DA NECESSÁRIA POSSIBILIDADE DA INTIMAÇÃO JUDICIAL DAS TESTEMUNHAS DEFENSIVAS
Por: Nicole Trauczynski[1] eWanessa Assunção Ramos[2]
A partir da Constituição da República de 1988, o processo penal, cujo diploma principal é datado de 1941, deveria ter passado por uma reformulação ou ao menos por uma interpretação sistemática que fizesse efetivas as previsões ali previstas. Contudo, passados mais de trinta anos da promulgação da Constituição da República, a jurisprudência ainda apresenta dificuldades em integrar às persecuções penais as garantias que asseguram ao acusado um Processo Penal Constitucional.
Dentre diversos problemas que a doutrina tem se debruçado a tentar apresentar soluções, encontra-se a negativa de intimação judicial das testemunhas arroladas pela defesa em sede de resposta à acusação, a partir de interpretação equivocada do artigo 396-A do Código de Processo Penal. É nesse sentido que o presente artigo visa explicitar as previsões em tratados internacionais, os princípios constitucionais e demais motivos que evidenciam diferentes violações a partir da referida aplicação legal.
- O CONTRADITÓRIO E A AMPLA DEFESA NOS TRATADOS INTERNACIONAIS E NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA.
O direito de ouvir testemunhas é pautado em tratados internacionais e em previsões constitucionais. É nesse exato sentido que a Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. XI[3]), Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (art. 6, 3, ‘b’ e ‘d’[4]) e a Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 8, 2, ‘c’ e ‘f’[5]) dispõem. Ademais, a Constituição da República, especialmente em seu artigo 5º, caput e incisos LIV e LV[6], por meio dos princípios da igualdade, devido processo legal e contraditório e ampla defesa, também integram as previsões que tratam sobre a matéria.
Da mesma sorte, a doutrina é bastante enfática e clara ao afirmar que a o direito integral de defesa do acusado é parte indissolúvel do Processo Penal Constitucional. BADARÓ[7] leciona acerca da necessidade de um contraditório efetivo e pleno, com a real participação das partes (acusado e órgão acusador), concluindo que “é o que se denominou contraditório efetivo e equilibrado”. De igual forma, leciona MALAN, ensinando:
Nesse sentido, o acusado (na acepção ampla, abrangente do investigado, indiciado etc.) tem legítimo interesse em amealhar, já na fase de investigação preliminar do delito, elementos informativos que lhe sejam favoráveis – seja por ensejarem juízo de inadmissibilidade da acusação seja por influenciarem favoravelmente o convencimento do juiz na sentença[8].
Nesta toada, qualquer interpretação acerca do Código de Processo Penal, especialmente acerca do artigo 396-A do Código de Processo Penal, deve considerar as previsões amealhadas em tratados internacionais e na Constituição da República. Contudo, não é nesse sentido que a jurisprudência do Tribunal Federal Regional da 4ª Região encontra-se decidindo, conforme se pode depreender do recorte metodológico de pesquisa adotado neste estudo.
- A INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 396-A DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL PELO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO
O artigo 396-A do Código de Processo Penal prevê o conteúdo da resposta à acusação e dispõe sobre o depoimento testemunhal que nessa etapa é possível “arrolar testemunhas, qualificando-as e requerendo sua intimação, quando necessário”.
Da leitura básica do artigo, evidencia-se que é necessário arrolar as testemunhas, isto é, indicar a necessidade de ouvi-las sobre aqueles fatos, qualifica-las, ou seja, apresentar os dados que são necessários para expedição do mandado de intimação[9], e requerer a intimação quando for necessário. Também é possível constatar que não é obrigatório apresentar nenhuma justificativa (eis que não há obrigação legal da defesa técnica de justificar a necessidade de uma prova que requereu tempestivamente) para requerer a intimação, basta realizar o pedido de maneira expressa na peça de resposta à acusação. O Código de Processo Penal faculta (não impõe um ônus) à defesa em requerer ou não a intimação das testemunhas arroladas. É nesse sentido que leciona LOPES JR.: “testemunha arrolada por qualquer das partes deverá ser intimada, exceto se expressamente for dispensada a intimação”[10]. Ora, não cabe ao d. juízo, nesta etapa, valorar o referido pedido, devendo apenas operacionaliza-lo.
Importante ainda rememorar que o dispositivo analisado entrou em vigor no ano de 2008, quando ainda estava vigente o Código de Processo Civil de 1973, que previa a intimação judicial das testemunhas, independente de frustração da convocação do advogado da parte. Desta forma, os princípios constitucionais que pautam o Processo Penal Democrático estariam preservados.
Contudo, em que pese toda a argumentação acima dispendida, não são nestes moldes que está ocorrendo a interpretação do dispositivo legal pelo Tribunal Regional Federal da 4º Região, o qual, reiteradamente, tem se manifestado que as testemunhas arroladas pela defesa devem comparecer à audiência independentemente de intimação, observando-se o princípio da celeridade processual, ou que a necessidade de intimação deve ser justificada e analisada a critério do juízo competente[11].
As violações dos tratados internacionais, dispositivos constitucionais e previsão infraconstitucionais são mais latentes quando mesmo após a justificativa da necessidade de intimação o juízo competente não considera crível e indefere a intimação judicial.
É de se considerar que os princípios da ampla defesa e contraditório podem ser violados em caso de não comparecimento das testemunhas (isto porque a defesa não teria outra oportunidade de inquiri-la), tendo em vista que a prova testemunhal advinda de seus depoimentos pode ser imprescindível. Ademais, não há como sobrepor economicidade, celeridade e eficiência da administração da Justiça aos princípios constitucionais que asseguram a defesa do acusado, violando-se o princípio constitucional do devido processo legal. Ainda, os particulares não possuem meios coercitivos eficazes que obrigam as testemunhas a comparecerem perante o juízo. Destaca-se, também, o princípio da paridade de armas, que deve ser preconizado, considerando que o órgão acusador pode se utilizar a intimação judicial das testemunhas.
Por fim, destaca-se que não é possível a utilização de dispositivos do Código de Processo Civil para fundamentação da decisão que indefere o pedido de intimação judicial das testemunhas arroladas pela defesa, eis que o diploma processual civil somente pode ser aplicado subsidiariamente ao Código de Processo Penal e estas devem, ainda, serem analisadas sob o prisma constitucional, não podendo limitar o direito de defesa.
- CONCLUSÕES
O ato de arrolar testemunhas é visto como um direito do acusado[12], especialmente porque visa combater os supostos indícios de conduta delitiva que foram apontados pelo órgão acusador. Neste sentido, qualquer tentativa de supressão deste direito viola tratados internacionais, princípios constitucionais e previsões infraconstitucionais, não podendo o entendimento jurisprudencial, por mais sábio que seja e o é, limitar um direito legal amparado por outras normas de maior hierarquia, tampouco criar ônus ao exercício da ampla defesa e do contraditório representados pela advocacia criminal.
- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm, acesso em 29 ago 2021.
BRASIL. Código de Processo Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm, acesso em 29 ago 2021.
LOPES JUNIOR, Aury Celso Lima. Direito Processo Penal. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2020.
BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 7ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019
MALAN, Diogo. Investigação defensiva no processo penal. Revista Brasileira de Ciência Criminais. Vol. 96/212, p. 279-309
BRASIL. Decreto nº 678. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm, acesso em 29 ago 2021.
ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos, acesso em 29 ago 2021.
OAS. Convenção para Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Individuais. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/expresion/showarticle.asp?artID=536&lID=4, acesso em 29 ago 2021.
PORTO ALEGRE. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Correição Parcial nº 5051844-85.2019.4.04.0000.
BRASÍLIA. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 419.394/CE.
[1] Mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Direito Penal Econômico e Empresarial pela Universidad Castilla-La Mancha, Toledo/Espanha. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora de pós-graduação em diversas universidades. Coordenadora Regional do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM/PR) e do Grupo de Estudos Avançados de Direito Penal Econômico do mesmo instituto. Conselheira do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico. Organizadora da atualização da obra "Crimes contra o sistema financeiro nacional", de Manoel Pedro Pimentel. Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e das Comissões da Mulher Advogada e de Advogados Criminalistas da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção Paraná. E-mail: nicole@tkiadvogados.com.br
[2] Mestra em Direitos Humanos e Políticas Públicas pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). Vencedora do Prêmio Marcelino Champagnat por melhor desempenho acadêmico no curso de Direito em 2018. Coordenadora adjunta do Grupo de Estudos Avançados (GEA) em Crimes, Gênero e Diversidade do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Membro da Comissão da Mulher Advogada da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção Paraná. E-mail: wanessa@tkiadvogados.com.br
[3] Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir seus direitos e deveres ou fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.
[4] 3. O acusado tem, como mínimo, os seguintes direitos:
- b) Dispor do tempo e dos meios necessários para a preparação da sua defesa;
- d) Interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e obter a convocação e o interrogatório as
testemunhas de defesa nas mesmas condições que as testemunhas de acusação;
[5] 2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
- concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa;
- direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos;
[6] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
[7] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 7ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019
[8] MALAN, Diogo. Investigação defensiva no processo penal. Revista Brasileira de Ciência Criminais. Vol. 96/212, p. 279-309
[9] Como por exemplo, nome completo e endereço completo. Vide-se que não é necessário, pela previsão legal, indicar telefone ou e-mail, costume que foi adotado a partir da pandemia do coronavírus considerando a adoção da intimação por meio aplicativos de mensagens instantâneas e e-mail.
[10] LOPES JUNIOR, Aury Celso Lima. Direito Processo Penal. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2020.
[11] Como exemplo, TRF4 5051844-85.2019.4.04.0000, SÉTIMA TURMA, Relatora SALISE MONTEIRO SANCHOTENE, juntado aos autos em 18/02/2020
[12] Nesse sentido, vide-se habeas corpus nº 419.394/CE julgado pelo Superior Tribunal de Justiça.
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Overcharging em crimes tributários e a burla à súmula vinculante 24 do STF
Por: Guilherme Brenner Lucchesi e Maria Victoria Costa Nogari
A edição da súmula vinculante 24 pelo STF1 constituiu um marco importante no campo do direito penal econômico, especificamente dos delitos tributários. A partir dela, passou a ser pressuposto para a tipificação dos crimes materiais contra a ordem tributária (incisos I a IV do art. 1 da lei 8.137/90) a constituição definitiva do crédito tributário.
Até a edição da súmula vinculante, o exaurimento da esfera administrativa, culminada no lançamento definitivo do tributo, era tido por necessário para o oferecimento de denúncia ou mesmo a instauração de inquérito, discutindo-se a possibilidade de suspensão do prazo prescricional até o seu termo. Não havia entendimento consolidado a respeito de sua natureza jurídica, se condição de procedibilidade, condição objetiva de punibilidade ou hipótese sui generis de impedimento do lapso prescricional.2
A partir da aprovação da SV 24, a tipicidade dos crimes materiais contra a ordem tributária passou a depender do lançamento definitivo do tributo, de modo que qualquer conduta do agente até este momento é penalmente irrelevante. Deste modo, antes da constituição definitiva do crédito tributário é ilegal a autorização de buscas e apreensões, interceptações telefônicas, quebras de sigilos e medidas cautelares pessoais ou patrimoniais.
A inviabilidade da prática de qualquer ato da persecução penal antes do término do processo administrativo fiscal levou a Procuradoria-Geral da República a requerer a revisão da redação do preceito sumular no bojo da Reclamação 16.087/SP3. Nesta ação, o reclamante sustentava a ilegalidade da abertura de inquérito para apuração do crime de sonegação fiscal ante a ausência de lançamento definitivo do tributo. O relator, ministro Celso de Mello, não propôs a revisão da SV 24, mas deixou de aplicá-la no caso, invocando entendimento da Corte quanto à legalidade de atos de investigação praticados antes da constituição definitiva do tributo quando há a apuração de prática concomitante de outros crimes de natureza não tributária.
Antes do julgamento da Reclamação 16.087, a incidência da SV 24 também foi relativizada no HC 96.324/SP4, em que a Corte decidiu pela não concessão da ordem, tendo em vista que se apurava, além de crimes tributários, a prática de crimes de integrar organização criminosa, falsidade ideológica e lavagem de dinheiro.
Do mesmo modo, no Agravo Regimental na Reclamação 32.656/AM5, o STF decidiu pela possibilidade de instauração de persecução penal de crime contra a ordem tributária nos casos em que houver conexão com outros delitos de natureza diversa. Destacou o relator, ministro Celso de Mello, que "a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entende não incidir o enunciado constante da súmula vinculante 24/STF naqueles casos em que, iniciada a investigação penal de eventuais delitos contra a ordem tributária, registrar-se a possibilidade de apuração de outros ilícitos criminais".
Há vários outros precedentes em que o STF mitiga a aplicação da própria orientação sumulada6. Assim, embora a SV 24 não faça qualquer ressalva quanto à sua aplicabilidade, estabelecendo apenas a atipicidade do crime material contra a ordem tributária antes da constituição definitiva do crédito, o STF (e outras Cortes do país7) vem possibilitando a persecução penal antes mesmo do lançamento definitivo do tributo quando supostamente há a prática concomitante de outros crimes de natureza não tributária.
