Insider Trading: O Impacto desta prática no corpo social

Por: Lara Miranda Caloy1

Resumo: O estudo aborda a hodierna realidade, em que o direito penal econômico resvala em muitas searas da vida populacional. Nesse diapasão, o crime de insider trading corrobora esse cenário, haja vista, estar sendo muito debatido pelos tribunais e pela doutrina, a fim de sedimentar um entendimento que assegure certa estabilidade para a prática da legislação a pouco vigente. Assim, é primordial o estudo aprofundado desta temática, bem como entender os impactos deste crime para a sociedade, com vistas a garantir a seguridade e a liberdade.

1.     Introdução

A presente pesquisa é fruto de um estudo aprofundado sobre o crime de Insider trading muito em voga atualmente, mas que, conforme explicita o caso concreto, ainda não possui delimitações jurisprudenciais e doutrinárias suficientes para estabelecer sua base procedimental. Balizado a isso, precípua discorrer sobre o direito penal econômico em seu sentido amplo e analisar o crime outrora mencionado partindo da realidade.

Nesse diapasão, o problema objeto da pesquisa é: quais os impactos do crime de Insider Trading para o mercado de capitais atual? Sendo assim, o objetivo geral do trabalho é analisar a discussão que envolve o tema, por meio de casos concretos muito atuais e verificar a incidência desta prática e, por conseguinte, seus desdobramentos. Ademais, como objetivos específicos é possível mencionar, verificar o impacto do crime de insider trading no mercado de capitais, analisar o caso concreto e como os tribunais têm se debruçado na temática e observar as tendências doutrinárias basilares da prática.

No que tange a metodologia de pesquisa, o estudo que se propõe pertence à vertente metodológica jurídico-sociológica. No tocante ao tipo de investigação, foi escolhido, na classificação de Witker (1985) e Gustin (2010), o tipo jurídico-projetivo. O raciocínio desenvolvido na pesquisa será predominantemente dedutivo. Quanto à natureza dos dados, o estudo se baseia em dados secundários. De acordo com a técnica de análise de conteúdo, afirma-se que se trata de uma pesquisa teórica.

2.     Noções gerais do Direito Penal Econômico

Direito Penal econômico passa a ser visto como um ramo do Direito Penal geral que, com relativa autonomia, estuda, regula e aplica os dispositivos legais aos delitos praticados contra a ordem econômica (CIPRIANI, 2006, p. 438).

Primeiramente, antes de adentrar na temática ora em análise, insta salientar no que consiste o direito penal econômico hodiernamente. Nesse diapasão, como bem discorre Cipriani, tal ramo tornou-se independente e, por consequência, passou a ter maior aplicação prática, principalmente pelo desenvolvimento da ordem econômica.

É cediço que as relações comerciais têm se desenvolvido de forma exponencial, principalmente com as facilidades advindas da era tecnológica. À exemplo, investir na bolsa de valores tem se tornado muito mais prático e rápido através dos meios digitais e das possibilidades de se aprender com tutoriais online de como realizá-las.

Todavia, tal facilidade também impacta o direito penal econômico, haja vista, com o crescimento desta seara, as tendências de incorrência em crimes contra o mercado de capitais cresceram. Nesse âmago, urge que a população tenha o devido conhecimento sobre os efeitos desta prática ao adentrar nessa seara. Conforme bem adverte André Luiz Callegari:

 

[…] os efeitos característicos da criminalidade econômica são o da ressaca ou espiral, cuja descrição é a seguinte: num mercado de forte concorrência, a deslealdade se produz quando se esgotam as possibilidades legais de luta. Nesta situação, quem primeiro delinque acaba pressionando o resto à comissão de novos fatos delitivos (efeito de ressaca), e cada participante se converte assim no centro de uma nova ressaca (efeito de espiral). Este efeito de especial contágio se encontra facilitado porque o autor potencial é consciente do número enorme de delitos econômicos, da importância da cifra negra e da benignidade das penas previstas nas leis, suscitando uma imagem amável e positiva do criminoso (CALLEGARI, 2003, p. 25)

 

3.     Insider Trading

Este crime se caracteriza pela utilização de informações relevantes de que o autor tenha conhecimento. Mas ainda não foi divulgada no mercado e, aqui, é possível perceber o caráter sigiloso - elemento basilar do tipo. Além disso, é preciso que tal informação seja capaz de propiciar, para ele ou para outrem, vantagem indevida, mediante negociação.

Desta feita, é possível destacar quais são os elementos caracterizadores do crime e quem pode incorre-lo. No que tange ao primeiro, são três, a existência de informação privilegiada e não divulgada, ela pode ser veiculada por qualquer pessoa e ela precisa trazer efetiva utilização em negociações de valores mobiliários, para que se possa caracterizar a vantagem indevida. Já no que concerne ao segundo, resta claro que o crime pode ser cometido por qualquer um que tenha acesso a informação sigilosa, à título de exemplo, sócios, administradores, conselheiros, diretores, membros integrantes de órgãos técnicos e consultivos, membros do conselho fiscal, dentre outros.

Nesse ínterim, após a breve análise do tipo, é válido analisar um caso concreto em que tal prática foi identificada e como os tribunais têm se sedimentado diante de tal prática. Porém, antes disso, é mister observar que a doutrina e jurisprudência ainda não consolidou entendimentos que possam apaziguar o assunto, haja vista, haver alterações legislativas muito recentes na seara e casos eminentemente diferentes a serem tratados pontualmente.

PENAL E PROCESSUAL. CRIME CONTRA O MERCADO DE CAPITAIS. ART. 27-D DA LEI N. 6.385/1976. USO INDEVIDO           DE      INFORMAÇÃO PRIVILEGIADA – INSIDER TRADING. ALEGAÇÃO DE ATIPICIDADE DA CONDUTA. NÃO ACOLHIMENTO. DOSIMETRIA DA PENA. PENA-BASE. AUMENTO.          CULPABILIDADE

EXACERBADA. FUNDAMENTO IDÔNEO. PENA DE MULTA. APLICAÇÃO CORRETA. DANOS MORAIS. NÃO CABIMENTO. CRIME COMETIDO ANTES DA VIGÊNCIA DA LEI                     N.              11.719/2008. IRRETROATIVIDADE.

[…]

  1. A responsabilidade penal pelo uso indevido de informação privilegiada, ou seja, o chamado Insider Trading – expressão originária do ordenamento jurídico norte- americano – ocorreu com o advento da Lei n. 303/2001, que acrescentou o artigo 27-D à Lei n. 6.385/76, não existindo, ainda, no Brasil, um posicionamento jurisprudencial pacífico acerca da conduta descrita no aludido

 

 

dispositivo, tampouco consenso doutrinário a respeito do tema.

  1. A teor do disposto nos arts. 3º e 6º da Instrução Normativa 358/2002 da Comissão de Valores Mobiliários e no art. 157, § 4º, da Lei n. 6.404/1976, quando o insider detiver informações relevantes sobre sua companhia deverá comunicá-las ao mercado de capitais tão logo seja possível, ou, no caso em que não puder fazê-lo, por entender que sua revelação colocará em risco interesses da empresa, deverá abster-se de negociar com os valores mobiliários referentes às informações privilegiadas, enquanto não forem divulgadas. [...]
  2. No caso concreto, não há controvérsia quanto às datas em que as operações ocorreram e nem quanto ao fato de que o acusado participou das discussões e tratativas visando à elaboração da oferta pública de aquisição de ações da Perdigão S.A, obtendo, no ano de 2006, informações confidenciais de sua companhia – Sadia S.A. – as quais, no exercício de sua profissão, tinha o dever de manter em sigilo [...]
  3. O cargo exercido pelo recorrente na época dos fatos – Diretor de Finanças e Relações com Investidores da Sadia S.A. – constitui fundamento idôneo para justificar o aumento da pena-base, “diante da sua posição de destaque na empresa e de liderança no processo de tentativa de aquisição da Perdigão”, conforme destacou o acórdão recorrido.

