Por Francisco Monteiro Rocha Jr[1].

 

A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça julgou, em 28 de fevereiro de 2018, o Recurso Especial 1.688.878/SP, afetado ao rito dos recursos repetitivos, no qual se debateu a revisão do Tema Repetitivo 157. Até então, entendia o Superior Tribunal de Justiça que os crimes contra a ordem tributária seriam albergados pelo princípio da insignificância, nas hipóteses em que a fraude dolosa do sistema tributário não ultrapassasse o patamar de dez mil reais[2]. Contudo, e como o Supremo Tribunal Federal entendia (como de fato ainda entende) que a insignificância, nessa espécie de crime, contemplaria as sonegações de até vinte mil reais, o tema foi novamente debatido pela Corte Superior. No julgamento destacado, entendeu o STJ que os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e, da isonomia, impunham que o entendimento do STF passasse a ser paradigma a ser aplicado na espécie. Ademais, porque a decisão da Corte Suprema se escora nas Portarias n. 75 e 130 do Ministério da Fazenda, que estabelecem o valor mínimo de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) para o ajuizamento de execuções fiscais, a partir do que, concluíram ambos os Tribunais Superiores, as sonegações inferiores a tal patamar seriam insignificantes.

A partir de então, um analista mais apressado do tema poderia inferir que as discussões a respeito da aplicação da bagatela nos crimes contra a ordem tributária teria se tornado menos importante, posto que pacificada. Nada obstante, basta se realizar uma rápida pesquisa jurisprudencial, por exemplo, no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, para se deparar com a relevância prática do tema. É que ao se utilizar as expressões “crimes”, “ordem”, “tributária” e “insignificância” no mecanismo de pesquisa jurisprudencial disponibilizada por aquela Corte, chega-se ao resultado de 8.131 registros. Ou seja, somente a partir de uma das várias possibilidades de palavras-chave para a pesquisa do tema, são milhares as decisões que gravitam em torno desse debate.

O que se pretende debater no presente artigo é que existem inúmeros outros desdobramentos relacionados à temática e que devem ser criticamente analisados pela doutrina. Apontaremos alguns, nos limites estabelecidos para a feitura do presente artigo, como a retroatividade das portarias acima referida, a problemática referente ao conceito de habitualidade, a inclusão, ou não, das multas nesse patamar de 20 mil reais, e por fim, a espécie de tributo a partir do qual o valor deve ser considerado.

Estabelecido nosso itinerário, analise-se em primeiro lugar a discussão referente à retroatividade do valor da insignificância dos crimes fiscais. Em outras palavras: se o quantum para a aplicabilidade do princípio da insignificância é estabelecido pelas Portarias 75 e 130 do Ministério da Fazenda, conduta que fosse realizada anteriormente ao advento dessas normativas seria por elas abarcada? O entendimento trazido pelo Supremo Tribunal Federal, como se verifica do HC 139393[3] parece não deixar dúvidas: “Mesmo que o suposto delito tenha sido praticado antes das referidas Portarias, conforme assenta a doutrina e jurisprudência, norma posterior mais benéfica retroage em favor do acusado. III – Ordem concedida para trancar a ação penal”.

Nada obstante tal entendimento, e em decisão que foi posteriormente proferida, entendeu o STJ que não haveria retroatividade “(…) para alcançar delitos de descaminho praticados em data anterior à vigência da referida portaria, porquanto não é esta equiparada a lei penal, em sentido estrito, que pudesse, sob tal natureza, reclamar a retroatividade benéfica, conforme disposto no art. 2º, parágrafo único, do CPP (…)”, conforme se verifica do Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial 1.087.027/PE, em julgamento realizado pela Quinta Turma daquela Corte em 27/06/2017 e publicado em 01/08/2017. A compreensão externada pela Corte Superior a respeito do conceito de “lei penal” parece não resistir a uma análise a partir do princípio da legalidade penal, invocado no acórdão. Previsibilidade e segurança jurídica são seus esteios. E nesse sentido, levando-se em consideração que o sistema penal em nosso país se estrutura muito para além de leis, formalmente consideradas, nada mais razoável do que, à luz da principiologia aqui invocada, imprimir-se retroatividade às portarias referidas.

A segunda discussão a respeito da interseção entre os crimes fiscais e a insignificância constitui-se na noção de habitualidade. Em apertada síntese: deve ser considerado o envolvimento do acusado em outras infrações na análise da insignificância de uma determinada sonegação de tributos? Nada obstante a vetusta concepção de um direito penal do autor que se tem dado ao tema[4] – ao invés de se analisar o fato imputado, analisa-se a vida pregressa do acusado, e por essa razão, o histórico do acusado em impedido a aplicabilidade do instituto – o tema se desdobra em questões ainda mais problemáticas.

