do ato de ofício à corrupção passiva. Contudo, tal entendimento foi sendo transformado jurisprudencialmente, chegando ao passo de completa desnecessidade de subsunção da vantagem indevida ao ato de ofício. Entretanto, a interpretação do Superior Tribunal de Justiça passou de entender pela desnecessidade de vinculação causal da vantagem indevida às atribuições do funcionário público.


[1] Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professora de Direito Penal. Advogada Criminal. Secretária-geral do IBDPE.


[2] Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem:         Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa

[3] Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.

[4] QUANDT, Gustavo de Oliveira. O crime de corrupção e a compra de boas relações. In: LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano (org). Crime e Política – Corrupção, financiamento irregular de partidos políticos, caixa dois eleitoral e enriquecimento ilícito. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017. p. 53 – 76.

[5] Idem.

[6] Idem.

[7] Neste sentido: STF, AP 695, Rel. Min. Rosa Weber, Primeira Turma, j. 06/09/2016.STF, Inq 4506, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 17/04/2018, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-183 DIVULG 03-09-2018  PUBLIC 04-09-2018.

[8] STJ, RESP 1745410, Relatora para Acórdão Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma. DJE 23 de outubro de 2018.

[9] Neste sentido: LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano; GRECO, Luis. A amplitude do tipo penal da corrupção passiva. Disponível em: https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-amplitude-do-tipo-penal-da-corrupcao-passiva-26122018. Acessado em 10 de setembro de 2020.

[10] STJ, HC 135.142/MS, Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, DJE 04/10/2010. STJ, RESP 440.106/RJ, Ministro Paulo Medina, Sexta Turma, DJ 09/10/2006. STJ, HC 13.487/RJ, Ministro Fernando Gonçalves, Sexta Turma, DJ 27/05/2002.

[11] Definição atribuída por Laurita Vaz.


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O acesso e o contraditório à colaboração premiada é manifestação precípua da ampla defesa

Por João Vieira Neto[i] e Vinícius Segatto[ii]

 

Alvo de divergências doutrinárias e jurisprudenciais, o acesso do delatado aos termos de colaboração em que tenham sido citados é, evidentemente, uma das configurações mais sólidas do exercício do contraditório e da ampla defesa. Isso porque, inobstante o acordo de colaboração premiada tratar-se tão somente de um meio de obtenção de prova, pode vir a influenciar uma possível convicção judicial condenatória.

O princípio do contraditório, bem como da ampla defesa, consagrados constitucionalmente e amparados também pelo Pacto de São José da Costa Rica, comumente conhecido por Convenção Americana sobre Direitos Humanos, são de inegável imprescindibilidade a qualquer Estado Democrático, pois, servem de anteparo àqueles submetidos à atividade persecutória penal estatal.

Basicamente, o contraditório se manifesta como a noção bilateral dos atos, das informações, dos termos e trâmite processual e a oportunidade de confrontá-los, possibilitando aos indivíduos que participem e reajam ao processo. Já a ampla defesa, na seara do processo penal, é garantir ao acusado o acesso e a disponibilização de todos os meios e recursos cabíveis para que, plenamente, se defenda daquilo que lhe é imputado.

Nessa perspectiva, a Segunda Turma da Suprema Corte decidiu conceder ao ex-presidente Lula o acesso a todos os trechos do acordo de colaboração premiada firmado pelo ex-ministro Antonio Palocci, nos quais lhe seja imputado algum delito.

Preponderou o entendimento exarado pelo Ministro Gilmar Mendes, que suscitou a aplicação da Súmula Vinculante 14, bem como, o juízo da própria Turma que tem concedido aos delatados o acesso dos termos de colaboração e que não tenham diligências em curso para não restarem prejudicadas.

Em verdade, tal posicionamento vem se consolidando a partir de premissa normativa à luz do art. 7º da Lei nº 12.850/2013, pois se confere ao defensor, no interesse do representado, a amplitude de acesso a todos os elementos de pré-prova, gize-se, mediante autorização judicial, ressalvados os referentes às diligências em andamento, logicamente após a homologação do acordo de colaboração premiada.

Aliás, nesse ponto, o Eminente Ministro considerou que, inobstante julgar favoravelmente ao acesso às informações que incriminem terceiros e que nem toda diligência em andamento dificulta esse direito, caso o delatado requeira ao juiz responsável pela instrução criminal a obtenção de certo procedimento, e o magistrado entender fundamentada e justificadamente ter risco à persecução por atos do delatado, o sigilo deverá permanecer.

Todavia, deve-se levar em consideração que uma investigação por si só pode ser eivada de prováveis riscos e irregularidades, motivado ou não pelo delatado. O que não se pode admitir, via de regra, é a mitigação ou o aniquilamento das garantias dos delatados, que devem ter acesso aos elementos essenciais ao exercício da sua defesa.

Nesta toada, para além do escopo da episódica demonstração, ou reafirmação do direito subjetivo processual-penal de acesso em prol de alinhavar parâmetros regulares de ordem constitucional, também, é de se observar o amadurecimento da matéria legislativa com a vigência da Lei nº 13.964/2019, onde se estabeleceu diretrizes conjunturais e procedimentais ao negócio jurídico, como meio de obtenção de prova (não é conteúdo probante absoluta), pois será inservível tão somente com a palavra do colaborador, em rescaldo da necessária harmonia contextual de outros elementos de pré-convicção (art. 3º-C, da Lei nº 12.850/2013).

Para tanto, o art. 7º, §3º, da Lei nº 12.850/2013, estabeleceu que o sigilo das informações do procedimento de colaboração só deverá se resguardar sob tal manto até o recebimento da denúncia, criando marco temporal para se garantir ao investigado/delatado o acesso às informações em desfavor.

Lado outro, a Segunda Turma do STF, nos autos dos HCs 142.205 e 143.427, em julgamento sob a relatoria do Ministro Gilmar Mendes, reconheceu a possibilidade-garantia do delatado perquirir a (falta) higidez das colaborações, suas negociações e a forma do procedimento, “em casos de manifesta ilegalidade no acordo, os atingidos por ele devem poder ir ao Judiciário, que deve agir para garantir os respeitos a direitos fundamentais e ao princípio da segurança jurídica.”[iii]

É de se observar outra perspectiva, sobretudo no cruzamento de colaborações em que há negligência de reporte ao conteúdo narrado, pois, como assinalam Renata Machado Saraiva e Luiza Farias Martins, “A omissão que dá causa à rescisão restringe-se aos fatos ilícitos para os quais o colaborador tenha concorrido na condição de autor ou partícipe, e desde que tenham relação direta com os fatos objeto de investigação já instaurada.”[iv]

Assinalaram André Luís Callegari e Raul Marques Linhares, em relação ao momento de terceiros-delatados impugnarem, como instrumento defensivo, o pacto premial, justamente, no “... procedimento criminal instaurado a partir da colaboração, quando os elementos colhidos no acordo passarão a influir nos seus direitos, considerando-se esse exercício do direito ao confronto um verdadeiro ‘filtro’ contra as ‘falsas colaborações’...”[v]

Acontece que, por (in)segurança jurídica de acordos firmados em relevo à legislação vigente (12.850/2013), agora passível de revisão por (re)estruturação da novel norma (13.964/2019), decerto, impõe-se o medo em negócios firmados e homologados, como descreve Zygmunt Bauman “Agora temos de aprender a viver com um permanente senso de incerteza”[vi].

Em arremate, relembremos, a norma processual é aplicável de imediato, sem prejuízo da “validação” dos atos realizados anteriormente, mas, sim, deverão guardar contemporaneidade e correlação à Constituição Federal sob pena de figurar sua aplicabilidade letra morta ou episódica a cada julgador.


[i] é advogado criminalista. Sócio do escritório João Vieira Neto Advocacia Criminal. Conselheiro Estadual da OAB-PE. Presidente da Comissão de Direito Penal da OAB-PE. E-mail: joao@jvn.adv.br;

[ii] é advogado criminalista. Sócio do escritório Segatto Advocacia. Membro da Comissão de Direito Penal da OAB-MT e do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. E-mail: advogado@segattoadvocacia.com.br.


[iii] https://www.conjur.com.br/2020-ago-25/delatados-podem-questionar-acordos-delacao-premiada-turma-stf

[iv] https://www.conjur.com.br/2020-ago-12/opiniao-retratacao-rescisao-colaboracao-premiada-pos-lei-anticrime

[v] CALLEGARI, André Luís, LINHARES, Raul Marques. Colaboração premiada, lições práticas e teóricas de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019, p. 155.

[vi] BAUMAN, Zygmunt; DONSKIS, Leonidas. Cegueira moral, a perda da sensibilidade moderna líquida, tradução Carlos Alberto Medeiros, 1ª ed., Rio de Janeiro: Zahar, 2014, pag. 117.


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Interceptação Telefônica Ilegal e a Condenação do Estado Brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no “Caso Escher”

Por Marlus H. Arns de Oliveira[i]

RESUMO

A interceptação telefônica, autorizada ou não judicialmente, deve estar sempre fundamentada em lei que indique as circunstâncias de tão grave interferência, visto que representa grave intervenção na vida privada de  indivíduo. Em síntese, a medida poderá ser requerida pela autoridade policial em sede de investigação criminal ou pelo Ministério Público na instrução penal. Também é possível que a autoridade judicial de ofício autorize a medida. Em qualquer hipótese devem ser demonstrados fortes indícios de autoria daquele que poderá ter sua comunicação telefônica violada, bem como que inexistem outras provas possíveis para alcançar o mesmo resultado. A decisão deve ser fundamentada, por força constitucional do art. 93, IX, sendo apontado o prazo de vigência, que não poderá ser superior a 15 dias prorrogáveis por mais 15.

