A (IM)POSSIBILIDADE DA PRÁTICA DA CONDUTA DE EVASÃO DE DIVISAS COM CRIPTOMOEDAS

Por: Adriana Maria Gomes de Souza Spengler[1] Felipe Socha Cordeiro[2]

 

RESUMO

Com o desenvolver da sociedade informativa e a posterior invenção e difusão das criptomoedas, faz-se necessário a discussão acerca da tipicidade de determinadas condutas criminosas diante da possibilidade de serem praticadas por meios. Como exemplo disso têm-se as condutas que podem se dar com as criptomoedas. Diante disso, o presente estudo tem como objetivo geral realizar uma análise acerca da tipificação do crime de evasão de divisas e seu (im)possível enquadramento se praticado através das criptomoedas. Para tal fim a pesquisa buscou-se realizar um estudo acerca das criptomoedas, criptoativos e do blockchain; analisar sob a perspectiva da doutrina e da jurisprudência a conduta tipificada no art. 22 da Lei 7.492/86 (Crime de Evasão de Divisas); e verificar, por fim, a (im)possibilidade de enquadramento da conduta praticada com criptoativos na tipificação trazida pela referida norma penal. A metodologia aplicada atenderá ao método dedutivo por meio de levantamento bibliográfico. A partir dos resultados, acredita-se ser possível compreender de maneira clara e precisa o funcionamento e o enquadramento legal das criptomoedas, bem como a conduta de Evasão de Divisas em seus aspectos dogmáticos de imputação.

Palavras-chave: Criptoativos. Evasão de divisa. Tipicidade.

 

1.DAS CRITOMOEDAS, CRIPTOATIVOS E BLOCKCHAIN

A invenção da internet, tida como uma das mais relevantes do século XX, é datada entre a década de 60 e 70, cujo primeiro objetivo era apoiar órgãos militares do governo e, posteriormente, realizar conexões entre diversas universidades norte-americanas, no intuito de facilitar o acesso à dados, pesquisas e o intercâmbio entre os universitários. A partir desse momento, conforme afirma LISBOA[3], começa-se a falar em sociedade da informação em substituição à antiga sociedade industrial, termo utilizado para se referir a inserção da máquina à vapor nas relações jurídicas e sociais.

Nesse sentido, LISBOA[4] afirma que: “a Sociedade da Informação, como se pôde verificar, é a sociedade posterior à revolução causada pela introdução do computador nas relações jurídicas”. Conclui, então, que diante da revolução causada, fez-se necessário o estabelecimento de uma nova economia com novas regras.

É nesse contexto que ocorre o surgimento dos criptoativos e criptomoedas. Segundo orientação emitida pela CVM[5] – Comissão de Valores Mobiliários – os criptoativos “surgiram com a intenção de permitir que indivíduos ou empresas efetuem pagamentos ou transferências eletrônicas diretamente a outros indivíduos ou empresas, sem a necessidade de intermediação de uma instituição financeira”. Trata-se, então, de uma tecnologia inserida no intuito de facilitar as transações entre pessoas, diminuir a burocracia e retirar a validação da transação pela instituição financeira. O resultado disso é maior acessibilidade e rapidez.

Ademais, conforme entendimento de DURAN, STEINBER E CUNHA FILHO[6] “as criptomoedas não são propriamente ‘moeda’ porque não detém o atributo jurídico do poder liberatório, ou seja, sua aceitação não é obrigatória de forma a liberar o devedor de sua obrigação jurídica”. Já em contraponto, ULRICH[7] alega que “O Bitcoin – uma das criptomoedas existentes – é uma forma de dinheiro, assim como o real, o dólar ou o euro, com a diferença de ser puramente digital e não ser emitido por nenhum governo. O seu valor é determinando pelos indivíduos no mercado”. Esse imbróglio é fonte do primeiro questionamento. As criptomoedas podem ser consideradas, para fins jurídicos, moedas?

Importante ressaltar o seguinte entendimento da Receita Federal[8] a respeito dos criptoativos, conforme se vê: “a alta volatilidade dos preços dos criptoativos indica que eles não são adequados para assumir duas das três funções de uma moeda oficial: unidade de conta e reserva de valor”

Conforme Orientação da Receita Federal[9], que diz respeito à declaração de imposto de renda, obtém-se que o órgão governamental entende que os criptoativos “muito embora não sejam consideradas como moeda nos termos do marco regulatório atual, devem ser declaradas na Ficha Bens e Direitos como “outros bens”, uma vez que podem ser equiparadas a um ativo financeiro.”

É diante de tal cenário que surge a necessidade de um estudo acerca da (im) possibilidade de cometimento do crime de evasão de divisas cujo objeto material seria a criptomoeda.

2.DA CONDUTA DE EVASÃO DE DIVISAS

A conduta de evasão de divisas é tipificada pelo art. 22 da Lei nº 7.492/86. O bem jurídico tutelado pela tipificação da conduta, segundo PRADO[10], é, no caput do artigo, as reservas cambiais, já no parágrafo único “a tutela dirige-se também ao Erário, em razão de que a saída de moeda ou divisa para o exterior ou a manutenção de depósitos não declarados à repartição federal competente acabam por lesá-lo, além de atingir a política econômico-financeira do país.

Ainda, o referido doutrinador evidencia que os objetos materiais para a prática dessa seriam: “a moeda, a divisa e os depósitos não declarados”. É neste ponto que reside a problemática das criptomoedas. Poderiam essas serem enquadradas em algum dos objetos materiais citados para fins de responsabilização penal caso praticadas as condutas tipificadas diploma legal?

Segundo o ensinamento de PRADO[11], “moeda é a representação concreta do dinheiro. Consiste numa terceira mercadoria, convencional e representativa do valor de troca dos bens e mercadorias”. Se levada em consideração somente a citada definição de moeda, conclui-se, prima facie, que os criptoativos poderiam ser considerados objetos materiais. Contudo, NUCCI[12], afirma que moeda seria entendido como “papel-moeda ou peças metálicas, representando o dinheiro nacional”. Nesse sentido, verifica-se a controversa acerca da possibilidade de enquadramento daquelas à moeda e, portanto, surge a problemática da tipificação da conduta.

Já no que diz respeito às divisas, PRADO[13] as conceitua como “letras, cheques, ordens de pagamento etc. que sejam conversíveis em moedas estrangeiras, e as próprias moedas estrangeiras de que uma nação dispõe, em poder de suas entidades públicas ou privadas”. NUCCI[14] conclui que se trata de “moeda estrangeira ou título que a represente”. Diante disso, não sendo os criptomoedas moedas, propriamente ditas, e por não possuírem garantia de nenhum país, entende-se que não poderiam ser enquadradas como divisas.

NUCCI[15] ainda afirma que “o termo depósito normalmente é utilizado para representar um montante em moeda entregue, para guarda, a um estabelecimento bancário. PRADO[16], nesse diapasão, alega que “Depósitos são quantias confiadas a um banco por uma pessoa ou empresa. Conforme já afirmado, as criptomoedas não estariam em bancos ou instituições financeiras, visto que possuem um sistema de registro e operacionalização próprios e, portanto, resta impossível o enquadramento como depósitos.

Desta forma, diante do exposto, ainda que decorrente de estudos iniciais, entende-se que resta impossível o enquadramento da conduta de evasão de divisas se ocorrida por meio de criptomoedas, pois seria enquadrada como crime impossível. Sabe-se que esse, presente no Código Penal por meio do artigo 17, ocorre quando há “o emprego de meios ineficazes ou o ataque a objetos impróprios inviabilizam a produção do resultado, inexistindo situação de perigo ao bem jurídico penalmente tutelado[17]”.   Diante disso, a priori¸ conclui-se que a conduta de evasão de divisas praticadas com criptomoedas pode ser enquadrada como crime impossível, diante da impropriedade absoluta do objeto.

Contudo, importante ressaltar que a conduta praticada pelo agente pode ser enquadrada em algum outro tipo penal, a depender do contexto fático, bem como está sujeita a alterações de entendimentos tanto por parte da CVM como da jurisprudência pátria.

CONCLUSÃO

Diante de todo o exposto entende-se pela impossibilidade de enquadramento da conduta tipificada como crime de Evasão de Divisas se o objeto material da conduta forem as criptomoedas, visto que inexiste previsão legal, bem como, a princípio, tratar-se-ia de crime impossível, já que tais ativos não são considerados moedas. Insta relembrar que se faz possível o enquadramento em algum outro tipo penal a depender do contexto fático-probatório.

Ainda, sabe-se que vigora no ordenamento jurídico penal brasileiro como princípio reitor, o da Legalidade, expresso no Código Penal no art. 1º, restando ilegal considerar determinada conduta, sem lei anterior que assim o defina como crime, bem como a proibição da analogia in malam partem.

Conclui-se, portanto, que os estudos a respeito da temática devem aprofundar-se, bem como faz-se necessário que o legislador, conjuntamente com a Receita Federal e o Banco Central, enfrentem a questão e busquem uma regulação e normatização dos criptoativos e criptomoedas para que se possa firmar entendimento a respeito de seu enquadramento jurídico visando à segurança jurídica.

REFERÊNCIAS

CVM, Comissão de Valores Mobiliários. Criptoativos. série alertas. Brasil. 2018. Disponível em: <https://www.investidor.gov.br/portaldoinvestidor/export/sites/portaldoinvestidor/publicacao/Alertas/a lerta_CVM_CRIPTOATIVOS_10052018.pdf> . Acesso em: 16. Fev. 21

Duran, CV; Steinberg, D.; Cunha Filho, M. C. Criptoativos no Brasil: o que são e como regular? recomendações aos Projetos de lei 2060/2019 e 2303/2015. Faculdade de Direito da Universidade de São'Paulo, 2019. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/atividade- legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/especiais/56a-legislatura/banco-central-regular-moedas virtuais/apresentacoes-em-eventos/CamilaDuranProfessoraDoutoradaUSP.pdf>. Acesso em: 06.12.20.

LISBOA, Roberto Senise. Direito na sociedade da informação. Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/341219107_DIREITO_NA_SOCIEDADE_DA_INFORMA CAO>. Acesso em: 16. Fev. 21.

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais comentadas. vol. 2. 8.ed. ver., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

MASSON, Cleber. Direito Penal: Parte Geral (arts. 1º a 120). vol. 1. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019.

PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019

ULRICH, Fernando. Bitcoin- a moeda na era digital. São Paulo: Instituto Ludwing von Mises Brasil, 2014. p. 106>


[1] Advogada criminalista, Doutoranda em Ciências Criminais, professora de Direito Penal e Criminologia na UNIVALI. E-mail: adrianaspengler@univali.br

[2] Acadêmico do 8º período do curso de Direito da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). E-mail: felipesochacordeiro@hotmail.com


[3] LISBOA, Roberto Senise. Direito na sociedade da informação. Disponível em:

<https://www.researchgate.net/publication/341219107_DIREITO_NA_SOCIEDADE_DA_INFORMACAO>. Acesso em: 16. Fev. 21

[4] LISBOA, Roberto Senise. Direito na sociedade da informação. Disponível em:

<https://www.researchgate.net/publication/341219107_DIREITO_NA_SOCIEDADE_DA_INFORMACAO>. Acesso em: 16. Fev. 21

[5] CVM, Comissão de Valores Mobiliários. Criptoativos. série alertas. Brasil. 2018. Disponível em: < https://www.investidor.gov.br/portaldoinvestidor/export/sites/portaldoinvestidor/publicacao/Alertas/alerta_CVM

_CRIPTOATIVOS_10052018.pdf> . Acesso em: 16. Fev. 21

[6] Duran, CV; Steinberg, D.; Cunha Filho, M. C. Criptoativos no brasil: o que são e como regular? recomendações aos Projetos de lei 2060/2019 e 2303/2015. Faculdade de Direito da Universidade de São'Paulo, 2019. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/atividade legislativa/comissoes/comissoes- temporarias/especiais/56a-legislatura/banco-central-regular-moedas-virtuais/apresentacoes-em- eventos/CamilaDuranProfessoraDoutoradaUSP.pdf>. Acesso em: 06.12.20.

[7] ULRICH, Fernando. Bitcoin- a moeda na era digital. São Paulo: Instituto Ludwing von Mises Brasil, 2014. p. 106

[8] CVM, Comissão de Valores Imobiliários. Criptoativos. série alertas. Brasil. 2018. Disponível em: < https://www.investidor.gov.br/portaldoinvestidor/export/sites/portaldoinvestidor/publicacao/Alertas/alerta_CVM_CRIPTOATIVOS_10052018.pdf> . Acesso em: 16. Fev. 21

[9] BRASIL, Receita Federal. Imposto sobre a renda – pessoa física. Perguntas e Respostas. Brasil, 2019.

[10] PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

[11] PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

[12]NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais comentadas. vol. 2. 8.ed. ver., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

[13] PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

[14] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais comentadas. vol. 2. 8.ed. ver., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

[15] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais comentadas. vol. 2. 8.ed. ver., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

[16] PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

[17] MASSON, Cleber. Direito Penal: Parte Geral (arts. 1º a 120). vol. 1. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019.


Aspectos Criminais da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos

Por: Bibiana Fontella[1]

A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos foi promulgada pela Presidência da República, em 1º de abril de 2021, sob o n. 14.133. O objetivo do presente artigo é fazer algumas reflexões sobre o art. 178 da referida lei, o qual trata das infrações penais no âmbito das licitações e dos contratos administrativos, que foram retirados  da lei especial e incluídos no Código Penal.

Com a Nova Lei de Licitações foi incluído no Código Penal, o Capítulo II-B – Dos Crimes em Licitações e Contratos Administrativos, assim, os delitos licitatórios estão localizados nos artigos 337-E – 337-O, do Código Penal.

A inclusão dos crimes no âmbito das licitações e contratos administrativos no Código Penal é a política criminal mais adequada, visto que os tipos penais podem estar previstos no Código Penal ou podem estar elencados em Leis Específicas (Código de Trânsito Brasileiro, Estatuto do Idoso, Estatuto do Torcedor e vários outros). Contudo, esta não é a postura legislativa mais recomendada, se for levado em conta o próprio sistema penal. Em regra, os tipos penais estão localizados em um único diploma legal, este composto pela parte geral, que traz a dogmática penal, e, uma segunda parte com o rol de infrações penais. Entretanto, no sistema penal brasileiro houve uma enxurrada de legislações especiais trazendo tipos penais específicos fora do Código Penal, como acontecia com a revogada Lei n. 8.666/1993. Assim, apesar de vários pontos que devem ser alvo de crítica da Nova Lei de Licitações, aqui há um ponto a ser celebrado, pois colocou os crimes dentro do diploma legal mais adequado, resguardando a segurança jurídica, a previsibilidade e a proporcionalidade entre as penas, dentro da própria lógica sistêmica do Código Penal.[2]

Dos onze tipos penais incluídos no Código Penal, apenas um – art. 337-O – é novo em comparação com as condutas já previstas na revogada Lei n. 8.666/93, o qual trata da omissão grave de dado ou de informação por projetista. Em geral a Lei n. 14.133/2021 representa claro espírito punitivista, com maior rigor no preceito secundário de praticamente todos os tipos, com exceção somente do crime de violação de sigilo em licitações (art. 337-J, CP), que manteve a mesma pena da revogada Lei de Licitações.

Entretanto, em meio ao espírito punitivista é possível identificar uma abolitio criminis[3], o crime de contratação direta ilegal teve a sua redação alterada, com exclusão da parte final do tipo anterior:

 

Art. 89. Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou inexigibilidade:

Pena – detenção, de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa.

Parágrafo único. Na mesma pena incorre aquele que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público.

Art. 337-E. Admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei:

Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.

 

Além da exclusão da hipótese do parágrafo único, a segunda parte do tipo previsto no art. 89 restou excluída no art. 337-E, assim, a conduta de deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou inexigibilidade foi descriminalizada, podendo retroagir a fatos pretéritos, pois beneficia o réu, nos termos do art. 5º, XL, da Constituição da República. Apesar da descriminalização da segunda parte do tipo anteriormente descrito no antigo art. 89 só ter sido consagrada pela Lei n. 14.133/2021, a doutrina já se posicionava pela inconstitucionalidade daquela criminalização ou até mesmo pela irrelevância penal da conduta.[4]

Nos demais dispositivos legais não há significativas alterações no preceito primario, mas, com apenas duas exceções, no preceito secundário praticamente todos os tipos tiveram as sanções agravadas.

Os crimes de (i) violação de sigilo em licitação (art. 337-J) e de (ii) impedimento indevido de participação em licitação (art. 337-N) permaneceram com a mesma pena cominada.

Nos demais tipos, todas as penas privativas de liberdade foram majoradas, em alguns a pena mínima foi duplicada:

 

Tipo Pena Anterior[5] Pena Atual[6]
Contratação direta ilegal (art. 337-E) Detenção, de 3 a 5 anos. Reclusão, de 4 a 8 anos.
Frustração do caráter competitivo de licitação (art. 337-F) Detenção, de 2 a 4 anos. Reclusão, de 4 a 8 anos.
Patrocínio de contratação indevida (Art. 337-G) Detenção, de 6 meses a 2 anos. Reclusão, de 6 meses a 3 anos.
Modificação ou pagamento irregular em contrato administrativo (art. 337-H) Detenção, de 2 a 4 anos. Reclusão, de 4 a 8 anos.
Perturbação do processo licitatório (art. 337-I) Detenção, de 6 meses a 2 anos. Detenção, de 6 meses a 3 anos.
Violação de sigilo em licitação (art. 337-J) Detenção, de 2 a 3 anos. Detenção, de 2 a 3 anos.
Afastamento de licitante (art. 337-K) Detenção, de 2 a 4 anos. Reclusão, de 3 a 5 anos
Fraude em licitação ou contrato (art. 337-L) Detenção, de 3 a 6 anos. Reclusão, de 4 a 8 anos.
Contratação inidônea (art. 337-M) Detenção, de 6 meses a 2 anos Reclusão, de 1 a 3 anos.
Impedimento indevido (art. 337-N) Detenção, de 6 meses a 2 anos. Reclusão, de 6 meses a 2 anos.
Omissão grave de dado ou de informação por projetista Sem previsão anterior Reclusão, de 6 meses a 3 anos.

 

Verifica-se que com exceção dos crimes de (a) perturbação do processo licitatório e (b) violação de sigilo em licitação, que permanecem com pena de detenção, todos os demais delitos do comparativo acima são punidos com pena de reclusão. Além disso, destacam-se os crimes de (i) frustração do caráter competitivo de licitação e de (ii) modificação ou pagamento irregular em contrato administrativo em que as penas, tanto mínima quanto máxima, foram duplicadas. De tal forma que, dependendo do caso concreto, se a pena definitiva ficar acima do mínimo legal não será possível a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos e, possivelmente, o acusado terá que cumprir a pena em regime semiaberto ou fechado.

Inevitável observar que tal exasperação de pena assemelha-se ao atual discurso de combate à corrupção no cenário nacional[7], sendo importante destacar que a corrupção que se fala aqui é aquela vista a lato sensu, não delimitada aos tipos penais dos artigos 317 e 333 do Código Penal, mas aquela questionada em mídias sociais, pelo jornalismo oficial através de meios de comunicação e própria sociedade. As licitações como ferramenta das contratações públicas pode ser terreno fértil ações consideradas corruptas.[8] A exasperação das penas nos crimes licitatórios está na mesma linha de combate a corrupção presente nos últimos julgamentos do Supremo Tribunal Federal[9] e Superior Tribunal de Justiça[10] no tocante às alterações interpretativos do crime de corrupção passiva.

 


[1] Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professora de Direito Penal. Secretária-Geral do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico. Advogada Criminal.


[2] Neste sentido: ROCHA JUNIOR, Francisco Monteiro. Aspectos penais da nova de licitações. Disponível em https://www.migalhas.com.br/depeso/343097/aspectos-penais-da-nova-de-licitacoes. Acessado em 28.04.2021.

[3] LUCCHESI, Guilherme Brenner; NOGARI, Maria Victoria Costa. Nova lei de licitações: Em meio ao espírito punitivista, uma abolitio criminis. Disponível em https://www.migalhas.com.br/depeso/343497/nova-lei-de-licitacoes-em-meio-ao-espirito-punitivista. Acessado em 29.04.2021.

[4] BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito penal das licitações. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 148.

[5] Lei n. 8.666/93

[6] Código Penal (Lei n. 14.133/2021)

[7] De forma muito semelhante com o que ocorreu no discurso de caça as bruxas durante a inquisição. (Neste sentido: ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O nascimento da criminologia crítica: spee e a cautio criminalis. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020.)

[8] Neste sentido: ROCHA JUNIOR, Francisco Monteiro. Aspectos penais da nova de licitações. Disponível em https://www.migalhas.com.br/depeso/343097/aspectos-penais-da-nova-de-licitacoes. Acessado em 28.04.2021.