Diante de tais precedentes -e enquanto não houver a revisão da SV 24, pretensão manifestada pela PGR na Rcl 16.087 -, a experiência cotidiana revela expediente criativo para superar a pendência de procedimento administrativo fiscal para iniciar a persecução penal: a imputação de outros crimes, não tributários, provocando concurso aparente de normas.
Explica-se: não raras vezes, a denúncia por crime tributário vem acompanhada da imputação de crimes de falsidade (ideológica e/ou material). De modo geral, o contexto fático narrado pela acusação é a apresentação de documento falso perante a autoridade fazendária para fins de redução da base de cálculo de tributo. É evidente que, em tais casos, a conduta não poderia ser sancionada cumulativamente como delito de sonegação e de falsidade.
Trata-se de clara hipótese de aplicação do critério da consunção, uma vez que a potencialidade lesiva do falso (crime-meio) se exaure no crime de reduzir ou suprimir tributo devido (crime-fim). De tal modo, a imposição de ambas as sanções culminaria na valoração repetida de um mesmo fato e consequente violação à garantia ne bis in idem. Este entendimento, aliás, é pacífico nos Tribunais Superiores8, que reiteradas vezes aplicaram o princípio da consunção entre crimes de falsidade e contra a ordem tributária, a despeito de protegerem bens jurídicos diversos - fé pública e ordem tributária, respectivamente.
Assim sendo, não há dúvida que se está diante de um desvio acusatório9 na hipótese em que se inicia a apuração da suposta prática de crimes contra a ordem tributária antes do fim do procedimento fiscal e - conferindo "verniz de legitimidade" à diametral violação da SV 24 - oferece denúncia imputando a prática de delitos de falsidade material/ideológica e de uso de documento falso, em concurso material, enquanto se aguarda o lançamento definitivo para posteriormente incluir o crime tributário.
A utilização de acusações infladas como estratégia persecutória há tempos desperta preocupação no ordenamento jurídico anglo-americano10. Esse fenômeno, denominado overcharging, consiste na prática de exasperar os fatos passíveis de enquadramento jurídico-penal, seja por meio de uma imputação com indevida pluralidade de condutas penais (horizontal overcharging), seja por meio da imputação de penas mais graves do que as que seriam cabíveis no caso (vertical overcharging)11.
Além da imputação dos delitos de falsidade e de sonegação em evidente concurso aparente de normas, nota-se que, nas hipóteses em que a persecução penal de crimes contra a ordem tributária se inicia antes do término do procedimento fiscal, comumente há também a imputação cumulativa de crimes de organização criminosa e de lavagem de dinheiro, incorrendo também em horizontal overcharging.
Em tais casos, a suspeita da prática de crimes tributários pelos sócios-administradores de determinada pessoa jurídica é tomada como indício suficiente para a imputação do crime de organização criminosa. Contudo, não se pode confundir criminalidade de empresa com empresa ilícita. Na primeira, há reunião de pessoas com finalidade lícita (exercício de atividade econômica), malgrado eventual crime seja praticado no âmbito do ente corporativo; ao passo que, na segunda, a associação de pessoas é constituída justamente para auferir lucro pela prática de infrações penais12.
Por sua vez, em relação à imputação cumulativa de crimes contra a ordem tributária e lavagem de dinheiro, tem-se que este, por si só, não autorizaria a persecução criminal antes do fim do procedimento administrativo fiscal. Isso porque, antes do lançamento definitivo do tributo, o comportamento do agente será penalmente irrelevante em razão da atipicidade do delito antecedente sem o qual o crime de lavagem de dinheiro não se consuma.
À vista do exposto, no âmbito dos delitos tributários, tem-se observado excesso no poder de acusar (overcharging). Imputa-se cumulativamente delitos que claramente não subsistiriam face à aplicação do princípio da consunção ou quanto aos quais muitas vezes não se dispõe de elementos suficientes para fundamentar a própria imputação. Isso ocorre para que o respectivo caso se enquadre na mitigação da SV 24 admitida pelo STF - i.e. quando há a apuração concomitante de crimes de natureza não tributária -, assim legitimando início da persecução penal antes do lançamento definitivo do tributo.
É certo que a mitigação do referido preceito sumular pelo próprio STF é sintomático de seus graves defeitos, dadas importantes questões dogmáticas e práticas que não foram levadas em conta no momento de sua edição13. Por isso, a aplicação da súmula acaba por ser alvo de casuísmo, gerando insegurança jurídica. Nesse sentido, a revisão da SV 24 permitiria que sua aplicação fosse mais uniforme, racional e adequada. Ao tratar adequadamente dos efeitos do encerramento do procedimento administrativo fiscal sobre a persecução dos crimes contra a ordem tributária, o STF deixaria de desrespeitar sua própria súmula casuisticamente.
Contudo, enquanto tal revisão não é feita em procedimento próprio previsto para tanto14, ao MP cabe exercer o seu poder-dever de acusar em observância à legalidade, sem desvios de finalidade e excessos que atentem diretamente contra a garantia do acusado de que a imputação contra si formulada seja minimamente adequada aos preceitos legais (e também aos sumulados).
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1 "Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da lei 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo".
2 Ver PSV 29 e os precedentes constitutivos da SV 24: HC 85.185, HC 85.463, HC 83.353, HC 86.120, HC 85.428 e HC 81.611.
3 STF, Rcl 16.087/SP, relator min. Celso de Mello, julg. 30 abr. 2019.
4 STF, 1.ª T., HC 96324/SP, relator min. Marco Aurélio, julg. 14 jun. 2011.
5 STF, 2.ª T., Rcl 32656/AM AgR, relator min. Celso de Mello, julg. 4 mai. 2020.
6 Cita-se: STF, 2ª T., HC 95.443, relatora min. Ellen Gracie, julg. 2 fev. 2010; STF, 1ª T., HC 108.037, Relator min. Marco Aurelio, julg. 29 nov. 2011; STF, 1.ª T., ARE 936.653, Relator min. Roberto Barroso, julg. 24 mai, 2016; e STF, 2.ª T., HC 203.760 AgR, Relator min. Nunes Marques, julg. 23 nov. 2021.
7 Em estudo empírico publicado em 2018 sobre a eficiência da súmula vinculante 24 no sistema judicial brasileiro, Tiago Bottino concluiu que em mais da metade dos casos analisados (56%) as instâncias inferiores do país (Tribunais de Justiça e TRFs) deixaram de aplicar a orientação sumulada, identificando o Supremo Tribunal Federal como responsável por esse déficit de eficiência, na medida em que não respeita a própria Súmula Vinculante que editou, criando hipóteses de mitigação. BOTTINO, Tiago. A súmula vinculante vincula? Um estudo da eficiência da Súmula Vinculante 24. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 143, p. 177-219, mai. 2018.
8 A título exemplificativo: STJ, 5.ª T., AgRg no REsp 1.347.646/MG, Relator min. Jorge Mussi, julg. 5 fev. 2013; STJ, 5.ª T., AgRg no REsp 1363618/MG, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, julg. 15 mai. 2018; STJ, 3.ª Seção, AgRg nos EAREsp 386.863/MG, Rel. Ministro Felix Fischer, julg. 22 mar. 2017; STF, 1.ª T., HC nº 84.453/PB, Relator min. Sepúlveda Pertence, julg. 17 mai. 2005; STF, Inq. 3.102/MG, Plenário, Relator min. Gilmar Mendes, julg. 25 abr. 2013.
9 A expressão é de Fauzi Hassan Choukr (Iniciação ao processo penal. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. p. 331-33).
10 MALAN, Diogo. Processo Penal aplicado à criminalidade econômica e financeira. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 114, p. 279-320, mai./jun., 2015, p. 25.
11 ALSCHULER, Albert. The Prosecutor's Role in Plea Bargaining. University of Chicago Law Review, vol. 36, n. 1, p. 50-112, 1968. p. 85-86. Disponível aqui.
12 MALAN, Diogo. Processo Penal aplicado à criminalidade econômica e financeira. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 114, p. 279-320, mai./jun., 2015. p. 26.
13 TAFFARELLO, Rogério Fernando. Impropriedades da súmula vinculante 24 do STF e a insegurança jurídica em matéria de crimes tributários. In: FRANCO, Alberto Silva; LIRA, Rafael de Souza. Direito Penal Econômico: questões atuais. São Paulo: RT, 2011, p. 323-325; FISCHER, Douglas. Os equívocos técnico, dogmático, sistemático e lógico da Sumula Vinculante nº 24 do STF. GenJurídico, 22 jan. 2021. Disponível aqui.
14 Sobre o procedimento de revisão das Súmulas Vinculantes, explicam José Carlos Buzanello e Graziele Mariete Buzanello: "Atualmente, a técnica de revisão dos atuais preceitos sumulados de força persuasiva está prevista no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (RISTF), desde a época da criação das súmulas (artigos 102 e 103). O quórum exigido é maior do que aquele exigido para aprovação de emendas constitucionais (três quintos), o que demonstra a dificuldade para criação, revisão e cancelamento da súmula de efeitos vinculantes, com o propósito de estabilizar os julgados no tempo. Na atualidade, a revisão e o cancelamento do enunciado de súmula com efeito vinculante estão disciplinados pela Lei no 11.417/06, com aplicação subsidiária do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal." BUZANELLO, José Carlos; BUZANELLO, Graziele Mariete. Exeqüibilidade da súmula vinculante. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 44, n. 174, p. 25-33, abr./jun., 2007. p. 29.
Guilherme Brenner Lucchesi é sócio da Lucchesi Advocacia. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico.
Maria Victoria Costa Nogari é acadêmica de Direito da UFPR. Associada ao Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico. Estagiária da Lucchesi Advocacia.
Publicado em: https://www.migalhas.com.br/coluna/informacao-privilegiada/357732/overcharging-em-crimes-tributarios-e-a-burla-a-sv-24-do-stf
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A teoria da cegueira deliberada e sua (in)utilidade prática no Direito Penal brasileiro
Por Milena Holz Gorges
Recentemente, muito se ouviu falar acerca da teoria da cegueira deliberada no Brasil. Essa temática ganhou relevância no âmbito do Direito Penal Econômico a partir de seu uso frequente nos julgamentos da Operação “Lava Jato”, em que foi reiteradamente aplicada em substituição ou mesmo complemento ao dolo eventual. Sob essa justificativa, ela tem sido adotada para reconhecer a existência de dolo mesmo nos casos em que ausentes os fundamentos necessários à sua configuração.
A teoria da cegueira deliberada, ou willful blindess doctrine, desenvolveu-se na doutrina e jurisprudência norte-americanas a partir da premissa de que não se poderia permitir a ignorância propositada como defesa à imputação de um crime, motivo pelo qual a auto colocação em situação de ignorância deveria ter as mesmas consequências dos casos de conhecimento efetivo acerca das circunstâncias do tipo.
Segundo Ragués i Vallés, encontra-se em estado de ignorância deliberada “todo aquele que podendo e devendo conhecer determinadas circunstâncias penalmente relevantes de sua conduta, toma deliberada ou conscientemente a decisão de manter-se na ignorância com relação a elas”[1]. Para Spencer Sydow, a teoria é uma “forma de imputação objetiva criada pelo Direito anglo-saxão para preencher lacuna jurídica da interpretação restritiva do dolo nas situações em que o sujeito de um delito alega desconhecimento de fatos por desídia em investigá-los ou por criação de estratégia de nunca adquirir consciência deles”[2].
Sem entrar no mérito da dificuldade (ou impossibilidade) de transplante dessa teoria para o Direito brasileiro, tendo em vista a incompatibilidade entre os sistemas jurídico-penais americano e pátrio, uma análise mais detida acerca da aplicação da teoria da cegueira deliberada permite chegar à conclusão de que além de incompatível, ela é também desnecessária.
Isso porque muitos dos casos em que a cegueira deliberada foi aplicada para condenar os acusados poderiam ser resolvidos a partir da teoria do dolo.
O legislador brasileiro estabeleceu, nos artigos 18 e 20 do Código Penal, algumas balizas quanto à forma de imputação subjetiva e definiu mais ou menos os conceitos de dolo e culpa. A partir da descrição genérica feita pelo legislador, costuma-se afirmar que o dolo é composto por dois elementos: o conhecimento e a vontade. Porém, essa assertiva ainda se mostra insuficiente, sendo necessária a elaboração de teorias por parte da doutrina para complementar o conceito e orientar a aplicação da lei penal.
