Por: Augusto Cesar Piaskoski* e José Laurindo de Souza Netto**

Em 9 de agosto de 2021, foi publicada a Lei n.º 14.193/2021, que permitiu que clubes de futebol constituídos a partir do modelo de associação civil sem fins lucrativos, ou sociedades empresárias dedicadas ao fomento e à prática do futebol, pudessem optar por uma nova estruturação societária, definida pela Lei como “Sociedade Anônima de Futebol” – (SAF).

A nova estrutura societária visa, entre outras finalidades, a estabelecer mecanismos de governança mais eficazes para o futebol brasileiro, sobretudo naquilo que diz respeito às medidas de transparência e regras para responsabilização de dirigentes por eventuais irregularidades praticadas no exercício de cada gestão, além de criar uma série normas gerais voltadas aos procedimentos de constituição, governança, controle e formas de financiamento da atividade futebolística[1].

Em termos de gestão, a Lei promove medidas de incentivo a reorganização e reestruturação financeira do clube, ou pessoa jurídica original, que busque aderir ao formato da SAF (Seção IV da Lei n.º 14.193/2021), além de dedicar uma seção inteira à previsão de regras de governança que deverão ser observadas pelas SAFs (Seção III).

Dentre os mecanismos de governança elencados pela Seção III da Lei n.º 14.193/2021, merecem especial destaque aquelas previsões contidas nos art. 4º, 5º, 6º e 7º da Lei, que tratam de situações de conflito de interesse envolvendo membros que integram os órgãos de vértice das SAFs (acionistas, administradores e demais integrantes da cúpula diretiva, ou pessoas jurídicas envolvidas), de modo a limitar a atuação e participação dos sujeitos que possuam qualquer relação conflituosa com a SAF.

Além disso, o art. 8º da Lei prevê uma série de disposições voltadas a políticas de transparência, que obriga a SAF a manter informações atualizadas no seu sítio eletrônico sobre estatutos sociais, atas de assembleias gerais, composição de dados biográficos dos membros da cúpula diretiva, assim como relatórios administrativos acerca dos negócios sociais da SAF.

Ainda, para além das previsões legais feitas pela Lei n.º 14.193/2021, os mecanismos de governança corporativa que serão desenvolvidos internamente pelas SAFs também deverão observar as particularidades do novo modelo jurídico de sociedade por ações, que embora seja regido subsidiariamente pela Lei n.º 6.404/76 (art. 1º, da Lei n.º 14.193/2021), possui natureza e finalidade bastante distinta dos modelos usuais de sociedades por ações.

Por isso, embora pareça adequado atribuir certa semelhança entre os modelos de programas de compliance aplicados às S.A e às SAFs, sobretudo em razão da semelhança organizacional existente entre ambas às instituições, importa ressaltar que a lógica que move o modelo de negócio de cada sociedade – e consequentemente os riscos que serão gerados –  não são os mesmos, o que resultará em uma visão distinta para estruturação dos pilares e ferramentas do programa.

A título exemplificativo, em um modelo hipotético de S.A, cuja atividade tenha por principal finalidade a obtenção de lucro, o acionista não participa da administração da empresa e possui responsabilidade limitada a parcela de capital investido, enquanto a reponsabilidade pela tomada de decisões fica a cargo do administrador. Por isso, a eventual situação conflituosa gerada entre esses indivíduos que integram os órgãos de vértice da sociedade empresária no momento da tomada de decisões poderá decorrer da divergência de interesses entre detentores do capital (acionistas) e detentores do controle do capital (administradores). Nesse caso, a adoção dos mecanismos de governança corporativa servirá, dentre outras finalidades, para: (i) atenuar os chamados “conflitos de agência”[2] entre acionistas e administradores; (ii) otimizar a imagem da empresa perante seus stakeholders; e (iii) orientar a atuação da empresa na busca da obtenção do lucro.

Diferente do que ocorre nesse modelo de sociedade por ações, a atuação da Sociedade Anônima de Futebol não pode – e nem deve – servir aos interesses financeiros dos acionistas e stakeholders, mas sim à prática desportiva e a conquista de títulos para a SAF.

Além disso, para além dos interesses existentes entre acionistas e administradores, também deverão ser considerados os interesses dos torcedores do time, que não devem ser vistos como meros consumidores da empresa, mas como sujeitos interessados na boa gestão e no melhor desempenho das atividades praticadas pela SAF[3].

Por isso é que a implementação dos mecanismos de governança e dos programas de integridade e de compliance nas SAFs deverão ser pensados e desenvolvidos para o fim de atender as particularidades do novo modelo societário de sociedade por ações, que demandará da alta gestão e do setor de compliance o comprometimento em identificar e tratar os principais riscos a que a SAF está sujeita.

