Por: Francisco Torres Soares[1]

Dentro do contexto de combate ao crime de lavagem de capitais, mais precisamente no que concerne à uniformização das medidas de repressão, um dos marcos mais importantes foi a Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, celebrada em Viena em 20 de dezembro de 1988.

Tal convenção foi ratificada pelo Brasil em 26 de junho de 1991 através do Decreto 154/91, o qual continha o compromisso de criminalizar a lavagem de capitais oriundos do tráfico ilícito de entorpecentes, sendo tal intenção sedimentada através da lei 9.613, de 04 de março de 1998.

A novel legislação acabou por ampliar o rol dos crimes antecedentes, prevendo a criminalização da ocultação ou dissimulação da natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente não só do crime de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins, mas também de terrorismo, de terrorismo e seu financiamento, de contrabando ou tráfico de armas, etc.

Em que pese a consolidação do combate à lavagem de capitais através da criação de um tipo penal específico no ordenamento jurídico pátrio com um escopo ampliado em relação àquilo que originalmente se pretendia, o resultado ficou aquém do esperado.

Com efeito, o relatório da avaliação feita pelo GAFI – Grupo de Ação Financeira Internacional, organismo criado em 1989 pelos membros do G7 com o propósito de desenvolver internacionalmente o combate à lavagem de capitais, divulgado em 2011, apresentou várias críticas em relação à lei 9.613/98 e aos resultados de sua aplicação prática.[2]

Diante de tal panorama, o legislador realizou modificações no supracitado diploma através da lei 12.683/12, a qual teve como principal novidade a extinção do rol dos crimes antecedentes, permitindo a configuração do delito com a ocultação ou dissimulação de bens, direitos ou valores oriundos de qualquer infração penal.

A ideia era emparelhar a legislação nacional com as leis mais modernas de combate à lavagem de capitais.[3]

Ocorre que, a partir da entrada em vigor das modificações trazidas pela lei 12.683/12, o alargamento das hipóteses de configuração do delito encontrou base não somente na supracitada alteração legislativa mas também em inovações jurisprudenciais em boa parte impulsionadas pelo clamor da sociedade de então pela punição dos chamados “crimes de colarinho branco”, ainda que às custas do sacrifício de determinadas garantias individuais.

Nessa toada, surgiu a controvertida construção da “lavagem simultânea ou concomitante de capitais”, a qual teve sua aplicabilidade ampliada no bojo da conhecida “Operação Lava Jato”.

O Juízo da 13ª Vara Federal em Curitiba, então sob a titularidade do Juiz Federal Sérgio Fernando Moro, já no contexto da supracitada operação, tinha o repetido entendimento de que a lavagem de capitais somente poderia ocorrer após a  execução da infração penal antecedente.

Entretanto, no julgamento da Ação Penal 5054932-88.2016.4.04.7000/PR, o aludido Juízo alterou abruptamente tal entendimento, justificando que a aplicação do diploma legal deveria acompanhar o desenvolvimento das técnicas de lavagem de capitais, mais especificadamente no que tange à estratégia de já receber, de forma dissimulada, a vantagem indevida do crime de corrupção.

Trata-se, portanto, de um considerável malabarismo para extrair da lei o sentido pretendido para a ocasião.

Vejamos o trecho da sentença da aludida Ação Penal que trata de tal assunto[4]:

  1. Vinha este Juízo adotando a posição de que poder-se-ia falar de lavagem de dinheiro apenas depois de finalizada a conduta pertinente ao crime antecedente.
  2. Assim, por exemplo, só haveria lavagem se, após o recebimento da vantagem indevida do crime de corrupção, fosse o produto submetido a novas condutas de ocultação e dissimulação.
  3. A realidade dos vários julgados na assim denominada Operação Lava jato recomenda alteração desse entendimento.
  4. A sofisticação da prática criminosa tem revelado o emprego de mecanismos de ocultação e dissimulação já quando do repasse da vantagem indevida do crime de corrupção.
  5. Tal sofisticação tem tornado desnecessária, na prática, a adoção de mecanismos de ocultação e dissimulação após o recebimento da vantagem indevida, uma vez que o dinheiro, ao mesmo tempo em que recebido, é ocultado ou a ele é conferida aparência lícita.
  6. Este é o caso, por exemplo, do pagamento de propina através de transações internacionais sub-reptícias. Adotado esse método, a propina já chega ao destinatário, o agente público ou terceiro beneficiário, ocultado e, por vezes, já com aparência de lícita, como quando a transferência é amparada em contrato fraudulento, tornando desnecessária qualquer nova conduta de ocultação ou dissimulação.
  7. Não seria justificável premiar o criminoso por sua maior sofisticação e ardil, ou seja, por ter habilidade em tornar desnecessária ulterior ocultação e dissimulação do produto do crime, já que estes valores já lhe são concomitantemente repassados de forma oculta ou com a aparência de licitude.

