Por Guilherme Brenner Lucchesi[1] e Ivan Navarro Zonta[2]

 

Sob a ideia de que o “o crime não compensa” (ou não deveria compensar), verifica-se crescente patrimonialização da repressão criminal. São inúmeras as manchetes e notícias alardeiam o “bloqueio de milhões em paraísos fiscais”, a apreensão de veículos e obras de arte de valor estratosférico”, “a recuperação de bilhões aos cofres públicos” etc.

O direito penal parece passar por mutação gradual da forma com a qual o Ministério Público e o juízo criminal aplicam dispositivos já existentes na lei penal e processual penal, que permitem alcançar o patrimônio do agente delituoso. Como exemplo, as próprias medidas assecuratórias previstas há décadas no CPP, mas que até poucos anos sequer eram objeto de atenção em comparação às penas corporais.

Isso contribui para um cenário desafiador, em que o profissional e o estudioso do direito penal enfrentam cada vez maior dificuldade para delimitar com exatidão os limites da responsabilização pecuniária decorrente de um fato delituoso. Embora a sentença condenatória, via de regra, defina estritamente todas as penas e efeitos da condenação, antes desse marco processual ainda não se pode delimitar com segurança — mesmo quanto aplicadas medidas assecuratórias tais quais o sequestro — quais serão os efeitos patrimoniais incidentes sobre cada investigado ou acusado.

E mais: em se tratando de delitos perpetrados por diversos agentes, com efeitos danosos e/ou de enriquecimento que ultrapassa a esfera individual do patrimônio de cada um dos autores, esbarra-se na dificultosa tarefa de delimitar se, quando e quanto do patrimônio de cada agente deve responder pelo dano e enriquecimento decorrentes da atividade conjunta.

Isso dá margem, muitas vezes, a violações às garantias ne bis in idem e de intranscendência das sanções penais, que se abatem sobre direito que, assim como a liberdade de locomoção, é fundamental e assegurado com destaque pela Constituição: a propriedade.

A desatenção dada ao alcance patrimonial da persecução penal no cenário pátrio, em comparação com a relevância atual dos instrumentos de constrição de bens e valores manejados na prática, fica evidente com o tratamento dado pelo CPP às ditas medidas assecuratórias disciplinadas nos seus arts. 125 a 144-A.

Muitas vezes as medidas instrumentais aplicadas na fase investigatória ou ao longo do processo, visando assegurar bens destinados à reparação de danos e/ou ao perdimento de proventos do crime, não tomam a forma estrita das medidas previstas no CPP. Com crescente frequência, tem-se visualizado a aplicação de medidas amorfas, seguindo linhas práticas do processo civil ou outros diplomas legais, que priorizam o bloqueio de valores em contas, poupanças e fundos de investimentos, ou mesmo um bloqueio de bens genérico que tampouco se amolda às medidas assecuratórias.

No caso do sequestro, este se aplica “bens imóveis, adquiridos pelo indiciado com os proventos da infração, ainda que já tenham sido transferidos a terceiro” (art. 125), desde que haja “indícios veementes da proveniência ilícita dos bens” (art. 126). Denote-se então que, para decretação do sequestro, será necessário evidenciar indícios veementes de que os bens foram adquiridos com proventos da infração, consistindo, portanto, em provento indireto da atividade criminosa. A finalidade imediata desse instrumento é assegurar a decretação final de perdimento dos bens (art. 133).

A operacionalização das medidas assecuratórias só pode ser corretamente compreendida e efetivada com respeito aos limites estabelecidos pelo legislador acaso se retroceda a análise para um ponto elementar precedente: os efeitos patrimoniais da condenação penal.[3]

A sentença penal condenatória tem como efeito genérico declarar a obrigação de reparar os danos causados pelo crime ou o determinar o perdimento de bens e valores provenientes de infração penal ou utilizados para a sua prática.

Ao se falar em reparação de dano, o Código Civil permite a solidariedade da obrigação a que concorrer mais de um credor, obrigando todos à satisfação da dívida (art. 264, CC). Em outras palavras, o ato ilícito (art. 186, CC) que tomar forma de crime ensejará a obrigação de reparar o dano (art. 927, CC), à qual responderão solidariamente todos os autores (art. 942, CC). Com a sentença penal condenatória, torna-se certa esta obrigação (art. 91, I, CP) que, diante das regras que regem a responsabilidade civil, pode ser exigida de quaisquer dos condenados. O perdimento, contudo, não obedece à mesma lógica.