As teorias do dolo são comumente classificadas em teorias volitivas e teorias cognitivas, a depender da ênfase dada a cada um dos elementos do dolo. Seja qual for a teoria adotada, é evidente que o conhecimento é elemento central do dolo no Direito Penal brasileiro. É justamente a partir dessa premissa que surgem alguns questionamentos importantes, como, por exemplo: de que forma poderíamos enfrentar os casos de ignorância deliberada em um Direito Penal que considera o conhecimento como um elemento básico da responsabilidade? Seria aceitável que um sujeito que busca permanecer em desconhecimento se beneficie penalmente dessa circunstância?[3]
Para responder a estas perguntas é preciso, primeiramente, estabelecer que o dolo não deve ser definido como um processo mental que ocorre dentro do intelecto do sujeito. Ainda que nenhuma teoria normativo-atributiva tenha obtido êxito em fornecer categorias seguras para a imputação de conhecimento ou vontade, entende-se que os conceitos jurídicos devem ser avaliados a partir de padrões normativos, conforme ensina Claus Roxin[4]. As construções teóricas mais contemporâneas não podem ser ignoradas, tendo em vista a impossibilidade de constatação segura do conhecimento e da vontade em um sentido psicológico-descritivo[5].
Assim, sob um ponto de vista normativo-atributivo, o conhecimento não precisaria ser efetivo ou pleno, como pretende Zaffaroni[6], mas é necessário apenas que se demonstre que o agente possui um conhecimento da situação que lhe garanta domínio ou controle da execução da ação. Ainda, o conhecimento não precisa ser completo ou verificável empiricamente, mas é atribuído a partir das circunstâncias do caso concreto.
Diante desse conceito mais amplo, tem-se que aquele que tem consciência da elevada probabilidade de ilicitude de sua conduta e, mesmo diante dessa suspeita, não aprofunda seu conhecimento, de certo modo, já sabe o que espera encontrar. Ou seja, a representação de uma situação de ilicitude pelo autor já preenche o elemento cognitivo do dolo, ainda que o conhecimento não seja pleno.
A equiparação entre os casos em que o agente tem efetiva ciência dos elementos do tipo e aqueles em que há um desconhecimento deliberado tem base na culpabilidade, segundo a ideia de que esta não pode ser menor para aquele que, podendo e devendo tomar conhecimento de determinadas circunstâncias, opta pela ignorância[7].
Assim, nos casos de lavagem de dinheiro, em que o agente representa como altamente provável a ilicitude da origem dos bens, mas renuncia à tomada de conhecimento pleno, pode-se afirmar que há uma postura de conformação do sujeito com a produção do resultado.
Vale ressaltar que o desconhecimento deliberado de determinadas circunstâncias do comportamento do agente apenas pode conduzir à modalidade dolo eventual, e apenas nas situações em que o sujeito possui um conhecimento básico que seja o suficiente para permitir a imputação por dolo.
Nesse ponto, é importante destacar que há uma distinção entre os casos em que o sujeito não quer conhecer a origem delitiva dos bens, mas a representa como provável em função das circunstâncias objetivas, e os casos em que o sujeito não quer saber nada acerca dos bens, mas tampouco representa sua origem delitiva. Esse segundo caso, segundo Blanco Cordero[8], não pode estar abarcado pelo dolo, enquanto que o primeiro é um caso de dolo eventual.
A partir de relevante análise jurisprudencial realizada por Guilherme Lucchesi[9], pode-se chegar à conclusão de que há a aplicação da teoria da cegueira deliberada pelos tribunais brasileiros em, basicamente, três grupos de casos: (i) casos em que houve condenação por dolo eventual; (ii) casos em que a cegueira deliberada foi usada apenas como complemento da decisão; e (iii) casos em que houve condenação sem que estivessem presentes os requisitos para a condenação na modalidade dolosa.
Nos casos em que houve condenação por dolo eventual, aplicando-se a cegueira deliberada, verifica-se a absoluta dispensabilidade da teoria, diante da inexistência de lacunas de punibilidade a serem preenchidas. Se já estão presentes os requisitos para a imputação do crime por dolo eventual, não há necessidade de aplicação da teoria da cegueira deliberada, posto que suficientes e adequados os critérios do dolo já existentes no Direito Penal brasileiro.
Sob esse mesmo fundamento se mostra igualmente desnecessária a aplicação da teoria da cegueira deliberada apenas como reforço argumentativo.
Já o terceiro grupo de casos é o que aparenta ser mais problemático, pois cria uma nova categoria de imputação subjetiva, nunca prevista pelo legislador, que foge completamente aos parâmetros estabelecidos pelos artigos 18 e 20 do Código Penal. Pior ainda, em alguns casos, os tribunais chegaram a criar um dever de conhecimento para o autor em situações nas quais as circunstâncias não revelavam alta probabilidade de ilicitude, em absoluta distorção da teoria originária da willful blindness.
Esse uso inadequado da cegueira deliberada tem como resultado inúmeras condenações indevidas em casos de inexistência de provas suficientes a demonstrar o conhecimento mínimo exigido pela lei penal para a imputação na modalidade dolosa.
Em face da análise apresentada, pode-se perceber que o dolo tem amplo alcance como modalidade de imputação subjetiva, abrangendo desde casos de autêntica intenção, até aqueles em que o sujeito representa o risco de realização típica e se conforma com a produção do resultado. O alcance mais amplo da imputação dolosa na construção jurídico-penal brasileira permite a punibilidade de muitos dos casos que, no Direito Penal norte-americano, precisam da cegueira deliberada para que não fiquem impunes.
Portanto, em última análise, no Direito Penal brasileiro, a teoria da cegueira deliberada não parece ter nenhuma utilidade legítima, acabando por servir apenas para a punição de condutas culposas como se dolosas fossem.
Milena Holz Gorges
Acadêmica de Direito da Universidade Federal do Paraná. Membro do Grupo de Estudos Avançados em Direito Penal Econômico do IBCCrim/PR. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da UFPR.
E-mail: milenaholzgorges@hotmail.com
[1] RAGUÉS I VALLÉS, Ramón. La ignorancia deliberada en Derecho penal. Barcelona: Atelier Libros Juridicos, 2007, p. 25.
[2] SYDOW, Spencer Toth. A teoria da cegueira deliberada. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2017, p. 19
[3] RAGUÉS I VALLÈS, Ramon. Mejor no saber: sobre la doctrina de la ignorância deliberada en Derecho penal. In Revista Discusiones, v. 13, n° 2 (2013): Ignorancia deliberada y Derecho Penal, p. 12.
[4] ROXIN, Claus. Strafrecht Allgemeiner Teil. Bd. 1. Grundlagen, der Aufbau der Verbrechenslehre. – 3. Aufl. – München: Beck, 1997, p. 376-377.
[5] LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a culpa como dolo: o uso da cegueira deliberada no Brasil. 1. Ed. São Paulo: Marcial Pons, 2018, p. 144-145.
[6] Para Zaffaroni, “O dolo requer sempre conhecimento efetivo; a mera possibilidade de conhecimento (chamada “conhecimento potencial”) não pertence ao dolo. O “querer matar um homem” (dolo do tipo de homicídio do art. 121 do CP) não se confunde com a “possibilidade de conhecer que se causa a morte de um homem”, e sim com o efetivo conhecimento de que se causa a morte de um homem”. (ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. Volume 1. Parte geral. – 9. ed. rev. e atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 420).
[7] CALLEGARI, André Luís; WEBER, Ariel Barazzetti. Lavagem de Dinheiro. – 2. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Atlas, 2017, p. 120.
[8] BLANCO CORDERO, Isidoro. El Delito de Blanqueo de Capitales. Pamplona: Arazandi, 1997, p. 383.
[9] LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a culpa como dolo: o uso da cegueira deliberada no Brasil. 1. Ed. São Paulo: Marcial Pons, 2018, p. 174-187.
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Responsabilidade das pessoas jurídicas e a necessária implementação do sistema de compliance
Por: Gabriela Kreusch Serena[1]
Com a globalização, o advento das grandes crises econômicas e os mega escândalos financeiros, surgiu a necessidade de o Estado assumir uma função .[2] Essa nova realidade trouxe à tona o tema dos “crimes de colarinho branco”[3] ou “cifra dourada da criminalidade”[4], que agora colocam em evidência a criminalidade empresarial e corporativa enquanto núcleo do Direito Penal Econômico.
Em vista dos efeitos estrondosos que grandes escândalos financeiros causam, há um verdadeiro efeito dominó em todos os setores sociais, notadamente em decorrência da perda de credibilidade das empresas em razão da prática de crimes e a consequente perda de investimento. Os impactos que os ilícitos cometidos por empresas geraram na economia mundial impulsionaram a discussão sobre a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, em que vigora uma pluralidade de posições acerca do tema.
Parte da doutrina, invocando o brocardo societas delinquere non potest, entende ser inadmissível a responsabilidade penal das pessoas jurídicas.[5] Por outro lado, há autores que defendem que a responsabilidade penal das pessoas jurídicas é possível e necessária[6], principalmente na proteção dos bens jurídicos difusos e supraindividuais[7]. Nesta concepção, entende-se que as condutas ilícitas praticadas pelas empresas geram uma espécie de cadeia de vitimização, em que diversos bens jurídicos são atingidos de diferentes maneiras.
No Brasil, é fundamental a análise da responsabilidade penal das pessoas jurídicas à luz da Constituição Federal de 1988, que primeiro dispôs sobre o tema. O art. 225 §3º[8] prevê a possibilidade da imposição de responsabilidade penal às pessoas jurídicas que praticarem condutas atentatórias ou lesivas aos bens jurídicos de ordem ambiental.
O art. 173, §5º, da CF, acabou por deixar uma interpretação aberta acerca dos crimes econômicos e a possibilidade de regulamentação por uma lei estrita, que até o momento não há. Segundo Salvador Netto e Souza, o sistema jurídico brasileiro possibilita a responsabilização penal das pessoas jurídicas não só pela prática de crimes ambientais, mas também pelos “atos tipificados como atentatórios à ordem econômico-financeira e nas relações de consumo”[9].
No âmbito dos crimes ambientais, a Lei n.° 9.605/98 dispõe sobre a responsabilização administrativa, civil e penal das pessoas jurídicas, quando as infrações forem cometidas por seus representantes, não excluindo a possibilidade da responsabilização das pessoas físicas enquanto coautores[10]. Em 2013, no julgamento do RE 548.181, a primeira Turma do Supremo Tribunal Federal reconheceu a possibilidade de se processar penalmente a pessoa jurídica independentemente da pessoa física. Na decisão, a Relatora Ministra Rosa Weber manifestou-se no sentido de que, para a responsabilização da pessoa jurídica, “não é necessária a demonstração de coautoria da pessoa física”[11].
A Lei n.º 12.846/2013 (Lei “Anticorrupção”) regulamenta a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a Administração Pública, nacional ou estrangeira. Apesar da ausência de responsabilização criminal, as sanções possuem caráter especialmente aflitivo[12], pouco se distinguindo de penas[13]. Dentre as severas punições estabelecidas pela Lei, cita-se a multa, a inscrição nos Cadastros Nacionais de Empresas Inidôneas e Suspensas (CEIS) e nos Cadastro Nacional de Empresas Punidas (CNEP) e a suspensão da participação de processos licitatórios.
Tais sanções administrativas podem trazer consequências nefastas às pessoas jurídicas, em razão da dificuldade na obtenção de linhas de crédito e parcelamentos tributários, além da perda de credibilidade internacional que pode incidir diretamente na queda do valor das ações da empresa (como ocorreu com a Petrobrás). Portanto, as sanções administrativas podem gerar resultados muito mais gravosos que determinadas sanções penais. Além disso, o Direito Administrativo não é regido pelas mesmas garantias que o Direito Penal e o Direito Processual Penal, o que acarreta evidente desequilíbrio na balança da equidade e justiça.
Ante as graves sanções aplicáveis às pessoas jurídicas, a Lei n.º 12.846 reafirmou a necessidade da implementação de um sistema de controle e de promoção das boas práticas empresariais. Nessa toada, ganhou destaque o compliance, concebido como “o dever de cumprir, de estar em conformidade e fazer cumprir leis, diretrizes, regulamentos internos e externos, buscando mitigar o risco atrelado à reputação e o risco legal/regulatório”[14].
A implementação do programa de compliance inclui oito pilares: (i) compromisso da alta administração; (ii) gerenciamento de risco; (iii) definição de políticas e procedimentos; (iv) treinamento e comunicação; (v) canal de denúncia; (vi) investigação; (vii) due diligence e (viii) monitoramento e auditoria. No Brasil, o “canal de denúncia” é obrigatório nas sociedades de capital aberto, as quais devem possuir meios para o recebimento de denúncias sobre questões internas ou externas. Ademais, as investigações corporativas, bem como as auditorias periódicas são mecanismos de suma relevância no exercício de averiguação dos fatos delituosos e na proteção dos interesses da companhia.
Desse modo, o compliance surge como pilar garantidor da governança corporativa para proteger a pessoa jurídica e seus acionistas contra possíveis ações lesivas perpetradas pelos executivos contratados. Além de se relacionar à criação, à implementação e à fiscalização de normas e condutas, o compliance age como uma forma de conscientização dos gestores e colaboradores a respeito dos seus deveres e obrigações legais, prevenindo riscos (o chamado compliance risk) e atribuindo a responsabilidade de vigilância a todos os integrantes das atividades empresariais.