Neste estudo apontamos as 5 (cinco) condenações já sofridas pelo Estado Brasileiro frente a Corte Interamericana de Justiça, ressaltando o denominado “Caso Escher”, oriundo de fatos graves de interceptação telefônica ilegal ocorrido no Estado do Paraná, numa demanda em que as vítimas tiveram suas conversas telefônicas interceptadas e divulgadas amplamente nos meios de comunicação, o que concluiu a Corte, causou gravame as suas vidas privadas.

A condenação do Estado Brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos deu-se devido a ingerência abusiva e arbitrária sob a ótica do artigo 11.2 da Convenção Americana de Direitos Humanos.

 

  1. Introdução

A interceptação telefônica representa grave intervenção na vida privada de qualquer indivíduo, devendo a mesma estar fundamentada em lei que indique as circunstâncias de tão grave interferência, bem como prevendo as hipóteses em que pode ocorrer a quebra de sigilo, quem pode solicitá-la, quem a autoriza e a executa.

Em sucinto apanhado podemos afirmar que a interceptação telefônica poderá ser requerida pela autoridade policial em sede de investigação criminal ou pelo Ministério Público na instrução penal. Considera-se possível, ao menos em tese, que a autoridade judicial de ofício autorize a medida[ii]. Em qualquer hipótese devem ser demonstrados pelo requerente fortes indícios de autoria e/ou participação daquele que poderá ter sua comunicação telefônica violada, bem como que inexistem outras provas possíveis para alcançar o mesmo resultado. Evidentemente, por força constitucional do art. 93, IX[iii] o juiz deve fundamentar sua decisão, apontando prazo de vigência, que não poderá ser superior a 15 dias prorrogáveis por mais 15 (quinze), devendo comunicar tal decisão ao parquet ministerial para que acompanhe a execução da gravosa medida.[iv]

No presente artigo buscamos analisamos o denominado “Caso Escher”, oriundo de fatos graves de interceptação telefônica ilegal ocorrido no Estado do Paraná, numa demanda em que as vítimas tiveram suas conversas telefônicas interceptadas e divulgadas amplamente nos meios de comunicação, o que seguramente causou gravame as suas vidas privadas.

Na análise do caso concreto apontamos que a Corte Interamericana de Direitos Humanos tratou de examinar se a ingerência foi abusiva ou arbitrária sob a ótica do artigo 11[v].2 da Convenção Americana de Direitos Humanos, tendo concluído pela ilegalidade da interceptação telefônica e condenado o Estado Brasileiro a reparação dos danos imateriais.

 

  1. Da legislação aplicável aos casos de interceptação telefônica em âmbito nacional e internacional

No âmbito do direito interno Brasileiro a matéria é regulada pela Carta Magna em seu artigo 5º, XII[vi] que considera inviolável a vida privada, a honra e a imagem de toda e qualquer pessoa[vii], bem como assegura o sigilo das comunicações telefônicas. Em sede infraconstitucional vige a Lei 9296/96, que regulamenta o art. 5º., XII da Constituição Federal, e explicita quais as hipóteses e os requisitos a observar quando de interceptação telefônica para fins de instrução penal ou investigação criminal.

No âmbito internacional o artigo 11 da Convenção Americana de Direitos Humanos proíbe interferência abusiva na vida privada das pessoas, suas famílias, seus domicílios e suas correspondências, bem como, assegura a toda pessoa o direito a honra determinando ao Estado que proteja qualquer ataque a sua reputação. Considerando o caráter não absoluto do direito a vida privada a Convenção Americana dispõe em seu artigo 11.2 que este pode ser limitado pelos Estados que a ratificaram quando as ingerências estiverem previstas em lei, possuírem fim legítimo e forem necessárias ao Estado democrático. É preciso analisar, quando existirem indícios concretos de crimes, os artigos 11 e 32[viii] da Convenção Americana, sopesando o bem comum frente a garantia de privacidade do indivíduo.

 

  1. Da Convenção Americana de Direitos Humanos

Atualmente vinte e cinco países já ratificaram a Convenção Americana de Direitos Humanos[ix]: Argentina, Barbados, Bolívia, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Chile, Dominica, Equador, El Salvado, Granada, Guatemala, Haiti, Honduras, Jamaica, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Suriname, Trindade e Tobago, Uruguai e Venezuela.  A Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem foi aprovada em 1948, na cidade de Bogotá, Colômbia, pelos então membros da OEA – Organização dos Estados Americanos.

Visando dar efetividade ao conteúdo da Declaração foram criados dois órgãos com competência para julgar casos de violação aos direitos humanos, a saber: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, criada em 1959, e a Corte Interamericana de Direitos Humanos que iniciou seu funcionamento em 1979, após o início de vigência da Convenção Americana de Direitos Humanos em 18 de julho de 1978.

Portanto não há dúvida quanto a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos para julgar casos de violação a Convenção Americana de Direitos Humanos pelo Estado Brasileiro, conforme os termos do artigo 62[x] da referida Convenção, visto que o Brasil é Estado parte desde 25 de setembro de 1992, tendo reconhecido a competência da Corte em 10 de dezembro de 1998.

Praticamente desconhecida, e pouco respeitada, as decisões condenatórias da Corte Interamericana deveriam repercutir amplamente em nosso sistema jurídico interno. Com o avanço econômico dos blocos regionais e a uniformização de procedimentos, inclusive na área processual penal, impõem-se este desafio a todos que estudam e laboram com o tema.

 

  1. O Caso Escher e outro x Estado Brasileiro (2009)

Buscamos trazer os contornos fáticos do “Caso Escher” (interceptação telefônica e divulgação dos diálogos colhidos), seus aspectos legais no campo nacional e internacional, suas considerações sobre o direito a vida privada, a honra, a dignidade e a reputação garantidas pela Convenção Americana de Direitos Humanos e seus reflexos em solo Brasileiro.

A demanda é de 2009 e trata da tutela do direito à privacidade e a honra, direito à liberdade de associação, bem como, dos limites do exercício do poder público frente a interceptação telefônica e divulgação dos diálogos colhidos. Nas palavras da Comissão Interamericana de Direitos Humanos a demanda refere-se a “alegada interceptação e monitoramento ilegal das linhas telefônicas de Arlei José Escher, Dalton Luciano de Vargas, Delfino José Becker, Pedro Alves Cabral, Celso  Aghinoni, e Eduardo Aghinoni, (...) membros das organizações ADECON e COANA, realizados entre abril e junho de 1999 pela Polícia Militar do Estado do Paraná; a divulgação das conversas telefônicas, bem como a denegação de justiça e da reparação adequada”.

 

  1. Do relevo fático do Caso Escher frente as interceptações telefônicas ilegais e sua indevida divulgação

O fundo de cena no presente caso concreto é o sempre atual tema de conflito social vinculado a reforma agrária. Os conflitos, em série, levaram o Estado a tomar medidas de políticas públicas para resolver, ou ao menos tentar resolver, o tema. Destaque-se a implementação de Plano Nacional de Combate à Violência no Campo e  a elaboração de Manual de Diretrizes Nacionais para a Execução de Mandados Judiciais de Manutenção e Reintegração da Posse Coletiva.

Interessante notar que a medida de interceptação telefônica, neste caso ilegal, é forma de vigiar comportamentos futuros. Nas palavras de FÁBIO TOFIC SIMANTOB (2011, p. 10):

Trata-se de medida processual com vistas a fazer prova na investigação ou na instrução criminal por meio de vigilância do comportamento humano ainda por acontecer. A rigor, pois, como a ocorrência de um crime é pressuposto para a justiça autorizar a quebra de sigilo telefônico, o monitoramente telefônico não é juridicamente vocacionado para descobrir crimes, mas sim para prevenir a repetição deles, ou até permitir o flagrante da repetição, ou, ainda, desvendar crimes já noticiados (com provas circustanciais ou com informações que levem à prova do crime).

 Os representantes da demanda, organizações Justiça Global, Rede Nacional de Advogados Populares, Terra de Direitos, Comissão Pastoral da Terra (CPT) e Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) requereram, com base nos fatos relatados pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que o Estado Brasileiro fosse declarado responsável pela violação dos artigos 8.1[xi] (garantias judiciais), 11[xii] (proteção da honra e da dignidade), 16[xiii](liberdade de associação) e 25[xiv] (proteção judicial) da Convenção Americana de Direitos Humanos, e que fosse ordenada a adoção de medidas de reparação.

As supostas vítimas, que restaram aceitas pela Corte, eram todas membros da ADECON – Associação Comunitária de Trabalhadores Rurais e da COANA – Cooperativa Agrícola de Conciliação Avante Ltda. Ambas as organizações buscavam, através de atividades de cunho cultural, esportivo e econômico, integrar os agricultores na venda de produtos e demais atividades econômicas. Restou demonstrado nos autos que ambas mantinham relação com o MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra e tinham como objetivo comum a reforma agrária.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos sustentou, com a concordância das organizações representantes, violação do direito à vida privada, à honra e à reputação das supostas vítimas, diante da responsabilidade do Estado Brasileiro pela interceptação de conversas telefônicas que após gravadas foram amplamente divulgadas. Foi apontada, ainda, responsabilidade do Brasil pela negativa do Poder Judiciário em autorizar a destruição do material colhido.