[9] STF, AP 695, Rel. Min. Rosa Weber, Primeira Turma, j. 06/09/2016.STF, Inq 4506, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 17/04/2018, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-183 DIVULG 03-09-2018 PUBLIC 04-09-2018.

[10] STJ, RESP 1745410, Relatora para Acórdão Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma. DJE 23 de outubro de 2018.


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A importação da cegueira deliberada para imputação subjetiva no delito de lavagem de capitais

Por: Richarde Pereira da Silva Júnior[1]

 

Os sistemas jurídicos, tais como o anglo-saxão (common law) e o românico-germânico (civil law) destinam-se há tempos como fontes basilares para a construção jurídico normativa de diversos países ao redor do mundo (Brasil, Espanha, Portugal, Singapura, EUA, Inglaterra). Considerando a multiplicidade de litígios que despontam rapidamente em um universo repleto de mudanças sociais e a dificuldade de enfrentá-los, o ordenamento jurídico brasileiro tem adotado, comumente, as teorias jurídico-penais surgidas no common law cuja aplicação corresponde à possibilidade de punibilidade ante conflitos jurídico-penais complexos, como o de lavagem de capitais. Tal fato é reflexo da sensação de insegurança crescente e dos novos riscos que chamam o Estado a solucionar. [2]

 

À vista disso, pouco se discute no país, com raríssimas exceções, a problemática profunda acerca da importação de uma dessas teorias, qual seja, a chamada cegueira deliberada (willful blindness doctrine). A teoria, em alguns casos judiciais, vem sendo reiteradamente utilizada pelo judiciário brasileiro, sendo equiparada ao dolo eventual.

 

Já bem difundida no sistema da common law, mais especificamente nos EUA, por influência do caso inglês Regina vs. Sleep - 1861. Nos Estados Unidos menciona-se que, embora não se saiba ao certo qual foi a extensão da sua aplicabilidade pela Corte, tem-se que a teoria foi discutida, inicialmente, no litígio United States vs. Spurr - 1899.[3] No primeiro caso, na Inglaterra, o imbróglio diz respeito ao desvio de bens do Estado e no segundo, nos Estados Unidos, à emissão de cheques sem fundos em um Banco de Nashville, capital do Estado de Tennessee.

 

Usualmente conhecida como cegueira deliberada (willful blindness doctrine), ela se traduz pelo desconhecimento fático, deliberado (racional) em relação aos indícios ou práticas de determinada ação delituosa que haveria a capacidade de se ter consciência, caracterizando-se, ainda, como a pretérita viabilidade de determinado agente de ter tido o conhecimento sobre o cometimento de um delito e a sua diligência (ativa ou passiva) quando do momento de tal conhecimento. Em outras palavras: seria a ignorância voluntária em relação à prática criminosa em contrariedade a determinado tipo penal, o escolher não ver.

 

Dito isso, a linha defensiva do artigo é o de que: (i) o sistema românico-germânico (civil law) que estrutura o ordenamento jurídico no país é inviável para se aderir a uma tipificação penal subjetiva (no caso de lavagem de capitais) como a da cegueira deliberada, cunhada no sistema jurídico da common law, logo, diverso ao brasileiro que se irrompeu, em verdade, apenas para solucionar uma lacuna de imputação existente entre o conhecimento (knowledge) e o descuido (recklessness). Ao passo que: (ii) já há no país arcabouço dogmático o suficiente para uma possível imputação subjetiva, sendo desnecessária a importação da teoria. E que: (iii) inexiste até o presente momento, tampouco existiram ou quiçá está em passos de desenvolvimento quaisquer critérios mínimos, objetivos ou razoáveis que sistematizam, dogmaticamente e logicamente, a aplicação da referida teoria pelos Tribunais brasileiros.

 

Em breves linhas, a discussão se irrompeu, de início, quando o Poder Judiciário Federal do Ceará a adotou para sentenciar réus por lavagem de dinheiro no caso do furto ao Banco Central no ano de 2005.[4] Embora a sentença tenha sido reformada por instância superior posteriormente (TRF5), foi a partir daí que a teoria se introduziu na jurisprudência brasileira. Posteriormente, notabilizou-se novamente na Ação Penal 470, nacionalmente conhecida como “mensalão”, esquema de pagamento de vultosos valores a parlamentares que apoiassem politicamente o governo federal. À época, o Ministro Celso de Mello decidiu aplicar a teoria no crime de lavagem de capitais, bem como a Ministra Rosa Weber que também decidiu utilizá-la. E mais recentemente, foi novamente discutida e adotada em algumas ações penais no âmbito da chamada “Operação Lava Jato”.

 

Quando o artigo defende a impossibilidade da importação da referida teoria há que se falar, naturalmente, da sua adoção na Espanha, país cujo ordenamento também se baliza no civil law, motivo pelo qual alguns dos defensores da implantação da teoria no ordenamento brasileiro defendem a sua adoção. Entretanto,“há peculiaridades e vicissitudes inerentes aos respectivos sistemas de imputação criminal de cada país, notadamente a delimitação do conceito legal de dolo, presente no Brasil, mas ausente na Espanha”, como bem assinala Lucchesi.[5] O ponto central, portanto, é “que a simples menção da legislação estrangeira não referenda e não é tão simples para justificar o pretendido, pois o seu teor é diverso do que, no Brasil, se encontra.”[6]

 

Como se vê, o ordenamento jurídico brasileiro não deve se escorar no ordenamento jurídico espanhol pretendendo justificar a importação da teoria, porquanto mesmo que os sistemas dos dois países procedam da semelhante estrutura romano-germânica, isto, por si só, não justifica a importação da “willful blindness”; eis que: (i) a delimitação dolosa presente na Espanha distingue-se da brasileira e, naquele país, também carece de interpretação unânime e (ii) o Brasil já possui arcabouço normativo o suficiente para imputação subjetiva nos moldes em que se destina a cegueira deliberada e (iii) ainda é inútil para o sistema penal continental “nos moldes em que formulada no âmbito do common law”, conforme, neste caso, bem defende Lucas Pardini.[7]

 

No que se refere à imputação subjetiva no direito penal brasileiro, especificamente no crime de lavagem de capitais, entendido como aquele que busca dar vistas de legalidade a valores e bens de origem ilícita, temos que a sua concretização só se daria por meio da modalidade dolosa, pois inexiste modalidade culposa. O dolo, portanto, seria identificado por meio do conhecimento de bens ou valores visando “ocultar ou dissimular sua natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade, ou com a assunção do risco de produzir um ou mais desses resultados”.[8] E uma imputação possível, em tais casos, seria por meio do já conhecido dolo eventual, que “com a possibilidade de se imputar a prática de lavagem a título de dolo eventual, seria possível viabilizar uma resposta penal julgada apropriada para esse feixe de casos”,[9] o que dispensaria, logo, a importação da cegueira deliberada.

 

A enorme vagueza da teoria traz sérios riscos quando da sua aplicação no crime de lavagem, porque acaba por adotar termos que ainda inexistem critérios objetivos que os tipifiquem, tais como: “adquirir”, “vender”, “oferecer”, “ter em depósito”, “transportar”, “trazer consigo” ou “guardar”, termos cabíveis no crime de tráfico de drogas -  casos em que se aplica a teoria nos EUA - que diferem-se dos termos usualmente utilizados para a imputação do crime de lavagem de capitais, tais como o de ocultação e dissimulação.[10] Fato pelo qual “qualquer que seja a teoria adotada em relação ao elemento subjetivo, o dolo no direito pátrio sempre exige, ao menos, conhecimento acerca dos elementos objetivos da norma incriminadora”,[11] o que implica, necessariamente, ao menos a mínima sistematização, sem vagueza vocabular, para a imputação no caso do crime de lavagem de capitais.

 

Logo, conclui-se que a figura do dolo, dotada de critérios de objetividade no ordenamento jurídico brasileiro, não é equiparável à teoria da cegueira deliberada. Ademais, que nos casos do crime de lavagem de capitais, ainda inexiste objetividade nas imputações por conta da enorme vagueza vocabular existente em nosso ordenamento, motivo pelo qual é urgente o desenvolvimento da figura dolosa pela doutrina e jurisprudência nos casos em que se tem em pauta o conhecimento do agente, e não de importação da teoria  da cegueira deliberada cuja elaboração se deu para resolver, exclusivamente, um problema de lacuna de imputação existente no ordenamento anglo-saxão (common law).

 

 


[1] Graduando do curso de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Intern at - Tauil & Chequer | Mayer Brown (Corporate e Securities - Energy | Oil & Gas)”. Membro da Equipe de Competição e Estudos em Arbitragem da UFRJ - ECEArb. Membro Alumni da Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial - Brasil (CAMARB).

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[2] HERNANDES, Camila Ribeiro. A impossibilidade de aplicação da teoria da cegueira deliberada ao crime de lavagem de capitais no direito penal brasileiro. Dissertação (Pós-Graduação em Direito Público) – Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018, p. 19.

[3] PARDINI, Lucas. Imputação dolosa do crime omissivo impróprio ao empresário em cegueira deliberada. Dissertação (Programa de Pós Graduação em Direito - Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019, p. 22.

[4] Processo crime n. 2005.81.00.014586-0.

[5] LUCCHESI, Guilherme Brenner. A punição da culpa a título de dolo: o problema da chamada "cegueira deliberada". Tese (Tese em Direito) – Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2017, p. 63-64.

[6] SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. A aplicação da teoria da cegueira deliberada nos julgamentos da Operação Lava Jato. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 24, n. 122, p. 255-280, 2016.

[7] PARDINI, Lucas. Imputação dolosa do crime omissivo impróprio ao empresário em cegueira deliberada. Dissertação (Programa de Pós Graduação em Direito - Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019, p. 29.

[8] HERNANDES, Camila Ribeiro. A impossibilidade de aplicação da teoria da cegueira deliberada ao crime de lavagem de capitais no direito penal brasileiro. Dissertação (Pós-Graduação em Direito Público) – Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018, p. 54.

[9] LUCCHESI, Guilherme Brenner. A punição da culpa a título de dolo: o problema da chamada "cegueira deliberada". Tese (Tese em Direito) – Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2017, p. 65.

[10] LUCCHESI, Guilherme Brenner. A punição da culpa a título de dolo: o problema da chamada "cegueira deliberada". Tese (Tese em Direito) – Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2017, p. 66.