Desse modo, a prática do compliance consiste em uma estratégia para incentivar a adoção de medidas internas nas empresas a fim de preservar a integridade tanto das pessoas jurídicas[15] quando das pessoas físicas – enquanto possíveis coautoras[16]. Ademais, vale comentar que o sistema brasileiro estabelece uma série de benefícios às pessoas jurídicas que implementam o programa de compliance, não só na disputa em procedimentos licitatórios, como por meio da isenção completa de imputação de responsabilidade em determinados casos[17].
Diante do exposto, tendo-se em conta que a possibilidade de responsabilização das pessoas jurídicas é cada vez mais aceita pela doutrina e pela jurisprudência de diversos países – especialmente pela pressão dos órgãos internacionais (v.g., OCDE) – ganha especial relevância a adoção do sistema de compliance nas empresas.
O sistema vem como uma forma de hibridização entre poder público e privado em função das normas internas de empresas,[18] as quais devem seguir os ditames da legislação pátria para prevenir, não apenas os riscos às pessoas físicas, como também à própria pessoa jurídica. Assim, as formas de autorregulação por meio do compliance têm como cerne a prevenção de riscos que podem culminar na responsabilidade da pessoa jurídica, o que consequentemente garante a sua proteção no âmbito penal, cível e administrativo.
[1] Acadêmica de direito pela UFPR. Estagiária do escritório Antonietto & Guedes de Castro e Pesquisadora acadêmica do IBDPE (Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico)
[2] VÁSQUEZ, Manuel A. Abanto. Derecho Penal Económico. Consideraciones jurídicas y económicas. Lima: Idemsa, 1997. 31-47.
[3] SUTHERLAND, Edwin H. White collar crime: the uncut version. New Haven, Londres: Yale University, 1983. p. 246.
[4] SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 10.
[5] MATUS ACUÑA, Jean Pierre. Informe sobre el proyecto de lei que establece la responsabilidad legal de las personas jurídicas em los delitos de lavado de activos, financiamiento del terrorismo y delitos de cohecho que indica, mensaje nº 018-357/. Revista Ius et Praxis, ano 15, nº 2, pp. 285-316.
[6] TIEDEMANN, Klaus. Responsabilidad penal de personas jurídicas y empresas en derecho comparado. Revista Brasileira de Ciências Criminais, 1995. p. 21.
[7] BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Los bienes jurídicos colectivos: repercusiones de la labor legislativa de Jimenez de Asúa em el Código Penal de 1932. Revista de la Facultad de Derecho de la Universidad Complutense, Madrid, n.º 11, jun. 1986. p. 153-154.
[8] Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.
[9] SALVADOR NETTO, Alamiro Velludo; SOUZA, Luciano Anderson de. Comentários à Lei de Crimes Ambientais. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 90-92.
[10] Art. 3º. As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente, conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade. Parágrafo único. A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, coautoras ou partícipes do mesmo fato.
[11] STF, 1.ª T., RE 548181, Relatora Min. Rosa Weber, j. 6 ago. 2013.
[12] GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de direito administrativo. Tradução de Arnaldo Setti. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 87.
[13] Idem.
[14] COIMBRA, Marcelo de Aguiar; MANZI, Vanessa Alessi. Manual de compliance: preservando a boa governança e a integridade das organizações. São Paulo: Atlas, 2010. p. 2.
[15] SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; SAAD-DINIZ, Eduardo. Compliance, direito penal e lei anticorrupção. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 132.
[16] NÍETO MARTÍN, Adán. El derecho penal económico en la era compliance. Valencia: Tirant lo Blanch, 2013, p. 10.
[17] GALÁN MUÑOZ, Alfonso. Fundamentos y límites de la responsabilidad penal de las personas jurídicas tras la reforma de la lo 1/2015. Valencia: Tirant lo Blanch, 2017. p. 119.
[18] NÍETO MARTÍN, Adán. El Derecho Penal Económico En La Era Compliance. Valencia: Tirant lo Blanch, 2013, p. 13-14
Este artigo reflete a opinião de seus autores e não necessariamente a opinião do IBDPE.
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REFLEXÕES PRÁTICAS SOBRE PROGRAMAS DE COMPLIANCE APLICADOS ÀS SOCIEDADES ANÔNIMAS DE FUTEBOL (SAF):
Por: Augusto Cesar Piaskoski* e José Laurindo de Souza Netto**
Em 9 de agosto de 2021, foi publicada a Lei n.º 14.193/2021, que permitiu que clubes de futebol constituídos a partir do modelo de associação civil sem fins lucrativos, ou sociedades empresárias dedicadas ao fomento e à prática do futebol, pudessem optar por uma nova estruturação societária, definida pela Lei como “Sociedade Anônima de Futebol” - (SAF).
A nova estrutura societária visa, entre outras finalidades, a estabelecer mecanismos de governança mais eficazes para o futebol brasileiro, sobretudo naquilo que diz respeito às medidas de transparência e regras para responsabilização de dirigentes por eventuais irregularidades praticadas no exercício de cada gestão, além de criar uma série normas gerais voltadas aos procedimentos de constituição, governança, controle e formas de financiamento da atividade futebolística[1].
Em termos de gestão, a Lei promove medidas de incentivo a reorganização e reestruturação financeira do clube, ou pessoa jurídica original, que busque aderir ao formato da SAF (Seção IV da Lei n.º 14.193/2021), além de dedicar uma seção inteira à previsão de regras de governança que deverão ser observadas pelas SAFs (Seção III).
Dentre os mecanismos de governança elencados pela Seção III da Lei n.º 14.193/2021, merecem especial destaque aquelas previsões contidas nos art. 4º, 5º, 6º e 7º da Lei, que tratam de situações de conflito de interesse envolvendo membros que integram os órgãos de vértice das SAFs (acionistas, administradores e demais integrantes da cúpula diretiva, ou pessoas jurídicas envolvidas), de modo a limitar a atuação e participação dos sujeitos que possuam qualquer relação conflituosa com a SAF.
Além disso, o art. 8º da Lei prevê uma série de disposições voltadas a políticas de transparência, que obriga a SAF a manter informações atualizadas no seu sítio eletrônico sobre estatutos sociais, atas de assembleias gerais, composição de dados biográficos dos membros da cúpula diretiva, assim como relatórios administrativos acerca dos negócios sociais da SAF.
Ainda, para além das previsões legais feitas pela Lei n.º 14.193/2021, os mecanismos de governança corporativa que serão desenvolvidos internamente pelas SAFs também deverão observar as particularidades do novo modelo jurídico de sociedade por ações, que embora seja regido subsidiariamente pela Lei n.º 6.404/76 (art. 1º, da Lei n.º 14.193/2021), possui natureza e finalidade bastante distinta dos modelos usuais de sociedades por ações.
Por isso, embora pareça adequado atribuir certa semelhança entre os modelos de programas de compliance aplicados às S.A e às SAFs, sobretudo em razão da semelhança organizacional existente entre ambas às instituições, importa ressaltar que a lógica que move o modelo de negócio de cada sociedade – e consequentemente os riscos que serão gerados - não são os mesmos, o que resultará em uma visão distinta para estruturação dos pilares e ferramentas do programa.
A título exemplificativo, em um modelo hipotético de S.A, cuja atividade tenha por principal finalidade a obtenção de lucro, o acionista não participa da administração da empresa e possui responsabilidade limitada a parcela de capital investido, enquanto a reponsabilidade pela tomada de decisões fica a cargo do administrador. Por isso, a eventual situação conflituosa gerada entre esses indivíduos que integram os órgãos de vértice da sociedade empresária no momento da tomada de decisões poderá decorrer da divergência de interesses entre detentores do capital (acionistas) e detentores do controle do capital (administradores). Nesse caso, a adoção dos mecanismos de governança corporativa servirá, dentre outras finalidades, para: (i) atenuar os chamados “conflitos de agência”[2] entre acionistas e administradores; (ii) otimizar a imagem da empresa perante seus stakeholders; e (iii) orientar a atuação da empresa na busca da obtenção do lucro.
Diferente do que ocorre nesse modelo de sociedade por ações, a atuação da Sociedade Anônima de Futebol não pode – e nem deve - servir aos interesses financeiros dos acionistas e stakeholders, mas sim à prática desportiva e a conquista de títulos para a SAF.
Além disso, para além dos interesses existentes entre acionistas e administradores, também deverão ser considerados os interesses dos torcedores do time, que não devem ser vistos como meros consumidores da empresa, mas como sujeitos interessados na boa gestão e no melhor desempenho das atividades praticadas pela SAF[3].
Por isso é que a implementação dos mecanismos de governança e dos programas de integridade e de compliance nas SAFs deverão ser pensados e desenvolvidos para o fim de atender as particularidades do novo modelo societário de sociedade por ações, que demandará da alta gestão e do setor de compliance o comprometimento em identificar e tratar os principais riscos a que a SAF está sujeita.
Para isso, é claro, deverão ser observadas algumas etapas e mecanismos indispensáveis para a efetiva implementação de um programa de compliance, quais sejam: (i) o levantamento, identificação e gestão dos riscos; (ii) a criação de um Código de Conduta interno com às diretrizes normativas e regras vigentes para a SAF e seus colaboradores; (iii) o treinamento e aperfeiçoamento da formação dos funcionários e colaboradores sobre as diretrizes estabelecidas no Código de Conduta e legislações aplicadas à SAF; (iv) a criação de canais de comunicação e de denúncias de irregularidades; (v) a criação de ferramentas de investigação interna e aplicação de sanções, quando necessárias.
Por fim, a reflexão sobre as melhores estratégias que deverão ser adotadas para o desenvolvimento dos mecanismos internos de integridade deverá considerar a postura que a SAF pretende assumir perante seus stakeholders e torcedores, especialmente naquilo que diz respeito à adoção de ferramentas que permitam alcançar o melhor desempenho da prática desportiva e a implementação de mecanismos de boa gestão baseados na ética e na cultura de integridade.
Referências bibliográficas
[1] BRASIL. Lei n.º 14.193, de 6 de agosto de 2021. Diário Oficial da União: Seção 1, Brasília/DF, Edição 149, p. 3, 09/08/2021.
[2] CHAMELETTE, Mariana. “Compliance como ferramenta para boas práticas de gestão em entidades desportivas”. Coluna Jus Desportiva do IBDD. Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD), São Paulo, 2020. Disponível em: https://ibdd.com.br/compliance-como-ferramenta-para-boas-praticas-de-gestao-em-entidades-desportivas/.
[3] JENSEN, Michael; MECKLING, Willian. Theory of the firm: managerial behavior, agency cost, and ownership structure. Journal os Financial Economics, 1976.
ANDRADE, Adriana; ROSSETTI, José Paschoal. Governança corporativa. 4. ed., São Paulo: Atlas, 2009.
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CORITIBA FOOTBALL CLUB. Boas práticas: assim como o Coritiba com o Conduta Coxa-Branca, empresas e entidades esportivas criam rating do esporte visando boas práticas de gestão, 2021. Disponível em: < https://www.coritiba.com.br/artigo/30864/boas_praticas>.
DARNACUELLETA I GARDELLA, M. Mercè. Autorregulación y Derecho Público: la Autorregulación Regulada. Barcelona/Madrid: Marcial Pons, 2005.
ESTEVE PARDO, José. Autorregulación – Génesis y Efectos. Navarra: Arazandi, 2002.
FIFA. FIFA Code of Ethics, 2012 edition. Disponível em: < https://digitalhub.fifa.com/m/3ab4886d076e1be4/original/qyjyegahoannfhfumb1g-pdf.pdf>.
GUARAGNI, Fábio André. “Princípio da confiança no Direito Penal como argumento em favor de órgãos empresariais em posição de comando e compliance: relações e possibilidades”. In: GUARAGNI, Fábio André e BUSATO, Paulo Cesar (coord.). DAVID, Décio Franco et al. (org.). Compliance e Direito Penal. São Paulo: Atlas, 2016.
JÚNIOR, Filipa Marques; MEDEIROS, João. “A elaboração de programas de compliance”. In: SOUSA MENDES, Paulo de; PALMA, Maria Fernanda; SILVA DIAS, Augusto. Estudos sobre Law Enforcement, Compliance e Direito Penal. Lisboa: Almedina, 2018.
MILLER, Geoffrey Parsons. The Law of Governance, Risk Management and Compliance. New York: Wolters Kluwer, 2017.
PIZARRO, Sebastião Nóbrega. Manual de Compliance, Nova Causa Edições Jurídicas, 2016.
SARAIVA, Renata Machado. Criminal Compliance como instrumento de tutela ambiental: a propósito da responsabilidade penal das empresas. São Paulo: LiberArs, 2018.
[1] A exemplo das disposições contidas na Seção III, do Capítulo I e da Seção I, Capítulo II, da Lei. BRASIL. Lei n.º 14.193, de 6 de agosto de 2021. Diário Oficial da União: Seção 1, Brasília/DF, Edição 149, p. 3, 09/08/2021.
