Samuel Justino de Moraes[1]

A higidez da ordem econômica, como aborda Patrícia Sampaio, constitui direito difuso de que é titular toda a coletividade[2]. Por essa razão, o Estado estrutura uma política rigorosa de prevenção e repressão às práticas anticompetitivas, buscando salvaguardar a saudável disputa entre os agentes no mercado.

Este estudo, por sua vez, volta-se para os instrumentos não repressivos utilizados alternativamente no combate às práticas anticoncorrenciais. Com efeito, por meio de uma reciprocidade de concessões, os negociantes firmam um acordo que lhes traga benefícios, de modo a extinguir um cenário de litigiosidade.

Nesse sentido, seguindo uma tendência do direito moderno, o ordenamento jurídico pátrio assistiu, recentemente, a um “verdadeiro espraiamento da figura dos acordos de Leniência Administrativa, em paralelo ao uso de institutos análogos na seara criminal”, como pontuado pelo Min. Gilmar Mendes no julgamento do MS 35.435[3].

Esses acordos, ainda segundo o Ministro, são instrumentos relevantes voltados ao fortalecimento de uma política de combate às infrações econômicas, de modo a desarticular ilícitos que envolvem a atuação concertada de uma multiplicidade de agentes econômicos com o intuito de restringir a concorrência ou fraudar as regras de processos seletivos públicos. Nessa linha, no âmbito da atuação do Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência (CADE)[4], há dois instrumentos fundados no consenso utilizados alternativamente para o enfrentamento de práticas infracionais anticompetitivas, a saber, o acordo de leniência e o termo de compromisso de cessação.

Em linhas gerais, como dispõem Giannini et al, o acordo de leniência pode ser entendido como um instrumento de cooperação entre o integrante de eventual prática ilícita e a autoridade pública, em que, auxiliando na obtenção de provas de determinadas infrações à ordem econômica e na identificação dos demais envolvidos na prática, o leniente recebe um abrandamento da sua punição ou, ainda, imunidade administrativa e penal. O termo de compromisso de cessação, por sua vez, é um instituto destinado a possibilitar à autoridade antitruste o encerramento de processo instaurado para apurar infração à ordem econômica, por meio de acordo em que o representado assume obrigações visando à cessação da prática investigada ou de seus efeitos lesivos, sempre que, em juízo fundamentado de conveniência e oportunidade, entender a autoridade que a medida atende aos interesses protegidos pela legislação[5].

Esses instrumentos de consenso desburocratizantes permitem, indubitavelmente, respostas estatais mais céleres, efetivas e menos onerosas, concretizadas por meio da negociação entre o aparelho estatal e o representado ou investigado.

No que tange ao acordo de leniência, instituto objeto do estudo, a relevância é ainda mais notória, vez que se projeta como instrumento para romper com as dificuldades de detecção de práticas anticompetitivas. Com efeito, sua utilização materializa a estratégia estatal de desestabilização dos laços de confiança entre os integrantes das práticas ajustadas, permitindo que o agente colaborador receba benefícios para expor os meandros da conduta, trazendo provas relacionadas à atuação das quais o Estado não tinha conhecimento. No entanto, a multiplicidade de regimes de leniência existentes torna problemática a atuação multifacetada do Estado, o que pode comprometer a própria eficácia do instrumento, como pontua Luiz Guilherme Ros[6].

Com efeito, uma prática anticoncorrencial pode repercutir em diversas áreas do direito, de modo que cada uma das respectivas autoridades públicas pode ter interesse na investigação e na punição do infrator. A título do exemplo, uma prática ajustada entre uma pluralidade de agentes econômicos pode ser considerada criminosa, corruptiva sob a ótica da pessoa jurídica, anticoncorrencial e ofensiva ao erário. Diante disso, por um mesmo fato, é possível, quando não necessária, a celebração de acordos de leniência com múltiplas autoridades, a exemplo da Superintendência Geral (SG) na esfera do CADE, da Controladoria-Geral da União (CGU) e a Advocacia Geral da União (AGU) no âmbito da Lei Anticorrupção, do Ministério Público Federal (MPF) e do Tribunal de Contas da União (TCU).