(…)

  1. Assim, se no pagamento da vantagem indevida na corrupção, são adotados, ainda que concomitantemente, mecanismos de ocultação e dissimulação aptos a ocultar e a conferir aos valores envolvidos a aparência de lícito, configura-se não só crime de corrupção, mas também de lavagem, uma vez que ocultado o produto do crime de corrupção e a ele conferida a aparência de licitude. Forçoso reconhecer, diante da concomitância, o concurso formal entre corrupção e lavagem para aqueles responsáveis pelas duas condutas.

 

Desta feita, em tal interpretação peculiar da lei de lavagem de capitais, restaram alijadas questões técnicas basilares, tal como a identificação do dispositivo legal que autoriza a ampliação de uma hipótese de punição, demonstrando que as mesmas, naquele contexto, foram vistas muitas vezes como meras formalidades.

Nesse ponto, faz-se necessário retomar o conceito do delito de lavagem de capitais, definido por Marco Antônio de Barros[5]como:

 

Conjunto de operações comerciais e financeiras que buscam a incorporação, na economia de cada país, de modo transitório ou permanente, de recursos, bens e valores de origem ilícita para dar-lhe aparência legal.

 

 

Ou seja, o termo origem ilícita pressupõe uma infração penal concluída, à qual é possível atribuir o caráter criminoso de forma indubitável, pendente apenas de atos de exaurimento, quando cabíveis ao tipo.

Tamanha é a aludida relação de dependência que alguns doutrinadores defendem que a ocorrência da infração prévia funciona como uma elementar do tipo lavagem de capitais[6]:

            Desta feita, a argumentação exposta na sentença supramencionada, isto é, a ideia de que a infração antecedente poderia ser considerada mesmo sem ter sido concluída, afronta claramente o comando legal criando uma exceção não contida na legislação e embasada mormente no entendimento do magistrado.

          Esse alargamento excessivo na interpretação do dispositivo colide de forma elementar com o Princípio da Legalidade, uma das bases do Estado Democrático de Direito e um marco no estabelecimento de uma persecução penal civilizada e moderna.

O ponto de colisão do entendimento da aludida sentença com o preceito em questão ocorre justamente numa das várias consequências do Princípio da Legalidade: O Princípio da Taxatividade (nullum crimen sine lege scripta et stricta).

A taxatividade determina que o julgador deve aplicar a lei nos exatos limites em que foi redigida, não permitindo ao mesmo flexibilizações que podem implicar em abusos.[7]

          Por outro lado, esqueceu-se, na decisão judicial em comento, de que o crime de corrupção passiva, inserido no artigo 317 do Código Penal, resta classificado como um crime formal, cuja prática se dá com a solicitação da vantagem indevida, sendo o pagamento mero exaurimento.

Ou seja, quem solicita (ou recebe a promessa) e depois efetivamente recebe a vantagem indevida comete um só crime, consumado no momento da solicitação ou da promessa.[8]

Assim sendo, a infração penal antecedente, no caso concreto analisado, já tinha sido consumada no momento em que a vantagem indevida fora solicitada (ou mesmo quando a promessa foi feita), sendo, portanto, o pagamento dissimulado um resultado naturalístico irrelevante para a valoração da conduta.

Consequentemente, estamos diante de uma situação clássica de lavagem de capitais, com um crime antecedente perfeitamente consumado seguido de estratégia de dissimulação característica de tal tipo penal.[9]

A configuração do delito, no caso em análise, não dependeria, portanto, de um novel caso de lavagem de capitais sustentado por uma heroica retórica de combate à corrupção, mas sim da aplicação dos dispositivos legais existentes à luz do “enfadonho”, porém sóbrio, conhecimento doutrinário.

 

CONCLUSÃO

A sentença exarada pela 13ª Vara Federal em Curitiba no bojo da Ação Penal 5054932-88.2016.4.04.7000/PR considerou válida a aplicação da teoria da lavagem concomitante de capitais, muito embora tivesse entendimento contrário já consolidado em julgamentos anteriores.

Ocorre que a fundamentação utilizada para tanto foi bastante vaga e até certo ponto, frívola, pois entendeu que a corrupção passiva poderia ser considerada como crime antecedente mesmo antes de sua conclusão para que o criminoso não seja beneficiado pelo próprio ardil e para que o entendimento jurisprudencial acompanhe o aperfeiçoamento das hodiernas práticas delitivas.

Tal embasamento não encontra suficiente fulcro tanto na legislação quanto na doutrina, sendo provável fruto do reducionismo legal comum naquele momento, onde discussões eram resumidas e análises pormenorizadas eram vistas como meras formalidades ou mesmo procrastinações por parte dos defensores dos réus.