[2] Não pretendemos, neste ensaio, aprofundar a discussão sobre a “Teoria da Agência” e os conflitos de agência gerados entre acionistas e administradores. Para um estudo mais aprofundado, indicamos a obra: JENSEN, Michael; MECKLING, Willian. Theory of the firm: managerial behavior, agency cost, and ownership structure. Journal os Financial Economics, 1976.
[3] Cf. CHAMELETTE, Mariana. “Compliance como ferramenta para boas práticas de gestão em entidades desportivas”. Coluna Jus Desportiva do IBDD. Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD), São Paulo, 2020. Disponível em: https://ibdd.com.br/compliance-como-ferramenta-para-boas-praticas-de-gestao-em-entidades-desportivas/. Acesso em: 02/11/2021.
* Assessor técnico no Núcleo de Governança, Riscos e Compliance do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Aluno do Mestrado em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Bacharel em Direito pela Universidade Positivo, com parte da graduação cursada na FGV Rio. E-mail: augusto.piaskoski@gmail.com. Endereço currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0090530005592642. Endereço ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3791-7683.
** Pós-doutor pela Faculdade de Direito da Universidade Degli Studi di Roma – La Sapienza. Estágio de Pós-doutorado em Portugal. Mestre e Doutor pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Graduado em Direito pela Universidade Católica do Paraná – PUC. Professor permanente no Mestrado da Universidade Paranaense – UNIPAR. Projeto de pesquisa Científica - Mediação Comunitária: um mecanismo para a emancipação do ser humano, registrado no CNPQ. Desembargador e Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. E-mail: jln@tjpr.jus.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002- 6950-6128. ID Lattes: http://lattes.cnpq.br/8509259358093260
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O discurso anticorrupção no Poder Judiciário e a necessidade do devido processo penal
Por Bibiana Fontella[1]
Recentemente, em final do último ano, foi publicado pela revista Carta Capital[2] que o ex-juiz Sergio Moro teria admitido na pré-candidatura pelo Podemos que “na Lava Jato combateu o PT”. Sem adentrar às questões partidárias dessa informação, é de suma relevância analisar a politização do Poder Judiciário quando seu principal objeto é o combate à corrupção. Neste ponto há três julgados do STF e STJ que demostram a clara preocupação da Corte Constitucional com o discurso anticorrupção.
No INQ 4.506[3] o Ministro Luís Roberto Barroso proferiu voto e ao analisar a tipicidade do crime de corrupção passiva afirmou que o entendimento jurisprudencial atual rejeita a perspectiva sinalagmático da corrupção. O Ministro destaca que:
a exigência de indicação de um ato concreto para a caracterização do delito de corrupção - além de ser contrária, como visto, ao texto expresso da lei - afasta da punição as manifestações mais graves da violação à função pública: o guarda de trânsito que pode dinheiro para deixar de aplicar um multa seria punível, mas o senador que vende favores no exercício do seu mandato passaria impune.
Referenciando o entendimento do Ministro Luís Roberto Barroso, a Ministra Laurita Vaz adotada o mesmo posicionamento em voto divergente no RESP 1.745.410[4], no qual há importante alteração da interpretação jurisprudencial, pois é abandonada a exigência de nexo de causalidade entre a vantagem indevida e o feixe de atribuições do funcionário público[5]:
Afinal, como bem pontuou o Ministro LUÍS ROBERTO BARROSO por ocasião do julgamento do Inq 4.506/DF, exigir nexo de causalidade entre a vantagem e ato de ofício de funcionário público levaria à absurda consequência de admitir, por um lado, a punição de condutas menos gravosas ao bem jurídico, enquanto se nega, por outro lado, sanção criminal a manifestações muito mais graves da violação à probidade pública: “o guarda de trânsito que pede dinheiro para deixar de aplicar uma multa seria punível, mas o senador que vende favores no exercício do seu mandato passaria impune” (Voto do Ministro LUÍS ROBERTO BARROSO no Inq 4.506/DF, p. 2.052)
Outro importante julgado para o objeto do presente é o RHC 144.615[6], que apesar de não tratar especificamente do crime de corrupção, o relator Ministro Edson Fachin ao manter seu voto após a divergência, afirma a importância do combate à corrupção:
É errado equacionar luta pela responsabilização e o combate à impunidade com um aumento do “punitivismo”, assim como é errado imaginar que o programa da Constituição de 1988 foi criar amarras para a eficiência dos serviços públicos. A síntese de Ulysses Guimarães continua atual: a Constituição tem ódio e nojo da ditadura, mas “a corrupção é o cupim da República”. Dito de outro modo: é possível ao mesmo tempo ser democrático e combater a corrupção pelo aprimoramento do sistema judicial.
A politização por que têm passado os esforços por mais eficiência na justiça é, por tudo isso, lamentável. A polarização impõe um falso dilema à sociedade: ou se combate o “punitivismo”, ou retornaremos ao arbítrio, como se o estado de coisas anterior, no qual grassou por ano a ineficiência e deitou raízes o cupim da República, fosse o único apanágio da democracia. Por tudo isso, é preciso que não abandonemos os esforços por uma justiça mais eficiente e por uma democracia mais justa. É importante, em suma, não se afastar dos precedentes desta Corte que deram força e respaldo à síntese da Constituição a que se referiu Ulysses Guimarães.
No voto do Ministro Luís Roberto Barroso há importante constatação discursiva dentro do Supremo Tribunal Federal, a necessidade de punir membros do Poder Legislativo. O mesmo se repete no voto da Ministra Laurita Vaz no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, que afirmou a necessidade de afastar a exigência do nexo de causalidade entre a vantagem indevida e o ato de ofício do funcionário Público.
Crime de corrupção é tratado na legislação brasileira apenas sob duas modalidades - passiva e ativa - sem qualquer especificidade da atividade ou função pública em que ocorre. Com isso, há uma grande lacuna, pois a função desempenhada pelo guarda de trânsito não é mesmo do senador. Desta forma, não é possível analisar da mesma forma um ato de corrupção do guarda de trânsito e do representante do Poder Legislativo. Pois, enquanto aquele não trabalha com dinheiro público - sua função é tão somente fiscalizar o cumprimento ou descumprimento das regras de trânsito - o Senador ou Deputado administra diretamente o dinheiro público quando de suas campanhas políticas. Não é possível usar a mesma medida para ambos. O que o Poder Judiciário vem fazer é exatamente a tentativa de adequação do crime de corrupção passiva para os membros do Poder Legislativo e Executivo possam ser punidos, uma vez que o tipo do art. 317, CP foi pensado para o “guarda de trânsito”.
A luta contra corrupção politiza o judiciário e judicializa da política, visto que muitos conflitos que deveriam ser servidos na dialética da conjuntura política acabam sendo trazidas para o Poder Judiciário e acabam por interferir diretamente na disputa de partidos políticos. Assim é formado deslocamento de legitimidade do Estado: do poder executivo e do poder legislativo para o poder judiciário.[7]
Quando o processo penal é utilizado como instrumento para defender uma causa, seja o combate a corrupção ou qualquer outra. Infelizmente, até o presente o Código de Processo Penal não foi complementarmente alterado, nossa lei processual é de 1940 influenciado pelo Código Rocco de 1930 na Itália, e com marcas da Ditadura Vargas. Ao longo destes anos algumas reformas pontuais foram realizadas, mas não de forma estrutural, evoluímos em alguns pontos, mas é preciso que a percepção dos sujeitos processuais adote o paradigma de um processo meramente descritivo, apolítico, neutro e autossuficiente. Isso representa muito para o modelo de Estado e cultura da nossa sociedade, significa a vinculação constitucional, seja pela leitura das regras preexistentes a ela, seja pela reforma posterior, é uma necessidade condicionante do processo penal contemporâneo, de um processo penal democrático, capaz de superar vícios autoritários. [8]
Os discursos de combate a determinados crime é recorrente e cíclico no sistema penal, no momento o discurso é anticorrupção e a ampla criminalização de organizações. Da mesma forma como foi na inquisição das bruxas, com o surgimento do famoso manual de investigação Malleus Maleficarum. É necessário ter cuidado, como destacou Spee na Cauto Criminais, é preciso ter cautela e muita prudência[9] por parte dos sujeitos processuais, graves consequências aos imputados do processo penal podem ser vivenciadas e ao próprio Estado Democrático de Direito.
[1] Mestre em Ciências Jurídica-Criminais pela Faculdade de Direito em Universidade de Coimbra. Advogada Criminal e Professora. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico.
[2] https://www.cartacapital.com.br/cartaexpressa/a-lava-jato-combateu-o-pt-de-forma-eficaz-confessa-moro-em-entrevista/
[3] STF, Inq 4506, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 17/04/2018, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-183 DIVULG 03-09-2018 PUBLIC 04-09-2018.
[4] STJ, RESP 1745410, Relatora para Acórdão Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma. DJE 23 de outubro de 2018
[5] Neste sentido: LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano; GRECO, Luis. A amplitude do tipo penal da corrupção passiva. Disponível em: https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-amplitude-do-tipo-penal-da-corrupcao-passiva-26122018. Acessado em 10 de setembro de 2020.
[6] STF, RHC 144.615, Rel. Min. Edson Fachin, Rel. P/ Acórdão Min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, julgamento 25/08/2020, publicação 27/10/2020.
[7] SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2011. p. 29 e 30.
[8] GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal - Abordagem conforme a CF e o Pacto de São José da Costa Rica. 3ª Ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 87 - 113.
[9] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O nascimento da criminologia crítica. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020. p. 153
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O reconhecimento de pessoas (art. 226, do CPP) à luz da nova orientação jurisprudencial dos Tribunais Superiores: procedimento de caráter obrigatório, que perfaz garantia mínima do suspeito e cuja inobservância enseja a nulidade da prova.
Por: Bárbara Mostachio Ferrassioli e Ronaldo dos Santos Costa
O reconhecimento de pessoas e coisas é um “meio de prova utilizado com a finalidade de obter a identificação de pessoa ou coisa, por meio de um processo psicológico de comparação com elementos do passado[1]”.
Embora previsto no art. 226 do Código de Processo Penal um procedimento detalhado e formal para a produção de tal prova – ainda que defasado no tempo –, sabe-se que, durante muitos anos, a jurisprudência dos tribunais pátrios (lamentavelmente) relativizou a aplicação do rito legal, concebendo à referida norma o caráter deficitário de “mera recomendação”.
Desta deturpada concepção, sobrevieram diversas arbitrariedades, injustiças e erros judiciários em condenações criminais, decorrentes da utilização de reconhecimentos, não raras vezes, baseados em falsas memórias, preconceitos sociais e racismo estrutural.
O cenário mudou, porém, quando o Superior Tribunal de Justiça passou a questionar o tratamento (antes descuidado) da referida norma processual. O precedente consolidado no julgamento do HC 598.886/SC, em 27/10/2020, da lavra e relatoria do Exmo. Min. Rogerio Schietti Cruz, é emblemático quanto à radical mudança no enfrentamento do tema.
Sedimentou-se, pois, a partir do citado julgamento, que “o reconhecimento de pessoas deve, portanto, observar o procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se vê na condição de suspeito da prática de um crime, não se tratando, como se tem compreendido, de "mera recomendação" do legislador.”.
Ou seja, com a mudança no paradigma jurisprudencial, o rito previsto no art. 226 do CPP para o reconhecimento de pessoas recebeu, finalmente, tratamento mais justo e coerente pelo sistema de justiça criminal, erigindo-se à posição de norma cogente e de observância obrigatória, porquanto detentora do status de inderrogável garantia processual penal àquele que ocupa a posição de investigado/acusado.
Na seara do reconhecimento por meio fotográfico, que sequer encontra previsão legal, a realidade experienciada nas Delegacias de Polícia é ainda mais caótica e propícia à ocorrência de falsos reconhecimentos.
A praxe demonstra “reconhecimentos” realizados pela mera exibição de foto do único suspeito (reconhecimento show up), extraídas de redes sociais, em caráter estático e, por vezes, em baixa resolução (isso para ficar em apenas alguns dos tantos problemas que permeiam a questão do reconhecimento fotográfico).
O problema do abandono das fórmulas legais quando da lavratura do auto de reconhecimento – e que parece ter sido finalmente compreendido pelos Tribunais superiores – consiste na alta probabilidade de indução do reconhecedor a falsas memórias, sobretudo pelo sugestionamento exógeno (do delegado, do investigador, do escrivão, etc), que busca meramente confirmar a hipótese investigatória que tem em mente.
É evidente que a chance de uma testemunha reconhecer um suspeito X quando a ela se exibe unicamente uma foto do sujeito X é muito maior do que a chance de ela reconhecer o mesmo sujeito se submetido a reconhecimento pelo rito do art. 226 do CPP. É dizer: o reconhecimento de pessoas, quando realizado sem observância do procedimento próprio ou similar, é altamente suscetível ao sugestionamento externo e, portanto, carece de confiabilidade, mormente na seara da prova processual penal.