Em sua defesa o Estado Brasileiro sustentou, em sede preliminar que restou afastada, a incompetência da Corte Interamericana de Direitos Humanos pela falta de esgotamentos dos recursos internos. No mérito, argüiu que inexistiram condutas juridicamente reprováveis e sustentou que deveria ser reconhecido que efetuou todos os esforços possíveis  no sentido de apurar os fatos denunciados. Ainda, que as vítimas tiveram oportunidade de apresentar os recursos adequados e questionar os atos do Estado. Apontou também que não existiram vícios no processo que determinou as interceptações telefônicas e que eventual falha não teria gerado ofensa a honra e a dignidade das pessoas que tiveram seu sigilo telefônico violado. Finalmente, que não seria admissível revisar em instância internacional, a já analisada, no âmbito interno, conduta dos agentes envolvidos na interceptação e gravação telefônica, e posteriormente na divulgação das fitas gravadas.

 

  1. Da necessária individualização das vítimas da interceptação telefônica ilegal

Na análise deste caso merece destaque a discussão quanto a determinação de quem seriam as supostas vítimas da interceptação telefônica ilegal. A Comissão apontou que “o Estado incorreu em responsabilidade internacional pela violação dos direitos humanos em prejuízo de Arlei José Escher, Dalton Luciano de Vargas, Delfino José Becker, Pedro Alves Cabral, Celso Aghinoni e Eduardo Aghinoni”, que eram membros da COANA e da ADECON.

Sustentaram as organizações representantes que eram 34 (trinta e quatro) supostas vítimas, sustentando que quando da denúncia no ano de 2000, não havia como qualificar todas as vítimas diante do sigilo da interceptação telefônica, previsto na Lei 9.296/96. Ao nominarem todas as lideranças da COANA e da ADECON, pretendiam ver incluídas no rol de vítimas todas aquelas pessoas que somente vieram a ser conhecidas em 2004, com o pleno acesso as transcrições da interceptação telefônica realizada. O Estado Brasileiro impugnou tal pretensão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos asseverou que apesar dos representante terem tido acesso a íntegra das gravações em 2004, só trouxe os nomes das supostas 34 (trinta e quatro vítimas) em maio de 2007.

Em consonância com a jurisprudência da Corte, que considera que as supostas vítimas devem ser arroladas na demanda, e especificamente no relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (vide artigo 50[xv] da Convenção), e ainda que a identificação específica de cada vítima cabe a Comissão Interamericana e não a Corte, conforme artigo 33.1[xvi] do Regulamento, a Corte considerou como supostas vítimas, aquelas inicialmente apontadas, vale dizer,  Arlei José Escher, Dalton Luciano de Vargas, Delfino José Becker, Pedro Alves Cabral e Celso Aghinoni, não aceitando a inclusão dos demais no pólo passivo da demanda.

 

  1. Da ilegalidade da interceptação telefônica e de sua indevida divulgação

A solicitação formulada em meados do ano de 1999 partiu do Chefe do Estado Maior da Polícia Militar ao Secretário de Segurança Pública do Estado do Paraná, para que este requeresse junto a Comarca de Loanda a interceptação e monitoramento dos terminais telefônicos da COANA, visto a existência de “fortes evidências de estar sendo utilizada pela liderança do MST para práticas delituosas”. Mencionou-se ainda “indícios de desvios por parte da diretoria da COANA de recursos financeiros concedidos através do Programa Nacional de Agricultura Familiar (PRONAF) e do Programa de Crédito Especial para a Reforma Agrária (PROCERA), aos trabalhadores do Assentamento Pontal do Tigre, no município de Querência do Norte.” Mencionou também o assassinato de Eduardo Aghinoni.

O requerimento foi autorizado pela então juíza da Comarca de Loanda que decidiu nos seguintes termos: “Recebido e Analisado. Defiro. Oficie-se. Em 05.05.99”.  Sequer o Ministério Público foi cientificado do procedimento. A flagrante ilegalidade foi tamanha que a intimação não ocorreu sequer posteriormente como determina a Lei 9296/96.

Foi requerido a mesma juíza uma segunda interceptação, sem qualquer motivação, tendo recebido a mesma autorização, no mesmo formato, e novamente sem notificação do parquet ministerial.

O Jornal Nacional da Rede Globo de Televisão, bem como, coletiva de imprensa concedida pelo então Secretário de Segurança, divulgaram amplamente as conversas interceptadas. Os jornalistas chegaram a receber cópias dos diálogos interceptados contendo gravações que sequer haviam sido solicitadas e autorizadas pela Justiça. Como em quase a totalidade dos casos de interceptação telefônica não foi divulgada a íntegra das conversas mas o resumo de trechos que interessavam apenas a investigação da polícia.

Finalmente, em setembro de 2000, os autos foram enviados ao Ministério Público, que taxativamente aduziu que a interceptação telefônica não buscava solucionar práticas criminosas mas sim monitorar o MST, “ou seja, possuía cunho estritamente político, em total desrespeito ao direito constitucional a intimidade, a vida privada e a livre associação” e requereu a nulidade das interceptações telefônicas e a destruição do material colhido, nos seguintes termos: “i) um policial militar, sem vínculos com a Comarca de Loanda e que não presidia nenhuma investigação criminal nessa área, não tinha legitimidade para solicitar a interceptação telefônica; ii) o pedido foi elaborado de modo isolado, sem fundamento em uma ação penal, investigação policial ou ação civil; iii) a interceptação da linha telefônica da ADECON foi requerida pelo sargento (...) sem nenhuma explicação; iv) o Pedido de Censura não foi anexado a um processo penal ou investigação policial; v) as decisões que autorizaram os pedidos não foram fundamentadas; e vi) o Ministério Público não foi notificado acerca do procedimento.”

A juíza rejeitou o pedido de nulidade mas determinou a queima das fitas, o que acabou ocorrendo somente 2 (dois) anos depois, em 2002.

De outro lado, em 1999, o MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra e a CPT – Comissão Pastoral da Terra apresentaram ao Ministério Público representação criminal contra o ex-secretário de segurança e membros da Casa Militar, além da juíza que atuou no caso, face ao suposto cometimento de crimes, entre eles, a usurpação da função pública[xvii], interceptação telefônica ilegal[xviii], divulgação de segredo de justiça e abuso de autoridade[xix].

No julgamento da notitia criminis o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná arquivou a investigação quanto a interceptação telefônica e determinou que a conduta do ex secretário de segurança, de divulgar o conteúdo interceptado, fosse analisada pelo juízo de 1º. grau. Em 2001, concluída a investigação, o parquet apresentou denúncia contra o ex secretário de segurança, que restou condenado. Entretanto, em 2004, o Tribunal de Justiça, em sede de apelação, absolveu-o sustentando que “o apelante não quebrou o sigilo dos dados obtidos pela interceptação telefônica, uma vez que não se pode quebrar [...] o sigilo de dados que já haviam sido divulgados no dia anterior em rede de televisão”.

No mesmo ano de 1999 (outubro) as vítimas da interceptação telefônica ilegal, bem como as associações representantes, COANA e ADECON, manejaram mandado de segurança contra a então juíza de Loanda requerendo a suspensão das interceptações telefônicas e a destruição das fitas gravadas. O mandamus foi rejeitado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, sem julgamento do mérito, sob argumento de perda de objeto, pois as interceptações já teriam cessado. Quanto a destruição das fitas o Tribunal de Justiça restou silente, e em sede de embargos de declaração considerou não poder analisar tal ponto, visto que o mandamental havia sido extinto sem julgamento do mérito.

Também em 1999, os mesmos representantes apresentaram denúncia administrativa contra a juíza do caso. A corregedoria entendeu que a matéria já havia sido exaustivamente analisada na investigação criminal em que a juíza havia sido absolvida e arquivou a denúncia. Ressalte-se que, em 2007, atendendo recomendação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República enviou o caso para o  CNJ - Conselho Nacional de Justiça e este recusou o caso entendendo que não havia “interesse procedimental”.

Em 2011 o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná julgou ações cíveis requerendo indenização por danos morais contra o Estado do Paraná, apresentadas por Arlei José Escher e Dalton Luciano de Vargas, em 2004 e 2007, respectivamente:

