Por|: Camila Rodrigues Forigo[1]

A corrupção não pode ser analisada apenas pelo viés da perspectiva individual do agente corrupto, considerado a partir de um estereótipo moral, mas sim como uma rede de agentes e interesses político-econômicos relacionados e divididos em distintos momentos e esferas de atuação[2]. Isso significa que o combate à corrupção implica um modelo de prevenção sistêmico, capaz de englobar todo o círculo de vícios e falhas que leva àquele agente a corromper alguém ou ser corrompido.

Para o seu efetivo combate, é necessário que se conheçam suas causas e suas manifestações, se avalie o alcance da corrupção e se adotem medidas capazes de eliminá-la, preveni-la e reprimi-la[3]. A grande questão que surge é: qual a melhor forma e mais idônea forma de efetivar esse propósito?

É evidente que o controle da corrupção e a forma pela qual essa prática está intrincada nas relações estatais do Brasil dependem de uma ampla reforma estrutural do sistema e perpassa, inclusive, pela mudança de perspectiva do modelo burocrático da Administração Pública[4]. Contudo, o recorte do presente artigo se limitará, apenas, à análise acerca da importância da governança e da existência de órgãos de controle.

De plano, é possível afirmar que a existência abstrata de controle e códigos de conduta não é suficiente, sendo absolutamente ineficaz impor simples e teóricos deveres de probidade ao funcionário público ou fortalecer a ideia de um Direito Penal autoritário e demagógico[5].

Para Bechara, deve-se realizar uma reforma política e um questionamento do próprio modelo de gestão pública, de modo que o controle da corrupção ocorra na esfera preventiva, de forma mais ampla[6], e não se dê apenas de forma repressiva, quando já praticado o ilícito.

Zaffaroni igualmente sugere uma reforma estrutural para prevenir esses crimes antes de sua ocorrência, já que o direito penal não possui os elementos necessários para enfrentar as dissimulações e as encobertas criminosas que se utilizam de tecnicismo e neologismo[7]. Para o autor, o direito penal não pode ser a principal ferramenta com o propósito de evitar tais ilícitos, mas deve se ocupar apenas dos casos que escapem a esse controle prévio e preventivo[8].

Matias Pereira[9] propõe, nesse cenário, a criação de agências especializadas no combate à corrupção no Brasil, através das quais se implementem mecanismos permanentes de controle e garantia do bem público. Leia-se o que afirma o autor:

 

Fica evidenciado, assim, que a busca da transparência nos países democráticos exige a criação de instituições de controle, direito e garantia do bem público. Nesse sentido, torna-se possível argumentar que a luta contra a corrupção, a princípio, tem que ser enfrentada pelo Estado como uma ação permanente, como medida indispensável para garantir a moralidade, a partir da percepção de que sua prática mina o respeito aos princípios democráticos e às instituições[10].

 

Propõe o autor que essas agências sejam órgãos independentes, dotadas de recursos públicos, mas isentos de influências políticas. Sugere ainda que tais agências tenham liberdade para monitorar a vida das pessoas participantes de processos de contratação com o poder público ou de pessoas com sinais exteriores de riqueza incompatíveis com o patrimônio, que possuam poder de congelar o patrimônio de pessoas suspeitas e investigadas e, ainda, sejam capazes de oferecer proteção às testemunhas[11].

Bechara, nessa mesma linha, afirma ser imprescindível que se altere a forma com que os funcionários públicos lidam com a questão da estabilidade. Sobre esse ponto, a autora não propõe a extinção da estabilidade, a qual é importante para evitar perseguições políticas, mas sugere a implementação de mecanismos que reconheçam e valorizem a produtividade, a capacitação e o exercício das atividades com eficiência e probidade. Essa mudança seria um aspecto importante na busca pela “cultura de intolerância à ilegalidade”[12].

Aspecto importante a ser abordado no compliance público é o entrelaçamento entre capital público e capital privado no Brasil, bem como a forma como o capitalismo no Brasil se desenvolve através de um emaranhado de contatos, alianças e estratégias de apoio que gravitam em torno de interesses políticos e econômicos[13], desenvolvendo-se relações recíprocas (e ilegais) entre políticos, governo e empresários[14].

Para conter esses atos, Lazzarini propõe a existência de mais transparência nas relações societárias em geral e o maior isolamento político das empresas para diminuir o risco das ações discricionárias e irregulares[15].