[…] (REsp 1569171/SP, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, QUINTA TURMA,

julgado em 16/02/2016, DJe 25/02/2016)

 

Diante da análise do julgado ora exposto, resta claro que se trata de um caso envolvendo a Perdigão e a Sadia e como bem explicitado no excerto ainda não há um posicionamento cediço. Porém, diante do cargo de destaque do profissional da Sadia - Diretor de Finanças e Relações com Investidores - e da situação que o envolveu, restou eminente que ele possuía informações privilegiadas e da forma como foi exposto, incorreu na prática do Insider Trading.

 

4.     Conclusão

Mesmo as mais poderosas pressões só serão levadas em conta e elaboradas juridicamente a partir da forma como aparecem nas 'telas' internas, onde se projeta as construções jurídicas da realidade. Nesse sentido, as grandes evoluções sociais 'modulam' a evolução do Direito, que, não obstante, segue uma lógica própria de desenvolvimento. (TEUBNER, 1983, p. 249.)

A presente pesquisa ainda se encontra em estágio inicial. Desse modo, como conclusões parciais, é possível verificar que a dinâmica do insider trading está tomando forma de acordo com os casos práticos que são submetidos aos tribunais e a partir disso, a doutrina está realizando análises capazes de sedimentar a teoria com base na prática.

No entanto, é fato que tal crime está tendo fortes consequências na vida do corpo social e assim, é de suma importância que estes tomem os devidos conhecimentos do tipo e das bases que estão sendo lapidadas. Balizado a isto, também é imperial que o Direito se desenvolva e reflita as mudanças sociais, pois, conforme explicita Teubner, o ramo jurídico é fruto das relações humanas e fim para respaldá-las.

 


1 Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora – email: laracaloy@hotmail.com


5.     Referências Bibliográficas

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1569171/SP. PENAL E PROCESSUAL. CRIME CONTRA O MERCADO DE CAPITAIS. ART. 27-D DA LEI N. 6.385/1976. USO INDEVIDO DE INFORMAÇÃO PRIVILEGIADA – INSIDER TRADING. ALEGAÇÃO DE ATIPICIDADE DA CONDUTA. NÃO ACOLHIMENTO. DOSIMETRIA DA PENA. PENA-BASE. AUMENTO. CULPABILIDADE EXACERBADA. FUNDAMENTO IDÔNEO. PENA DE MULTA. APLICAÇÃO CORRETA. DANOS MORAIS. NÃO CABIMENTO. CRIME COMETIDO ANTES DA VIGÊNCIA DA LEI N. 11.719/2008. IRRETROATIVIDADE. Ministro

Gurgel de Faria. 16 fev. 2016.

CALLEGARI, André Luís. Direito penal econômico e lavagem de dinheiro: aspectos criminológicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

CIPRIANI, Mário Luís Lírio. Direito penal econômico e legitimação da intervenção estatal – Algumas linhas para a legitimação ou não-intervenção penal no domínio econômico à luz da função da pena e da política criminal. In: D’ÁVILA, Fábio Roberto; SOUZA, Paulo Vinícius Sporleder (Coord.). Direito penal secundário: estudos sobre crimes econômicos, ambientais, informáticos e outras questões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa; DIAS, Maria Tereza Fonseca. (Re)pensando a pesquisa jurídica: teoria e prática. 3ª. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010.

TEUBNER, Gunther. O Direito como Sistema Autopoiético. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.

WITKER, Jorge. Cómo elaborar una tesis en derecho: pautas metodológicas y técnicas para el estudiante o investigador del derecho. Madrid: Civitas, 1985.


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COMPLIANCE OFFICER E POSIÇÃO DE GARANTE: CONSIDERAÇÕES SOBRE A DELEGAÇÃO DE FUNÇÕES EXECUTIVAS NO ÂMBITO COPORATIVO

Por: Lucas Rosa Zyngier

Na seara dos delitos omissivos impróprios, a doutrina discute sobre a possibilidade da configuração da posição de garante do compliance officer, o qual desempenha importante função nas grandes corporações. Diante desta problemática, surgem diversos questionamentos, dentre os quais podemos destacar o seguinte: “No caso de não haver a delegação de funções executivas ao oficial de compliance, poderá ele ocupar uma posição de garantidor?”.

Sabe-se que as funções destes profissionais não possuem contornos homogêneos, isto é, elas serão distintas conforme as peculiaridades de cada empresa1. Apesar desta heterogeneidade, mostra-se possível citar tarefas que costumam ficar ao encargo dos sujeitos em questão (funciones estândar), como: promoção de normas de conduta; análise prévia dos riscos penais envolvidos nos procedimentos da empresa; confecção de canais de denúncia, entre outras. Geralmente, as incumbências destes indivíduos se referem ao desenvolvimento e à manutenção da vigência de políticas e procedimentos internos ordenados com o fim de minorar os riscos de a empresa e seus funcionários praticarem ilícitos na persecução dos objetivos sociais empresariais2.

Relativamente à posição do encarregado de cumprimento no âmbito corporativo, frisa-se que ele ocupa um espaço imediatamente subordinado aos órgãos de direção, similar ao de um alto gerente. Além disso, ele possui independência em termos organizativos, econômicos e materiais, ainda que careça de faculdades executivas3.

Costuma-se afirmar, inclusive, que este profissional será eficaz quando a sua atuação se der com suficiente autonomia em relação à companhia, mas tendo, simultaneamente, apoio total dos recursos desta4. Em suma, o setor de compliance se constitui, apenas, em mais um órgão auxiliar5.

No que toca aos deveres do compliance officer, impende frisar que estes lhe são atribuídos por delegação. Brevemente: os deveres de garante pertencem, originariamente, ao empresário, uma vez que sua liberdade empresarial é acompanhada, necessariamente, pelo dever de cuidar para que a pessoa jurídica não lesione bens jurídicos de terceiros6.

Quanto à referida delegação de funções, pertinente demonstrar como ela se concretiza. Inicialmente, o empreendedor delega a coordenação e a execução de tarefas a determinadas pessoas (gerentes financeiros, de produção, de qualidade etc.). Deste modo, o seu dever de garante, referente às instalações e às atividades de risco, sofre uma mutação, transformando-se em um dever de supervisão e vigilância da atividade dos funcionários citados7.

Em um segundo momento, o empresário, atualmente titular do dever de supervisão e vigilância, realiza nova delegação, sendo que, desta vez, em face do compliance officer. Destarte, a obrigação do proprietário do empreendimento deixa de ser a de supervisão ativa (desenvolvimento de atividades de vigilância e controle sobre quem executa as tarefas empresariais), passando a ser de supervisão passiva (comunicar-se com quem executa materialmente os encargos de vigilância e controle, assim como tomar providências quando restar configurada determinada situação de perigo a bens jurídicos)8. Depreende-se, portanto, que o oficial de compliance passa a ostentar o dever de supervisão ativa.