Todavia, vemos hoje que a superficialidade na análise das imputações,   somada à pressa em punir, constantemente verificadas na denominada “Operação Lava Jato”, acabaram por prejudicar a própria efetividade da lei penal e a eficiência no combate à criminalidade, visto que a construção de bases frágeis para as condenações deu inegável azo para ulteriores questionamentos nos Tribunais Superiores, o que, em muitas ocasiões, resultou em nulidades processuais vexatórias que jogaram por terra todo um trabalho investigativo.

A situação ora analisada é um exemplo de análise rasa e apressada de um tema de fundamental importância.

Como anteriormente visto, se a sentença em pauta tivesse recorrido ao entendimento doutrinário vigente, teria considerado o delito anterior, no caso a corrupção passiva, devidamente concluído pela mera solicitação ou promessa de vantagem indevida, dada à sua classificação como crime formal, o que levaria ao enquadramento na hipótese clássica de lavagem de capitais, isto é, a dissimulação, ocultação, etc do produto de uma infração penal antecedente.

Como visto, a ideia da lavagem concomitante ou simultânea de capitais representa, na verdade, uma imprecisão técnica, pois se o delito antecedente é formal ou de mera conduta, o mesmo já estaria concluído com a prática do verbo indicado no núcleo do tipo penal, não sendo possível a sua consumação concomitante com a lavagem de capitais, o que conduz à tipificação “clássica” do crime descrito no art. 1º da Lei 9.613/98.

Outrossim, caso estivéssemos diante de um tipo penal classificado como material no tocante ao resultado naturalístico, resta claro que o seu enquadramento como infração penal antecedente, antes de sua consumação, representaria uma afronta grosseira ao Princípio da Legalidade, mais especificadamente à necessária taxatividade na aplicação das leis penais, dado o conteúdo da lei 9.613/98, modificada pela lei 12.683/12.

Destarte, temos aqui um exemplo de como o conhecimento doutrinário, lastreado em análises apartidárias e proeminentemente técnicas, pode fornecer bases mais sólidas para as sentenças criminais, afastando tanto o clamor público quanto o ímpeto pessoal do julgador em prol de um entendimento mais resistente a ulteriores alegações de nulidade, possibilitando, também, uma interpretação mais equilibrada dos dispositivos legais vigentes em detrimento de rocambolescas teorias de propósito claramente condenatório tal como a analisada no presente artigo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BARROS, Marco Antônio de. Lavagem de capitais e obrigações civis correlatas: com comentário, artigo por artigo, à lei 9613/98. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

 

HOFFMANN, Henrique; SANNINI, Francisco. Sobre lavagem de dinheiro simultânea ou concomitante. Curitiba, 2020. Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-ago-11/academia-policia-lavagem-dinheiro-simultanea-ou-concomitante#:~:text=Como%20se%20pode%20perceber%2C%20trata,ensejo%20ao%20concurso%20de%20crimes. Acessado em 26 de março de 2021.

 

LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Criminal Especial Comentada. 3ª Edição. Salvador: Jus Podivum 2015.

 

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 11.ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012

 

PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, parte geral: arts  1º a 120. 8. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.

 

SANCTIS, Fausto Martin de. Delinquência econômica e financeira: colarinho branco, lavagem de dinheiro, mercado de capitais. Rio de Janeiro: Forense, 2015.


[1]    Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Pós-Graduado em Licitações e Contratos Administrativos pelo Centro Universitário Autônomo do Brasil – UNIBRASIL. Pós-Graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDCONST. Militar da Força Aérea Brasileira. Pesquisador na área de Direito Penal Econômico. E-mail: ftsoares82@hotmail.com.


[2]    LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Criminal Especial Comentada. 3ª Edição. Salvador: Jus Podivum 2015. p. 286.

[3]    SANCTIS, Fausto Martin de. Delinquência econômica e financeira: colarinho branco, lavagem de dinheiro, mercado de capitais. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 195.

[4]    13ª Vara Federal em Curitiba. Sentença na Ação penal  5054932-88.2016.4.04.7000/PR. DJ 30/03/2017

[5]    BARROS, Marco Antônio de. Lavagem de capitais e obrigações civis correlatas: com comentário, artigo por artigo, à lei 9613/98. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p.93.

[6]    LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Criminal Especial Comentada. 3ª Edição. Salvador: Jus Podivum 2015. p. 301,

[7]    PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, parte geral: arts  1ºa 120. 8. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 133.

[8]    NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 11.ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 1163-1164

[9]    HOFFMANN, Henrique; SANNINI, Francisco. Sobre lavagem de dinheiro simultânea ou concomitante. Curitiba, 2020. Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-ago-11/academia-policia-lavagem-dinheiro-simultanea-ou-concomitante#:~:text=Como%20se%20pode%20perceber%2C%20trata,ensejo%20ao%20concurso%20de%20crimes. Acessado em 26 de março de 2021.


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