[11] HERNANDES, Camila Ribeiro. A impossibilidade de aplicação da teoria da cegueira deliberada ao crime de lavagem de capitais no direito penal brasileiro. Dissertação (Pós-Graduação em Direito Público) – Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018, p. 163.

BIBLIOGRAFIA

HERNANDES, Camila Ribeiro. A impossibilidade de aplicação da teoria da cegueira deliberada ao crime de lavagem de capitais no direito penal brasileiro. Dissertação (Pós-Graduação em Direito Público) – Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018.

LUCCHESI, Guilherme Brenner. A punição da culpa a título de dolo: o problema da chamada "cegueira deliberada". Tese (Tese em Direito) – Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2017.

PARDINI, Lucas. Imputação dolosa do crime omissivo impróprio ao empresário em cegueira deliberada. Dissertação (Programa de Pós-graduação em Direito - Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019.

SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. A aplicação da teoria da cegueira deliberada nos julgamentos da Operação Lava Jato. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 24, n. 122, p. 255-280, 2016.


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Nova lei de licitações: Em meio ao espírito punitivista, uma abolitio criminis

Por: Guilherme Brenner Lucchesi[1] e Maria Victoria Costa Nogari[2]

No que se refere ao preceito primário dos dispositivos penais, a nova lei, em sua maior parte, operou continuidade normativo-típica.

Foi promulgada a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos - lei 14.133, de 2021. O inciso I do art. 190 da nova Lei determinou a revogação dos crimes previstos nos arts. 89 a 108 da lei 8.666, de 1993, e introduziu dentro do rol dos "Crimes Contra a Administração Pública" o Capítulo II-B intitulado "Dos crimes em licitações e contratos administrativos". Assim, na nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos não há mais previsões específicas quanto a crimes licitatórios, tal como dispunha a Lei n.º 8.666.

Foram inseridos onze tipos no Código Penal - arts. 337-E a 337-O -, mas apenas o último é novo tipo penal incriminador ("omissão grave de dado ou de informação por projetista"). Em relação às condutas que já eram criminalizadas pela Lei n.º 8.666 - arts. 337-E a 337-N -, a maioria sofreu modificações no preceito secundário, com o aumento das penas cominadas e alteração do regime de detenção para reclusão (novatio legis in pejus). Aliás, o crime de violação de sigilo em licitação (art. 337-J, CP) foi o único que manteve integralmente o preceito secundário da antiga redação, prevista na Lei n.º 8.666.

No que se refere ao preceito primário dos dispositivos penais, a nova lei, em sua maior parte, operou continuidade normativo-típica1, com a manutenção da incriminação das condutas criminalizadas pela lei 8.666. Consequentemente, permanece hígida a persecução penal dos fatos cometidos antes da vigência desses novos (já conhecidos) tipos penais.

A exceção ficou por conta do art. 337-E do Código Penal ("contratação direta ilegal"), que reproduziu apenas parcialmente a redação do art. 89 da lei 8.666 e, assim, opera-se a abolitio criminis da conduta de "deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade".

Observe-se que o art. 89 da lei 8.666 criminalizava as condutas de "dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade". Repare-se que o novo art. 337-E, introduzido no CP pela lei 14.133, criminaliza a conduta de "admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei". O legislador, claramente, deixou de fora uma das condutas criminalizadas pelo revogado art. 89:

Art. 89.  Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade:

Pena - detenção, de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa.

Parágrafo único.  Na mesma pena incorre aquele que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público.

Art. 337-E. Admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei:

Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.

 

Para ficar ainda mais claro, sublinha-se que o art. 89 da lei 8.666 veiculava três tipos penais mistos alternativos, de ação múltipla ou de conteúdo variado (aquele em que a prática simultânea/sucessiva de mais de uma conduta configura crime único): (i) "dispensar", (ii) "inexigir" licitação fora das hipóteses previstas em lei ou (iii) "deixar de observar as formalidades" a ela pertinentes2. A incriminação destas condutas foi mantida em sua maior parte no art. 337-E do CP.

Houve, porém, a abolitio criminis quanto à conduta omissiva própria de "deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade". Disso decorre a incidência retroativa do art. 337-E do CP - na parte que descriminalizou a conduta - mesmo aos processos judiciais com sentença transitada em julgado, conforme determina o parágrafo único do art. 2.º do CP.

Frise-se que, em relação à conduta descrita na segunda parte do art. 89 da lei 8.666 não houve continuidade normativo-típica, tal como nos demais crimes em licitações agora previstos no CP. Isso porque, na vigência da lei 8.666, o tipo penal abolido incidia justamente quando se tratasse de uma situação que autorizaria a dispensa ou inexigibilidade de licitação, mas ao fazê-la o servidor público descumpria algum dos preceitos normativos previstos na lei de regência para proceder essa dispensa ou essa inexigibilidade3.

Vale dizer, aquele que deixa de observar as formalidades relativas à dispensa ou inexigibilidade de licitação não pratica a conduta de contratação direta ilegal. Assim, "deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade" não se amolda aos preceitos veiculados no novo art. 337-E - "admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei". Deste modo, não é possível sustentar a manutenção da criminalização da conduta prevista no art. 89 da lei 8.666 pelo novo art. 337-E do CP.

Essa mudança em benefício do acusado é surpreendente se cotejada com o maior rigor empregado pela nova lei aos crimes em licitações de um modo geral. Repisa-se que nove das dez condutas que já eram criminalizadas pela lei 8.666 sofreram novatio legis in pejus, tendo suas penas aumentadas e/ou alterado o seu regime de detenção para reclusão.

À vista disso, embora a abolitio criminis da modalidade prevista na segunda parte do art. 89 da lei destoe do espírito punitivista que permeia as alterações promovidas nos dispositivos penais pela lei 14.133, a doutrina já há algum tempo posiciona-se pela inconstitucionalidade da criminalização4 ou mesmo pela irrelevância penal da conduta em questão5.

Mesmo no âmbito legislativo, a Comissão de Juristas destinada à elaboração do Anteprojeto de Código Penal no Senado - composta por Luiz Flávio Gomes e Luiz Carlos Gonçalves, sob a presidência de Gilson Dipp - também já debatia em 2012 sobre a necessidade de se estabelecer a desnecessidade de pena em relação à conduta de "deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade"6.

Natural que aventassem a desnecessidade de aplicação de pena ao agente público que praticasse essa conduta. Tomada a "higidez" da Administração Pública como bem jurídico tutelado pelo art. 89 da lei 8.666, o delito era classificado como de perigo abstrato7. Ao inexigir ou dispensar licitação quando a lei a impõe, o gestor público pratica uma ação que coloca em perigo a lisura e transparência na contratação pública que, se tivesse sido realizada por meio do procedimento licitatório tal como legalmente imposto, permitiria a ampla competição e a observância da isonomia concorrencial8.

Entretanto, na conduta abolida, a hipótese era mesmo de dispensa ou inexigibilidade de licitação. Vale dizer, são situações em que a própria lei excepciona a exigência do procedimento licitatório para a contratação pública, de sorte que a regra geral de exigência de licitação não teria sido ilegalmente suprimida com a prática da conduta. Simplesmente, o agente público descumpriu uma das formalidades estabelecidas para não licitar, o que não representa nem mesmo um crime de perigo abstrato ao bem jurídico tutelado.

Em suma, com a segunda parte do art. 89 da lei 8.666, o legislador criminalizava mero error in procedendo praticado pelo agente público que erra no aspecto formal da execução do ato administrativo9, o que é, evidentemente, um exagero. Eventual violação nesse sentido pode ser satisfatoriamente resolvida no plano administrativo, com a aplicação das sanções que lhe são próprias. Mais desproporcional ainda tal conduta ser sancionada com a pena de três a cinco anos, a mesma cominada às condutas em que não se realiza o procedimento licitatório nas hipóteses em que não é dispensado ou inexigível.

Absolutamente acertada, portanto, a descriminalização da conduta de "deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade" prevista no art. 89, segunda parte, da lei 8.666, decorrente da nova Lei de Licitações. A razão consiste, basicamente, no fato de não se identificar na conduta descrita um bem jurídico punível pela mais grave das sanções, pelo uso do instrumento de ultima ratio, que é o Direito penal.

A conduta do agente público que comete erro administrativo, descrita na segunda parte do art. 89, não causa lesão ou colocação em perigo a bem jurídico algum - este entendido como "dados ou finalidades necessários para o livre desenvolvimento dos cidadãos, a realização de seus direitos fundamentais"10. Além de que, a respectiva conduta (se for o caso) sujeita-se às sanções da esfera administrativa, de sorte que buscar a sua evitação por meio da ameaça penal viola o princípio da subsidiariedade, em verdadeiro abuso do poder punitivo estatal.

________________

1 O mesmo ocorreu, v.g., com a revogação do art. 214 do CP (atentado violento ao pudor) e inclusão de seu conteúdo normativo-típico nos arts. 213 (estupro) e art. 217-A (estupro de vulnerável). Ver STJ, 5.ª T., HC 217.531/SP, rel. min. Laurita Vaz, DJe 2 abr. 2013.

2 BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito penal das licitações. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 143.

3 PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 399.

4 Sobre a conduta incriminada na segunda parte do art. 89, comenta BITENCOURT: "A rigor, temos dificuldade em aceitar a constitucionalidade dessa criminalização, que peca pelo excesso, violando, em outros termos, o princípio da proporcionalidade, considerando-se que mero error in procedendo, além de indevidamente criminalizado, e' sancionado com pena de três a cinco anos de detenção e multa". BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito penal das licitações. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 148.

5 Sobre a conduta incriminada na segunda parte do art. 89, comenta JUSTEN FILHO: "Se os pressupostos da contratação direta estavam presentes, mas o agente deixou de atender à formalidade legal, a conduta é penalmente irrelevante." JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 17. ed. São Paulo: RT, 2016. p. 1399.

6 O tipo penal elaborado no Anteprojeto do Código Penal foi redigido da seguinte forma: "Art. 316. Deixar de observar as formalidades legais pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade de licitação, quando cabíveis: Pena - prisão, de um a quatro anos. Parágrafo único. Nos casos em que não houve prejuízo concreto à Administração Pública, o juiz poderá, examinando a culpabilidade do agente, deixar de aplicar a pena por ser desnecessária." Disponível em: clique aqui. Acesso 7 abr. 2021.

7 LEITE, Alaor. Dolo e o crime de dispensa ou inexigência ilegal de licitação (art. 89 da Lei 8.666/1993) interpretação restritiva do tipo penal, responsabilidade penal do gestor público e a relevância jurídica da opinião técnica da procuradoria do município (STF, Inq. 2.482/MG). Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 104, p. 13-30, set-out. 2013.