Esse fenômeno desnuda, assim, a falta de alinhamento institucional, o que pode minar a eficiência dos mecanismos de solução consensual adotados pelo Poder Público. Como o acordo visa a romper com o silêncio dos agentes envolvidos na conduta ilícita, retirando-os de uma situação confortável e vantajosa, o sucesso do programa de leniência depende da previsibilidade e da sensação de segurança jurídica provocada pela negociação, além da necessária garantia de proteção ao leniente em outras áreas que o possam atingir mais severamente, como o direito penal. Não por outro motivo garante-se imunidade penal e administrativa ao colaborador, até pela necessidade de reconhecimento de participação na conduta anticoncorrencial, o que pode resultar na incriminação do leniente em outras esferas.

No entanto, não basta a mera promessa, mas a garantia de efetivo desfrute das vantagens oferecidas, com a previsão potencial das consequências do ajuste com o Estado, sob pena de se desestimular a cooperação. Entretanto, a coexistência dos diversos regimes de leniência previstos no direito brasileiro, não raras vezes, colide com essa exigência, ante o descompasso da atuação estatal com a sobreposição de múltiplas autoridades interessadas na celebração do acordo. Nesse sentido, destaca-se o julgamento do MS 35.435 pelo STF, case apto a ilustrar a controvérsia que ora se demonstra.

No caso, a sociedade empresária Andrade Gutierrez S.A. havia firmado acordo de leniência com o MPF e termo de compromisso de cessação com o CADE, em função de ilícitos relacionados às contratações para as obras de Angra III. Não obstante, o TCU aplicou à leniente a sanção de declaração de inidoneidade, determinando, contudo, a suspensão da execução da medida, subordinando a eficácia do acordo de leniência junto ao MPF ao cumprimento de outras condições impostas pelo TCU, a saber, a reabertura das negociações com o parquet para que se obtivesse o compromisso de cooperação com as fiscalizações e de ressarcimento integral do dano causado ao erário.

Nota-se, portanto, que, embora os ilícitos investigados tenham sido objeto de acordos firmados em programas de leniência com outras instituições a nível federal, o TCU veiculou ameaça expressa de declaração de inidoneidade pelos mesmos fatos. Por isso, a discussão versava acerca da possibilidade de aplicação da sanção, de modo a garantir-se a completa reparação dos danos, sem que a medida se traduzisse em comportamento contraditório do Estado, o que poderia ofender o princípio da unidade estatal, da legítima confiança, da segurança jurídica e da eficiência da atuação pública.

Em assim sendo, em que pese a relevância do poder sancionatório do Tribunal de Contas, parece insustentável a aplicação da referida sanção, vez que, quando da celebração, o suporte fático que sustentou o acordo não incluía as condições impostas pelo TCU, de modo que não poderia a Corte, posteriormente, determinar a reabertura das negociações para inclusão de condições inicialmente não previstas no ajuste originário. Do contrário, a sensação que se poderá causar é a de que o Estado não cumpre com os seus compromissos, o que poderia minar os incentivos para a colaboração no âmbito do acordo de leniência. Caso estritamente cumpridas as condições do acordo, não há espaço para aplicação de sanção por outro órgão estatal, se assegurada, nesse mesmo instrumento negocial, a não aplicação da referida penalidade.

Diante desse cenário, o Min. Gilmar Mendes apontou, acertadamente, para aquilo que entendeu evidenciar o desalinhamento entre os diversos regimes de leniência, a saber, a ausência de convergência nos requisitos para a celebração dos acordos, bem como a inexistência de harmonia entre os benefícios passíveis de serem obtidos, além da imprevisibilidade acerca da extensão desses benefícios às outras frentes da atuação pública.

Para solucionar os fatores da controvérsia elencados, o aludido Ministro indicou que, para prestigiar os múltiplos regimes de leniência, deve-se zelar pelo alinhamento de incentivos institucionais à colaboração e pela realização do princípio da segurança jurídica, a fim de que os colaboradores tenham previsibilidade quanto às sanções e benefícios premiais cabíveis quando optarem por cooperar com a Administração Pública.

Para tanto, é importante que a atuação do Poder Público se expresse de maneira coordenada, de modo que as empresas investigadas não tenham a percepção de que o Estado falta com os compromissos assumidos. Além disso, sob o viés prático, as sanções aplicadas pelo Estado não podem esvaziar o cumprimento de outra medida por ele determinada, ainda que pela via negocial, como no caso da declaração de inidoneidade, verdadeira “pena de morte” para o empresário, dado o comprometimento da capacidade econômica, o que pode inviabilizar o cumprimento das obrigações assumidas no instrumento consensual.