Imprescindível realçar que o indivíduo analisado foi contemplado com a responsabilidade de desenvolver atividades de vigilância e controle sobre quem executa

as tarefas empresariais. Vale dizer, portanto, que não houve a delegação de funções executivas. Eis aqui o ponto nevrálgico para a análise da suposta posição de garantidor aqui debatida.

Nos delitos omissivos impróprios, o ponto de partida para a realização do juízo de equivalência entre ação e omissão diz respeito à possibilidade de agir para evitar o resultado. Tal exigência se deve ao fato de que seria ilógico exigir-se uma obrigação de agir quando não há capacidade de atuar conforme o dever objetivo de cuidado.

No caso do oficial de cumplimiento, frisa-se que ele não define as decisões a serem tomadas pela companhia, uma vez que a sua funcionalidade precípua é a de alertar sobre os riscos evidentes e inerentes às decisões9. De modo a fomentar ainda mais o debate, destaca-se que, na maioria das estruturas administrativas, o profissional ora analisado não possui conhecimento das decisões tomadas pela alta administração e, muito menos, poder de veto para barrar tais condutas10.

Diante disso, questiona-se: “como cogitar a imputação de um resultado delitivo, a título de omissão imprópria, a um sujeito que não teria meios de evitar o resultado?”. Como resposta, poder-se-ia dizer que, para que se configure o domínio para fins de evitação do resultado, o indivíduo deverá ter capacidade de administração e decisão dentro da empresa ou, ao menos, poder de veto/suspensão das condutas dos administradores. Sem que haja a delegação de tais poderes ao compliance officer, torna- se significativamente questionável a configuração da sua posição de garante, especialmente pelo fato de que o “poder agir” é pressuposto lógico e inarredável do “dever agir”.

 


Lucas Rosa Zyngier: Advogado. Graduado em Direito pela PUC/RS. Especialista em Direito Penal e Criminologia pela PUC/RS. Mestrando em Ciências Criminais pela PUC/RS. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8964930798072864


1 GÓMEZ-ALLER, Jacobo Dopico. Posición de garante del compliance officer por infracción del “deber de control”: una aproximación tópica. In: ZAPATERO, Luis Arroyo (org.); MARTÍN, Adán Nieto (org.). El Derecho Penal Económico en la era Compliance. Valencia: Tirant lo Blanch, 2013. p. 168.

2 GÓMEZ-ALLER, op cit., p. 168.

3 PLANAS. Ricardo Robles. El responsable de cumplimiento (compliance officer) ante el derecho penal. In: SÁNCHEZ, Jesús-María Silva (org.). Criminalidad de Empresa y Compliance – Prevención y Reacciones Corporativas. Barcelona: Atelier, 2013. p. 321.

4 McCONNELL, Ryan; MARTIN, Jay; SIMON, Charlotte. Plan Now or Pay Later: The Role of Compliance in Criminal Cases. Houston Journal of International Law. Houston: University of Houston Law Center, v. 33, n. 03, 2011, p. 55.

5 PLANAS, Ricardo Robles. El responsable de cumplimiento (compliance officer) ante el derecho penal. In: SÁNCHEZ, Jesús-María Silva (org.). Criminalidad de Empresa y Compliance – Prevención y Reacciones Corporativas. Barcelona: Atelier, 2013. p. 321.

6 PLANAS, op cit., p. 322.

7 SÁNCHEZ, Juan Antonio Lascuraín. La responsabilidad penal individual en los delitos de empresa. In: BARRANCO, Norberto J. de la Mata et al (org.). Derecho Penal Económico y de la Empresa. Madrid: Dykinson, 2018. p. 124.

8 GÓMEZ-ALLER, Jacobo Dopico. Posición de garante del compliance officer por infracción del “deber de control”: una aproximación tópica. In: ZAPATERO, Luis Arroyo (org.); MARTÍN, Adán Nieto (org.). El Derecho Penal Económico en la era Compliance. Valencia: Tirant lo Blanch, 2013. p. 175.

9 COSTA, Helena Regina Lobo da; ARAÚJO, Marina Pinhão Coelho. Compliance e o julgamento da APn

  1. 470. Revista Brasileira de Ciências São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 22, 2014. p. 223.

10 COSTA; ARAÚJO, op cit., p. 223-226.


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NOTAS SOBRE A SÚMULA 24 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E OS CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA

Por: José Ewerton Bezerra Alves Duarte[1] Mayara de Lima Paulo[2] eMatheus Ribeiro Barreto Dias[3]

 

1 INTRODUÇÃO

O Direito Penal, enquanto ultima ratio do sistema jurídico, possui em seu cerne um propósito básico: a proteção dos bens jurídicos mais relevantes e a eventual punição de ações que venham lesá-los, na esteira dos princípios da intervenção mínima, da fragmentariedade e da subsidiariedade (BITENCOURT, 2017).

Nessa esteira, o bem jurídico tributário se encaixa numa categoria especial - os ditos bens jurídicos institucionais de caráter coletivo (GUIRAO, 2005) -, que é correlacionado com determinadas atividades usualmente atribuídas ao Poder Público e imprescindíveis para a vida em sociedade (ALENCAR, 2006).

Logo, sendo a tributação um meio essencial para o funcionamento e a manutenção do Estado, chega-se à conclusão de que os tributos exercem uma função social voltada ao desenvolvimento individual e geral (PRADO, 2007), revelando, pois, a necessidade da tutela protetiva do Direito Penal, sobretudo, na vertente econômica (DIB, GUARAGNI, 2012), o que se encontra efetivado pela Lei nº 8.137/1990.

Na perspectiva do Direito Penal Econômico e ancorado na jurisprudência dos Tribunais Superiores, os crimes contra à ordem tributária previstos no art. 1º da Lei nº 8.137/1990 são delitos materiais, consumando-se com o lançamento definitivo do tributo, ou seja, é necessário um resultado consistente na redução ou na supressão do tributo, entendimento que se convencionou na súmula 24 do Supremo Tribunal Federal.

Convém, ainda, registrar que existem também os crimes formais, que constam do art. 2º da referida lei, de menor potencial ofensivo, o qual possui resultado, mas não é exigida a sua ocorrência para fins de consumação delitiva. Assim, o presente artigo tem por objeto a problematização das nuances e particularidades dos crimes materiais contra a ordem tributária a partir da aplicação do citado enunciado sumular, bem como debates correlacionados ao tema, por meio de uma revisão bibliográfica e documental, verticalizando-se numa análise doutrinária-jurisprudencial.

 

2 ASPECTOS DOUTRINÁRIOS E JURISPRUDENCIAIS DA REFERIDA SÚMULA

 

A súmula vinculante 24 surge em meio à discussão acerca da possibilidade de o Ministério Público propor ação penal por crime material contra a ordem tributária independentemente de outras questões de natureza processuais ou procedimentais, a exemplo da natureza da ação e do prévio debate em via administrativa para que seja definido a consumação desses crimes nos moldes do art. 1º da Lei nº 8.137/90 (MACHADO, 2013).

Estando, pois, a jurisprudência e a doutrina controvertidas quanto à questão do exaurimento prévio da via administrativa ou não para a proposição da ação penal em relação a esses crimes tributários, restou, assim, editada essa súmula, com o intuito de superar e unificar a interpretação normativa acerca da tipicidade material, assentando o entendimento de que, nos delitos materiais, o lançamento definitivo do crédito no processo administrativo é um dos fundamentais elementos para amparar o recebimento da ação penal, em que pese persistirem críticas dogmáticas sob a sua (in)aplicabilidade (MACHADO, 2013, pp. 112-113).

