Por Cristina Oliveira[1]

 

A tradução da justiça restaurativa como um movimento sociojurídico, um paradigma, um “modo-de-ser no mundo” ou como uma tecnologia de não-violência (Schuch, 2008: 500) destinada à solução de conflitos (aqui, penais) são semânticas inacabadas, utilizadas para definir novos modelos de tratamento do crime adotados por variados atores protagonistas (Poder Judiciário, Legislativo, Executivo, Ministério Público, comunidade, etc.) e que podem ser aplicados no âmbito do direito material e processual penal de diferentes países[2].

Como tudo o que é recente e que, portanto, está em permanente construção, a dificuldade de precisão na definição da justiça restaurativa carrega consigo, por um lado, o problema da confusão dos seus significantes e propostas de fundo – ao mesmo tempo em que a sua fluidez e adaptação às necessidades econômicas, políticas e sociais dos contextos em que são inseridas viabilizam que estejam ajustadas aos conflitos/contextos que regulamentam. É de se ressaltar, entretanto, que aspectos mínimos devem ser respeitados para delimitar e reconhecer uma prática como restaurativa: a alargada participação dos atores envolvidos no conflito (autor, vítima e comunidade) e a satisfação das suas específicas necessidades, efetivadas a partir de um processo dialogado e voluntário (Pelikan, 2017).

As críticas abolicionistas já denunciavam, desde a década de setenta, que o sistema penal se fundamenta e reproduz violências, encarcerando (em massa) populações vulneráveis e marginais ao modelo capitalista; por sua vez, o surgimento da vitimologia destacou que a vítima é coisificada no curso do procedimento (Dias, 2009: 115) e que, abandonada e sem voz, pouco participa e se satisfaz com os resultados advindos da sentença. Como alternativa, a justiça restaurativa se apresentaria como uma contraproposta à racionalidade punitivista que conduz o modelo dominante, implementando algo melhor do que o sistema penal.

É bem verdade que o espaço de inserção da justiça restaurativa não parece estar alheio ou ser alternativo ao sistema penal. No Brasil, já dentro do seu incipiente movimento, a justiça restaurativa está demarcada por hegemonias teóricas e práticas na definição da sua ratio, empobrecendo as suas potencialidades (Oliveira, 2020): diante da inércia do Poder Legislativo, coube ao Poder Judiciário a proposição de normativas, modos de implementação e estratégias de replicação de práticas que, ainda pouco avaliadas, são sustentadas em doutrinas e experiências estrangeiras, especialmente americanas e canadenses.

Sendo o Brasil um país de desigualdades sociais estruturantes, as práticas que são importadas e replicadas no seio do sistema punitivo devem ser analisadas com cautela e suspeição, sob pena de que, colonizadas pela ratio punitiva, expandam o controle penal sobre os mais desfavorecidos. Nesse passo, Cláudia Santos (2009: 228) aponta que a clara divisão que existe no país entre a “criminalidade dos pobres” e a “criminalidade dos ricos” poderia “desafiar” a proposta restaurativa: no primeiro caso, “a impossibilidade da reparação reconduziria à punição”, novamente selecionando os sujeitos indesejáveis a adentrar no sistema. No segundo caso, sob o discurso da impunidade dos white-collar crimes, a justiça restaurativa poderia ser traduzida num modelo soft de responsabilização, em que “a reparação, fácil, “compraria a não punição” e outorgaria como que um direito a ir cometendo crimes e pagando por eles”. Em síntese, para os muito ricos, a autora aponta para a “possibilidade de a reparação não ter suficiente força dissuasora num sistema em que as penas criminais, mais severas, acabariam por ficar adstritas aos desfavorecidos” (Santos, 2009: 228).

Apesar disso, ressalta-se que não existem limitações às formas de institucionalização das práticas restaurativas, inclusive no que toca à tipologia dos conflitos que serão por elas reguladas – desde que a sua implementação seja decorrente de processos empiricamente avaliados e ajustados às demandas das realidades em que serão inseridas, uma tradição que, frise-se, está pouco enraizada no ordenamento nacional. Sabe-se que a justiça restaurativa foi primeiramente implementada no âmbito da justiça juvenil (seguindo-se os delitos de menor potencialidade lesiva), mas suas ferramentas têm sido paulatinamente aplicadas a casos complexos, em que existem sérias lesões a bens jurídicos individuais ou coletivos.