8 BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito penal das licitações. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 132.

9 BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito penal das licitações. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 148.

10 ROXIN, Claus. O conceito de bem jurídico crítico ao legislador em xeque. Revista dos Tribunais, vol. 922, p. 291-322, ago. 2012.

 

[1] Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Mestre pela Cornell Law School (EUA). Attorney-at-law inscrito no New York State Bar. Advogado sócio da Lucchesi Advocacia.

[2] Acadêmica de Direito da UFPR. Associada ao Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico. Estagiária da Lucchesi Advocacia.


As provas obtidas por intermédio do Whatsapp e os Crimes perpetrados contra o Mercado Financeiro: entre a preservação da cadeia de custódia e a eficiência da persecução penal

Por: Iuri do Lago Nogueira Cavalcante Reis[1], Yuri Coelho Dias[2] e Leandro Barbosa da Cunha[3] 

Introdução

No âmbito dos delitos perpetrados por organizações criminosas contra o Mercado Financeiro Nacional, dada a complexidade das relações jurídicas hodiernamente envolvidas, é comum que os agentes eventualmente infratores necessitem se manter em contínua comunicação através de aplicativos virtuais de troca de mensagens (como Whatsapp e Telegram, Facebook Messenger, por exemplo), a fim de estruturar o planejamento e a execução dos crimes, evidenciando que os registros das mensagens em seus celulares e aparelhos eletrônicos em geral podem se constituir como importantes elementos probatórios para subsidiar a persecução criminal e o consequente desmantelamento de tais organizações criminosas.

Entretanto, não se pode prescindir da observância da veracidade das provas obtidas por tais meios, porquanto as mensagens, muitas vezes, podem não apresentar a rigidez suficiente para lastrear uma hipotética condenação, vez que é relativamente simples alterá-las ou, de algum modo, modificar seus conteúdos a partir de softwares de edição ou de programação. Por isso, dada a importância do assunto, o presente texto propõe uma reflexão sobre a viabilidade jurídica do uso de provas obtidas por meio do Whatsapp no contexto dos crimes cometidos contra o mercado financeiro nacional.

 

A proteção do mercado financeiro contra as organizações criminosas e os limites do uso de provas obtidas por meio do espelhamento de conversas Whatsapp

 

A sociedade contemporânea é marcada pela enorme dinamicidade dos meios e dos veículos de comunicação, os quais, em questão de segundos, são capazes de transmitir um número muito elevado de informações entre os mais variados interlocutores. No entanto, não obstante os aparatos tecnológicos propiciem grandes avanços à humanidade, há de se ter em vista que determinadas pessoas, munidas de má-fé e de intuito delitivo, acabam por empregar a tecnologia em prol de atividades criminosas visando a facilitar a obtenção do produto do ilícito, ou ainda, a mascarar e a ocultar as operações realizadas.

Principalmente perante o mercado financeiro brasileiro, a fim de lograrem êxito na violação dos bens jurídicos tutelados, por exemplo, pela Lei n.º 7.492/1986, as mais complexas organizações criminosas se valem de esquemas muito sofisticados, os quais, na prática, não costumam ser descobertos pelos meios convencionais de prova, de modo que, por vezes, torna-se necessário celebrar um acordo de colaboração premiada com um dos membros integrantes da organização com intuito de obter mais informações[4], ou, até mesmo, realizar a quebra de sigilo para auxiliar na continuidade da persecução criminal instaurada.

De toda sorte, seja mediante delação premiada, seja através de revelações anônimas ou de outras vias, é comum que se busque comprovar a autoria dos crimes perpetrados contra o sistema financeiro nacional por meio de screenshots (ou prints) de conversas do Whatsapp (ou Telegram) que o suposto infrator manteve com outras pessoas, porquanto tendem a ser escassas as provas diretas da prática delitiva (dado que há um grande número de agentes intermediários, vulgos “laranjas”) e as montas de dinheiro ilícito são rotineiramente ocultadas pelo embranquecimento de capitais[5].

Afinal, os esquemas delitivos no mercado financeiro assumem um alto nível de estratificação hierárquica entre os membros da organização, de modo a praticamente blindar seus autores intelectuais contra a investigação policial. Por este motivo, as screenshots das conversas mantidas contribuem para revelar a dinâmica de funcionamento dos grupos, bem como o modo pelo qual se dava a distribuição das tarefas entre os integrantes, a identificação de seus coautores e partícipes, o modus operandi das atividades delitivas, dentre outros aspectos que são importantes para desmantelar a organização criminosa.

Não obstante, há de se ter em vista que prints e screenshots colhidos do Whatsapp nem sempre retratam algo verdadeiro. Isso porque é possível, por exemplo, manipular alguns tipos de conversa ao excluir certas mensagens, ou, até mesmo, empregar métodos bem mais engenhosos para modificar os códigos de programação do aplicativo objetivando alterar o conteúdo daquilo que efetivamente ocorreu. Sem contar que, por intermédio de softwares tais quais Photoshop, Paint, iPiccy, Photoscape – dentre outros –, é possível modificar de maneira praticamente ilimitada as screenshots já existentes na memória de um disco rígido.

Por outro lado, também não parece razoável desprezar por completo as provas obtidas por meio de conversas do Whatsapp tão somente pelo fato de que elas potencialmente podem ser manipuladas, haja vista que tal solução implicaria, em certos casos, na impossibilidade de se promover a persecução criminal, ou de condenar os agentes infratores que ocupam os postos hierarquicamente superiores nas organizações criminosas e que quase sempre se valem de terceiros para manter a prática delitiva no âmbito do mercado financeiro[6].

Analisando a situação retratada acima, no acórdão proferido no RHC n.º 99.735-SC em 27 de novembro de 2018, o Superior Tribunal de Justiça se posicionou no sentido de que a as screenshots obtidas por meio do espelhamento da ferramenta Whatsapp Web constituiriam prova ilícita, já que seria possível, em tese, tanto visualizar conversas que ocorrem em tempo real (tal qual numa interceptação telefônica), quanto editar, excluir ou enviar novas mensagens, de modo que se trataria de um meio de obtenção de prova híbrido que não foi expressamente adotado pelo Processo Penal Brasileiro.

Ademais, em recente julgado de 23 de fevereiro de 2021 no AgRg no RHC n.º 133.430/PE, a 6ª Turma da Corte Superior reiterou, por unanimidade, o entendimento de que provas obtidas por meio de screenshots da tela do Whastsapp Web seriam ilícitas devido ao fato de não apresentarem uma cadeia de custódia que possa ser verificada. No contexto, dois réus foram apontados por denúncias anônimas, juntamente com prints da tela do Whatsapp Web, de que ambos seriam corruptos. Em seguida, o relator, o até então Ministro Nefi Cordeiro, destacou que as screenshots seriam provas ilícitas e que deveriam ser desentranhadas, haja vista que o espelhamento realizado via Whatsapp Web permitiria a edição e a exclusão de mensagens, sem que isso deixasse qualquer vestígio.

De toda sorte, os referidos precedentes não inviabilizam o reconhecimento da licitude das provas obtidas por meio de screenshots do Whatsapp, mas tão somente daquelas que digam respeito ao espelhamento feito pela ferramenta do Whatsapp Web, dada a possibilidade de edição em tempo real. A autenticidade dos prints, portanto, deve ser aferida de acordo com o caso concreto, de modo que não é possível dissertar em abstrato sobre a viabilidade jurídica de tais meios de prova, sob pena de comprometer a investigação dos crimes de gestão temerária, evasão de divisas, lavagem de dinheiro, dentre outros que se inserem nos complexos esquemas delitivos das organizações criminosas.

O emprego de ata notarial costuma ser um mecanismo bastante utilizado na prática jurídica hodierna a fim de garantir que as screenshots colhidas do Whatsapp não sofreram nenhum tipo de modificação visual por algum software. Entretanto, embora seja uma opção totalmente válida, não se pode negar que o tabelião somente narrará aquilo que ele de fato viu, o que não assegura por completo que, previamente, o print não tenha sofrido algum tipo de manipulação, ou ainda, que determinadas mensagens possam ter sido enviadas ou excluídas pelos destinatários, de modo a evidenciar que a ata notarial, não obstante seja útil, não é um instrumento capaz de garantir uma análise técnica do conteúdo do Whatsapp.

Conforme consta na norma ABNT NBR ISO/IEC 27037:2013, a qual foi criada pela Organização Internacional de Padronização (ISO), cuja finalidade é a de preservar a evidência digital por meio da padronização dos procedimentos, há uma série de protocolos de coleta e de isolamento para garantir o máximo de integridade da cadeia de custódia das provas e, por consequência, que os dados preservados não venham a ser objeto de manipulações posteriores tal como poderia ocorrer no Whatsapp Web.

Ou seja, a princípio, somente um perito técnico, após aplicar diversos procedimentos metodologicamente estipulados, é que poderia assegurar se as mensagens que constam no aplicativo Whatsapp de um determinado smartphone efetivamente são verossímeis, ou se são fruto de algum tipo de edição, seja fotográfica, seja de programação. Do contrário, sem um exame profundo, ter-se-ia tão somente o registro descritivo daquilo que foi visto – que não necessariamente é real, conforme já explicado.

Contudo, na prática, é sabido que nem sempre as screenshots obtidas pelo Whatsapp podem ser submetidas a tempo a algum tipo de perito ou profissional informático, de modo que deixam de ser observadas as regras que constam da ISO/IEC 27037:2013. Apesar disso, não há uma implicação direta de que a cadeia de custódia da prova foi violada, haja vista que a análise da veracidade dos prints não pode se dar de maneira isolada, isto é, em detrimento do contexto fático-probatório envolvido.

Afinal, a presença de outras provas que corroborem para demonstrar no mesmo sentido aquilo que é retratado é um elemento nevrálgico para o julgador (RAMOS, 2021, p. 546), dado que passam a funcionar como uma espécie de conhecimento prévio acerca dos fatos, permitindo, neste caso, que o juiz pondere se as screenshots obtidas por meio do espelhamento de conversas do Whatsapp apresentam algum grau de correspondência biunívoca àquilo que foi exposto pela Denúncia, ou ainda, alguma correlação com os elementos de informação levantados durante o inquérito policial.