A par disso, alguns entendem que se trata de condição de procedibilidade para a configuração do tipo penal ou de um elemento normativo do tipo em tela, o que acarreta no não recebimento da inicial ou na rejeição da denúncia após a apresentação da defesa, conforme artigo 395, II, do Código de Processo Penal; enquanto outros afirmam que a inexistência da condição de definitividade do crédito tributário gera a falta de justa causa para o exercício da ação penal, prevista no inciso III desse mesmo dispositivo; de qualquer sorte, ambos levam à extinção do processo sem análise do mérito.

Os créditos tributários são comumente discutidos em sede de ações civis (anulatórias e embargos à execução). Nos casos em, no curso do processo-crime, houver a sua anulação com respectivo retorno à fase administrativa, o STF, no Agravo Interno em Reclamação 31.194/RS, de relatoria do Ministro Roberto Barroso, entendeu não pela extinção da ação penal, mas pela suspensão do processo e do curso do prazo prescricional enquanto perdurar o novo processo administrativo, apegando-se, para tanto, aos princípios da celeridade processual e da eficiência.

Dessa forma, observa-se que a Suprema Corte tem flexibilizado a incidência desse enunciado de natureza vinculante, de modo que, a exemplo desse caso, valem as indagações: Se houve a desconstituição da dívida fiscal, por que apenas suspender se a prescrição? Seria justo impor ao indivíduo as consequências de uma condução anômala do processo administrativo pelo Estado, que é o credor, o legislador e o julgador ao mesmo?

Ademais, ela também foi alvo de inúmeras críticas, pois, a partir da interpretação desta, inexistiria o início do prazo prescricional (BORRI, SOARES, 2014). Há ainda alegações de que os processos administrativos fiscais serviriam apenas como exame de corpo de delito para verificação da materialidade, mas nunca como condicionante à configuração da infração penal (REALE JÚNIOR, 2013).

Isso porque o conceito de crime, a partir da teoria tripartite, requer o fato típico, ilícito e culpável. No que tange ao crime tributário, destacam-se, neste sucinto trabalho, esses elementos: o fato típico, que é composto pela conduta, resultado, tipicidade formal e material (ou ainda a conglobante de Eugénio Raul Zaffaroni) e nexo causal, e a culpabilidade, que é subdividida em imputabilidade, consciência potencial da ilicitude e inexigibilidade de conduta diversa. Será que há tipicidade material quando o crédito tributário for de pequena monta? No Habeas Corpus 486.854/RJ, o Superior Tribunal de Justiça já aplicou o princípio da insignificância diante do ínfimo valor envolvido.

Assim, é preciso registrar que a peça acusatória deve ser dotada de justa causa, sob pena de adoção de uma responsabilidade penal objetiva e de respectiva violação do Estado Democrático de Direito, que, conforme Maria Thereza Rocha de Assis Moura (2001, p. 276), requer, sob seu aspecto material, a certeza da materialidade e a presença de indícios suficientes de autoria. Inclusive, nos autos do Habeas Corpus 106.152/MS, de relatoria da Ministra Rosa Weber, o STF entendeu que a exigência da súmula 24 não se aplica à fase investigatória.

Outra discussão decorrente dessa súmula, consiste na possibilidade de tramitação de inquérito policial junto à Polícia Judiciária ou de procedimento investigativo criminal pelo Ministério Público sem a constituição definitiva do débito tributário. À primeira leitura, considerando ser este um procedimento investigativo para reunir elementos probatórios acerca da existência da infração penal (materialidade) e da (co)autoria/(co)participação hábeis à configuração da justa causa para o início da ação penal (JORGE, 2011), entender-se-ia que, se não há materialidade por meio do lançamento definitivo do tributo, não há como instaurar ou permitir o prosseguimento dessa investigação.

 

3 DAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Dessarte, como expõe Decomain (2008), nota-se que os crimes contra a ordem tributária não violam tão somente o tributo fiscal enquanto objeto jurídico indisponível, mas atinge, outrossim, uma complexa rede de valores que permeiam o mercado econômico-financeiro, perpassando pela exigibilidade dos pagamentos dos tributos, o relacionamento com o fisco, a questão da idoneidade do contribuinte, a (in)competência da seara administrativa-cível de apuração das condutas, dentre outros aspectos.

Os seres humanos, no mundo globalizado, são complexos, assim como suas relações jurídicas. E, neste contexto, onde o Direito e o Estado regularam uma infinitude de áreas de atuação das pessoas físicas e jurídicas, não se pode perder de vista que a seara criminal é a ultima ratio e os entendimentos podem ser revisitados e aperfeiçoados no decurso do tempo.

Entretanto, é preciso sempre observar os ditames que sustentam o Estado (Democrático) de Direito, que tem princípios, direitos e garantias fundamentais, individuais e coletivos, erigidos na Constituição Federal.  Assim, é salutar refletir sobre a interpretação e a aplicação desses enunciados sumulares, a fim de evitar que, na tentativa de avançar, viole-se as premissas constitucionais, mormente quando a vítima direta é a fazenda pública enquanto credoras e implique-se em responder investigação criminal ou ação penal, que, por si só, já acarretam agruras pessoais e sociais aos indivíduos.

 


4 REFERÊNCIAS

 

ALENCAR, Romero Auto de. Crimes contra a ordem tributária: legitimidade da tutela penal e inadequação político-criminal da extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo. MS thesis. Universidade Federal de Pernambuco, 2006.

 

BITENCOURT, Cezar Roberto. Crimes Contra a Ordem Tributária. São Paulo: Saraiva Educação SA, 2017, Cap. 1.

 

BORRI, Luiz Antonio, e SOARES, Rafael Junior. A relativização da competência nos crimes tributários. Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal. Boletim Informativo IBRASPP - Ano 04, nº 07 - ISSN 2237-2520 - 2014/02.

 

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 106152. Relatora: Ministra Rosa Weber. Brasília, julgado em 29/03/2016, publicado em 24/05/2016.

 

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus 486854. Relatora: Ministra Laurita Vaz. Brasília, julgado em 22/10/2019, publicado em 18/11/2019.

 

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação 31194. Relator: Ministro Roberto Barroso. Brasília, julgado em 29/11/2018, publicado em 03/12/2018.

 

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante 24. Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/1990, antes do lançamento definitivo do tributo. Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça, [2009].

 

DECOMAIN, Pedro Roberto. Crimes contra a ordem tributária. 4. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2008.

 

DIB, Natália Brasil e GUARAGNI, Fábio André. O princípio da insignificância e os crimes contra a ordem tributária: linhas críticas à jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Revista Jurídica 1.28 (2012): 378-405.

 

GUIRAO, Rafael Alcácer. La protección del futuro y los daños cumulativos. Revista Electrónica de Ciência Penal y Criminologia, n. 04-08, p. 25, 2002.

 

JORGE, Estêvão Luís Lemos. O contraditório no inquérito policial à luz dos princípios constitucionais. 2011. Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 2011.Disponível em: <https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/98938/jorge_ell_me_fran.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em: 27 abr. 2021.

 

MACHADO, Hugo de Brito. A irretroatividade da súmula vinculante 24 e a prescrição impeditiva da ação penal. NOMOS: Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC, Fortaleza, v.33, n.1, 2013.