“APELAÇÃO CÍVEL ­ RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR ATO TÍPICO DE JURISDIÇÃO ­ DECISÃO JUDICIAL QUE, DESPROVIDA DE FUNDAMENTAÇÃO E SEM ATENDER AOS REQUISITOS COGENTES PREVISTOS NA LEI Nº 9296/1996, PERMITE A VIOLAÇÃO DE SIGILO DAS LIGAÇÕES TELEFÔNICAS ATINGINDO, ASSIM, A ESFERA DE PRIVACIDADE DO APELANTE (ART. 5º, X DA CF/88)­ PEDIDO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS DAÍ DECORRENTES JULGADO IMPROCEDENTE SOB O ARGUMENTO DE QUE O ESTADO NÃO RESPONDE CIVILMENTE POR ATOS TÍPICOS DA JURISDIÇÃO, COM EXCEÇÃO DAQUELES PREVISTOS NO ART. 5º, LXXV DA CF ­ ANTINOMIA APARENTE ENTRE OS ARTS. 5º, X, 5º, LXXV E 37, § 6º, TODOS DA CF/88 ­ RESOLUÇÃO, COM FOCO NO DIREITO INTERNO, QUE SE DÁ PELO PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE ­ SENTENÇA, CONTUDO, QUE DEIXA DE CONSIDERAR A EXISTÊNCIA DE CONVENCÃO INTERNACIONAL SOBRE DIREITOS HUMANOS (PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA), DA QUAL A REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL É SIGNATÁRIA ­ NECESSIDADE DE INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA E DIALÓGICA ENTRE AS DISPOSIÇÕES CONVENCIONAIS QUE VERSEM SOBRE DIREITOS HUMANOS E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL ­ PREVALÊNCIA DO TEXTO NORMATIVO QUE AMPLIA E EFETIVAMENTE GARANTE A PROIBIÇÃO À INGERÊNCIA ARBITRÁRIA NA INTIMIDADE E PRIVACIDADE DAS PESSOAS ­ ATO JUDICIAL, DESPROVIDO DE MÍNIMA FUNDAMENTAÇÃO E QUE, POR ISSO, DÁ AZO À VIOLAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS DO CIDADÃO QUE SÃO PROTEGIDOS NÃO SÓ PELO TEXTO CONSTITUCIONAL, MAS TAMBÉM PELO PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA ­ VIOLAÇÃO QUE, INEGAVELMENTE, GERA DANO MORAL ­ OBRIGAÇÃO DO ESTADO EM REPARAR O DANO, ANTE A SUA RESPONSABILIDADE OBJETIVA POR ATO DE SEUS AGENTES ­ NEXO CAUSAL BEM DELINEADO ­ DEVER DE REPARAR O DANO MORAL EXPERIMENTADO PELO APELANTE BEM CARACTERIZADO ­ APELAÇÃO PROVIDA PARA JULGAR PROCEDENTE O PEDIDO INICIAL, COM INVERSÃO DOS ÔNUS DA SUCUMBÊNCIA. (TJPR - 3ª C. Cível - AC - 772898-3 - Curitiba - Rel.: Desembargador Fernando Antonio Prazeres - Unânime - J. 23.08.2011)” (TJ-PR - APL: 7728983 PR 772898-3 (Acórdão), Relator: Desembargador Fernando Antonio Prazeres, Data de Julgamento: 23/08/2011, 3ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ: 706 31/08/2011)

  1. Da aplicação da legislação ao caso concreto

            Apesar das conversas telefônicas não estarem expressamente previstas no art. 11 da Convenção Americana, entendeu a Corte na análise do Caso Escher que “trata-se de uma forma de comunicação incluída no âmbito de proteção da vida privada. O artigo 11 protege as conversas realizadas através das linhas telefônicas instaladas nas residências particulares ou nos escritórios, seja seu conteúdo relacionado a assuntos privados do interlocutor, seja com o negócio ou a atividade profissional que desenvolva. Desse modo, o artigo 11 aplica-se às conversas telefônicas independentemente do conteúdo destas, inclusive, pode compreender tanto as operações técnicas dirigidas a registrar esse conteúdo, mediante sua gravação e escuta, como qualquer outro elemento do processo comunicativo, como, por exemplo, o destino das chamadas que saem ou a origem daquelas que ingressam; a identidade dos interlocutores; a frequência, hora e duração das chamadas; ou aspectos que podem ser constatados sem necessidade de registrar o conteúdo da chamada através da gravação das conversas. Finalmente, a proteção à vida privada se concretiza com o direito a que sujeitos distintos dos interlocutores não conheçam ilicitamente o conteúdo das conversas telefônicas ou de outros aspectos, como os já elencados, próprios do processo de comunicação”. Já antevendo novas formas de comunicação mencionou a decisão que “Esse progresso, especialmente quando se trata de interceptações e gravações telefônicas, não significa que as pessoas devam estar em uma situação de vulnerabilidade frente ao Estado ou aos particulares. Portanto, o Estado deve assumir um compromisso com o fim adequar aos tempos atuais as fórmulas tradicionais de proteção do direito à vida privada.”

Conclui-se, portanto,que a Convenção Americana protege o caráter inviolável das comunicações frente a qualquer abusividade, seja ela Estatal ou particular.

Por seu turno o Estado Brasileiro reconheceu a garantia constitucional a vida privada e apontou o seu caráter não absoluto, especialmente frente ao artigo 30[xx] da Convenção e ao artigo 5º, X[xxi] da Constituição Federal. Asseverou que qualquer vício ocorrido no procedimento de interceptação telefônica não resultou em violação de direitos humanos e que eventuais falhas seriam causa de nulidade de eventual ação penal e jamais prejuízo à honra ou à dignidade das pessoas envolvidas. Sustentou que as fitas contendo o material interceptado não foram utilizadas como prova contra as vítimas em ação penal e que estas foram incineradas “de ofício” em 2002. Asseverou ainda, que o art. 6º[xxii] da Lei 9296/96 não exige notificação prévia do representante do Ministério Público.

A Comissão Interamericana, em sua análise do caso, apontou que “a interceptação e o monitoramento das comunicações telefônicas ou de outro tipo, ainda que formulada com a intenção de combater o crime, pode converter-se em um instrumento de espionagem e perseguição por sua irregular interpretação e aplicação.” Apontou em seu relatório que o monitoramento, solicitado por policial militar, portanto, pessoa não autorizada constitucionalmente[xxiii], foi requerida para uma linha telefônica pertencente a organização COANA, não havendo que se falar sequer em requerimento para interceptar o terminal telefônico da organização ADECON, e a sua violação sem autorização violou frontalmente a Lei 9296/96, em seu artigo 10.

A Comissão ao decidir que interceptação telefônica foi realmente abusiva, apontou que a decisão que a autorizou foi “ilegal, ilegítima e nula”, por não ter observado que: “i) as supostas vítimas não estavam submetidas a uma investigação criminal; ii) a interceptação das linhas telefônicas durou 49 dias e o Estado não juntou provas tendentes a demonstrar que, concluído o período inicial de 15 dias, se  outorgaram ampliações; iii) a decisão que autorizou a interceptação ‘não foi devidamente fundamentada, não indicou a forma em que devia ter realizado a  diligência, nem o prazo pelo qual devia ela se estender’; e iv) o Ministério Público não foi notificado de sua emissão, tudo isso em oposição aos artigos 5º e 6º da Lei No. 9.296/96.”

Importante mencionar quanto ao requerimento de destruição das fitas contendo as gravações, num total de 123, a Comissão Interamericana considerou que a negativa do Poder Judiciário “de destruir as 123 fitas magnetofônicas obtidas mediante o monitoramento dos números telefônicos da COANA e da ADECON violou o direito à intimidade de seus proprietários, Arlei José Escher, Dalton Luciano de Vargas, Delfino José Becker, Pedro Alves Cabral e Celso Aghinoni”.

A violação da Constituição Federal, e também da Lei 9296/96, ficou patente aos olhos da Comissão pelo fato da então juíza da Comarca de Loanda não ter observado os requisitos legais para conceder a medida, vale dizer, indícios de crimes e sua autoria, tampouco indispensabilidade da prova para instrução penal. Também por não ter o agente da Polícia Militar competência para tal requerimento visto que os supostos crimes eram comuns e portanto de competência da polícia civil, e finalmente, que o Ministério Público não foi intimado quanto ao requerimento de interceptação.

O vigente Estado policial vem sendo antevisto por muitos, entre eles RENATO MARCÃO (2004):

É inegável, entretanto, que a soma das atividades desenvolvidas pela criminalidade organizada, e também pela desorganizada, atemoriza a todos e reclama especial atenção. Entretanto, essa mesma atenção, não menos especial, também é preciso que se tenha em relação às atividades do Estado, desenvolvidas no enfrentamento do problema criminal, notadamente no campo das práticas investigativas, onde não raras vezes nos defrontamos com ilícitos os mais variados; com violações flagrantes que se perpetuam impunes ao longo do tempo.

 

  1. Da análise de legitimidade da interceptação telefônica realizada no presente caso concreto

Nas palavras da Corte, para que tal interceptação fosse legítima deveria cumprir os seguintes requisitos: “a) estar prevista em lei, b) perseguir um fim legítimo e c) ser idônea, necessária e proporcional. Em consequência, a falta de algum desses requisitos implica que a ingerência seja contrária à Convenção.”

Como dito, existe previsão legal para a interceptação telefônica, sendo a Lei 9296/96 regulamentadora da matéria.

Ocorre que a decisão da Corte apontou que o fim não era legítimo e a motivação estava desvinculada de qualquer procedimento de investigação, o que afrontou o artigo 1º[xxiv] da Lei 9.296/96. Apesar dos requerentes de uma e de outra interceptação telefônica terem mencionado supostos desvios de verbas e até mesmo o homicídio de Eduardo Aghinoni, não havia investigação de nenhum destes fatos, sendo que o pedido tramitou de forma isolada, em discordância com o disposto no art. 8º [xxv]da Lei 9296/96.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos apontou ainda que os requerimentos de interceptação telefônica contrariaram os artigos 2º[xxvi] e 4º[xxvii] da Lei 9.296/96, pois não se mencionou no pedido, tampouco na decisão que a autorizou, quais eram os fortes indícios de autoria presentes ao caso, tampouco quais seriam os meios para realizar a interceptação e qual o seu objeto. Sequer se mencionou a existência de outras provas que pudessem ser realizadas para alcançar o mesmo resultado.