Exemplo disso é a utilização da justiça restaurativa no âmbito das graves ofensas causadas ao meio ambiente, para lidar com os traumas (passados) e memórias (das gerações futuras) que decorreram da ação (Varona, 2020). Nos casos em que existem empresas envolvidas, defende-se que as práticas podem ser aplicadas para facilitar aos ofendidos a reparação dos seus danos, cientes de que o “comprometimento das grandes corporações com as comunidades vitimadas pode facilitar a gestão de crises e de recuperação pós-conflito” (Saad-Diniz, 2020: 3), ao alocar recursos financeiros, materiais e sociais para a reconstrução dos espaços, apostando, ainda, em políticas sociais que ajudem a reconstruir a vida dos prejudicados.

Nos crimes que atentam contra a ordem econômica e financeira, a atuação em conformidade das grandes corporações deve estar também pautada pela previsão da sua participação em práticas restaurativas: aqui, se as pessoas jurídicas são furtadas à responsabilidade penal, não deixariam de ser, nessa nova perspectiva, responsáveis pela construção de modelos de reparação que, em conjunto com os indivíduos/comunidades afetadas, efetivam o compromisso ético e social de atuar de acordo com uma cultura de legalidade. Como alerta Nieto Martín (2018: 31), se as vítimas da delinquência empresarial são absolutamente invisíveis e vulneráveis frente ao poder das instituições – o que, para o autor, faz lembrar a luta de David contra Golias (2018: 32) na busca por seus direitos –, mais importante se faz a adesão aos modelos restaurativos, criando espaços de fala destinados a recomposição dos danos concretamente suportados pelos desprivilegiados.

Entretanto, a justiça restaurativa pouco evoluiu no âmbito da criminalidade clássica, sendo ainda incipiente o debate acerca de qual espaço deverá ocupar (dentro ou fora) do sistema penal nacional. Ora, ainda mais longe disso está a perspectiva de construção de um debate crítico acerca de como serão desenvolvidas práticas correlacionadas a crimes de maior complexidade (em que estejam envolvidos bens jurídico coletivo, abstratos, crimes sem vítimas, etc).

Existe, aqui, um vácuo que precisa ser ocupado com criativas metodologias destinadas ao tratamento da questão.

 

 

Bibliografia:

DIAS, Augusto Silva. Reconhecimento e coisificação nas sociedades contemporâneas. Uma reflexão sobre os Limites da Intervenção Penal do Estado. In: ______ (org.).  Liber Amicorum de José de Sousa e Brito em comemoração do 70° aniversário. Coimbra: Almedina, 2009, p. 113-131.

NIETO MARTÍN, Adán. Empresas, víctimas y sanciones restaurativas: cómo configurar un sistema de sanciones para personas jurídicas pensando en sus víctimas? In: SAAD-DINIZ, Eduardo; LAURENTIZ, Victoria Vitti de (org). Corrupção, direitos humanos e empresa. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018, p. 31-43.

OLIVEIRA, Cristina Rego de. Rupturas ou continuidades na administração do conflito penal? Os protagonistas e os processos de institucionalização da justiça restaurativa em Portugal e no Brasil. Tese de Doutoramento em Direito, Justiça e Cidadania no Século XXI apresentada à Universidade de Coimbra, 2020, 545p.

PELIKAN, Christa; KREMMEL, Katrien. Lifeworld, Law and Justice. In: AERTSEN, Ivo; PALI, Brunilda. Critical Restorative Justice. Oxford: Hart Publishing, 2017, p. 159-174.

SAAD-DINIZ, Eduardo. Vitimização corporativa e dependência comunitária na criminologia ambiental: o acerto de contas com os desastres ambientais. Boletim do IBCCRIM, 27, n.º 327, fev., 2020, p. 2-5

SANTOS, Cláudia Cruz. A proposta restaurativa em face da realidade criminal brasileira. Revista Brasileira de Ciências Criminais, 2009, 17 (81), nov/dez, p. 209-229.

SCHUCH, Patrice. Tecnologias da não-violência e modernização da justiça no Brasil: o caso da justiça restaurativa. Civitas, 8(3), 498-520.

VARONA, Gema. Restorative pathways after mass environmental victimization: walking in the landscapes of past ecocides. Oñati Socio-legal Series,10, 3 (2020), p. 664-685.


[1] Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina – UEL. Especialista em Direito Penal Econômico e Europeu pelo Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu (IDPEE) – Coimbra. Mestra em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito (FDUC) da Universidade de Coimbra. Doutora em Direito, Justiça e Cidadania no Século XXI pela Faculdade de Direito (FDUC) e Faculdade de Economia (FEUC), ambas da Universidade de Coimbra – Portugal.

[2] Em Portugal, a Mediação Penal de Adultos (Lei 21/2007, de 12 de Junho) somente poderá ser aplicada durante o processo investigatório; na Bélgica, por sua vez, não há limitação da utilização da justiça restaurativa em quaisquer estágios do procedimento penal.


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