Aury Lopes Jr[2]. há tempos alertava sobre o problema das falsas memórias em matéria de prova no processo penal:
As falsas memórias se diferenciam da mentira, essencialmente, porque, nas primeiras, o agente crê honestamente no que está relatando, pois a sugestão é externa (ou interna, mas inconsciente), chegando a sofrer com isso. Já a mentira é um ato consciente, em que a pessoa tem noção do seu espaço de criação e manipulação. Ambos são perigosos para a credibilidade da prova testemunhal, mas as falsas memórias são mais graves, pois a testemunha ou vítima desliza no imaginário sem consciência disso. Daí por que é mais difícil identificar uma falsa memória do que uma mentira, ainda que ambas sejam extremamente prejudiciais ao processo.
É importante destacar que, diferentemente do que se poderia pensar, as imagens não são permanentemente retidas na memória sob a forma de miniaturas ou microfilmes, tendo em vista que qualquer tipo de “cópia” geraria problemas de capacidade de armazenamento, devido à imensa gama de conhecimentos adquiridos ao longo da vida.
Janaina Matida também dedica boa parte de sua contribuição acadêmica ao estudo do reconhecimento de pessoas tal qual realizado no Brasil e o prejuízo decorrente da inobservância das garantias processuais penais. O exemplo trabalhado pela autora em uma de suas produções sobre o tema fala por si[3]:
Entre o início de sua oitiva em juízo e o momento em que apontou Thomas como seu estuprador, a audiência precisou ser suspensa para que Janet se recompusesse. Seu corpo respondia às fortes recordações daquele dia trágico. Perguntada pelo promotor como ela tinha 100% de certeza de que se tratava de seu estuprador, Janet reforçou que nunca seria capaz de esquecer aquele rosto. Thomas foi condenado a mais de 70 anos de prisão, dos quais cumpriu 27. Foi declarado inocente apenas em 2011, a partir da comparação do DNA dele com o material genético colhido por ocasião do estupro cuja incompatibilidade demonstrou, de uma vez por todas, a sua inocência. Em suma, vítimas e testemunhas podem não ter motivos para mentir, o que não afasta o perigo de erros honestos sejam por elas cometidos em razão de falsas memórias.
Essa realidade parece ter sido finalmente admitida, assimilada e, o que é melhor, repudiada pelo STJ[4]. No precedente acima mencionado (HC 598.886-SC) – que resultou na absolvição (em sede de Habeas Corpus!) de paciente condenado com base em reconhecimento fotográfico então declarado nulo –, restaram assentadas as seguintes conclusões, que servem de diretrizes para os reconhecimentos realizados a partir do referido julgamento: “1) O reconhecimento de pessoas deve observar o procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se encontra na condição de suspeito da prática de um crime; 2) À vista dos efeitos e dos riscos de um reconhecimento falho, a inobservância do procedimento descrito na referida norma processual torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita e não poderá servir de lastro a eventual condenação, mesmo se confirmado o reconhecimento em juízo; 3) Pode o magistrado realizar, em juízo, o ato de reconhecimento formal, desde que observado o devido procedimento probatório, bem como pode ele se convencer da autoria delitiva a partir do exame de outras provas que não guardem relação de causa e efeito com o ato viciado de reconhecimento; 4) O reconhecimento do suspeito por simples exibição de fotografia(s) ao reconhecedor, a par de dever seguir o mesmo procedimento do reconhecimento pessoal, há de ser visto como etapa antecedente a eventual reconhecimento pessoal e, portanto, não pode servir como prova em ação penal, ainda que confirmado em juízo.”.
Igualmente atento à nocividade do reconhecimento pessoal equivocado ao processo penal, o CNJ, por meio da Portaria nº 209 de 21 de agosto de 2021, instituiu o “Grupo de Trabalho destinado à realização de estudos e elaboração de proposta de regulamentação de diretrizes e procedimentos para o reconhecimento pessoal em processos criminais e a sua aplicação no âmbito do Poder Judiciário, com vistas a evitar condenação de pessoas inocentes”, coordenado pelo Exmo. Min. Rogério Schietti Cruz.
Segundo o CNJ, “o reconhecimento pessoal equivocado tem sido uma das principais causas de erro judiciário, que faz com que inocentes sejam indevidamente levados ao cárcere”. Os dados levantados pelo órgão e estampados na referia Portaria são alarmantes:
CONSIDERANDO o levantamento realizado pelo Innocence Project nos Estados Unidos, que indica que os reconhecimentos pessoais equivocados são a causa dos erros judiciais em 69% dos casos em que houve a revisão das condenações após a realização do exame de DNA (https://innocenceproject.org/dna-exonerations-in-the-united-states/);
CONSIDERANDO a ampla produção científica¹ acerca da falibilidade da memória humana, passível de sugestionamentos e influenciável por emoções, bem como acerca da diversidade de fatores implicados no ato do reconhecimento, seu alto grau de subjetividade e a suscetibilidade de falhas e distorções;
CONSIDERANDO que em levantamento feito pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, em âmbito nacional, foi identificado que em 60% dos casos de reconhecimento fotográfico equivocado em sede policial houve a decretação da prisão preventiva e, em média, o tempo de prisão foi de 281 dias (aproximadamente 9 meses) (https://www.defensoria.rj.def.br/uploads/arquivos/54f8edabb6d0456698a068a65053420c.pdf );
CONSIDERANDO que em 83% dos casos de reconhecimento equivocado identificados no referido levantamento, as pessoas apontadas eram negras, a denunciar que o procedimento é marcado pela seletividade do sistema penal e pelo racismo estrutural (...).
Mais recentemente, em sessão de julgamento realizada no dia 23/11/2021, o Supremo Tribunal Federal iniciou o julgamento do Recurso Ordinário em Habeas corpus nº 206.846, que também pretende definir se a inobservância do procedimento previsto no art. 226 do CPP constitui causa de nulidade absoluta ou relativa.
Conquanto ainda não finalizado referido julgamento – houve pedido de vista pelo Ministro Ricardo Lewandowski –, o voto do Ministro Gilmar Mendes, relator do caso, acompanha o entendimento sedimentado na Sexta Turma do STJ (HC 598.886/SC), pretendendo aprimorar a confiabilidade do reconhecimento pessoal enquanto meio de prova no processo penal brasileiro a partir de três teses prospectivas, a saber: “1) O reconhecimento de pessoas, presencial ou por fotografia, deve observar o procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se encontra na condição de suspeito da prática de um crime e para uma verificação dos fatos mais justa e precisa; 2) A inobservância do procedimento descrito na referida norma processual torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita, de modo que tal elemento não poderá fundamentar eventual condenação ou decretação de prisão cautelar, mesmo se refeito e confirmado o reconhecimento em Juízo. Se declarada a irregularidade do ato, eventual condenação já proferida poderá ser mantida, se fundamentada em provas independentes e não contaminadas; 3) A realização do ato de reconhecimento pessoal carece de justificação em elementos que indiquem, ainda que em juízo de verossimilhança, a autoria do fato investigado, de modo a se vedarem medidas investigativas genéricas e arbitrárias, que potencializam erros na verificação dos fatos”.
Significa, portanto, que, a partir da nova interpretação conferida à norma pelo STJ – que, a princípio, vem sendo referendada pelo STF –, a inobservância do procedimento legal na realização do reconhecimento pessoal atrai como consequência a nulidade (absoluta) da prova, que não pode servir para embasar eventual condenação criminal ou sequer o recebimento de denúncias (quando ausentes outros indícios válidos de autoria no início da persecução penal).
A mudança jurisprudencial, conquanto tardia, é recebida com aplausos. Sem dúvida, em um processo penal democrático e de base garantista, como deve ser o brasileiro, tornar mandatória a observância do procedimento legal do reconhecimento pessoal, ao menos até que advenha norma específica e atualizada a aprimorar a produção desta prova, representa não apenas uma necessidade emergente para melhoria da confiabilidade da prova processual penal, mas, sobretudo, importante iniciativa no combate ao racismo estrutural e à seletividade penal.
[1] LOPES, Mariângela T. O reconhecimento como meio de prova: necessidade de reformulação do direito brasileiro. Tese de Doutorado em Direito – Universidade de São Paulo, 2011. p. 23.
[2] Vide interessante artigo sobre o tema em https://www.conjur.com.br/2014-set-19/limite-penal-voce-confia-memoria-processo-penal-depende-dela?.
[3] Vide artigo completo em < https://www.conjur.com.br/2020-set-18/limite-penal-reconhecimento-pessoas-nao-porta-aberta-seletividade-penal?pagina=2>
[4] Outro precedente de peso nesta virada de paradigma jurisprudencial trata-se do acórdão resultante do julgamento do HC nº 652.284/ SC, de relatoria do Ministro Reynaldo Soares da Fonseca.
Ronaldo dos Santos Costa é advogado criminalista e sócio do escritório Gilson Bonato, Ronaldo Costa e Advogados.
Bárbara Mostachio Ferrassioli, é advogada criminalista e coordenadora do núcleo de Direito Penal do escritório Karsptein Falavinha Advocacia.
Este artigo reflete a opinião de seus autores e não necessariamente a opinião do IBDPE.
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OS PRINCIPAIS ENTRAVES FISCALIZATÓRIOS DA LAVAGEM DE CAPITAIS POR MEIO DE BITCOIN
Por: José Eugênio da Silva Mendes
Com o fito de superar falhas em compras online, de modo que estas pudessem ser realizadas de maneira anônima e sem a necessidade de uma instituição financeira atuando como intermediadora das transações, em 2008 foi criado o Bitcoin, a primeira criptomoeda do mundo. De lá para cá a utilização deste tipo de ativo cresceu de maneira exponencial, de modo que há países, como El Salvador, que já adotam o Bitcoin como moeda oficial.
A utilização das criptomoedas, no geral, traz diversas vantagens para o usuário, como taxas nulas ou muito baixas para a sua transferência, a velocidade das transações, a inexistência de fronteiras, podendo funcionar também como um investimento, entre outras, características que justificam os mais de 220 milhões de usuários (EXAME, 2021).
Não obstante os diversos avanços que as moedas digitais trazem, são estas também muito propicias a serem utilizadas na lavagem de capitais, justamente por se tratar de um ativo que, até o primeiro momento, não é rastreável e é descentralizado de uma entidade estatal.
Assim, o presente trabalho tem por objetivo descrever o crime de lavagem de dinheiro e suas fases, explicitar como funcionam as criptomoedas, e ainda, entender de que modo o Bitcoin pode ser utilizada para referido delito? A metodologia utilizada neste artigo é a explicativa, realizada através de pesquisa bibliográfica em livros, artigos acadêmicos e notícias, coletadas mídias de grande circulação.
A Lavagem de Capitais
A globalização é um fenômeno que remonta desde a antiguidade, com o expansionismo grego e mais tarde com o Império Romano. Já a atual globalização tem início em meados do séc. XV até o séc. XVIII, com a expansão marítimo-comercial européia. Como consequência da globalização houve um fortalecimento do livre comércio e do mercado, com a facilitação de transação entre os países, fato facilmente perceptível visto que nunca antes foi tão fácil abrir empresas em diversos países ou realizar movimentações financeiras.
Nesse sentido, o crime organizado se aproveita de tal situação para realizar diversos delitos, entre eles a lavagem de dinheiro, conceituada como: “(...) tratamento de proventos de origem, existência e/ou aplicação ilícita com a finalidade de ocultar e dissimular a referida ilicitude.” (RODRIGUES, p. 12). Conforme lecionam Calegari e Weber, referido crime podeser dividido em três fases distintas, quais sejam a fase de ocultação ou colocação, estratificação ou escurecimento e integração ou lavagem propriamente dita (CERVINI, OLIVEIRA, GOMES, p. 11-12). Frise-se que as fases são autônomas entre si e muitas vezes não ocorrem simultaneamente.
Na primeira fase o autor do delito ou aquele que está buscando a lavagem do dinheiro busca ocultar os valores ilicitamente recebidos através de instituições financeiras e não financeiras, como vendedores de joias, casas de câmbio e até mesmo com brokers da bolsa de valores.1 Neste momento da lavagem é que os criminosos se encontram em maior grau de vulnerabilidade, visto que as instituições já tem conhecimento de suas atividades ilegais.
Já na segunda fase de estratificação ou escurecimento, o que se pretende é dificultar a descoberta da origem do dinheiro, o que se faz pela superposição de diversas transações, tais como a manipulação de mercados ou o superfaturamento da venda de mercadorias.
Por fim a terceira fase tem o condão de reintroduzir os bens ao mercado tradicional, o que é feito para que o dinheiro novamente possa ser reinvestido em atividades ilícitas e para que a máquina que garante que ela aconteça continue a girar. Antes de voltar aos países de origem muitas vezes esse capital vai a paraísos fiscais, que o recebem de braços abertos. Tal retorno do capital ilícito ocorre, por exemplo, através de empréstimos solicitados no exterior, justamente para as empresas onde se encontra o dinheiro (CERVINI, OLIVEIRA, GOMES, p. 83).