Ainda asseverou que os pedidos, formulados por policiais militares, só poderiam, neste caso, ter sido formulados por policiais civis, por força do art. 144 da Constituição Federal, afinal, tratavam-se de supostos crimes de competência da polícia civil. Foram, inclusive, ouvidos dois peritos que assim se manifestaram: “tomando-se em conta a existência de uma investigação em curso, facilmente se poderá saber a quem caberá esse pedido. Se essa investigação estiver a cargo da polícia civil, normalmente a autoridade policial é o delegado de polícia ou o Secretário da Segurança Pública” (foi perita a atualmente Ministra do Superior Tribunal de Justiça, Maria Thereza Rocha de Assis Moura). Também o perito Luiz Flávio Gomes assinalou que “essa autoridade policial pode ser militar, na hipótese de investigação militar”. Diante disso, a Corte considerou que não foi observado o artigo 3º[xxviii] da Lei 9296/96.

Restou também violado o art. 5º[xxix] da referida Lei 9296/96, pois a decisão que autorizou a interceptação não foi fundamentada, tampouco foi fixado prazo para tal diligência. A Corte ressalta sistematicamente em sua jurisprudência que decisões que afetem direitos humanos devem ser sempre fundamentadas, sob pena de restarem caracterizadas como arbitrárias. No caso concreto, a Corte constatou que “A magistrada não expôs em sua decisão a análise dos requisitos legais nem os elementos que a motivaram a conceder a medida, nem a forma e o prazo em que se realizaria a diligência, a qual implicaria a restrição de um direito fundamental das supostas vítimas em descumprimento ao artigo 5º da Lei No. 9.296/96.”

Anote-se que a primeira interceptação durou 13 (treze) dias e a segunda 22 (vinte e dois dias), o que frontalmente violou o prazo de 15 (quinze) dias renováveis por mais 15 (quinze), em conformidade com o já mencionado art. 5º da Lei 9296/96. O segundo período de interceptação ocorreu sem autorização do juízo competente violando o art. 10 da referida Lei, e constituindo, por si só, fato criminoso.

A decisão da então juíza de Loanda afrontou também o artigo 6º da Lei 9296/96 visto que a concessão da medida não foi comunicada ao Ministério Público e este não pode acompanhar a diligência. Inclusive o parágrafo 1º do referido artigo restou violado pois as transcrições do material interceptado não foram encartadas aos autos.

Houve ainda quebra de sigilo dos dados obtidos através da interceptação telefônica. Não tendo estes dados caráter público, ao “vazar” para imprensa tais informações os agente públicos descumpriram seu dever legal, e violaram a honra, a vida privada e a dignidade das vítimas, tudo conforme os artigos 11, 30 e 32.2[xxx] da Convenção Americana. A Corte considerou que a divulgação de seu conteúdo ocorreu de modo “descontextualizado”, bem como “as atividades dos membros da COANA e da ADECON” foram “desqualificadas”. Não tendo sido preservado o sigilo das gravações obtidas através da interceptação telefônica restou violado o art. 8º da Lei 9296/96, sendo que o art. 10º da mesma lei tipifica tal conduta como crime.

A Corte ao concluir que houve violação da Lei 9296/96, em seus artigos 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 8º, 10º apontou que “o Estado violou o direito à vida privada, reconhecido no artigo 11 da Convenção Americana, em relação com a obrigação consagrada no artigo 1.1 do mesmo tratado em prejuízo de Arlei José Escher, Dalton Luciano de Vargas, Delfino José Becker, Pedro Alves Cabral e Celso Aghinoni.”

Restou evidenciado, portanto, a abusiva intromissão na vida privada, honra e reputação das vítimas.

 

  1. Da violação das garantias judiciais quanto a proteção judicial

Asseverou a Comissão Americana que “a inexistência de um recurso efetivo contra as violações dos direitos reconhecidos pela Convenção constitui uma transgressão desse mesmo instrumento pelo Estado Parte, deixando as pessoas indefesas. Manifestou que não basta que os recursos existam formalmente, mas também é preciso que seja efetiva sua aplicação pela autoridade competente.”

Neste sentido importante destacar os artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana:

            Artigo 8.1: “Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.”

Artigo 25.1: “Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.”

A violação das garantias judiciais, bem como da proteção judicial, teriam ocorrido, segundo a Comissão Interamericana, diante das inúmeras irregularidades já apontadas no presente trabalho, como autorização de interceptação telefônica em contrariedade ao previsto na Lei 9296/96; a contrariedade ao artigo 5º, XII da Constituição Federal; a ausência de fundamentação da decisão judicial que autorizou a interceptação em afronta ao artigo 93, IX da Constituição Federal; a divulgação dos diálogos interceptados pelas autoridades públicas; a ausência de intimação do Ministério Público, entre outras.

Entretanto, a Corte entendeu que neste caso não houve ofensa aos artigos supramencionados.

 

  1. Da efetiva condenação do Estado Brasileiro a reparação dos danos imateriais e outras formas de reparação

Vigora no Direito Internacional princípio basilar segundo o qual toda violação a obrigação contraída através de Tratado deve ser reparada, sendo que no presente caso concreto tal fundamento vem regulado no art. 63.1[xxxi] da Convenção Americana.

Analisando os argumentos das associações representantes, aceitas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, e os argumentos do Estado Brasileiro a Corte estabeleceu medidas de reparação as violações de direitos humanos que entendeu cometidas.

Apesar de requerida indenização por dano material, fixada com base na retirada média de um pequeno agricultor, a Corte Interamericana entendeu que a mesmo não seria aplicável ao caso devido “à falta de elementos que comprovem que as essas perdas realmente ocorreram e, eventualmente, quais teriam sido.”

Já quanto ao dano imaterial, que na jurisprudência da Corte “pode compreender tanto os sofrimentos e as aflições causadas à vítima direta e aos que lhe são próximos, como o menosprezo de valores muito significativos para as pessoas, e outras perturbações que não são suscetíveis de medição pecuniária”, a Corte Interamericana entendeu que a reparação ao mesmo era devida.

Nas palavras da Comissão Interamericana as vítimas “passaram por sofrimento psicológico, angústia, incerteza e mudanças pessoais, em virtude da intromissão indevida em sua vida privada e em sua correspondência, da divulgação arbitrária de suas conversas e comunicações, da denegação de justiça pelos fatos de que foram vítimas, apesar de se encontrarem os autores plenamente identificados, e das consequências, pessoais e profissionais, desses fatos”. Os representantes argumentaram ainda que a interceptação telefônica visava “criminalizar o movimento social [...], na tentativa de imputar aos seus membros [a autoria] de atos ilegais” e requereram que o valor fosse fixado em U$ 50.000,0 (cinqüenta mil dólares) para cada vítima.

É preciso ressaltar que a jurisprudência da Corte entende que a simples existência de sentença declaratória de violação de direitos humanos constitui forma de reparação.  Neste caso, entretanto, além da sentença, a Corte estabeleceu a quantia de U$ 20.000,00 (vinte mil dólares) para cada vítima, por entender que efetivamente houve violação aos direitos humanos, consubstanciada na vida privada, honra e dignidade das vítimas, tudo por conta dos fatos relatados e especificamente pela interceptação telefônica e sua divulgação, além de violação aos direitos de associação.

A Corte fixou o prazo de 12 meses para que o pagamento fosse efetuado, prazo este contado da notificação da sentença proferida.

Também foi acatada a solicitação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e foi ordenado que o Estado Brasileiro, num prazo de 6 (seis) meses publicasse em Diário Oficial, bem como, em um jornal de grande circulação nacional, e noutro de circulação no Estado do Paraná, a sentença, especificamente os “Capítulos I, VI a XI, sem as notas de rodapé, e a parte resolutiva da presente Sentença, como medida de satisfação.”

Ainda, determinou que em 2 (dois) meses a decisão fosse publicada, in totum, em site oficial da União e do Estado do Paraná.  A determinação para publicação da sentença supriu, segundo decisão da Corte, o requerimento da Comissão Interamericana para que houvesse ato de desagravo com “reconhecimento público de responsabilidade internacional” pelas violações aos direitos humanos. Da mesma forma o requerimento da Comissão para “investigar, julgar e, se for o caso, sancionar os responsáveis pelas violações aos direitos humanos” foi entendido como suprido diante da publicação da sentença e da fixação de pagamento por danos imateriais, salvo quanto a divulgação dos diálogos interceptados que deverão ser investigados pelo Estado Brasileiro.

A Comissão Interamericana requereu também que o Estado Brasileiro adotasse “medidas destinadas à formação dos funcionários da justiça e da polícia, relativamente aos limites de suas funções e investigações em cumprimento ao dever de respeitar o direito à privacidade”. Por sua vez, o Brasil informou que implementou diversos cursos de direitos humanos “com ênfase no direito à privacidade e à liberdade de associação”, citando a Escola da Magistratura do Paraná, Escola de Servidores de Justiça do Estado do Paraná e Cursos de Formação da Polícia Civil e Militar do Estado do Paraná.

O Estado Brasileiro foi condenado a pagar as custas processuais no prazo de um ano, sendo que o cumprimento da sentença será supervisionado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e através do Decreto 7158/2010 “autorizou a secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República a dar cumprimento a sentença exarada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos”.

 

  1. Conclusão

 É preciso, por força constitucional, e também frente as normas de Direito Internacional, bem fixadas na citada Convenção, respeitar as normas regulamentadoras da interceptação telefônica, especialmente esgotando a busca de todas as provas possíveis antes da autorização da quebra do sigilo telefônico.

Ao analisar o requerimento de interceptação telefônica a autoridade judicial deverá fundamentar sua decisão, estabelecendo o prazo para tal medida, e cientificando o ministério público para que acompanhe a medida.