 

MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. Justa causa para ação penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

 

PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.

 

REALE JÚNIOR, Miguel. Restrição ilegal. Boletim do IBCCRIM, nº. 245, abril de 2013.

 


[1] Mestrando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará (PPGD/UFC). Pós-graduando em Docência do Ensino Superior pela Universidade Federal de Campina Grande. Especialista em Direito Constitucional pela Faculdade Futura de São Paulo (2021). Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Faculdade São Francisco da Paraíba (2019). Especialista em Direito Público pela Faculdade Legale de São Paulo (2020). Bacharel em Direito pela Faculdade São Francisco da Paraíba (2017). Pesquisador do GEDAI/UFC. Servidor Público Efetivo na Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social da Paraíba. E-mail: ewertonduartecz@gmail.com

[2] Advogada. Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará (PPGD/UFC). Bacharela em Direito pela Universidade de Fortaleza (2012). Membro do Núcleo de Estudos Aplicados Direito, Infância e Justiça (NUDIJUS/UFC) e do GEDAI/UFC. Membro do Conselho Jovem da OAB/CE. E-mail: mayaralp.adv@gmail.com

[3] Graduando em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Pesquisador do GEDAI/UFC. Pesquisador do Laboratório Internacional de Investigação em Transjurisdicidade (LABIRINT), vinculados à UFPB. Estagiário junto ao MPF-PB. E-mail: matheusbarreto14@hotmail.com


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O crime de frustração do caráter competitivo de licitação (art. 337-F, do Código Penal), a Súmula nº 645 do STJ e o problema da prescrição

Por: Camila Rodrigues Forigo[1] e Rodrigo Muniz Santos[2]

 

Em 10 de fevereiro de 2021, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça aprovou a Súmula nº 645, com o seguinte enunciado: "o crime de fraude à licitação é formal, e sua ​​consumação prescinde da comprovação do prejuízo ou da obtenção de vantagem".

 

Pela própria data de edição, o verbete refere-se ao artigo 90 da Lei nº 8.666/1993[3], recentemente revogado pela nova Lei de Licitações[4], que inseriu o art. 337-F no Código Penal, com a seguinte redação:

 

“Art. 337-F. Frustrar ou fraudar, com o intuito de obter para si ou para outrem vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação, o caráter competitivo do processo licitatório:

Pena - reclusão, de 4 (quatro) anos a 8 (oito) anos, e multa.”

 

Fora o aspecto mais evidente, ou seja, o substancial aumento da pena, o legislador operou sutil alteração na estrutura do novo tipo, pois o “ajuste ou combinação” (condutas bilaterais) deixaram de figurar entre os elementos descritivos da conduta para cederem lugar ao que antes se definia como “qualquer outro expediente” (vale dizer: qualquer ato unilateral do agente destinado a frustrar ou fraudar o certame), conferindo maior amplitude à incriminação.

 

A mudança de redação não obsta a aplicação da nova Súmula, já que a conduta incriminada mantém seu traço essencial, que é a prática de qualquer expediente desonesto tendente a inviabilizar o caráter competitivo da licitação, independente do resultado.

 

A Súmula 645, portanto, supera alguns entendimentos isolados no âmbito do próprio STJ[5] e sedimenta a orientação de que a infração penal ora em análise é de natureza formal, instantânea e, por isso, desvinculada da adjudicação do objeto ou da assinatura do contrato administrativo, de modo que qualquer ato ou arranjo fraudulento, seja mediante combinação entre os licitantes ou entre estes e funcionários públicos, seja, ainda, por conduta unilateral de qualquer desses agentes, aperfeiçoa o crime.

 

André Guilherme Tavares de Freitas corrobora esse entendimento:

 

“Identifica-se nesse tipo penal a conduta de ‘frustrar ou fraudar o caráter competitivo do procedimento licitatório’, como meio de praticar tal conduta, o ‘ajuste, combinação ou qualquer outro expediente’ e, por fim, como resultado naturalístico desse proceder a ‘vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação’. Com efeito, apesar de o legislador mencionar nesse tipo o resultado naturalístico, não exige sua ocorrência para consumar o crime, mas apenas, que o agente tenha atuado com a intenção de (com o intuito de) obtê-lo, pelo que vindo efetivamente a alcançar este resultado o crime será tido como exaurido, porém consumado já estava desde o momento em que o caráter competitivo do certame foi frustrado ou fraudado. Temos aqui, por conseguinte, hipótese de crime formal.”[6]

 

A opção do legislador na construção do tipo penal, isto é, com abstração do resultado, revela-se congruente com o bem jurídico penalmente tutelado, que é moralidade administrativa[7], indistintamente lesada se houver ou não a efetiva entrega do objeto licitado ao vencedor do certame.

 

Aliás, o crime do novo artigo 337-F, tal como o anterior artigo 90, consuma-se mesmo quando, havendo a prática de fraude, o certame vier a ser suspenso, cancelado ou anulado pela própria Administração Pública ou pelo Poder Judiciário.

 

Se o crime fosse material, a conduta seria impunível caso o(s) agente(s) praticasse(m) a fraude, mas ao final ninguém se beneficiasse da adjudicação do objeto, tornando isentas de sanção eventuais condutas contrárias à moralidade administrativa.

 

Nessa perspectiva, a adjudicação a um dos concorrentes participantes da fraude constitui mero exaurimento, servindo como parâmetro apenas para a majoração da pena, nada mais.

 

Esse entendimento, prevalente na doutrina[8], foi consagrado tanto na jurisprudência do STF como do STJ, o que legitima a edição da Súmula 645. Veja-se:

 

STF: “3. O Plenário desta Corte já decidiu que o delito previsto no art. 90 da Lei 8.666/1993 é formal, cuja consumação dá-se mediante o mero ajuste, combinação ou adoção de qualquer outro expediente com o fim de fraudar ou frustrar o caráter competitivo da licitação, com o intuito de obter vantagem, para si ou para outrem, decorrente da adjudicação do seu objeto, de modo que a consumação do delito independe da homologação do procedimento licitatório”. (STF. HC 116680, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, julgado em 18/12/2013, DJe-030 DIVULG 12-02-2014 PUBLIC 13-02-2014)

 

STJ: "[...] LEI DE LICITAÇÕES. ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO PENAL. CIÊNCIA DA ILICITUDE DA CONDUTA. [...] ART. 90 DA LEI N. 8.666/1993. CRIME FORMAL. LISURA DAS CONTRATAÇÕES. DESNECESSIDADE DE PREJUÍZO AO ERÁRIO. [...] O crime previsto no art. 90 da Lei n. 8.666/1993 objetiva tutelar a lisura das licitações e contratações com a Administração Pública, bastando para sua consumação a frustração do caráter competitivo do procedimento licitatório por meio de expedientes fraudulentos, independentemente de efetivo prejuízo ao erário. [...]" (STJ. AgRg no AREsp 1127434 MG, Rel. Min. ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, DJe 09/08/2018 – destacamos[9])