No que tange a legislação brasileira, a Lei 9.613/98 em seu artigo 1º prevê como crime: “Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.”. (BRASIL, Lei 9.613/98)
O bitcoin e os entraves fiscalizatórios
O bitcoin pode ser conceituado como uma moeda, assim como o real, mas que diferentemente deste não foi emitida por qualquer governo e tem seu valor estipulado pelos indivíduos no mercado. Tal independência governamental só é possível pois ele utiliza um sistema peer-to-peer ou ponto a ponto, que permite que transações possam ser feitas diretamente entre usuários sem que um intermediário precise intervir.
Outra característica do bitcoin é ser open source, i.e., ter seu código aberto, o que permite que sua codificação seja visualizada e que suas inconsistências sejam encontradas,enquanto que, se o sistema fosse fechado, apenas colaboradores de uma determinada organização teriam acesso a tais complexos (CAMARA, 2014, p. 31)
Em relação à aquisição do bitcoin, esta pode se dar de duas maneiras, a mineração, que ocorre quando o usuário através do processamento da rede valida os códigos e assim “cria” novas unidades, também, por meio de casas de câmbio digitais, ou ainda, como pagamento por determinado produto ou serviço, já que hoje uma grande quantidade de empresas aceita tal moeda como forma de pagamento.
Por não ser regulamentado o bitcoin não há controle de qualquer órgão, o que dificulta a tributação e também o controle dos delitos que podem ser cometidos utilizando-se dele. No que toca a lavagem de dinheiro a descentralização e o pseudoanonimato são os principais fatores que a favorecem. A primeira pois não sendo tal moeda digital atrelada a qualquer órgão não há como aplicar sobre ela as regulações antilavagem de dinheiro (ALD), que preveria uma fiscalização sobre as exchanges, ou casas de câmbios do bitcoin (RODRIGUES, p. 7).
Outro fator determinante para que a lavagem de dinheiro possa ocorrer através do bitcoin relaciona-se aos diferentes níveis do pseudoanonimato. Isto porque apesar de ser possível verificar movimentações realizadas por diversas carteiras nas exchanges, não é possível determinar quem são os donos destes ativos. Sobre o assunto explicita Gustavo Rodrigues:
Daí a importância de jurisdições de sigilo para os sujeitos delitivos, sobretudo durante a fase de estratificação. Ao desvincular as identidades das partes na plataforma de qualquer dado que as identifique fora dela, as criptomoedas automatizam o sigilo financeiro de forma que não pode ser revertida pela via regulatória. Isso é agravado pela existência de misturadores de criptomoedas (cryptocurrency tumblers ou mixers), os quais dificultam ainda mais a identificação das partes. (RODRIGUES, p. 12)
O pseudoanonimato tem influência também nas outras fases da lavagem, na primeira fase, de colocação, porque esta pode ser realizada sem que se saibam quem são as pessoas que estão movimentando o dinheiro e na última, de integração pois permite que os proventos das atividades ilícitas sejam enviados anonimamente e não possam mais ser rastreados (RODRIGUES, p. 14).
A última característica com preponderância para a ocorrência da lavagem de capitais através do bitcoin é a transação em tempo real, que faz com que valores possam ser transferidos para outro país, na fase de colocação, que haja pouco tempo para interceptações em caso de
transações suspeitas, na fase de estratificação e por fim, a possibilidade de rápida movimentação pelo sistema financeiro global, na fase de integração (RODRIGUES, p. 14).
Considerações Finais
A cada dia o uso do bitcoin mais é difundido, seja pela aprovação de ETFs (fundos de investimento), que agora permitem a comercialização do bitcoin no mercado financeiro tradicional, ou ainda, por grandes empresas, como a automotiva BMW que aceita pagamento através dessa moeda digital.
Tendo em vista a possibilidade de utilização de tal criptomoeda para meios espúrios, como demonstrado alhures, fica cristalina a necessidade de que haja uma regulamentação sobre o Bitcoin. Somente com uma legislação que reja esta moeda digital será possível que os órgãos de controle possam se debruçar sobre as transações realizadas e evitar a ocorrência de crimes de lavagem ou ainda, que torne-se possível investigá-los com mais chances de êxito.
Contudo, importante ressaltar que o Bitcoin e todas as criptomoedas tratam-se de uma tecnologia revolucionária, que tem muito a contribuir para o desenvolvimento da sociedade, não devendo ser visto como algo negativo pelo mau uso que alguns fazem destes ativos.
REFERÊNCIAS
O avanço das criptomoedas e o perigoso silêncio da lei brasileira. O Estado de São Paulo. Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/o-avanco-das- criptomoedas-e-o-perigoso-silencio-da-lei-brasileira/>. Acesso em 04/10/2021
Número de usuário de criptomoedas dobras nos últimos seis meses. Exame. Disponível em:
<https://exame.com/future-of-money/numero-de-usuarios-de-criptomoedas-dobra-nos- ultimos-seis-meses/>. Acesso em 04/10/2021
Todas as Criptomoedas. CoinmarketCap. Disponível em: <https://coinmarketcap.com/pt- br/all/views/all/>. Acesso em 04/10/2021.
BIJOS, Leila, ALMEIDA, Marcio José de Magalhães. A GLOBALIZAÇÃO E A “LAVAGEM” DE DINHEIRO: medidas internacionais de combate ao delito e reflexos no Brasil. Revista CEJ, Brasília, Ano XIX, n. 65, p. 84-96, jan./abr. 2015.
CALLEGARI, André Luís, WEBER, Ariel Barazzetti. Lavagem de dinheiro. São Paulo: Atlas, 2014.
BRASIL, LEI Nº 9.613, DE 3 DE MARÇO DE 1998. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9613.htm>. Acesso em 08/10/2021.
CAMARA, Michele Pacheco. O Bitcoin é alternativa aos meios de pagamento tradicionais?. Monografia, Escola de Administração da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014.
CERVINI, Raúl, OLIVEIRA, William Terra de, GOMES, Luiz Flávio. Lei de lavagem de capitais: comentários à lei 9.613/98. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998.
RODRIGUES, Gustavo, KURTZ, Lahis. Criptomoedas e regulação antilavagem de dinheiro no G20. Instituto de referência em internet e sociedade.
VIEIRA, Stephanie Gonçalves. LAVAGEM DE DINHEIRO: POSSIBILIDADES DE BRANQUEAMENTO DE CAPITAIS COM USO DE BITCOIN. Monografia, Centro
Universitário de Brasília – UniCEUB, 2017.
1 CERVINI, Raúl, OLIVEIRA, William Terra de, GOMES, Luiz Flávio. Lei de lavagem de capitais: comentários à lei 9.613/98. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998. p. 104.
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O PROJETO DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL: A INVESTIGAÇÃO DEFENSIVA NA PERSPECTIVA DA DISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA
Por: Claudia da Rocha e Marlus Arns de Oliveira
O Projeto de Lei n. 8.045/2010, que objetiva instituir o Novo Código de Processo Penal, segue na Câmara dos Deputados. O substitutivo, que ainda pode sofrer alterações, engloba 372 propostas de mudanças na legislação, possuindo ao todo 827 artigos.
É importante lembrar que o Código de Processo Penal em vigor é de 1941, fortemente inspirado no Código Rocco da época de Mussolini, possui viés claramente autoritário, ligado ao ideário fascista e com estrutura inquisitorial. Embora tenha sido por diversas vezes reformado, a sua estrutura base mantém-se.
Desse modo, parece-nos clara a necessidade de substituição da Lei Processual Penal por uma que corresponda ao espírito da Constituição da República de 1988, isto é, que seja edificada sobre um sistema que, de fato, seja acusatório. Logo, tendo em mente que o processo penal deve ser lido à luz da ordem constitucional, objetivamos formular algumas considerações sobre o instituto da investigação defensiva, que se pauta principalmente no direito constitucional ao contraditório e à ampla defesa, desde a fase pré-processual[1].
Esclarece-se que o assunto não é novidade no direito brasileiro, sendo, atualmente, regulado pelo Provimento n. 118/2018 do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, que compreende a investigação defensiva como “o complexo de atividades de natureza investigatória desenvolvido pelo advogado, com ou sem assistência de consultor técnico ou outros profissionais legalmente habilitados, em qualquer fase da persecução penal, procedimento ou grau de jurisdição, visando à obtenção de elementos de prova destinados à constituição de acervo probatório lícito, para a tutela de direitos de seu constituinte” (art. 1º).
Ainda, conforme o artigo 2º do referido Provimento, a “investigação defensiva pode ser desenvolvida na etapa de investigação preliminar, no decorrer da instrução processual em juízo, na fase recursal em qualquer grau, durante a execução penal e, ainda, como medida preparatória para a propositura da revisão criminal ou em seu decorrer”. Dessa forma, não há limite temporal para a utilização do instituto, o qual pode, conforme a oportunidade e a conveniência, ser empregado a qualquer tempo.
Por sua vez, no Projeto do Novo Código de Processo Penal, o tema é tratado nos artigos 47 a 49, os quais trazem a possibilidade de o “advogado ou defensor público, na condução da investigação defensiva, promover diretamente diligências investigatórias necessárias ao esclarecimento de determinado fato, em especial a coleta de depoimentos, pesquisa e obtenção de dados e informações disponíveis em órgãos públicos ou privados, elaboração de laudos e exames periciais por profissionais privados, ressalvadas as hipóteses de reserva de jurisdição e os procedimentos previstos na legislação de acesso à informação”.
Nota-se que a regulamentação acerca da investigação defensiva pretende diminuir a disparidade de armas entre a acusação e a defesa, bem como afastar as tentativas de criminalização da advocacia criminal. Assim, andou bem o legislador ao almejar garantir a isonomia entre as partes na persecução penal e o direito de defesa do imputado.
Porém, é necessário ficar atento para que não haja o desvirtuamento do instituto. Nesse sentido, para ilustrar o problema em debate, menciona-se que, no caso de crime doloso contra a vida, no projeto do novo Código de Processo Penal, houve o alargamento do prazo da resposta, de 10 (dez) para 45 (quarenta e cinco) dias, na hipótese de o juiz não rejeitar a denúncia liminarmente, sob a justificativa de propiciar uma investigação defensiva, a fim de que a defesa possa apresentar documentos e elementos que entender pertinentes para a desclassificação ou absolvição sumária[2]. Ao lado disso, elimina-se a primeira fase do procedimento do júri, pois o Juiz deve decidir se recebe a inicial acusatória após a resposta da defesa e esse recebimento equivale à submissão do acusado ao júri.
Então, enquanto, de um lado, aumenta-se o prazo da resposta, de modo a possibilitar a investigação defensiva, de outro, exclui-se a primeira fase do procedimento do júri. Por isso, é preciso olhar atentamente a situação. Primeiro, deve-se proporcionar à defesa instrumentos capazes de proporcionar uma efetiva investigação, para que o mecanismo não seja apenas uma falácia legislativa.
A título exemplificativo, destaca-se que, além do poder de requisição, o Ministério Público possui acesso a inúmeros sistemas indisponíveis à defesa. Frise-se que não prevalece aqui a discussão quanto à dicotomia entre o interesse público e o interesse particular. O Parquet, como principal destinatário do inquérito policial, representando o Estado-acusação, foi estruturado para manifestar uma opinião independente e para buscar elementos de sua convicção, de sorte que o acusado, para melhor demonstrar sua versão dos fatos, a fim corroborar com provas as suas alegações, deve ter também acesso a um arcabouço de informações para não fazer do texto um incremento natimorto.
Em segundo lugar, esse instituto deve ser compreendido como uma faculdade e não um ônus disfarçado de comprovação da inocência, sendo oportuno lembrar, nesse ponto, que inúmeros acusados vulneráveis financeiramente possivelmente não terão condições de concretizar esse instituto.
A investigação defensiva não pode, ainda que não declaradamente, ser utilizada para redistribuir-se o ônus da prova, no sentido de aumentar o encargo que recai sobre a defesa de buscar fontes de prova capazes de comprovar a inocência do imputado. O ponto de partida de toda persecução penal deve ser a incerteza, afirmada pela presunção da inocência, cabendo à acusação o ônus da prova sobre o fato típico, autoria ou participação, nexo causal e elemento subjetivo. À defesa incumbe provar a presença de eventual causa excludente da ilicitude, da culpabilidade ou extintiva da punibilidade.
É inconcebível, portanto, qualquer alegação no sentido de que a defesa tinha à disposição a possibilidade de angariar elementos que comprovassem a inocência do acusado, de modo que, ao não fazê-lo, considera-se verdadeira a versão acusatória, pois não se exige da defesa uma prova cabal acerca das teses, bastando que produza um estado de dúvida razoável para que o acusado seja absolvido. Há uma distinção no tocante ao quantum necessário para cumprir o ônus da prova, não podendo a investigação defensiva ser utilizada para alterar essa distribuição.