Da análise da legislação brasileira e também frente a Convenção Americana de Direitos Humanos este instrumento de investigação policial, de grave repercussão na vida privada, honra e dignidade de qualquer cidadão, só pode ser utilizado nas restritas hipóteses previstas em lei, sob pena de nulidade do processo, mas também, de condenação do Estado Brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos.


[i] Advogado, Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUC/PR. Vice-presidente do IBDPE.


[ii] Em sentido contrário a possibilidade de decretar-se a interceptação telefônica de ofício posiciona-se Vanessa Curti Perenha Gasques: “A previsão legal da possibilidade do juiz determinar ´ex officio´ a INTERCEPTAÇÃO das comunicações telefônicas, destoa completamente do sistema jurídico processual adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro, que é o acusatório. A iniciativa na busca de provas com a finalidade de demonstrar a autoria do delito imputado ao réu é função que foi atribuída ao órgão ministerial e não ao Juiz.” E conclui: “O modelo acusatório de processo não admite que o magistrado tenha amplos poderes investigatórios. A iniciativa probatória do julgador deve restringir-se à elucidação de questões ou pontos duvidosos sobre o material já trazido pelas partes, nos termos do art. 156 do Código de Processo Penal. O Código de Processo Penal deve ser interpretado à luz da Constituição, pois esta prevê todo um sistema de garantia individual que permite concluir pela adoção do modelo acusatório de processo.” (GASQUES, V.C.P. 2004)

[iii] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 93, inc. IX. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios: (...) todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.

[iv] Nas palavras de Luciano Feldens: “Seja na perspectiva da teoria externa dos direitos fundamentais (o direito encontra barreiras exteriores, que limitam seu exercício), seja na perspectiva de sua teoria interna (o âmbito de proteção do direito é, desde já, estabelecido por limites imanentes, que se incorporam ao seu conteúdo), são cinco os requisitos constitucionais que condicionam a validade da intervenção estatal em casos tais: (a) existência de lei regulamentadora (atendido pela Lei 9.296/96); (b) finalidade de investigação criminal ou instrução processual penal; (c) ordem judicial – em todo o caso, devidamente fundamentada (artigo 93, inciso IX, da CF); (d) observância às hipóteses legais autorizadoras da medida; e, também, (e) obediência à forma estabelecida em lei. (FELDENS, L. 2010. p. 05)

[v] COSTA RICA. Convenção Americana de Direitos Humanos de 22 de novembro de 1969. Art. 11. 1. Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade 2.  Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação. 3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas.

[vi] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 5º, inc. XII. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer; (...).

[vii] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 5º, inc. V. (...) é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem.

[viii] COSTA RICA. Convenção Americana de Direitos Humanos de 22 de novembro de 1969. Art. 32. 1. Toda pessoa tem deveres para com a família, a comunidade e a humanidade. 2. Os direitos de cada pessoa são limitados pelos direitos dos demais, pela segurança de todos e pelas justas exigências do bem comum, em uma sociedade democrática.

[ix] Nas palavras de Valério de Oliveira Mazzuolli: “(...) a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (popularmente conhecida como Pacto de San José da Costa Rica) é o principal instrumento de proteção dos direitos civis e políticos já concluído no Continente Americano, e o que confere suporte axiológico e completude a todas as legislações internas dos seus Estados-partes.” (MAZUOLI, V.O. 2010. p. 18)

[x] COSTA RICA. Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 22 de novembro de 1969. Art. 62. 1.Todo Estado Parte pode, no momento do depósito do seu instrumento de ratificação desta Convenção ou de adesão a ela, ou em qualquer momento posterior, declarar que reconhece como obrigatória, de pleno direito e sem convenção especial, a competência da Corte em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação desta Convenção. 2. A declaração pode ser feita incondicionalmente, ou sob condição de reciprocidade, por prazo determinado ou para casos específicos.  Deverá ser apresentada ao Secretário-Geral da Organização, que encaminhará cópias da mesma aos outros Estados membros da Organização e ao Secretário da Corte.3. A Corte tem competência para conhecer de qualquer caso relativo à interpretação e aplicação das disposições desta Convenção que lhe seja submetido, desde que os Estados Partes no caso tenham reconhecido ou reconheçam a referida competência, seja por declaração especial, como prevêem os incisos anteriores, seja por convenção especial.

[xi] COSTA RICA. Convenção Americana de Direitos Humanos de 22 de novembro de 1969. Art. 8.1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.

[xii] COSTA RICA. Convenção Americana de Direitos Humanos de 22 de novembro de 1969: Art. 11. Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade. 2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação.3.Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas.

[xiii] COSTA RICA. Convenção Americana de Direitos Humanos de 22 de novembro de 1969. Art. 16. 1. Todas as pessoas têm o direito de associar-se livremente com fins ideológicos, religiosos, políticos, econômicos, trabalhistas, sociais, culturais, desportivos ou de qualquer outra natureza. 2. O exercício de tal direito só pode estar sujeito às restrições previstas pela lei que sejam necessárias, numa sociedade democrática, no interesse da segurança nacional, da segurança ou da ordem públicas, ou para proteger a saúde ou a moral públicas ou os direitos e liberdades das demais pessoas. 3. O disposto neste artigo não impede a imposição de restrições legais, e mesmo a privação do exercício do direito de associação, aos membros das forças armadas e da polícia.

[xiv] Costa RICA. Convenção Americana de Direitos Humanos de 22 de novembro de 1969. Art. 25.1.Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais. 2. Os Estados Partes comprometem-se: a. a assegurar que a autoridade competente prevista pelo sistema legal do Estado decida sobre os direitos de toda pessoa que interpuser tal recurso; b. a desenvolver as possibilidades de recurso judicial; e c. a assegurar o cumprimento, pelas autoridades competentes, de toda decisão em que se tenha considerado procedente o recurso.

[xv] COSTA RICA. Convenção Americana de Direitos Humanos de 22 de novembro de 1969. Art. 50.1. Se não se chegar a uma solução, e dentro do prazo que for fixado pelo Estatuto da Comissão, esta redigirá um relatório no qual exporá os fatos e suas conclusões.  Se o relatório não representar, no todo ou em parte, o acordo unânime dos membros da Comissão, qualquer deles poderá agregar ao referido relatório seu voto em separado.  Também se agregarão ao relatório as exposições verbais ou escritas que houverem sido feitas pelos interessados em virtude do inciso 1, e, do artigo 48. 2. O relatório será encaminhado aos Estados interessados, aos quais não será facultado publicá-lo. 3. Ao encaminhar o relatório, a Comissão pode formular as proposições e recomendações que julgar adequadas.

[xvi] COSTA RICA. Convenção Americana de Direitos Humanos de 22 de novembro de 1969. Art. 33. São competentes para conhecer dos assuntos relacionados com o cumprimento dos compromissos assumidos pelos Estados Partes nesta Convenção: a. a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, doravante denominada a Comissão; e b. a Corte Interamericana de Direitos Humanos, doravante denominada a Corte.

[xvii] BRASIL. Código Penal, Decreto-Lei nº 2.848 de 1940. Art. 328. Usurpar o exercício de função pública: Pena - detenção, de três meses a dois anos, e multa.

[xviii] BRASIL. Lei nº 9296 de 1996. Art. 10. Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei. Pena: reclusão, de dois a quatro anos, e multa.

[xix] BRASIL. Lei nº 4898 de 1965.

[xx] COSTA RICA. Convenção Americana de Direitos Humanos de 22 de novembro de 1969. Art. 30. As restrições permitidas, de acordo com esta Convenção, ao gozo e exercício dos direitos e liberdades nela reconhecidos, não podem ser aplicadas senão de acordo com leis que forem promulgadas por motivo de interesse geral e com o propósito para o qual houverem sido estabelecidas.

[xxi] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 5º, inc. X Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

[xxii] BRASIL. Lei nº 9296 de 1996. Art. 6º. Deferido o pedido, a autoridade policial conduzirá os procedimentos de interceptação, dando ciência ao Ministério Público, que poderá acompanhar a sua realização.      § 1° No caso de a diligência possibilitar a gravação da comunicação interceptada, será determinada a sua transcrição. § 2° Cumprida a diligência, a autoridade policial encaminhará o resultado da interceptação ao juiz, acompanhado de auto circunstanciado, que deverá conter o resumo das operações realizadas. § 3° Recebidos esses elementos, o juiz determinará a providência do art. 8°, ciente o Ministério Público.

[xxiii] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:  I - polícia federal;  II - polícia rodoviária federal;  III - polícia ferroviária federal;  IV - polícias civis; V - polícias militares e corpos de bombeiros militares. (...) § 4º - às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares. § 5º - às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil. Destaque-se que os supostos crimes eram de natureza comum, portanto de competência da Polícia Civil, não podendo um policial militar requerer a interceptação, também sob a ótica do art. 3º. da Lei 9296/96, segundo o qual: A interceptação das comunicações telefônicas poderá ser determinada pelo juiz, de ofício ou a requerimento: I - da autoridade policial, na investigação criminal; II - do representante do Ministério Público, na investigação criminal e na instrução processual penal.

[xxiv] BRASIL. Lei nº 9296 de 1996. Art. 1º. A interceptação de comunicações telefônicas, de qualquer natureza, para prova em investigação criminal e em instrução processual penal, observará o disposto nesta Lei e dependerá de ordem do juiz competente da ação principal, sob segredo de justiça. Parágrafo único. O disposto nesta Lei aplica-se à interceptação do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática.