É o que se verifica da Apelação Criminal 5003899-25.2017.4.04.7000 julgada pela Sétima Turma do Tribunal Regional Federal em julgamento realizado em 05/06/2019. No caso em discussão, não obstante o valor sonegado fosse inferior aos R$ 20.000,00 (vinte mil reais), a bagatela não foi aplicada pelo fato de que o “(…) o réu possui outros 24 (vinte e quatro) procedimentos administrativos fiscais nos cinco anos anteriores. Portanto, em razão da habitualidade delitiva, incabível a aplicação do princípio da insignificância”. Como se verifica, não suficiente a ampla aplicação de um direito penal de autor pela nossa jurisprudência, sequer os limites do responsabilidade criminal tem sido respeitados para se dar conteúdo à habitualidade delitiva. De forma excessivamente ampliativa, vê-se que até mesmo ilícitos da esfera administrativa tem sido utilizados para se negar o direito do acusado.

Um terceiro aspecto se relaciona ao entendimento de que “(…) Para fins de aferição da lesividade e da adequação típica da conduta, deve-se levar em conta não apenas o valor do tributo, mas também os juros e a multa que compõem o crédito tributário apurado pela autoridade fazendária. Considerando que o valor consolidado supera R$ 20.000,00 (vinte mil reais), deve ser afastada a aplicação do princípio da insignificância”, como tem decidido o TRF da 4ª Região[5]. Estudos que refogem aos limites do autor, e relacionados à área tributária devem ser empreendidos para se analisar a coerência de se somar a multa para os fins da norma em discussão. Mas, de qualquer forma, os juros, normalmente atrelados à circunstâncias que vão além da consciência e da vontade do acusado deveriam ser extirpados.

Por fim, há um último aspecto que pode ser destacado. Diz ele respeito à aplicabilidade do patamar referente aos vinte mil reais somente para as imputações relacionadas à sonegação de tributos de competência federal. Como tem entendido o STJ, a “(…) aplicação da bagatela aos tributos de competência estadual encontra-se subordinada à existência de norma do ente competente no mesmo sentido, porquanto a liberalidade da União não se estende aos demais entes federados (precedentes)”. O Agravo Interno no HC 331.387/SC, relatado pelo Ministro Antonio Saldanha Palheiro da Sexta Turma, em julgamento levado a cabo em 14/02/2017 e publicado em 21/02/2017, donde se retira a citação, contextualiza o debate ao explicar que, como no Estado de Santa Catarina, a Lei n. 12.643/2003, preconiza o valor mínimo de R$ 5.000,00 para execuções fiscais, a incidência da insignificância será limitada a tal parâmetro nesse Estado da Federação.

Como nos explica Roxin[6], o princípio da insignificância atua como auxiliar de interpretação, sua incidência implica a exclusão de tipicidade das condutas e tal ocorre por conta da ausência de lesão ao bem jurídico tutelado pela norma penal. O despretensioso objetivo desse rápido apanhado de ideais foi o de demonstrar as inúmeras imbricações entre a insignificância e os crimes contra a ordem tributária.  Como se percebe, há muito mais questões a serem debatidas por doutrina e jurisprudência do que o mero enquadramento (ou não) da conduta no limite de vinte mil reais da sonegação.


[1] Professor Adjunto do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Doutor, Mestre e Especialista pela UFPR. Coordenador geral da área de Direito e Processo Penal da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst). Ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico (IBDE). Advogado criminalista.

[2] Ainda que revisado pelo julgamento que se discute, cite-se o Tema 157: “Incide o princípio da insignificância aos débitos tributários que não ultrapassem o limite de R$ 10.000,00 (dez mil reais), a teor do disposto no art. 20 da Lei nº 10.522/02”.

[3] Relator Min. Ricardo Lewandowski, Segunda Turma, julgado em 18/04/2017, publicado em 02/05/2017.

[4] Os Embargos de Divergência no Recurso Especial 1.217.514/RS, Relatado pelo Min. Reynaldo Soares da Fonseca, em julgamento realizado pela Terceira Seção na data de 09/12/2015 pacificou a questão (entendida até então de formas distintas na Quinta e Sexta Turmas) no sentido de que “(…) a reiteração criminosa inviabiliza a aplicação do princípio da insignificância nos crimes de descaminho, ressalvada a possibilidade de, no caso concreto, as instâncias ordinárias verificarem que a medida é socialmente recomendável”. O STF possui a mesma hermenêutica, como se vê, dentre outros

[5] Apelação Criminal 5003124-10.2017.4.04.7000, OITAVA TURMA, Relator JOÃO PEDRO GEBRAN NETO, juntado aos autos em 28/09/2018.

[6] ROXIN, Claus. Política Criminal e Sistema Jurídico-penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 47-48.


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