Por Guilherme Brenner Lucchesi[1]

A honra figura como objeto de proteção jurídico-penal em todo o desenvolvimento do ordenamento jurídico brasileiro. O que tem se alterado com a passagem do tempo é o conteúdo desse objeto de proteção, tendo se discutido tratar de um bem integrado na personalidade da pessoa ou de um valor cuja preservação interessa à sociedade. Aqui se pode distinguir dois diferentes interesses merecedores de tutela jurídica, uma de ordem interna (subjetiva) e outra de ordem externa (objetiva). Honra subjetiva é consistida pela estima que a pessoa tem por si própria, referindo-se ao sentimento próprio de dignidade. Por outro lado, honra objetiva é formada pelos conceitos de consideração e respeito que as outras pessoas têm pelo indivíduo, a partir de sua reputação. Ambas estas facetas da honra são igualmente importantes à pessoa e recebem tutela penal no CP.

A legislação penal, nesse sentido, prevê três diferentes crimes contra a honra: calúnia (art. 138, CP), difamação (art. 139, CP) e injúria (art. 140, CP). Os crimes de calúnia e difamação buscam coibir a imputação de fatos ofensivos às pessoas, de modo que se objetiva proteger a reputação do sujeito passivo, isto é, maneira como ele é visto por outras pessoas de seu meio e convivência, o que se denomina honra objetiva. Por outro lado, ao coibir a ofensa à dignidade ou decoro do sujeito passivo, pela atribuição de vícios ou defeitos, ou mesmo pelo ultraje mediante palavra, gesto ou sinal insultante, o crime de injúria protege ao sentimento de auto respeitabilidade do sujeito passivo, o que se denomina honra subjetiva.

Há muito se discute quem pode ser vítima de um crime contra a honra. É certo que o sujeito passivo deve ser o destinatário nominado ou determinável, quando não for nominado, das ofensas proferidas pelo autor. Qualquer que seja sua condição pessoal, o indivíduo possui direito à sua reputação e sentimento de auto respeitabilidade. Porém, não é suficiente que o sujeito tenha se sentido ofendido pela linguagem do autor, e sim que a sua honra tenha sido diretamente atacada.

Há, porém, importante questão relativo à possibilidade de se considerar crime as ofensas dirigidas a pessoas jurídicas.

A visão tradicional das pessoas jurídicas como ficção é antiquada, e representa apenas uma dentre muitas teorias individualistas — i.e. que negam as realidades coletivas na estruturação da sociedade — da pessoa jurídica. O direito admite teorias voluntaristas e institucionais da pessoa jurídica[2], reconhecendo as pessoas jurídicas como uma realidade à parte das pessoas naturais e, portanto, dotadas de personalidade. É justamente este atributo personalidade que confere às pessoas jurídicas a possibilidade de figurar como sujeito passivo de ofensas à honra objetiva, pois dotadas de reputação que não se confunde com a reputação das pessoas naturais que integram a sua administração ou composição societária.

Para além de antecedentes legais que previam expressamente a punibilidade de ofensa à honra de entidades (art. 21, § 1.º, “a”, Lei de Imprensa; art. 28, Dec.-Lei 4.766/1942), contemporaneamente há especial preocupação com ética empresarial e compliance por parte de pessoas jurídicas, revelando um interesse na manutenção de sua reputação, não apenas na qualidade de produtos ou serviços oferecidos, mas também na própria noção de estrito cumprimento de regras pela entidade.

Apesar de a questão ainda não estar pacificada na jurisprudência, tem-se admitido que pessoa jurídica figure como sujeito passivo somente do crime de difamação.[3] Não se admite crime de injúria contra pessoa jurídica, por não haver um sentimento de dignidade ou decoro próprio dos entes personificados.

Por outro lado, ainda que também se trate de honra objetiva, igualmente não se tem admitido a tipificação de crime de calúnia contra pessoas jurídicas, por se entender que essas não cometem crimes (societas delinquere non potest). Parece olvidar-se, contudo, que a responsabilidade penal das pessoas jurídicas já é realidade em nosso ordenamento jurídico no que diz respeito aos crimes contra o meio-ambiente, ainda que fundada em um modelo de heterorresponsabilidade (art. 3.ª, Lei 9.605/1998). Ademais, diante das proposições legislativas em trâmite para a reforma da legislação penal brasileira, a responsabilidade penal das pessoas jurídicas para outras espécies delitivas parece ser realidade premente, de modo que a jurisprudência quanto à (im)possibilidade de calúnia contra pessoa jurídica possa vir a ser atualizada em breve.

 


[1] Advogado sócio da Lucchesi Advocacia. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor pela UFPR. Presidente do IBDPE.


[2] J. Lamartine Corrêa de Oliveira define a pessoa jurídica a partir de uma concepção ontológica-institucional com especial apoio na noção de analogia. A analogia “não é aqui utilizada no sentido pós-normativo em que aparece como recurso utilizado na aplicação da norma, mas no sentido pré-normativo de analogia entre as categorias da vida que funcionam como dado prévio ao construído normativo” (A dupla crise da pessoa jurídica, p. 16), não caracterizando ofensa à garantia de legalidade do Direto penal.

[3] “A pessoa jurídica pode ser vítima de difamação, mas não de injúria e calúnia. A imputação da prática de crime a pessoa jurídica gera a legitimidade do sócio-gerente para a queixa-crime por calúnia.” (STF, RHC 83091, rel. Min. Marco Aurélio, j. 05.08.2003).

Em sentido contrário: “Alguém, em todo o Direito, notadamente no contexto legislativo, indica o ser humano. Jamais a legislação se refere à pessoa jurídica como alguém. Interpretação lógica reafirma essa conclusão. Honra, no Capítulo ‘V’ – Dos Crimes contra a Pessoa, significa o patrimônio moral do homem. Daí a impossibilidade de ser ofendida em sua dignidade, decoro ou reputação na sociedade. A pessoa jurídica tem reputação, sim; todavia, de outra espécie, ou seja, significado de sua atividade social, que se pode sintetizar no valor de seu relacionamento, dado ser titular de personalidade jurídica. Honra e reputação da empresa não se confundem. A primeira possui o ‘homem’. A segunda, a ‘atividade comercial ou industrial’.” (STJ, HC 7.512, rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, j. 30.06.1998). Em sentido contrário: “A jurisprudência desta Corte, sem recusar à pessoa jurídica o direito à reputação, é firmada no sentido de que os crimes contra a honra só podem ser cometidos contra pessoas físicas. Eventuais ofensas à honra das pessoas jurídicas devem ser resolvidas na esfera cível. Recurso desprovido.” (STJ, REsp 493.763/SP, rel. Min. Gilson Dipp, j. 26.08.2003).


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