É fundamental também que se aprimorem a transparência e a fiscalização de modo a reduzir os espaços de arbitrariedade e de desvios na Administração Pública[16]. Nesta seara, Matias Pereira destaca ser necessária a participação da sociedade, que representa um instrumento para a mobilização e priorização dos problemas sociais, além de propiciar maior distribuição do poder e democratização da sociedade civil[17].

Inclui-se também no quesito transparência a interlocução entre os gestores públicos com a comunidade científica e com os técnicos, a fim de que as medidas sejam adequadamente executadas naqueles setores a que se destinam e para que a “Administração atue de forma dialogada e harmônica na execução e no monitoramento dos riscos”[18]. É fundamental, portanto, que o programa de integridade na Administração Pública faça o adequado delineamento dos processos e riscos para uma melhor gestão do órgão público, atentando-se para uma melhor gestão de pessoas, licitações, contratos, tecnologia da informação, informações e arquivos[19].

Essas medidas poderiam efetivar um modelo de Estado proposto quando da implementação da Reforma Gerencial, em 1995, cujo objetivo era, através de uma reforma administrativa, tornar “o serviço público mais coerente com o capitalismo contemporâneo”[20]. O fato é que apesar de a Reforma ter ocorrido, muito dos pressupostos ali estampados não foram efetivados da forma como deveriam, ou não produziram os efeitos que deveriam produzir.

Pretendendo aliar todos os pontos acima destacados pelos autores, mas com o objetivo de implementar um modelo similar ao existente na esfera privada, propõe-se a implementação de um modelo de compliance nos órgãos do poder públicos.

A proposta significa incorporar nos órgãos públicos, em seus diferentes setores e esferas, mecanismos de controle e de implementação de parâmetros éticos e legais, de modo que se efetive um sistema capaz de prevenir e detectar atos de corrupção na esfera pública.

O compliance público ou programa de integridade público, segundo Nascimento, pode ser assim definido:

 

A criação de medidas institucionais, mecanismos e procedimentos de integridade, análise e gestão de riscos, comunicação, controle, auditoria, monitoramento e denúncia que venham a promover a atuação em conformidade do órgão, de acordo com diretrizes internas e externas, gerando, com isso, a gestão da integridade na esfera pública, destarte, assegurando o seu desempenho pleno, em conformidade com a legislação e, ainda, efetivando a concepção de procedimento de conduta a serem instituídos internamente. Com isso, possibilitando, de forma mais precisa, a identificação e minimização dos riscos.

Ademais, e, por conseguinte, tais medidas objetivam detectar e sanar quaisquer desvios, atos ilícitos, fraudes e irregularidades, além de combater e blindar o órgão público contra a corrupção[21].

 

Para isso, é fundamental que cada esfera da Administração Pública tenha um sistema de controle diferenciado conforme seu tamanho, estrutura, atividade e riscos.

Isso significa que dentro da própria Administração Pública há setores mais sensíveis à corrupção do que outros, ou seja, aqueles setores destinados a procedimentos de licitação e contratação com a iniciativa privada possuem mais fatores de risco de corrupção do que aquelas esferas destinadas ao atendimento à população carente, por exemplo.

Do mesmo modo, determinados órgãos e setores da Administração Pública envolvem equipe maior do que outras esferas e todos esses aspectos devem ser sopesados eis que, da mesma forma que no setor privado, não há um modelo padrão de compliance[22] que seja ideal e possa ser adotado por toda e qualquer esfera de poder.

Eis aqui o grande desafio: cada órgão do poder público deverá ter um sistema de controle à corrupção que se adapte às suas especificidades[23], tamanho e atividades desenvolvidas, mas que seja norteado por uma única concepção: prevenir e detectar atos de corrupção praticados por todos que integram aquela esfera de poder (do mais alto grau ao menor grau hierárquico).

Trata-se, a toda evidência, não é uma tarefa nada fácil, mas mostra-se fundamental para que a corrupção passe a ser tratada como o mal que é: que destrói instituições e desvia dinheiro público de suas reais finalidades, prejudicando enormemente a sociedade civil e os valores de um Estado Democrático de Direito.

Apenas com o seu efetivo combate é que o Brasil poderá almejar o seu crescimento e o fortalecimento de suas instituições, como afirma Matias Pereira:

A transparência das ações governamentais surge como uma prática indispensável para o fortalecimento da democracia, bem como de legitimação do esforço de modernização da administração público, especialmente nas questões que envolvem os resultados e a responsabilidade dos funcionários[24].

É de se observar, no entanto, que já existem programas de conformidade implementados no país e algumas iniciativas ainda em desenvolvimento, o que será analisado em próximo artigo a ser publicado neste site.