Ademais, também é de nevrálgica importância considerar o sentido no qual as palavras que constam nos prints foram empregadas, bem como o contexto em que se deu a conversa entre os interlocutores. Há, portanto, uma série de elementos que devem ser ponderados pelo Juiz a fim de analisar eventual ilicitude nas screenshots coletadas do Whatsapp, de modo que não se pode concluir que o desentranhamento é necessário em todas as situações existentes, vez que inexiste óbice legal ou jurisprudencial expressos quanto ao emprego de provas de tal jaez em sede processual penal.

Conclusão

A dinâmica da atuação das organizações criminosas no âmbito dos crimes contra o Mercado Financeiro Nacional, devido ao seu alto grau de sofisticação, tende a ocultar quem são os verdadeiros autores intelectuais dos delitos perpetrados – que quase sempre envolvem complexas técnicas de lavagem de dinheiro –, de modo que o espelhamento de conversas coletadas do Whatsapp pode colaborar para que se efetue o desmantelamento de tais organizações criminosas.

Entretanto, ante a impossibilidade de se reconhecer, em abstrato, o respeito à cadeia de custódia da prova, mostra-se imprescindível que o magistrado, quando da análise do contexto fático-probatório e dos elementos de informação existentes, busque sempre que possível o respaldo nos exames técnicos dos peritos a fim de averiguar a veracidade das screenshots, ou, no mínimo, que avalie o caso concreto em conformidade com as outras provas já existentes nos autos, visando a atestar se são lícitos os prints que foram coletados por espelhamento das supostas conversas que ocorreram no Whatsapp, pois, ao revés, deverão ser desentranhados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

SILVA, Eduardo Araújo da. Organizações criminosas: Aspectos penais e processuais da Lei 12.850/2013. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2015.

RAMOS, Vitor de Paula. Da Necessidade de Corroboração Probatória para a Reconstrução de Sentidos em Diálogos Obtidos por Interceptações Telefônicas. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v. 7, n. 1, p. 537-566, jan.-abr. 2021.

CALLEGARI, André Luís. WEBER, Ariel Barazzetti. Lavagem de dinheiro. São Paulo: Atlas, 2014.


[1] Mestrando em Direito Econômico e Desenvolvimento no IDP. Endereço: QL 18, Conj. 06, Casa 19, CEP nº 716.50-065, telefone: (61) 9 9273-4748, iuri@cavalcantereis.adv.br.

[2] Mestre em Direito Econômico e Desenvolvimento no IDP. Endereço: QL 18, Conj. 06, Casa 19, CEP nº 716.50-065, telefone: (61) 9 9995-8824, yuri.dias@cavalcantereis.adv.br.

[3] Graduando em Direito pelo UniCEUB. Endereço: QL 18, Conj. 06, Casa 19, CEP nº 716.50-065, telefone: (61) 9 9644-4745, leandro@cavalcantereis.adv.br.


[4] Sobre a engenhosidade das organizações criminosas, confira-se: SILVA, Organizações criminosas, p. 53 e ss.

[5] Um exemplo claro disto é a recente Operação Circus Maximus, na qual dezessete pessoas foram denunciadas por provocar um prejuízo patrimonial de mais de 348 milhões de reais ao Banco de Brasília (BRB).

[6] No mesmo sentido: CALLEGARI; WEBER, Lavagem de Dinheiro, p. 25 e ss.


A urgência de critérios para as nulidades penais

Por: Daniel Zaclis

O julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) em relação aos processos da Lava Jato contra o ex-presidente Lula trouxe à tona, uma vez mais, o difícil tema das nulidades penais: a possibilidade de que a Justiça, revendo seus próprios atos, declare nula (sem efeitos) uma série de decisões - às vezes, uma ação inteira - em razão de erros processuais.

Como um manual de instruções, as regras de processo penal preveem a forma, a anatomia, dos atos processuais. Há um juiz competente para cada caso. Há uma maneira de citar o indivíduo contra quem recai a acusação. Há um jeito correto de interrogar o réu. O respeito a essas formas confere legitimidade à pena imposta pelo Estado.

Ao mesmo tempo - e aqui está a causa de muitas confusões -, a inobservância das regras processuais nem sempre ocasiona a invalidação do processo.  Nem todo vício do processo gera nulidade, uma vez que as formas dos atos não constituem um fim em si mesmo. Cada regra processual detém uma finalidade específica, que pode estar explícita ou implícita no ordenamento jurídico. Se o defeito não afetar tal finalidade, em tese os atos processuais devem permanecer intactos.

Por isso, o sistema de nulidades tem uma viga-mestre: a regra do prejuízo. Nenhum ato deve ser anulado se não houver prejuízo às partes. Nascido no Direito francês, em pleno século XVII, o adágio “pas de nullité sans grief” (sem dano, não há nulidade) surge como reação dos tribunais para conter a arbitrariedade dos reis, que à época detinham o poder absoluto para decidir sobre a nulidade dos processos judiciais. Hoje, a regra do prejuízo evita que processos sejam anulados por preciosismos ou erros insignificantes, reservando a sanção de nulidade apenas para os casos em que houver a comprovação de um prejuízo para acusação ou defesa.

Em tese, a regra do prejuízo faz sentido. No entanto, há um enorme dissenso sobre sua aplicação prática; por exemplo, quais critérios utilizar para a aferição do prejuízo ou mesmo quais hipóteses em que o prejuízo é inerente ao próprio vício. O resultado é uma aplicação caótica, gerando grande insegurança jurídica.

Há casos em que o prejuízo é evidente. Não se questiona, por exemplo, a nulidade de uma sentença condenatória proferida por um juiz que é irmão da vítima. Ainda que existam provas consistentes para embasar a condenação, o prejuízo existe inegavelmente.

Em outros casos, no entanto, a solução não se mostra tão trivial. Como demonstrar o prejuízo, por exemplo, da ausência de intimação para o acusado comparecer em audiência para oitiva de testemunha de acusação? Ora, uma vez que ele não esteve presente no ato, impossível fazer um juízo hipotético de como poderia sido - quais perguntas seriam feitas, etc. - com o seu comparecimento. É razoável, portanto, haver hipóteses em que o prejuízo seja presumido.

No entanto, diante da falta de critérios claros, os tribunais têm ignorado a maioria dos defeitos cometidos no processo penal, sob a justificativa de ausência de demonstração do prejuízo. Trata-se de uma saída simplista que, além de não resolver o problema, estimula a condução de processos de forma irregular.

A própria separação, existente na doutrina, entre nulidades absolutas (insanáveis) e relativas (sanáveis) hoje é fluida. Não raras vezes, um tribunal caracteriza um erro como nulidade relativa e, no julgamento seguinte, esse mesmo erro é tratado como nulidade absoluta.

Além disso, a legislação a respeito das nulidades está defasada. Enquanto os demais temas relevantes do Código de Processo Penal sofreram profundas modificações, o capítulo das nulidades permanece o mesmo desde a década de 40 do século passado. Tal descompasso, gerador de muitas incongruências e distorções, ficou ainda mais acentuado depois da Constituição de 1988, com a expressa previsão de inúmeros direitos do acusado.

O atual quadro abre um perigoso flanco para a discricionariedade judicial. Se a eventual anulação de atos processuais está sujeita à mera interpretação pessoal de cada julgador, sem critérios minimamente objetivos, o resultado são decisões contraditórias, desprovidas de racionalidade e geradoras de insegurança e perplexidade.

Grandes operações investigativas foram – e, a permanecer o atual quadro, ainda serão –  extintas num cenário de aplicação problemática, sem critérios objetivos, das nulidades. E não se pode culpar aqueles que recorrem aos tribunais para ver restabelecido o devido processo.

É imperiosa a necessidade de se estabelecer um marco sólido no tratamento das nulidades. Conceitos abstratos, manipuláveis caso a caso, são incapazes de oferecer  um mínimo de segurança em assunto de tamanha relevância.

Na discussão sobre as nulidades, o que está envolvido é muito mais do que um conjunto de regras. É a possibilidade de que qualquer cidadão - seja qual for sua cor, credo, partido ou condição financeira - seja julgado de maneira igualitária. Sem critérios seguros para lidar com as anomalias, a própria finalidade do processo se torna inócua.


Daniel Zaclis é advogado, mestre e doutorando em Direito Processual Penal pela USP e sócio do CAZ Advogados.


O presente artigo foi originalmente publicado na edição de 2 de junho de 2021, no jornal O Estado de São Paulo.


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BITCOIN E DIREITO PENAL: UMA BREVE ANÁLISE DA MOEDA VIRTUAL COMO MEIO PARA O CRIME DE SONEGAÇÃO FISCAL

David Montezuma Mota Ribeiro1

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo fomentar a discussão acerca da importância do bitcoin para o Direito Penal Econômico, com foco no Direito Penal Tributário do Brasil, por meio de uma análise comparativa entre o entendimento jurídico brasileiro e o europeu acerca do tema. Além disso, o trabalho, de forma mais aprofundada, analisa os meios os quais a anonimização das criptomoedas auxilia na prática de crimes de sonegação fiscal, delitos estes tipicamente previstos no art. 1º da Lei 8.137/90. Destarte, este artigo foi construído por meio de pesquisa bibliográfica e documental acerca do tema, com o fito de elucidar as questões levantadas e produzir embasamento teórico.

Palavras-chave: bitcoin. sonegação fiscal. moeda virtual. crime. direito penal.

ABSTRACT: The following article intends to escalate the discussion concerning the importance of bitcoin to Criminal and Economic law, focusing on Brazil Criminal and Tributary law, by means of a comparative inquiry on brazilian and european juridical awareness in the matter. Furthermore, this paper, in a more thorough manner, analyzes the ways in which the anonymous nature of cryptocurrencies facilitates tax evasion crimes, predicted upon Article 1, Section 8.137/90. Correspondingly, this article was composed by means of bibliographic and documental research on the subject, seeking to elucidate the cited inquiries and to produce theoretical foundation.

Keywords: bitcoin. tax evasion. digital currency. crime. criminal law.

1  INTRODUÇÃO

De forma crescente, as criptomoedas, em especial o bitcoin, têm adquirido um grande destaque tanto midiático, quanto mercadológico, sendo uma moeda em circulação que tem chamado atenção da comunidade econômica e jurídica, seja local ou internacional2. Diante desse contexto, o presente artigo propõe abordar a relevância tributária que possuem os bitcoins, por meio da decisão do do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) no caso C-264/14 – Hedqvist3, refletindo assim no engajamento do Poder Legislativo, Judiciário e das doutrinas modernas brasileiras acerca do tema. Além disso, no segundo tópico será abordado os impactos da anonimização das criptomoedas via coin mixing4, técnica que torna esses criptoativos mais propícios a se tornarem meios para a prática das condutas descritas no art. 1º da Lei 8.137/905.