Por essa razão, o STF formou maioria para reconhecer a impossibilidade de imposição de sanção de inidoneidade pelo TCU pelos mesmos fatos que deram ensejo à celebração de acordo de leniência, ante a incompatibilidade com os princípios constitucionais da eficiência e da segurança jurídica.

Essa decisão mostra-se paradigmática para demonstrar a necessidade de harmonização da atuação das diversas entidades no âmbito dos regimes de leniência. A existência de inúmeros instrumentos de acordos nas mais diversas frentes de atuação do Estado exigem atuação alinhada, de modo que reste assentada a transparência e a previsibilidade necessárias para a celebração dos ajustes de vontades, como o é em toda negociação jurídica. Uma atuação mais harmônica, coerente e coordenada do Poder Público implica em ganhos institucionais e consolida a credibilidade desejável para o sucesso dos instrumentos consensuais institucionalizados para o enfrentamento das infrações à ordem econômica.

Em meio a esse contexto, em maio de 2020, a Presidência do Supremo Tribunal Federal tomou a iniciativa de capitanear a celebração de um Acordo de Cooperação Técnica envolvendo a AGU, a CGU, o TCU e o Ministério da Justiça e Segurança Pública, no âmbito da atuação da Lei Anticorrupção, o qual foi assinado em setembro de 2020.

No documento, ficou assentado que, quando algum ilícito envolver fatos de competência do TCU, as entidades enviarão informações à corte, para estimação dos danos. Ademais, após a celebração do acordo de leniência, a CGU e a AGU compartilharão as informações e documentos fornecidos pela empresa colaboradora com as demais autoridades, não podendo esses dados serem usados para punir a companhia pelos mesmos fatos. Estabeleceu-se, ainda, que a AGU e o MPF poderão buscar a responsabilização, por meio de ações de improbidade administrativa, das demais pessoas e empresas envolvidas nos atos revelados pela companhia colaboradora, o que, no âmbito administrativo, incumbirá à CGU e ao TCU. Por fim, as instituições também concordaram em estabelecer mecanismos de compensação ou abatimento de multas pagas pelas empresas em condutas tipificadas por mais de uma lei[7].

Esse acordo, mesmo que relacionado apenas à matéria de combate à corrupção, é positivo, pois é elementar a consolidação de uma cultura de alinhamento institucional, dado que a consolidação e o fortalecimento da estratégia estatal de enfrentamento às práticas antijurídicas por meio da colaboração dos envolvidos na prática dependem da percepção de atratividade da celebração de acordo com o Estado, o que perpassa, sobretudo, pela observância dos marcos de previsibilidade e de segurança jurídica. A expectativa é a de que medidas como essa se disseminem por todas as frentes da atuação estatal em temas de acordo de leniência, de modo a garantir uma atividade mais coordenada do Poder Público.


[1] Bacharelando em Direito pela PUC Minas.


[2] SAMPAIO, Patrícia Regina Pinheiro. A utilização do termo de compromisso de cessação de prática no combate aos cartéis. Revista de Direito Administrativo, v. 249, p. 245-265, 2008.

[3] BRASIL. STF. MS 35.435, 36.173, 36.496 E 36.526. Relator: Ministro Gilmar Mendes. 27 mai. 2020.

[4] BRASIL. Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011. Brasília 2011. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12529.htm. Acesso em: 25 abr. 2021.

[5] GIANNINI et al. Comentários à nova lei de defesa da concorrência: lei 12.529, de 30 de novembro de 2011 / coordenadores Eduardo Caminati Anders, Vicente Bagnoli, Leopoldo Pagotto– Rio De Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012.

[6] ROS, Luiz Guilherme. Criando incentivos, a partir da teoria dos jogos, para celebração de termos de compromisso de cessação por pessoas físicas: uma análise das ações penais da lava jato. 114 f. Dissertação (mestrado em direito). Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), Brasília, 2020.

[7] TCU aprova termo de cooperação com instituições para acordos de leniência. Consultor Jurídico. 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-ago-05/tcu-aprova-cooperacao-instituicoes-acordos-leniencia2. Acesso em: 03 mar. 2021.