[1] Doutoranda em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Direito Econômico e Desenvolvimento pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC). Coordenadora Regional Adjunta do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM/PR) e do Grupo de Estudos Avançados de Aspectos teóricos e práticos da Investigação Defensiva do mesmo instituto Conselheira do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico (IBDPE). Secretária da Comissão da Advocacia Criminal da OAB-PR (Triênio 2019-2021). Advogada.


[2] BECHARA, Ana Elisa Liberatore S. Corrupção, crise política e Direito Penal: as lições que o Brasil ainda precisa aprender. Boletim IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), São Paulo, jan. 2017, n. 290. Disponível em: www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/5896-Corrupcao-crise-politica-e-Direito-Penal-as-licoes-que-o-Brasil-ainda-precisa-aprender. Acesso em 06.07.2021

[3] MATIAS PEREIRA, José. Reforma do Estado e transparência: estratégias de controle da corrupção no Brasil. VII Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado e de la Admininstracion Pública, Lisboa, 8-11 out. 2002. Disponível em:  http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/940/4/ARTIGO_ReformaEstadoTransparencia.pdf. Acesso em: 02.03.2018. p. 12.

[4] LOVATO, Rafael Porto. Instrumentos de combate e prevenção à corrupção na administração pública sob uma perspectiva gerencial. In: PAULA, Marco Aurélio Borges de; CASTRO, Rodrigo Pironti Aguirre de (Coords.). Compliance, gestão de riscos e combate à corrupção: integridade para o desenvolvimento. Belo Horizonte: Fórum, 2018.p. 284-288.

[5] BECHARA, op. cit.

[6] BECHARA, op. cit.

[7] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O papel do direito penal e a crise financeira. In: SAAD-DINIZ, Eduardo; BRODOWSI, Dominik; SÁ, Ana Luíza de (orgs.). Regulação do abuso no âmbito corporativo: o papel do direito penal na crise financeira. São Paulo: LiberArs, 2015. p. 13-26. p. 19.

[8] ZAFFARONI, op. cit., p. 20.

[9] MATIAS PEREIRA, op. cit., p. 18.

[10] MATIAS PEREIRA, op. cit., p.9.

[11] MATIAS PEREIRA, op. cit., p. 18.

[12] BECHARA, op. cit.

[13] LAZZARINI, Sérgio G. Capitalismo de laços: os donos do Brasil e suas conexões. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. p. 3.

[14] LAZZARINI, op. cit., p. 42.

[15] LAZZARINI, op. cit., p. 114-117.

[16] BECHARA, op. cit.

[17] MATIAS PEREIRA, op. cit., p. 14.

[18] NOHARA, Irene Patrícia. Governança pública e gestão de riscos: transformações no direito administrativo. In: PAULA, Marco Aurélio Borges de; CASTRO, Rodrigo Pironti Aguirre de (Coords.). Compliance, gestão de riscos e combate à corrupção: integridade para o desenvolvimento. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 339-340.

[19] NASCIMENTO, Juliana Oliveira. Panorama internacional e brasileiro da governança, riscos, controles internos e compliance no setor público. In: PAULA, Marco Aurélio Borges de; CASTRO, Rodrigo Pironti Aguirre de (Coords.). Compliance, gestão de riscos e combate à corrupção: integridade para o desenvolvimento. Belo Horizonte: Fórum, 2018. P. 341-371. p. 365.

[20] PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Gestão do Setor Público: Estratégia e estrutura para um novo estado. In: Bresser-Pereira, Luiz Carlos; SPINK, Peter. (Orgs). Reforma do Estado e Administração Pública Gerencial. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 23-29. Disponível em: http://egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/15891-15892-1-PB.pdf. Acesso em: 15.03.2018.

[21] NASCIMENTO, op. cit., p. 358.

[22] NIETO MARTÍN, Adán. Problemas fundamentales del cumplimiento normativo en el derecho penal. In: KUHLEN, Lothar; MONTIEL, Juan Pablo; GIMENO, Iñigo Ortiz de Urbina (Eds.). Compliance y teoria del derecho penal. Marcial Pons: Madrid, 2013. 21-50. p. 44-45.

[23] GRECO FILHO, Vicente; RASSI, João Daniel. O combate à corrupção e comentários à lei de responsabilidade de pessoas jurídicas: lei 12.846, de 1º de agosto de 2013. Saraiva: São Paulo, 2015. p. 74.

[24] MATIAS PEREIRA, op. cit., p. 7-8.