O tema não mereceria maior atenção ou destaque não fosse pelo franco descompasso entre o entendimento agora sumulado e a jurisprudência construída pelo próprio STJ acerca do momento consumativo do crime do artigo 90 da Lei de Licitações revogada, para fins de cálculo da prescrição.              Como é cediço, o Código Penal estabelece, por um lado, que o crime é considerado consumado quando “nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal” (art. 14, I) e, por outro, que a prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr “do dia em que o crime se consumou” (art. 111, I).             Isso leva à inevitável conclusão de que, nos crimes formais, de consumação instantânea, a prescrição é contada a partir da própria data em que a conduta for perpetrada, estando presentes todos os elementos da sua tipificação legal, sendo irrelevante o momento da produção do resultado.             Assim, por exemplo, no crime do artigo 304 do Código Penal, a prescrição é contada da data em que o documento falso foi utilizado, exibido ou apresentado. Na difamação (art. 139), da data em que a ofensa foi proferida ou publicada e, na corrupção passiva (art. 317), da data em que a solicitação ou exigência foi feita, independentemente da data do pagamento da vantagem indevida.              Já no novo crime do 337-F do Código Penal, considerando o teor da Súmula nº 645, a consumação se dará no momento da prática da fraude, levando à conclusão (óbvia) de que, para fins prescricionais, o prazo deve ser contado a partir desse momento.             Todavia, o STJ construiu, paradoxalmente, orientação que não guarda nenhuma sintonia com esse pensamento, estabelecendo que, para a contagem da prescrição, deve-se utilizar não a data do ajuste ou combinação (na redação da lei antiga) ou da consumação da fraude, mas da assinatura do contrato administrativo decorrente da licitação fraudada. Confira-se:

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EM HABEAS CORPUS. FRAUDE À LICITAÇÃO (ART. 90 DA LEI N. 8.666/1993). PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA EM ABSTRATO. NÃO OCORRÊNCIA. TERMO INICIAL PARA CONTAGEM. ASSINATURA DO CONTRATO ADMINISTRATIVO. AGRAVO NÃO PROVIDO.

  1. Esta Corte Superior já se manifestou no sentido de que, em relação ao delito previsto no art. 90 da lei n. 8.666/1993, o termo inicial para contagem do prazo prescricional deve ser a data em que o contrato administrativo foi efetivamente assinado. Nesse sentido: MS 15.036/DF, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 10/11/2010, DJe 22/11/2010; e HC 484.690/SC, deste Relator, QUINTA TURMA, julgado em 30/5/2019, DJe 4/6/2019.
  2. No caso em exame, tendo sido o contrato administrativo assinado em 17/12/2010 e a denúncia recebida em 10/12/2018, não transcorreu o prazo prescricional de 8 anos (art. 109, inciso IV, do Código Penal).
  3. Agravo regimental não provido.

(AgRg no RHC 136.462/MG, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 02/02/2021, DJe 08/02/2021)

Os posicionamentos adotados sobre os dois temas (consumação e prescrição) são totalmente contraditórios entre si, uma vez que, na definição da sua natureza, afirma-se que o crime é formal, ao passo que na contagem da prescrição utiliza-se a data do resultado material (que, aliás, nem sempre se produz, pois o certame direcionado pode ser interrompido ou cancelado antes da adjudicação).              Além dos julgados mencionados na ementa acima (MS nº 15.036/DF e HC 484.690/SC) e do MS 23608/DF, Rel.  Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Dje 05/03/2020, o tema da prescrição foi um dos enunciados da edição nº 134 do Jurisprudência em Teses do Superior Tribunal de Justiça, divulgada em setembro de 2019, que assim consignou:

 

8) Em relação ao delito previsto no artigo 90 da Lei 8.666/1993, o termo inicial para contagem do prazo prescricional deve ser a data em que o contrato administrativo foi efetivamente assinado.

 

Não seria surpresa, nesse cenário, se o STJ viesse a editar nova Súmula consignando que, para fins prescricionais, deve ser levada em conta a data de formalização do instrumento contratual, cristalizando a contradição.               Não há, com todo respeito, como sustentar logicamente a convivência de posicionamentos tão diametralmente opostos, pois ou se considera a consumação do crime com a prática da fraude ou frustração do certame ou se leva em conta somente a data de adjudicação do objeto ou assinatura do contrato, para todos os fins penais.             Alterar a natureza do crime, interpretando-o como formal ou material de acordo com a conveniência da situação em cada caso concreto, especialmente para postergar o momento consumativo e preservar o poder punitivo do Estado, é incompatível com a natureza da atuação jurisdicional do STJ e sua missão constitucional, que é justamente conferir harmonia – e coerência - na aplicação do direito pelos tribunais.             A natureza de qualquer ilícito penal é sempre uma só, seja para a análise da antijuridicidade e culpabilidade, seja para a imposição da pena, concessão ou denegação de benefícios legais ou, ainda, para aferir a subsistência do poder punitivo estatal.              A manutenção, pelo STJ, de posicionamentos tão díspares e incompatíveis entre si reduz a prestação jurisdicional à mera imposição do apelo à autoridade, sem compromisso com a integridade do sistema jurídico[10]. Trata-se, quando muito, de simples coerência estéril[11], uma vez que os posicionamentos “acomodados” pelas decisões do STJ não poderiam, em realidade - e por questão de lógica -, coexistir no mesmo campo de interpretação.             É dizer: ou o crime é formal ou é material, sempre, em qualquer situação.             A recente mudança legislativa, com a duplicação do quantum da pena e consequente aumento do prazo prescricional pode eventualmente retirar relevância da discussão ora em pauta, pela excepcionalidade do advento da prescrição em futuros direcionamentos de licitações, mas a contradição não deve ser simplesmente ignorada ao ponto de perpetuar-se.  A edição da Súmula nº 645, aliada à recente alteração do Código Penal (art. 337-F) sedimentaram, de forma categórica, a natureza formal do crime de fraudar ou frustrar o caráter competitivo do certame licitatório, razão pela qual a orientação jurisprudencial sobre o cálculo da prescrição deve ser revista, afastando-se a data de adjudicação ou assinatura do contrato como marco inicial de contagem da prescrição.             Afinal, a aplicação do direito exige racionalidade, não sendo aceitável desvirtuar a natureza do crime para, “heroicamente”, salvar dos efeitos da prescrição situações em que a aplicação correta dos dispositivos legais levaria a outro entendimento.

 


[1] Doutoranda em Direito Penal pela Universidade de São Paula (USP). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Secretária da Comissão da Advocacia Criminal da OABPR. Conselheira do IBDPE. Advogada criminal.

[2] Mestre em Direito Processual Penal pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Ex-secretário da Comissão da Advocacia Criminal da OABPR. Advogado Criminal.


[3]Art. 90. Frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação: Pena - detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa“

[4] Lei nº 14.133/2021, de 1º de abril de 2021

[5] Cfr. STJ - HC 484.690/SC, 5ª T., rel. Min. Ribeiro Dantas, DJe 04.06.2019 e HC 86.858/SE, 6ª T., rel. Min. Og Fernandes, DJe 09.12.2008

[6] FREITAS, André Guilherme Tavares de. Crimes na Lei de Licitações. 3.ed. Niterói: Impetus, 2013. p. 92.

[7] De acordo com Vicente Greco Filho, “o bem jurídico amparado é a moralidade e regularidade do procedimento licitatório, protegendo-se, no caso específico, a igualdade e a competitividade do certame(Dos crimes da lei de licitações, 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2007, p. 73)

[8] A propósito: BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito Penal das licitações. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 190/191; FREITAS, André Guilherme Tavares de. Crimes na lei de licitações. 3. Ed. Niterói, 2013. Em sentido contrário:  Vicente Greco Filho, sustenta ser “perfeitamente possível a tentativa, como, por exemplo, se, feito o ajuste ou a combinação, a licitação não venha a realizar-se por circunstâncias alheias a vontade dos agentes”, sinalizando para o entendimento de ser de natureza material o ilícito. (GRECO FILHO, Vicente. Dos crimes da lei de licitações. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 75).