[xxv] BRASIL. Lei nº 9296 de 1996. Art. 8º. A interceptação de comunicação telefônica, de qualquer natureza, ocorrerá em autos apartados, apensados aos autos do inquérito policial ou do processo criminal, preservando-se o sigilo das diligências, gravações e transcrições respectivas. Parágrafo único. A apensação somente poderá ser realizada imediatamente antes do relatório da autoridade, quando se tratar de inquérito policial (Código de Processo Penal, art.10, § 1°) ou na conclusão do processo ao juiz para o despacho decorrente do disposto nos arts. 407, 502 ou 538 do Código de Processo Penal.

[xxvi] BRASIL. Lei nº 9296 de 1996. Art. 2º Não será admitida a interceptação de comunicações telefônicas quando ocorrer qualquer das seguintes hipóteses: I - não houver indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal; II - a prova puder ser feita por outros meios disponíveis; III - o fato investigado constituir infração penal punida, no máximo, com pena de detenção. Parágrafo único. Em qualquer hipótese deve ser descrita com clareza a situação objeto da investigação, inclusive com a indicação e qualificação dos investigados, salvo impossibilidade manifesta, devidamente justificada.

[xxvii] BRASIL. Lei nº 9296 de 1996. Art. 4º O pedido de interceptação de comunicação telefônica conterá a demonstração de que a sua realização é necessária à apuração de infração penal, com indicação dos meios a serem empregados. § 1° Excepcionalmente, o juiz poderá admitir que o pedido seja formulado verbalmente, desde que estejam presentes os pressupostos que autorizem a interceptação, caso em que a concessão será condicionada à sua redução a termo. § 2° O juiz, no prazo máximo de vinte e quatro horas, decidirá sobre o pedido.

[xxviii] BRASIL. Lei nº 9296 de 1996. Art. 3º. A interceptação das comunicações telefônicas poderá ser determinada pelo juiz, de ofício ou a requerimento: I - da autoridade policial, na investigação criminal; II - do representante do Ministério Público, na investigação criminal e na instrução processual penal.

[xxix] BRASIL. Lei nº 9296 de 1996. Art. 5º A decisão será fundamentada, sob pena de nulidade, indicando também a forma de execução da diligência, que não poderá exceder o prazo de quinze dias, renovável por igual tempo uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova.

[xxx] COSTA RICA. Convenção Americana de Direitos Humanos de 22 de novembro de 1969. Art. 32.2. Os direitos de cada pessoa são limitados pelos direitos dos demais, pela segurança de todos e pelas justas exigências do bem comum, numa sociedade democrática.

[xxxi] COSTA RICA. Convenção Americana de Direitos Humanos de 22 de novembro de 1969. Art. 63 – 1. Quando decidir que houve violação de um direito ou liberdade protegidos nesta Convenção, a Corte determinará que se assegure ao prejudicado o gozo do seu direito ou liberdade violados. Determinará também, se isso for procedente, que sejam reparadas as conseqüências da medida ou situação que haja configurado a violação desses direitos, bem como o pagamento de indenização justa à parte lesada.


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A conexão probatória nos maxiprocessos: riscos de manipulação e limites interpretativos

Por Lívia Yuen Ngan Moscatelli[i] e Roberto Portugal de Biazi[ii]

 

Uma das notas características da criminalidade econômica é o seu grau de sofisticação, geralmente marcada pela multiplicidade de autores e de ações delitivas, as quais se desenvolvem em diversas localidades, seja em território nacional ou até mesmo fora dele (transnacionalidade/multinacionalidade). Por isso, o objeto de análise do Direito Penal Econômico é, no mais das vezes, complexo, arrojado, além de tratar da tutela de bens jurídicos difusos, pluriofensivos e/ou de perigo, demandando a reanálise conjunta dos institutos do Direito Penal e Processual Penal clássicos.

Esses fatores compõem alguns dos motivos pelos quais tem se tornado cada vez mais comum nos depararmos com os assim denominados maxiprocessos[iii], geralmente oriundos de operações policiais que, quando deflagradas, empreendem medidas em vários estados da federação.

Das inúmeras repercussões que esse (ainda) novo contexto gera, em especial pela confusão processual entre diversas ações penais e investigações, certamente merece atenção a questão do juiz natural e, portanto, da fixação da competência. Vale dizer, é preciso analisar como operam as regras processuais que determinarão a qual (ou quais) órgão jurisdicional competirá processar e julgar aludidos maxiprocessos, ainda que venham a ser cindidos, sem se olvidar das garantias asseguradas constitucional e convencionalmente.

Neste contexto, exsurge a importância da adequada aplicação das regras de prorrogação de competência, notadamente da conexão instrumental ou probatória (art. 76, III, CPP), por se tratar de hipótese com ampla margem interpretativa. É essa a proposta do presente artigo. Porém, para tanto, é preciso estabelecer, de partida, uma premissa necessária: o conteúdo da garantia do juiz natural e suas reverberações nas regras processuais.

A Constituição Federal estabelece, em seu artigo 5º, incisos LIII e XXXVII, que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente” e que “não haverá juízo ou tribunal de exceção”. Com isso, ela previu a garantia do juiz natural em um duplo aspecto: um positivo, que assegura o direito ao juiz competente (inciso LIII); e outro negativo, que veda a criação de tribunais de exceção (inciso XXXVII)[iv].

Ademais, o Brasil é signatário de tratados internacionais de direitos humanos, integrantes do ordenamento jurídico pátrio, que asseguram expressamente a garantia do juiz natural. Neste sentido, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP), em seu artigo 14.1, dispõe que “Toda pessoa terá o direito de ser ouvida publicamente e com devidas garantias por um tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido por lei (...)”, enquanto o artigo 8.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) prevê que “Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei (...)”[v].

Ressalte-se que, na estrutura ideal do Estado Democrático de Direito, dificilmente as autoridades se valeriam de medidas ostensivas de manipulação da competência para atender determinados interesses, de tal sorte que uma forma sutil de violação do juiz natural seria justamente a designação do juiz competente ex post factum (ou seja, a partir do fato passado), alterando determinados critérios de fixação ou prorrogação da competência, com efeitos imediatos em investigações e processos em andamento e em prejuízo do acusado, ou fazendo com que um caso penal seja atribuído a um determinado juiz. Por tais razões, afirma Gustavo Badaró que “as normas que definem o juiz competente devem estabelecer critérios gerais, abstratos e objetivos de determinação de competência, não se admitindo qualquer possibilidade de alteração de tais critérios por atos discricionários de quem quer que seja”[vi].

Não restam dúvidas, portanto, que as regras de conexão, por incidirem na determinação da competência, devem ser interpretadas à luz da garantia do juiz natural. Para cada fato em concreto, há, supostamente, um único juiz ou tribunal competente. Na prática, este respeito nem sempre ocorre, não sendo incomum manipulações discricionárias motivadas pela distorcida hermenêutica das normas, muitas vezes a partir do instituto da conexão processual.

Em linhas gerais, a conexão pode ser definida como o nexo, liame ou junção entre duas ou mais condutas criminais, originárias de uma relação material anterior à existência do processo[vii]. Ocorrendo uma dependência recíproca, entre pessoas, coisas e os fatos entre si, deverá ser promovido julgamento conjunto.

Quanto às hipóteses de conexão intersubjetiva e objetiva (art. 76, incisos I e II do CPP), não há grande dificuldade o seu reconhecimento e aplicação. A situação se agrava com a modalidade probatória ou instrumental, definida como o liame mais sensível, tênue e impreciso de conexão de causas[viii] e que ocorre quando “a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra inflação” (art. 76, inciso III do CPP).

Antes de apontarmos os problemas decorrentes de sua incorreta aplicação, é fundamental compreender as causas e finalidades pelos quais ela foi concebida. Em primeiro lugar, a união de feitos evitaria a repetição inútil de atos processuais, como o aproveitamento da oitiva de uma mesma testemunha relevante que presenciou todos os crimes. É um ganho em celeridade e economia processual[ix].

Ela igualmente serve para evitar o risco da existência de decisões judiciais divergentes e contraditórias sobre fatos relacionados[x]. Imaginemos um processo já com condenação por lavagem de dinheiro, sendo que o processo do crime antecedente, que tramitou de forma separada, veio posteriormente a reconhecer a absoluta inexistência de fato delituoso, imperando a absolvição. Se as ações penais tramitassem em conjunto, certamente o resultado seria diferente, já que a “proveniência do produto ou proveito da infração penal antecedente é verdadeiro elemento normativo do tipo de lavagem”[xi].

Em um aspecto mais importante, a conexão probatória tem ganhos expressivos quando analisada em uma perspectiva epistemológica e heurística[xii], já que a verdade é um dos objetivos institucionais do processo[xiii] e um critério importante para a decisão[xiv]. Em determinados casos, somente com a união dos feitos é que se poderá ter um correto acertamento dos fatos e um melhor esclarecimento de ambos crimes, já que procedimentos separados possibilitarão apenas visões fracionárias e parciais[xv]. O julgador terá uma visão mais global da imputação, dos atores envolvidos, do contexto em que ambos crimes foram cometidos, das causas e finalidades do delito, situação em que poderá proferir uma decisão mais qualificada. Para além, o instituto pode aprimorar a paridade de armas entre a defesa e a acusação, já que o defensor passa a compreender a amplitude da imputação, e dependendo do caso, pode ser a única forma de se viabilizar a apreciação de determinada tese jurídica.

Entendendo sua importância, cumpre esclarecer que a redação do art. 76, inciso III do CPP não expressa qual é o grau de influência necessário para o reconhecimento da prorrogação de competência, o que resulta na união de processos a depender da casuística e dos critérios de oportunidade.