Ademais, o referido trabalho possui o objetivo de fomentar, mesmo que sem esgotar o assunto, o debate acerca da relevância tributária das criptomoedas no âmbito brasileiro e dos impactos que a sua anonimização pode causar na seara do Direito Penal. Além disso, o artigo utiliza como metodologia a pesquisa bibliográfica, documental e jurisprudencial por meio da análise qualitativa.

 

2    DA RELEVÂNCIA DO BITCOIN PARA O DIREITO PENAL ECONÔMICO E PARA O DIREITO TRIBUTÁRIO

 

Quando falamos do bitcoin como moeda de troca e, logicamente, como objeto de estudo do Direito Penal Tributário, entramos em um debate que busca resolver o conflito entre a utilização da moeda virtual na compra e venda em contraposição à ausência de disciplina normativa acerca do tema, sobretudo em território brasileiro, sendo este último ponto motivo para que muitos autores defendem que o bitcoin não pode ser considerada moeda6.

Com fim na melhor explanação, o Direito Tributário Brasileiro nasce e é desenvolvido a partir da leitura dos clássicos europeus. Diante desta propositura, é imperativo que se considere a análise comparativa entre as normas e entendimentos desenvolvidos no Tribunal Europeu para com o ordenamento jurídico brasileiro7.

A União Européia possui entendimento firmado quanto à tributação dos bitcoins na atividade de câmbio8. Explicitamente, a decisão do do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) no caso C-264/14 – Hedqvist9, que buscava resolver o litígio entre a Administração Fiscal da Suécia e o empresário David Hedqvist na incidência de Imposto de Valor

Acrescentado (IVA) sobre operações cambiais com bitcoins, decidiu que as consequências jurídico tributárias de se operar com bitcoin ou com qualquer moeda estrangeira são as mesmas10.

A principal discussão do caso verifica-se à extensão da interpretação do Arts 2°, n.1; 24°, n. 1 e 135, n. 1, da Diretiva 2006/112/CE, para que se incida tributariamente nas operações de câmbio entre divisas virtuais e divisas tradicionais, considerando a prática como prestação de serviço para fins de IVA; bem como a possível isenção dos tributos referidos no art. 135, n. 1, especificamente na alínea “e”, segundo o qual os Estados-membros isentam as operações, incluindo a negociação, relativas a divisas, papel-moeda e moeda com valor liberatório. Assim, afirma Melissa Castello (2019, p. 12):

Ainda que haja essa diferença, o Tribunal pontua que a justificativa para isentar as operações com moedas também está presente quando a operação se dá com moedas virtuais: a dificuldade em definir a base de cálculo do tributo também ocorre neste caso. Por consequência, interpretar a regra de isenção do art. 135, I, e como limitada às operações com moedas tradicionais “equivaleria a privar essa disposição de uma parte dos seus efeitos” (UNIÃO EUROPEIA, 2015a), motivo pelo qual o TJUE estende a regra de isenção às divisas virtuais.

O anonimato jurídico, portanto, é a principal característica do bitcoin que pode ser considerado uma das maiores adversidades para os estudiosos do ramo do Direito. A dificuldade de rastreamento da moeda virtual e a impossibilidade de reembolso nas transações, exigindo a boa-fé quase cega de seus usuários, caracterizam as nocividades que fomentam preocupações jurídica, sobretudo para fins penais11.

Em relação aos aspectos tributários do bitcoin, em maio de 2017 a Receita Federal passou a tratar a moeda virtual como uma espécie de ativo financeiro, incluindo-o na declaração anual do Imposto de Renda, devendo ser declarado na Ficha Bens e Direitos na modalidade de “outros bens”12. Já no âmbito da legislação, tem-se dois projetos de lei, sendo estes o PL n° 3825, de 201913 do Senado Federal e o PL n° 206014 do mesmo ano na Câmara dos Deputados, que tratam, respectivamente, da regulamentação dos serviços referentes a operações realizadas com criptoativos em plataformas eletrônicas de negociação e do regime jurídico destas moedas.

Além disso, no Comunicado n° 25.306/201415 do Banco Central, é alertado que as moedas virtuais não podem ser confundidas com “moedas eletrônicas”16, estas que são tratadas na Lei n° 12.865 e diferem por não serem emitidas nem garantidas por nenhuma entidade monetária, mas sim por entidades e pessoas diversas17. Ainda, segundo a perspectiva de Guilherme Broto Follador (2017, p. 91)18:

Ademais, chama a atenção para a sua volatilidade e para o fato de que elas “... não têm garantia de conversão para a moeda oficial…”, de modo que todo o risco de sua aceitação fica nas mãos dos usuários. Por fim, alerta para o risco de as criptomoedas serem usadas para o financiamento de atividades ilícitas, bem como para os riscos relacionados a perdas patrimoniais em função de ataques pela Internet.

Em consonância, com a influência européia na história do ordenamento jurídico braisliero, além da análise dos autores citados, torna-se evidente a importância que o bitcoin possui como objeto de estudo para o Direito Tributário, bem como também para o Direito Penal Tributário como meio para que se pratique delitos fiscais, como será explicitado adiante.

 

BITCOIN COMO UM FACILITADOR PARA O CRIME DE SONEGAÇÃO FISCAL

Este tópico abordará o estudo do bitcoin como um instrumento viabilizador do delito de sonegação fiscal. Portanto, a análise tomará como base os crimes de sonegação fiscal previstos no art. 1° da Lei 8.137 de 1990, que estabelece em seu caput que “constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório”19.

À Vista disso, a Receita Federal Brasileira exige que anualmente sejam declaradas as moedas virtuais de pessoa física20. Sendo uma das principais características das criptomoedas a anonimização de sua propriedade, é de extrema dificuldade a prova por parte das autoridades competentes a fim de comprovar a omissão por parte do contribuinte21, tornando-se um meio eficiente que viabiliza o crime de sonegação fiscal previsto no art. 1º , inciso I, da Lei 8.13722.

Em consonância, a privacidade das criptomoedas, bem como sua dificuldade de rastreamento, pode ser atingida por meio do coin mixing, técnica que também pode ser utilizado para fins de evasão fiscal23. Para explicitar melhor, as criptomoedas possuem um número de identificação que facilita seu rastreamento por meio de sua respectiva blockchain24, dessa forma, o recurso de coin mixing utiliza da fungibilidade das criptomoedas para preservar sua privacidade por meio da mistura de criptoativos diferentes para, ao final, possuir moedas virtuais com números de identificação completamente diferentes dos iniciais25.

Destarte, os principais defensores do coin mixing afirmam que o recurso é necessário para fins de que se garanta a privacidade não para cometer crimes, mas sim como uma forma de preservar um direito fundamental26. Todavia, o debate acerca do tema permanece polêmico, uma vez que a não declaração das moedas sem liame subjetivo não caracteriza crime de sonegação fiscal27, sendo das autoridades fiscais o ônus de comprovar a existência do dolo da vítima, ou seja de identificar as moedas virtuais que foram utilizadas como meio para se atingir a evasão fiscal.

 

4  CONCLUSÃO

Inicialmente, o primeiro tópico evidenciou a relevância das criptomoedas para o âmbito tributário brasileiro, abordando a perspectiva europeia no litígio entre a Administração Fiscal da Suécia e o empresário David Hedqvist acerca da incidência de Imposto de Valor Acrescentado (IVA) sobre a tributação de criptoativos.

Em seguida, mostrou-se que é cada vez mais preocupante a utilização do bitcoin como meio para a prática dos crimes presentes no art. 1° da Lei 8.137/90, omitindo as declarações obrigatórias de moedas digitais para as autoridades competentes e impossibilitando o rastreio do número de registro dessas moedas virtuais por meio de coin mixing.

Destarte, é imperativo que os juristas brasileiros estejam envolvidos nas discussões acerca do tema, em vista da importância econômica e consumerista que as criptomoedas adquiriram e os riscos emergentes para o sistema financeiro que surgem de ausência de segurança jurídica e de legalidade nas transações.

 

5  REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BITTENCOURT, Luiz. O MERCADO DAS CRIPTOMOEDAS: ENFRENTAMENTO À

SONEGAÇÃO DO IMPOSTO DE RENDA. Florianópolis, 2020. 79 p. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito). Universidade do Sul de Santa Catarina.

BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n° 2060, de 2019. Dispõe sobre o regime jurídico dos Criptoativos. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node0mercpijvus 6t1xzm22yf36pqh3206320.node0?codteor=1728497&filename=PL+2060/2019. Acesso em: 30 abril. 2021. Texto Original.

            . Lei 8.137, de 27 de dezembro de 1990. Define crimes contra a ordem tributária Diário, econômica e contra as relações de consumo e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 28 dez. 1990.

            . Lei 12.865, de 9 de outubro de 2013. Diário Oficial da União, Brasília, 10 out. 2013.

            . Senado Federal Brasileiro. Projeto de Lei n° 3825, de 2019. Disciplina os serviços referentes a operações realizadas com criptoativos em plataformas eletrônicas de negociação. Disponível em:

https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7973487&ts=1619553189842&dispos ition=inline. Acesso em: 30 abril. 2021. Texto Original.

CASTELLO, Melissa Guimarães. Bitcoin é moeda? Classificação das criptomoedas para o direito tributário. Revista Direito GV, v. 15, n. 3, 2019, e1931. doi: http://dx.doi.org/10.1590/ 2317-6172201931.

DIONÍSIO, Mariana. Tratamento Jurídico das Criptomoedas: a dinâmica dos bitcoins e o crime de lavagem de dinheiro. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Vol. 7, n° 3, p. 44-59, 2017.

FOLLADOR, Guilherme. Criptomoedas e Competência Tributária. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Vol. 7, n° 3, p. 80-104, 2017.

MESSA, Ana F; ZANELLA, Everton. Aspectos Controvertidos dos Crimes Contra a Ordem Tributária. In: BOSSA, Marcelo. Crimes Contra a Ordem Tributária. Almedina, 2020. p. 17-46.

PANORAMA CRYPTO. Caso nos EUA levanta questões em torno da fungibilidade do bitcoin e criptoativos. Disponível em:

https://panoramacrypto.com.br/caso-nos-eua-levanta-questoes-em-torno-da-fungibilidade-do- bitcoin-e-criptoativos/. Acesso em: 30 abril. 2021.

PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. 8ª ed. Editora Forense, 2018. p. 1-533. SILVEIRA, Renato. “CRIPTOCRIME”: CONSIDERAÇÕES PENAIS ECONÔMICAS

SOBRE CRIPTOMOEDAS E CRIPTOATIVOS. Revista de Direito Penal Econômico e Compliance. vol. 1. 2020.


1 Graduando em Direito pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR), membro pesquisador do Grupo de Estudos em Direito e Assuntos Internacionais (GEDAI) da Universidade Federal do Ceará (UFC).


2 FOLLADOR, Guilherme. Criptomoedas e Competência Tributária. Revista Brasileira de Políticas Públicas,

Vol. 7, n° 3, p. 80-104, 2017.

3 UNIÃO EUROPEIA. Tribunal de Justiça Europeu. Acórdão da Quinta Secção no caso C-264/14 – Hedqvist. Julgado em 22 out. 2015a. Acesso em: 27 abril. 2021. Disponível em: http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf;jsessionid=9ea7d2dc30d62d24c0982c064fa1acdeb3b259a2f635.e34KaxiLc3qM

b40Rch0SaxyMbN50?text=&docid=170305&pageIndex=0&doclang=PT&mode=lst&dir=&occ=first&part=1& cid=894165.

4 BITTENCOURT, Luiz. O MERCADO DAS CRIPTOMOEDAS: ENFRENTAMENTO À SONEGAÇÃO DO

IMPOSTO DE RENDA. Florianópolis, 2020. 79 p. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito). Universidade do Sul de Santa Catarina.

5 BRASIL. Lei 8.137, de 27 de dezembro de 1990. Define crimes contra a ordem tributária Diário, econômica e contra as relações de consumo e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 28 dez. 1990.

6 CASTELLO, Melissa Guimarães. Bitcoin é moeda? Classificação das criptomoedas para o direito tributário.

Revista Direito GV, v. 15, n. 3, 2019, e1931. doi: http://dx.doi.org/10.1590/ 2317-6172201931.

7 FOLLADOR. Op. Cit.

8 Ibidem.

9 UNIÃO EUROPEIA. Op. Cit.

10 CASTELLO. Op. Cit.

11 DIONÍSIO, Mariana. Tratamento Jurídico das Criptomoedas: a dinâmica dos bitcoins e o crime de lavagem de dinheiro. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Vol. 7, n° 3, p. 44-59, 2017.

12 Ibidem.

13 BRASIL. Senado Federal Brasileiro. Projeto de Lei n° 3825, de 2019. Disciplina os serviços referentes a operações realizadas com criptoativos em plataformas eletrônicas de negociação. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7973487&ts=1619553189842&disposition=inline. Acesso em: 30 abril. 2021. Texto Original.

14 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n° 2060, de 2019. Dispõe sobre o regime jurídico dos Criptoativos.                                                                    Disponível                        em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node0mercpijvus6t1xzm22yf36pqh 3206320.node0?codteor=1728497&filename=PL+2060/2019. Acesso em: 30 abril. 2021. Texto Original.

15 FOLLADOR. Op. Cit.

16 Segundo a Lei 12.865 moedas eletrônicas são “recursos armazenados em dispositivo ou sistema eletrônico que permitem ao usuário final efetuar transação de pagamento” (BRASIL. Lei 12.865, de 9 de outubro de 2013. Diário Oficial da União, Brasília, 10 out. 2013.).

17 BRASIL. Lei 12.865, de 9 de outubro de 2013. Diário Oficial da União, Brasília, 10 out. 2013.

18 FOLLADOR. Op. Cit.

19 BRASIL. Op. Cit.

20  SILVEIRA,     Renato.    “CRIPTOCRIME”:     CONSIDERAÇÕES     PENAIS ECONÔMICAS SOBRE CRIPTOMOEDAS E CRIPTOATIVOS. Revista de Direito Penal Econômico e Compliance. vol. 1. 2020.

21 Ibidem.

22 Segundo o texto do Art. 1°, inciso I:

“Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:

I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias” (BRASIL. Lei 8.137, de 27 de dezembro de 1990. Define crimes contra a ordem tributária Diário, econômica e contra as relações de consumo e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 28 dez. 1990.).

23 BITTENCOURT. Op. Cit.

24 trazer a definição de blockchain

25 BITTENCOURT. Op. Cit.

26 PANORAMA CRYPTO. Caso nos EUA levanta questões em torno da fungibilidade do bitcoin e criptoativos.

Disponível                                                                                                                   em:

https://panoramacrypto.com.br/caso-nos-eua-levanta-questoes-em-torno-da-fungibilidade-do-bitcoin-e-criptoativ os/. Acesso em: 30 abril. 2021.

27 PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. 8ª ed. Editora Forense, 2018. p. 1-533.


Este artigo reflete a opinião de seus autores e não necessariamente a opinião do IBDPE.
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Tributação de terço de férias e necessidade de modulação de efeitos no âmbito penal

Por: Thiago Diniz Nicolai e Renata Rodrigues de Abreu Ferreira

Desde fevereiro de 2014 vigorava o posicionamento jurisprudencial, fixado pelo Superior Tribunal de Justiça, de que a natureza jurídica do terço de férias era indenizatória e, portanto, não deveria ser incluído no cálculo da contribuição patronal. Contudo, em agosto do ano passado, esse entendimento foi alterado pelo Supremo Tribunal Federal que, por ocasião do julgamento do recurso extraordinário nº. 1.072.485, decidiu pela sua tributação.

No entanto, durante esses últimos seis anos, diante entendimento consolidado pelo STJ, muitas empresas deixaram de recolher tributos sobre o terço constitucional das férias – amparadas ou não por decisões de primeira e/ou segunda instâncias. De acordo com Associação Brasileira de Advocacia Tributária (Abat), o passivo tributário existente por conta dessa situação está na casa dos R$ 80 bilhões.

Em razão da relevância da matéria e possível impacto na economia nacional, a Suprema Corte, em sede de embargos de declaração, decidirá no próximo dia 28 de abril, qual será o alcance temporal de tal decisão: a chamada modulação de efeitos. Isto é, discute-se se a Receita Federal poderá ou não cobrar valores retroativos, que não foram pagos no passado (durante a vigência do entendimento do STJ), das empresas que deixaram de contabilizar o terço de férias no cálculo da contribuição previdenciária patronal ou se a cobrança somente será passível de cobrança dali (da ata de julgamento) em diante.

A verdade é que, como bem ressaltado pelo Ministro Barroso, a decisão da Corte pode reverberar, inclusive, sobre outras matérias. Por isso, é imprescindível que a deliberação leve em consideração todas as consequências jurídicas possíveis advindas da alteração jurisprudencial, isso inclui – ainda que a título de obter dictum – a modulação de efeitos penais.

Do contrário, poder-se-á vivenciar um efeito cascata, afinal, em relação aos fatos pretéritos, os contribuintes estariam obrigados a pagar os valores devidos ou a depositá-los em juízo – tal qual, em certa medida, já se tem observado no âmbito das reversões das decisões anteriormente proferidas – ou serão autuados pela Receita Federal. Assim sendo, se observará a lavratura de uma enxurrada de autos de infração que, consoante a multa arbitrada, poderão culminar em uma representação para fins criminais, dando ensejo a uma investigação criminal.

Eis que para evitar-se que o contribuinte “pague o pato” duas vezes nessa dissonância de entendimentos das Cortes superiores, é crucial que o Supremo anteveja essa situação e, desde já, se posicione quanto à impossibilidade de inauguração de persecução penal contra os contribuintes pelos fatos pretéritos, abarcados durante a vigência do entendimento do Superior Tribunal de Justiça.

Ainda que evidentemente estejam tais contribuintes em uma situação de inconsciência de ilicitude, não se deve deixar que essa análise fique a cargo das instâncias inferiores, não só porquanto isso geraria um atolamento desnecessário do já tão abarrotado Judiciário, mas também pelo elevado risco de violação ao princípio da isonomia sob a óptica da igualdade de tratamento entre sujeitos processuais que se encontram em situação jurídica idêntica.

Ora, especialmente em casos como este, cujo precedente fora produzido em caráter repetitivo – portanto, vinculativo às instâncias inferiores – é que, para salvaguardar valores tão imprescindíveis, como a confiança e a segurança jurídica, se aplica a prospective overruling.

Afinal de contas, como nos ensina Canotilho, “o homem necessita de uma certa segurança para conduzir, planificar e conformar autónoma e responsavelmente a sua vida. Por isso, desde cedo se considerou como elementos constitutivos do Estado de direito o princípio da segurança jurídica e o princípio da confiança do cidadão”[1].

Como se sabe, o princípio da proteção da confiança (Vertrauensschutzprincip) decorre da legítima expectativa do destinatário (in casu o contribuinte) oriundo de um ato (decisão consolidada do STJ) específico que origina essa confiança[2], sendo certo que este princípio também toma assento na seara jurisprudencial, a qual também se enquadra entre as fontes de direito.

O mesmo sucede em relação à segurança jurídica. Por óbvio, “é diferente falar em segurança jurídica quando se trata de caso julgado e em segurança jurídica quando está em causa a uniformidade ou estabilidade da jurisprudência. Sob o ponto de vista do cidadão, não existe um direito à manutenção da jurisprudência dos tribunais, mas sempre se coloca a questão de saber se e como a protecção da confiança pode estar condicionada pela uniformidade, ou, pelo menos, estabilidade, na orientação dos tribunais[3].

Não por outro motivo, senão precisamente para evitar zonas obscuras como a que ora se vivencia, é que o legislador estabeleceu, no § 3º do artigo 927 do Código de Processo Civil, que, na “hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica”.

Nessa mesma linha já apontava a Lei de introdução às normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/1942), estabelecendo, em seu artigo 23, que “a decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais”.

Sendo assim, espera-se que nessa nova retomada da discussão os Ministros do STF não se olvidem de debater a respeito, também, da necessária modulação dos efeitos penais.

 


Thiago Diniz Nicolai. Sócio do escritório Malheiros Filho, Meggiolaro e Prado – Advogados.

Renata Rodrigues de Abreu Ferreira Advogada do escritório Malheiros Filho, Meggiolaro e Prado – Advogados. Mestre e doutoranda em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra.


[1] Canotilho, José Joaquim Gomes, Direito Constitucional, 6ª ed., Coimbra: Almedina, 1993, p. 370.

[2] Araújo, Valter Shuenquener de. O princípio da proteção confiança: Uma Nova Forma de Tutela do Cidadão Diante do Estado, 2ª ed., Impetus, p. 83.

[3] Canotilho, Op. cit., p.381/382 –grifamos.


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