Em se tratando de sanção penal propriamente dita, vige o princípio da intranscendência, insculpido na no inciso XLV do art. 5.º da Constituição, o qual determina de forma clara que “nenhuma pena passará da pessoa do condenado”.

Contudo, no tocante ao produto do crime ou qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido em decorrência do ilícito, somente se poderá decretar o perdimento contra o próprio autor do fato delituoso ou, quando muito, contra quem tiver recebido bens ou valores provenientes da prática do ilícito. Nesse último caso, o perdimento estará limitado ao valor transferido. O perdimento dos proventos do crime, naturalmente, exige que tenha havido enriquecimento ilícito por parte daquele que virá a ser alvo da decretação.

Conjugando-se (i) a limitação da solidariedade passiva à obrigação de reparação do dano, (ii) o princípio da intranscendência das penas e (iii) os limites claros das exceções constitucionais ao referido princípio, tem-se por certo que a decretação de perdimento dos proventos do crime não pode se dar de forma solidária entre os coautores de um ilícito penal e/ou entre corréus em um mesmo feito, ainda que todos venham a ser condenados.

Em suma, diferentemente da obrigação solidária de reparar o dano causado, os limites da decretação de perdimento deverão obedecer estritamente ao exato montante do enriquecimento ilícito que cada autor do fato criminoso auferiu, admitindo-se extensão tão somente se houve transferência de proventos entre eles. Não se poderá, dessa forma, decretar o perdimento de bens e valores contra um determinado réu condenado, a fim de punir eventual enriquecimento ilícito auferido por outro réu.

Tendo em vista a referibilidade das medidas assecuratórias, e tendo em vista que o sequestro tem por finalidade assegurar o perdimento, o sequestro não poderá ser aplicado quanto a patrimônio lícito e que não decorra, na forma de provento indireto, de valor ou proveito obtido com a prática delituosa.

Neste caso, em se tratando de imputação de enriquecimento ilícito a algum dos autores, não se poderá falar em solidariedade. Diferentemente da obrigação solidária de reparar o dano causado, os limites da decretação de perdimento devem obedecer estritamente ao exato montante do enriquecimento ilícito que cada autor do fato criminoso auferiu.

Por conseguinte, considerando que a finalidade do sequestro está relacionada ao perdimento, tem-se que o sequestro somente poderá incidir sobre instrumentos, produtos e proventos da atividade criminosa e no estrito limite do enriquecimento ilícito auferido pelo agente.

Tem-se, portanto, que essa medida não poderá ser aplicada em limite superior ao que cada coautor tenha percebido como enriquecimento ilícito próprio. Em suma, o sequestro não poderá ser aplicado conforme a lógica da solidariedade, sendo inviável que se aplique tal constrição em quantum superior ao que o agente efetivamente percebeu como produto e proventos do crime.[4]


[1] Professor de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da UFPR. Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR (CAPES 6). Doutor em Direito pela UFPR. Master of Laws pela Cornell Law School. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico – IBDPE. Advogado sócio da Lucchesi Advocacia.

[2] Mestrando em Direito na UFPR. Advogado sócio da Lucchesi Advocacia.


[3] “Cada um dos efeitos da condenação — pessoal e patrimonial — conta com medida cautelar, prevista no Código de Processo Penal, destinada a acautelá-la no curso da persecução penal.” SAAD, Marta. Prisão processual para recuperação de ativos: uma prática desfuncionalizada. In: MALAN, Diogo; BADARÓ, Gustavo; ZILLI, Marcos; MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis; SAAD, Marta; MORAES, Maurício Zanoide de (org.). Processo penal humanista: escritos em homenagem a Antonio Magalhães Gomes Filho. Belo Horizonte: D’Plácido, 2019. p. 267.

[4] Para uma visão aprofundada do tema, ver LUCCHESI, Guilherme Brenner; ZONTA, Ivan Navarro. Sequestro dos proventos do crime: limites à solidariedade na decretação de medidas assecuratórias. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 6, n. 2, p. 735-764, mai./ago. 2020.


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