Dentro do espectro dos maxiprocessos, foi exatamente este fenômeno que ocorreu na Operação Lava-Jato. A 13aVara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba se declarava competente para julgar processos que não influíam no acervo probatório de outras ações penais, não tinham relação com o contexto da Petrobrás, como sequer haviam sido cometidos na área territorial que abrange a referida subseção judiciária, sob o argumento da incidência das regras de prevenção ou conexão probatória. Para Aury Lopes e Alexandre Morais da Rosa, criou-se até mesmo uma competência "conglobante" ou "esponja" em absorver o que não lhe era devido, em manifesta manipulação do juiz natural[xvi].

Fato igualmente grave foi denunciado por Gustavo Badaró ao afirmar que “A Operação Lava-Jato quer só a prorrogação da competência, mas não a unidade processual”[xvii]. O Juízo Federal, logo após reconhecer a existência da conexão probatória, imediata e discricionariamente determinava a separação dos processos, nos termos do art. 80 do CPP. Cabe lembrar que o referido artigo não autoriza que o juiz deixe de reunir os processos desde o início, mas somente possibilita a separação dos feitos que estavam anteriormente reunidos[xviii]. Em outras palavras, a crítica se perfaz no sentido que os processos nasciam separados, nunca eram reunidos e mesmo assim eram mantidos sob julgamento da 13aVara Federal, sendo que os efeitos benéficos da conexão sequer eram aproveitados.

Diante dessa desnaturação da aplicação das regras de conexão probatória, imprescindível uma correta delimitação da conceituação de qual será o grau necessário para o seu correto reconhecimento.

Para a corrente minoritária, “o interesse probatório vai além de qualquer relação de prejudicialidade penal”, de modo que o que importa é a relação probatória em que a mesma prova possa servir para o esclarecimento de ambos delitos[xix], bastando a mera demonstração desse interesse probatório para o reconhecimento da conexão instrumental.

Por outro lado, grande parte da doutrina defende que é necessária a exposição da efetiva influência e repercussão no conhecimento da prova para justificar a união dos processos[xx], com a demonstração da prejudicialidade homogênea entre os delitos[xxi].

Ao que parece, o STF tem adotado esse último entendimento, afinal, já afirmou que “o simples encontro fortuito de prova de infração que não possui relação com o objeto da investigação em andamento não enseja o simultaneus processus[xxii]. Posteriomente, na decisão paradigmática que admitiu o fatiamento da Operação Lava-Jato em sede do Inq 4130, a Suprema Corte definiu que “não há relação de dependência entre a apuração desses fatos e a investigação de fraudes e desvios de recursos no âmbito da Petrobras, a afastar a existência de conexão (art. 76, CPP) e de continência (art. 77, CPP) que pudessem ensejar o simultaneus processus[xxiii]. O Supremo Tribunal Federal já reiterou diversas vezes referido entendimento, consignando que “a identidade entre autores de crimes em tese praticados no âmbito de pessoas jurídicas diversas, por si só, não enseja a existência de conexão instrumental, quando não constatada que a prova relacionada a infrações penais supostamente ocorridas em uma pessoa jurídica possa influir decisivamente na prova de crimes cometidos em outra”[xxiv] (destacamos).

Portanto, ainda que seja de fundamental importância a previsão da hipótese da conexão probatória, em especial pelo seu potencial epistêmico, defendemos uma interpretação restritiva, que preze pelo incondicional respeito à garantia do juiz natural. A relação entre as causas deve ser evidente (ou decisiva, nas palavras do ex-Ministro Teori Zavascki), com uma concreta relação probatória entre as circunstâncias dos delitos, sob pena de atender determinados interesses políticos e criar maxiprocessos exagerados com uma grande quantidade de fases, apenas para justificar a manutenção de determinado julgador que sempre se afirme prevento, fazendo as vezes de um “juízo universal”.

Regra é garantia dentro do processo penal, ainda mais em tema de conexão, cujas hipóteses legais atinam com a garantia constitucional e convencional do juiz natural. Por isso, não há espaço para manipulações discricionárias dos critérios de fixação e de prorrogação da competência, sob pena de abrir-se margem a indevidos oportunismos. Enfim, a observância do devido processo legal (e de seus consectários) é imprescindível à própria preservação do Estado Democrático de Direito.


[i] Mestranda em Direito na Universidade de São Paulo, no Departamento de Direito Processual, subárea de Processo Penal e em raciocínio probatório pela Universitat de Girona (UDG) na Espanha. Pós-graduada em Direito Penal pela Universidade de Coimbra (IDPEE/IBCCRIM). Graduada em Direito na Universidade de São Paulo (USP). Advogada criminalista.

[ii] Mestrando em Direito na Universidade de São Paulo, no Departamento de Direito Processual, subárea de Processo Penal. Pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas (GVLaw). Pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra (IDPEE/IBCCRIM). Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado criminalista.


[iii] Os maxiprocessos possuem: (1) cobertura midiática massiva; (2) o gigantismo processual; (3) a confusão processual; (4) a mutação substancial domodelo clássico de legalidade penal; (5) o incremento da utilização dos meios investigação ou obtenção de prova. SANTORO, Antonio EduardoRamires. A imbricação entre maxiprocessos e colaboração premiada: o deslocamento do centro informativo para a fase investigatória na OperaçãoLava Jato. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v. 6, n. 1, p. 81-116, jan-abr. 2020. p. 88.

[iv] BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 124.

[v] Apesar da redação bastante similar ao PIDCP, a CADH se revela muito mais protetiva, na medida em que fez inserir o termo anteriormente. Como bem pontuou Sylvia Steiner, o Pacto de São José da Costa Rica exige “seja o juízo competente estabelecido com anterioridade, o que implica em afastar-se a possibilidade de alteração de competência em face da criação de novos tribunais ou juízos, posteriores à prática do delito” In: A convenção americana sobre direitos humanos e sua integração ao processo penal brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 113.

[vi] BADARÓ, Gustavo Henrique. A conexão no processo penal, segundo o princípio do juiz natural, e sua aplicação nos processos da operação Lava Jato. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 24, n. 122, p. 171-204, ago. 2016. Neste sentido: STF, RHC 107.453, Rel. Min. Gilmar Mendes, 2ª T, julgado em 13.09.2011.

[vii] XAVIER DE ALBUQUERQUE, Francisco Manoel. Aspectos da Conexão. Tese (Titular), Manaus, Faculdade de Direito do Amazonas, 1956, p. 29.

[viii] MARQUES, Frederico. Elementos do Processo Penal. vol. I. Campinas: Bookseller, 1997, p. 259.

[ix] ASSIS, Maria Thereza Rocha de. Da competência. In: GOMES FILHO, Antonio Magalhaes; TORON, Alberto Zacharias; BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy (Orgs). Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018. p. 251-308, p. 269.

[x] Ibidem, p. 269.

[xi] MENDONÇA, Andrey Borges. Do processo e julgamento da Lavagem de Dinheiro. In: Carla Veríssimo de Carli. (Org.). Lavagem de Dinheiro: Prevenção e Controle Penal. 2. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2013, p. 483-610, p. 594.

[xii] BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI; Pierpaolo Cruz. Lavagem de Dinheiro: Aspectos penais e processuais penais. Comentários à Lei 9.613/1998, com alterações da Lei 12.683/2012. 4a ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 302.

[xiii] MATIDA, Janaina; MASCARENHAS, Marcella; HERDY, Rachel. No processo penal, a verdade dos fatos é garantia. CONJUR. Disponível em: https://bit.ly/3br0BVX. Acesso em 04 set. 2020.

[xiv] TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. Trad. de Vitor de Paula Ramos. São Paulo, Marcial Pons, 2012. p. 160.

[xv] BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI; Pierpaolo Cruz. Lavagem de Dinheiro: Aspectos penais e processuais penais, op. cit, p. 302.

[xvi] LOPES, Aury; ROSA, Alexandre Morais da. Supremo pode ter retirado a competência de Sergio Moro. CONJUR. Disponível em: https://bit.ly/32LIh5Y. Acesso em 1 set. 2020.

[xvii] BADARÓ, Gustavo Henrique. Conexão no processo penal, op. cit., p. 186.

[xviii] BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI; Pierpaolo Cruz. Lavagem de Dinheiro, op. cit., p. 322.

[xix] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 13a ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 309.

[xx] ASSIS, Maria Thereza Rocha de. Da competência, op. cit., p. 270.

[xxi] Nesse sentido: BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI; Pierpaolo Cruz. Lavagem de Dinheiro, op. cit., p. 304; PEDROSO, Fernando de Almeida. Competência penal: doutrina e jurisprudência. 2. Ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2007. p. 87-88; ASSIS, Maria Thereza Rocha de. Da competência, op. cit., p. 270.

[xxii] STF, RHC 120.379/RO, Rel. Min. Luiz Fux, 1a Turma, julgado em 26.08.2014.

[xxiii] STF, Questão de Ordem no Inq 4130, Rel. Dias Toffoli, Pleno, julgado em 23.09.2015.

[xxiv] STF, Pet 5862, Relator Min. Teori Zavascki, Segunda Turma, julgado em 15.03.2016. Em sentido semelhante: “O juízo que homologa o acordo de colaboração premiada não é, necessariamente, competente para o processamento de todos os fatos relatados no âmbito das declarações dos colaboradores” (STF, Pet 7074, Rel. Min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 29.06.2017).


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