[9] No mesmo sentido, confiram-se os seguintes precedentes do STJ: AgRg no REsp 1679993/RN, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, DJe 16/04/2018; AgRg no REsp 1737035/RN, Rel.Min. Nefi Cordeiro, DJe 21/06/2019; HC 300910/PE, Rel.Min. Ribeiro Dantas, DJe 06/03/2018; HC 341341/MG, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, DJe 30/10/2018; HC 373027/BA, Rel. Min. Ribeiro Dantas, DJe 26/02/2018; REsp 1597460/PE, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, DJe 03/09/2018; RHC 74812/MA, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJe 04/12/2017; RHC 94327/SC, Rel. Min. Ribeiro Dantas, DJe 19/08/2019 e  REsp 1498982/SC, Rel. Min.Rogerio Schietti Cruz, DJe 18/04/2016.

[10] STRECK, Lênio Luiz. Por que a discricionariedade, um grave problema para Dworkin e não o é para Alexy? In: Revista Direito e Práxis, nº 7, vol. 4, 2013, p. 343 – 367.

[11] PASSADORE, Bruno de Almeida. Precedentes e Uniformização de Jurisprudência: Uma Análise Crítica. Dissertação de Mestrado em Direito. Universidade de São Paulo, 2016. p. 194.


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A EXPANSÃO DO DOLO SOB A ÓTICA DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA.

Por: Bruno Artigas[1]

A teoria da cegueira deliberada ou wilfull blindness – como é conhecida nos Estados Unidos – vem sendo utilizada no Brasil de forma sedimentada pela jurisprudência em compatibilização com o instituto do dolo eventual, punindo de forma dolosa aqueles que teriam um desconhecimento intencional de determinado contexto fático que aponte para uma grande probabilidade de prática delitiva.

Saindo do prisma de definições teóricas sobre a cegueira deliberada, certo é que a respectiva teoria foi importada ao Brasil sem qualquer adequação teórica para os institutos pátrios em comparação com seu sistema jurídico originário[2], aparentando ser uma importação reducionista que tem como consequência polêmicas quanto sua efetiva aplicabilidade em consonância com os institutos do dolo e culpa na normatividade do Brasil.

Nesse caminho, adentrando no aspecto problemático de sua efetiva utilização como meio de verificação do dolo e consequente punibilidade na seara dolosa, a compatibilização feita de forma generalizada pela jurisprudência, mostra-se composta de certo reducionismo em detrimento da ausência de um estudo aprofundado e verificação de eventual possibilidade de compatibilização da forma de uso da cegueira deliberada em seu sistema jurídico de origem para o nosso, notadamente quanto aos pressupostos do dolo.

Ademais, o próprio instituto do dolo no ordenamento pátrio se mostra de extrema complexidade a ponto de ser inviável qualquer importação teórica sem antes passar por um filtro hermenêutico adequado. Não obstante, a temática do dolo ainda rende divergências doutrinárias quanto seus elementos constitutivos, notadamente quanto ao aspecto cognitivo e volitivo.

Moderna doutrina aponta como ponto fulcral do dolo a cognição e afastando o aspecto volitivo[3], contudo, a despeito da discussão doutrinária para melhor elucidação do que seria o dolo no ordenamento pátrio, o aspecto cognitivo é imprescindível para a efetiva existência do dolo para verificação do domínio sobre a realização do fato, independente da teoria seguida.

Nesse ponto que abrange a problemática da questão: Se o aspecto cognitivo é indispensável para a conduta ser dolosa, como seria possível punir o desconhecimento a título doloso, ainda que em sua modalidade eventual?

No tocante ao dolo eventual – modalidade que abarca a cegueira deliberada no Brasil -, esse encontra-se definido no Art. 18, I, apontado como a assunção do risco de produção de determinado resultado que constitua um delito, existindo o conhecimento quanto ao risco de sua conduta e conformação com o resultado lesivo[4], sendo assim indispensável o aspecto cognitivo[5].

De mais a mais, a cegueira deliberada é caracterizada pelo próprio desconhecimento no campo da ignorância, assim, a inserção da respectiva teoria no campo do dolo eventual sem a efetiva existência do conhecimento – de forma proposital ou não -, mostra-se extremamente temerária ao ponto de trazer um expansionismo à própria conceituação e aplicabilidade de dolo em caminhos que normalmente seriam percorríveis pela culpa.

Esse conceito extensivo do dolo pode até englobar violações ao principio da legalidade ante a previsão normativa do dolo no ordenamento jurídico brasileiro[6], sem mencionar que seria uma interpretação a malam partem em desfavor do réu, ao ponto que seria atribuível presunções de conhecimento em determinadas situações que exista a incidência da cegueira deliberada.

Ainda, pelo extenso campo de aplicação que a cegueira deliberada pode ganhar se aplicada de forma indiscriminada, nos parece que é utilizada em detrimento da própria dificuldade de verificação do dolo em determinadas circunstâncias fáticas e determinados tipos delitivos, como no de lavagem de capitais, e como pontua LUCCHESI: com indevida compatibilização de dever saber com o dolo eventual[7]. Ao passo que a utilização da respectiva teoria traria uma facilidade probatória a acusação, eis que o aspecto subjetivo do delito imputado poderia ser presumível com a imposição de uma obrigação investigatória através do dever saber.

No entanto, não é ônus do investigado suportar tal dificuldade através de interpretações a malam partem, importações de teorias expansionistas e imposições de deveres investigativos como se todos fossem garantidores de todas as relações sociais e bem jurídicos que o cercam[8], parecendo inclusive que a invocação da respectiva teoria quando insuficientes os elementos probatórios do dolo, realizar-se-ia uma espécie de inversão do ônus probatório, limitando-se assim a acusação a delinear as circunstancias fáticas e apontar a probabilidade de prática do delito no âmbito temporal do envolvimento do acusado, sem efetiva comprovação do aspecto do conhecimento que se torna prescindível se seguida a imputação subjetiva com fulcro na cegueira deliberada.

Desse modo, a aplicação da respectiva teoria atribuindo dolo quando há, no máximo, culpa, mostra-se aparente fruto de um viés punitivista através de um expansionismo do direito penal na forma da interpretação do dolo, e que o referido expansionismo advém das exigências de uma sociedade de risco ante a globalização da criminalidade, conforme interessantamente contextualiza HERNANDES[9].

Ao que pese a teoria da cegueira deliberada tentar vislumbrar aplicabilidade em situações de lacuna da imputação subjetiva[10], não parece ser aplicável no Brasil em razão dos institutos já impostos, tampouco aparenta existir uma compatibilidade com o dolo eventual, ao passo que o elemento cognitivo deve estar presente em todas as espécies de dolo[11] inclusive no eventual, e a falta de tal pressuposto mostra-se inaplicável a punição a título doloso, podendo no entanto discutir-se sua incidência no campo da culpa.