Por fim, é necessário lembrar que o processo penal, em um Estado Democrático de Direito, não pode ser concebido como mero instrumento para diminuir a impunidade, mas sim como um diploma limitador do poder estatal e garantidor do indivíduo. O discurso de combate à criminalidade não pode legitimar, em hipótese alguma, a flexibilização das regras processuais penais e nem mesmo a sua alteração em prejuízo do acusado.
Claudia da Rocha é Advogada, pós-graduada em Direito Constitucional pelo IDCC, em Direito e Processo Penal pela UEL, pós-graduanda em Direito Penal Econômico pelo IDPEE/IBCCRIM, mestranda em Direito Negocial na UEL e professora de Direito Penal, Processo Penal e Prática Penal no Centro Universitário Unifamma.
Marus H. Arns de Oliveira é Advogado sócio de Arns de Oliveira & Andreazza Advogados Associados e Doutor em Direito pela PUC/PR.
[1] PEZZOTTI, Olavo Evangelista; BECHARA, Fábio Ramazzini. Investigação Defensiva no projeto do novo CPP: disparidade de armas. Jota, 2021. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/investigacao-defensiva-no-projeto-do-novo-cpp-disparidade-de-armas-10052021. Acesso em 02 de ago. de 2021.
[2] PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz; AVELAR, Daniel Ribeiro Surdi de. Tribunal do Júri: avança na Câmara a Reforma do Código de Processo Penal, Consultor Jurídico, 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-abr-15/avelar-faucz-avanca-camara-reforma-cpp. Acesso em 02 de ago. de 2021.
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NÃO EXISTE FURTO DE BITCOINS
Por: Felipe Américo Moraes[1]
Neste mês ocorreu o maior ataque cibernético da história em termos financeiros: foram mais de 3 bilhões de reais em criptoativos desviados de uma plataforma de Finanças Descentralizadas (DeFi). Para tanto, o indivíduo que realizou o crime abusou de uma falha de segurança da rede, o que lhe permitiu se apropriar de diversos tokens das redes Ethereum e Binance Smart Chain.
A mídia especializada noticiou o fato afirmando que o autor do ataque teria praticado o crime de furto. Por exemplo, foi o caso da matéria jornalística da BBC, intitulada “o audacioso golpe de hackers que furtou mais de R$ 3,1 bilhões de criptomoedas”[2].
Essa afirmação faz surgir a dúvida se bitcoins – e outros criptoativos – podem ser o objeto material do crime de furto. Isso porque esse delito, previsto no art. 155 do CP, afirma ser proibida a conduta daquele que subtrai, para si ou para outrem, coisa alheia móvel. A questão é: os criptoativos podem ser considerados “coisa móvel”? Esse mesmo problema poderia ser colocado de maneira ainda mais simples caso se pensasse em outra situação hipotética: caso de um indivíduo que acesse clandestinamente uma “carteira de criptoativos” de terceiro e subtraia os ativos ali custodiados, enviando-os para sua “carteira” determinada quantidade de bitcoins, a conduta configuraria o delito de furto?
A resposta institivamente pode acabar sendo positiva. Afinal, a dinâmica das transações com criptoativos são – ao menos, aparentemente – semelhantes às realizadas mediante aplicativos de bancos (ou internet banking): o indivíduo acessa a aplicação que lhe permite consultar e enviar os valores depositados em determinada conta bancária e realiza a transferência para a conta bancária do destinatário. No caso do furto, o acesso é feito de maneira clandestina – mediante fraude ou destreza –, o que permite ao agente praticar a conduta prevista no tipo: subtrair coisa alheia móvel, no caso, dinheiro.
É nesse contexto que ocorre uma interpretação por analogia entre ambas as condutas. O raciocínio acaba sendo o seguinte: se nos casos envolvendo transações via internet banking há o acesso a um dispositivo eletrônico que permite o envio do saldo bancário à outra conta e isso configura o delito de furto; se no caso da subtração de criptoativos também ocorre o acesso a um dispositivo (ou aplicação) eletrônico que permite o envio à outra “carteira”; logo, ambas as condutas configuram o delito de furto. Correto? Entendo que não.
É verdade que a dinâmica desse delito é bastante semelhante ao furto ocorrido em uma conta bancária tradicional. Todavia, no sistema Bitcoin, todas as nomenclaturas utilizadas – como “moedas”, “carteiras”, “endereços”, e assim por diante – são abstrações criadas para permitir ao usuário uma mais fácil compreensão do sistema. Na prática, todos esses termos não existem. Sequer é possível dizer que existem “moedas” ou “carteiras”, por exemplo. Assim, para responder se é possível furtar bitcoins é preciso responder as seguintes perguntas: o que significa o conceito de “coisa móvel” exigida pelo tipo de furto? O que, tecnicamente, é um bitcoin? onde esse ativo está fisicamente localizado? E, por último: o bitcoin – ou outros criptoativos – se adequa ao conceito de “coisa móvel” exigida pelo tipo?
Para a doutrina, “coisa móvel” é compreendida como “tudo o que possa der deslocado de um lado para o outro”[3]. Para Bitencourt, é “todo e qualquer objeto passível de deslocamento, de remoção, apreensão, apossamento ou transporte de um lugar para o outro”.[4] Para ser ainda mais preciso, esse autor recorre à Hungria, sugerindo que “a noção desta, em direito penal, é escrupulosamente realística, não admitindo as equiparações fictícias do direito civil”[5]. Com essa posição concorda Busato, quando afirma que “o conceito de móvel e imóvel do Direito penal não guarda relação direta com os conceitos de móvel e imóvel do Direito civil ou comercial, sendo um conceito mais voltado à realidade física do que propriamente de uma ideia jurídica”.[6] Neste passo, concorda-se que “coisa móvel” é, portanto, todo objeto que permite movimentação no mundo físico, independentemente do significado jurídico.
Mesmo assim, remanesce um ponto que poderia suscitar maior abrangência do objeto material do delito. O § 3º afirma ser equiparável à “coisa móvel” a energia elétrica “ou qualquer outra que tenha valor econômico”. Apesar de o termo empregado ser amplo, entende-se que está evidentemente relacionado com a parte inicial, a “energia”. Ou seja, entende-se como “coisa móvel” a energia elétrica ou qualquer outro tipo de energia, desde que tenha valor econômico. É o que afirma Prado quando comenta que “a norma em epígrafe também equipara a coisa móvel qualquer outra energia, além da energia elétrica”.[7]
Dito isso, passa-se a aborda o que são bitcons.
Como dito, o termo “moeda” é uma abstração. Bitcoins são nada mais do que o resultado de anotações em um banco de dados distribuído, chamado de blockchain. Nesse banco de dados são registrados uma relação de todos os bitcoins existentes (representados em suas frações) e, principalmente, as respectivas chaves criptográficas que garantem o acesso à cada frações dessa criptomoeda.
Nessa dinâmica, a posse e propriedade de cada bitcoin de um usuário é determinada, em verdade, pela posse da respectiva chave criptográfica que garante o acesso – e capacidade de alteração – desse banco de dados. Isso porque, uma vez que o usuário detém a chave criptográfica que dá acesso à determinada fração de bitcoins, ele poderá enviar a criptomoeda a qualquer outro usuário. Para tanto, bastará a ele (i) comprovar ao sistema que possui a respectiva chave criptográfica e (ii) informar – também ao sistema – a chave criptográfica do destinatário da transação, representada pelo “endereço”. Dessa forma, haverá a alteração desse banco de dados – ou, mais precisamente, a criação de um novo bloco, na blockchain. Isso fará com que aquela fração de bitcoins deixe de ser disponível pelo remetente, passando a ser disponível somente pelo destinatário. Assim é realizada, tecnicamente, uma transação com bitcoins.[8]
Essa dinâmica permite compreender a função das “carteiras de criptoativos”. Elas, diferentemente do que instintivamente se acredita, não servem para armazenar (dentro de si) os bitcoins, mas somente para gerenciar as chaves criptográficas dos usuários. Os bitcoins são, em verdade, o produto final de todos os registros lançados na blockchain (tecnicamente chamados de “saídas de transações não gastas”, ou UTXO). Em outras palavras – e a grosso modo –, os bitcoins estão localizados na blockchain.
Agora, se os bitcoins estão localizados na blockchain, poderia supor o leitor que seria necessário identificar a localização desse banco de dados. No entanto, isso não é preciso. No caso do sistema Bitcoin, a blockchain está localizada nos diversos computadores (chamados de nós) conectados à rede e que armazenam uma cópia de todas as transações realizadas desde o momento de seu surgimento. Todavia, ainda que assim não fosse – e a blockchain estivesse em um único local físico – as transações com bitcoins continuariam sendo simples alterações nesse banco de dados.
Dessa forma, conhecer a localização física da blockchain é irrelevante para determinar se bitcoins podem configurar “coisa móvel”. Uma vez que eles são meras informações armazenadas em bancos de dados, de forma que suas transações significam exclusivamente a alteração das informações ali contidas, é possível concluir que bitcoins não são passíveis de movimentação física. É dizer que o bitcoin não preenche, portanto, o conceito de “coisa móvel” exigida pelo tipo de furto.
Nessa dinâmica, quando um hacker (ou cracker) subtrai para si determinada quantidade de criptoativos, entende-se ser incorreto afirmar que ele praticou o delito de furto. O correto seria afirmar que houve uma “invasão de dispositivo informático com efeitos patrimoniais”, isto é, o tipo penal previsto no art. 154-A do Código Penal. Isso porque a conduta se adequa perfeitamente a esse tipo, o qual afirma ser proibida a conduta de invadir dispositivo informático de uso alheio, conectado ou não à rede de computadores, com o fim de obter ou adulterar dados ou informações sem autorização.
Assim, entende-se que as duas condutas sugeridas no início deste artigo não configuram o delito de furto, mas invasão de dispositivo informático. O agente que abusa de vulnerabilidades de sistemas de Finanças Descentralizadas (DeFi) para se apropriar dos criptoativos dessa rede acaba por invadir a rede e adulterando o banco de dados (a blockchain), para garantir a ele o acesso e capacidade de disposição. Da mesma forma, o indivíduo que acessa clandestinamente uma “carteira de criptoativos” e envia para um “endereço” de seu controle determinada quantidade de bitcoins pratica o mesmo delito, visto que utiliza essa “carteira” para alterar a blockchain.
O efeito prático da solução desse conflito aparente de normas é quanto à pena e às condições para ação penal. Caso fosse considerado o delito de furto, a pena seria de 2 (dois) a 8 (oito) anos. Isso porque a prática seria considerada um furto mediante fraude e/ou destreza (art. 155, § 4º, CP). Entretanto, uma vez entendendo que o crime praticado é de invasão de dispositivo informático com prejuízos econômicos (art. 154-A, § 2, CP), a pena seria de 1 (um) a 4 (quatro) anos, incidindo a causa de aumento de pena de 1/3 a 2/3. Além disso, a ação penal desse delito é pública e condicionada à representação (art. 154-B, CP). Ou seja, diferentemente do furto, esses delitos estão sujeitos à decadência caso não haja representação dentro do prazo legal.
A posição defendida neste artigo é fruto do estrito respeito ao princípio da legalidade, sobretudo diante da vedação de interpretações extensivas em Direito penal em prejuízo do acusado. Por outro lado, parece evidente o descompasso em considerar uma conduta que resulta na apropriação de criptoativos, socialmente idêntica a qualquer espécie de furto de outros bens patrimoniais, seja considerado um delito distinto e, principalmente, com pena inferior. Entende-se que tal incongruência é causada exclusivamente pelo surgimento dos novos modelos de realidade advindos das evoluções tecnológicas, mas que não foram tempestivamente absorvidos pelo texto legal. Assim, enquanto a problemática não for solucionada mediante a edição de novas normas penais que se adequem às alterações do mundo, entende-se que a interpretação mais precisa seja afastar o bitcoin – e outros criptoativos – como objeto material do delito de furto.
[1] Mestre em Direito pela Universidade Curitiba, especialista em Direito Penal Econômico e Empresarial. É advogado na Beno Brandão Advogados Associados. e-mail: felipe@benobrandao.com.br
[2] BBC. O audacioso golpe de hackers que furtou mais de R$ 3.1 bilhões em criptomoedas. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-58164420. Acesso em: 18 ago. 2021.
[3] BUSATO, Paulo César. Direito Penal – parte especial – 3ª edição. São Paulo: editora Atlas, 2017. p. 441.
[4] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – volume 3 – 15ª edição. São Paulo: editora Saraiva, 2019. p. 39.
[5] HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal, p. 21 apud BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – volume 3 – 15ª edição. São Paulo: editora Saraiva, 2019. p. 39.
[6] BUSATO, Paulo César. Op. Cit. p. 441.
[7] PRADO, Luiz Regis. Tratado de Direito Penal – volume 5. São Paulo: editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 79.
[8] ANTONOPOULOS, Andreas M. Mastering Bitcoin: Programming the open blockchain. O'Reilly Media, Inc., 2017. p. 60.
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