Para isso, é claro, deverão ser observadas algumas etapas e mecanismos indispensáveis para a efetiva implementação de um programa de compliance, quais sejam: (i) o levantamento, identificação e gestão dos riscos; (ii) a criação de um Código de Conduta interno com às diretrizes normativas e regras vigentes para a SAF e seus colaboradores; (iii) o treinamento e aperfeiçoamento da formação dos funcionários e colaboradores sobre as diretrizes estabelecidas no Código de Conduta e legislações aplicadas à SAF; (iv) a criação de canais de comunicação e de denúncias de irregularidades; (v) a criação de ferramentas de investigação interna e aplicação de sanções, quando necessárias.

Por fim, a reflexão sobre as melhores estratégias que deverão ser adotadas para o desenvolvimento dos mecanismos internos de integridade deverá considerar a postura que a SAF pretende assumir perante seus stakeholders e torcedores, especialmente naquilo que diz respeito à adoção de ferramentas que permitam alcançar o melhor desempenho da prática desportiva e a implementação de mecanismos de boa gestão baseados na ética e na cultura de integridade.

 

 

Referências bibliográficas

 

[1] BRASIL. Lei n.º 14.193, de 6 de agosto de 2021. Diário Oficial da União: Seção 1, Brasília/DF, Edição 149, p. 3, 09/08/2021.

[2] CHAMELETTE, Mariana. “Compliance como ferramenta para boas práticas de gestão em entidades desportivas”. Coluna Jus Desportiva do IBDD. Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD), São Paulo, 2020. Disponível em: https://ibdd.com.br/compliance-como-ferramenta-para-boas-praticas-de-gestao-em-entidades-desportivas/.

[3] JENSEN, Michael; MECKLING, Willian. Theory of the firm: managerial behavior, agency cost, and ownership structure. Journal os Financial Economics, 1976.

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GUARAGNI, Fábio André. “Princípio da confiança no Direito Penal como argumento em favor de órgãos empresariais em posição de comando e compliance: relações e possibilidades”. In: GUARAGNI, Fábio André e BUSATO, Paulo Cesar (coord.). DAVID, Décio Franco et al. (org.). Compliance e Direito Penal. São Paulo: Atlas, 2016.

JÚNIOR, Filipa Marques; MEDEIROS, João. “A elaboração de programas de compliance”. In: SOUSA MENDES, Paulo de; PALMA, Maria Fernanda; SILVA DIAS, Augusto. Estudos sobre Law Enforcement, Compliance e Direito Penal. Lisboa: Almedina, 2018.

MILLER, Geoffrey Parsons. The Law of Governance, Risk Management and Compliance. New York: Wolters Kluwer, 2017.

PIZARRO, Sebastião Nóbrega. Manual de Compliance, Nova Causa Edições Jurídicas, 2016.

SARAIVA, Renata Machado. Criminal Compliance como instrumento de tutela ambiental: a propósito da responsabilidade penal das empresas. São Paulo: LiberArs, 2018.

 


[1] A exemplo das disposições contidas na Seção III, do Capítulo I e da Seção I, Capítulo II, da Lei. BRASIL. Lei n.º 14.193, de 6 de agosto de 2021. Diário Oficial da União: Seção 1, Brasília/DF, Edição 149, p. 3, 09/08/2021.

[2] Não pretendemos, neste ensaio, aprofundar a discussão sobre a “Teoria da Agência” e os conflitos de agência gerados entre acionistas e administradores. Para um estudo mais aprofundado, indicamos a obra: JENSEN, Michael; MECKLING, Willian. Theory of the firm: managerial behavior, agency cost, and ownership structure. Journal os Financial Economics, 1976.

[3] Cf. CHAMELETTE, Mariana. “Compliance como ferramenta para boas práticas de gestão em entidades desportivas”. Coluna Jus Desportiva do IBDD. Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD), São Paulo, 2020. Disponível em: https://ibdd.com.br/compliance-como-ferramenta-para-boas-praticas-de-gestao-em-entidades-desportivas/. Acesso em: 02/11/2021.


* Assessor técnico no Núcleo de Governança, Riscos e Compliance do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Aluno do Mestrado em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Bacharel em Direito pela Universidade Positivo, com parte da graduação cursada na FGV Rio. E-mail: augusto.piaskoski@gmail.com. Endereço currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0090530005592642. Endereço ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3791-7683.

** Pós-doutor pela Faculdade de Direito da Universidade Degli Studi di Roma – La Sapienza. Estágio de Pós-doutorado em Portugal. Mestre e Doutor pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Graduado em Direito pela Universidade Católica do Paraná – PUC. Professor permanente no Mestrado da Universidade Paranaense – UNIPAR. Projeto de pesquisa Científica – Mediação Comunitária: um mecanismo para a emancipação do ser humano, registrado no CNPQ. Desembargador e Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. E-mail: jln@tjpr.jus.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002- 6950-6128. ID Lattes: http://lattes.cnpq.br/8509259358093260


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