Em fundamental estudo jurisprudencial realizado por LUCCHESI, mostrou-se que por vezes a respectiva teoria é desnecessária na fundamentação de sentenças condenatórias em razão da já existência do preenchimento dos elementos subjetivos, sem necessidade de importação da cegueira deliberada para justificar a existência do dolo, desprovida de validade dogmática[12], e ainda que a respectiva teoria seja utilizada em casos de forma prescindível, sua interpretação generalizada poderá levar a punibilidade a titulo doloso mesmo quando inexistir o preenchimento de seus pressupostos, atingindo assim um verdadeiro expansionismo do conceito de dolo tendo como característica a prescindibilidade do conhecimento.

Por fim, para se efetivamente legitimar a aplicabilidade da respectiva teoria, seria necessário realizar uma ressignificação do conceito de dolo[13], ante a eminente incompatibilidade de punibilidade dolosa quando ausente o aspecto cognitivo.

 


[1] Advogado – OAB/PR 104.253. Pós-graduando em Direito e Processo Penal pelo CERS. Formado em Direito pela Universidade Positivo.


[2] LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a culpa como dolo: O uso da cegueira deliberada no Brasil. 1 Ed. São Paulo: Marcial Pons, 2018. P. 195

[3] GRECO, Luís. Dolo sem vontade

[4] MARTINELLI, João Paulo. DE BEM, Leonardo Schmitt. Lições Fundamentais – Parte Geral. 6ª Ed. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2021. p. 594.

[5] BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Geral. 21ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 362.

[6] HERNANDES, Camila Ribeiro. Cegueira deliberada e lavagem de capitais: problematizações doutrinárias e aplicação jurisprudencial no Brasil. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020. p. 147

[7] LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a culpa como dolo: O uso da cegueira deliberada no Brasil. 1 Ed. São Paulo: Marcial Pons, 2018. p. 161.

[8] Idem. p. 161

[9] HERNANDES, Camila Ribeiro. Cegueira deliberada e lavagem de capitais: problematizações doutrinárias e aplicação jurisprudencial no Brasil. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020. p. 27.

[10] SYDOW, Spencer Toth. A teoria da cegueira deliberada – 5ª Ed – Belo Horizonte: Editora D’Placido, 2020. p. 255.

[11] LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a culpa como dolo: O uso da cegueira deliberada no Brasil. 1 Ed. São Paulo: Marcial Pons, 2018. p. 152

[12] Idem. p. 196

[13] REGUÉS I VALLÈS, Ramón.La ignorância deliberada em Derecho Penal. Barcelona: Atelier Libros Jurídicos, 2007, apud HERNANDES, Camila Ribeiro. Cegueira deliberada e lavagem de capitais: problematizações doutrinárias e aplicação jurisprudencial no Brasil. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020. p. 148

 

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Geral. 21ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

HERNANDES, Camila Ribeiro. Cegueira deliberada e lavagem de capitais: problematizações doutrinárias e aplicação jurisprudencial no Brasil. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020.

LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a culpa como dolo: O uso da cegueira deliberada no Brasil. 1 Ed. São Paulo: Marcial Pons, 2018.

MARTINELLI, João Paulo. DE BEM, Leonardo Schmitt. Direito Penal lições fundamentais – Parte Geral. 6ª Ed. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2021.

SYDOW, Spencer Toth. A teoria da cegueira deliberada – 5ª Ed – Belo Horizonte: Editora D’Placido, 2020.


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Juiz não pode impedir reexame de acordo de não persecução penal

Por: Migalhas

A 2ª turma do STF mandou a câmara de coordenação e revisão do MP reexaminar a negativa de acordo de não persecução penal a uma venezuelana, condenada por tráfico de droga.

Na ausência de manifesta inadmissibilidade de ANPP - Acordo de Não Persecução Penal, juiz de 1º grau não pode impedir reexame de negativa do acordo em órgão superior do Ministério Público.

Com esse entendimento, a 2ª turma do STF determinou que a câmara de coordenação e revisão do MP reanalise a negativa de acordo de não persecução penal a uma venezuelana, usada como mula, em tráfico de drogas. No caso, o juiz de 1º grau havia indeferido a remessa dos autos ao órgão.

Na origem, trata-se de uma mulher venezuelana que, em tese, desempenhava um papel de "mula" no tráfico de drogas. Ou seja, ela era usada por traficantes para transportar a droga. A venezuelana foi presa preventivamente por tráfico internacional de drogas e, no caso, foi reconhecida a condição de tráfico privilegiado. Posteriormente, a ré foi condenada a mais de 4 anos em regime semiaberto.

A defesa da venezuelana, pela DPU, pretendia a celebração do acordo de não persecução penal com o MP, em razão da aplicação do redutor da pena da mulher por tráfico privilegiado. No entanto, o acordo foi recusado pelo MP sob o fundamento de não ser cabível o acordo, em razão da pena mínima e da gravidade do delito - tráfico de drogas.

Diante da negativa, a defesa acionou a Justiça; no entanto, o juízo de 1º grau indeferiu a remessa dos autos à câmara de coordenação e revisão do MP.

Reexame

Ao apreciar o caso, Gilmar Mendes, relator, entendeu que é inviável o acolhimento do pedido de reconhecimento judicial do direito ao ANPP. O ministro invocou dispositivos que estabelecem que não cabe ao Judiciário a imposição de acordo de não persecução penal.

No entanto, Gilmar Mendes atendeu o pedido da DPU, no que se refere à remessa dos autos ao órgão superior de coordenação e revisão do MP sobre o ANPP. Para o relator, não é legítimo que o Judiciário controle a recusa do ANPP quanto ao seu mérito a impedir a remessa ao controle superior no MP.

"A defesa tinha direito ao reexame da negativa apresentada pelo representante do MP em 1º grau, sendo ilegítima a recusa do julgador que impediu a remessa."

No caso concreto, Gilmar Mendes salientou que a inadmissibilidade do acordo não era manifesta, já que a pena mínima de cinco anos ao tráfico aplicado o redutor em fração proporcional ao caso, poderia ser cabível o ANPP.

O entendimento do ministro foi seguido por unanimidade pela 2ª turma.

Ricardo Lewandowski acompanhou Gilmar Mendes em maior extensão, pois entendeu que o juízo de piso não pode deliberar até que sobrevenha conclusão da câmara de coordenação e revisão do MP.


Muito prazer, somos advogadas criminalistas!

Por:  Thaise Mattar Assad

Fiat LuxFaça-se a luz”. A luz da palavra. Antes dela, tudo era escuridão. A palavra precedeu a escrita. Com a luz da palavra, ad vocatus: o surgimento daquele que é invocado para ajudar; terceira pessoa que o litigante chama, perante o juízo, para falar em seu nome, a seu favor, ou defender o seu interesse.

Talvez o primeiro ser humano que tenha se insurgido e conseguido conter abusos ou convencer detentores do poder, mostrando o caminho do razoável, seja o precursor da defesa de valores que hoje, para nós, são tão caros em nosso Estado Democrático de Direito, mas, além disso, talvez seja o primeiro a carregar em seu DNA o vício pela defesa da liberdade democrática.

Com a luz da palavra e depois de muito sangue derramado, temos o genuíno nascimento daquilo que hoje conhecemos como advocacia: substantivo feminino; pilar da democracia de qualquer Estado que se autodenomine como Estado de Direito.

Advocacia criminal: infantaria da classe advocatícia; a quem, segundo José Roberto Batochio, é reservado levar os primeiros golpes; exercício profissional de seres abnegados e intransigentes na defesa dos valores democráticos do Estado de Direito.

Advocacia criminal feminina: sinônimo de coragem; função desempenhada por aquelas que desatam nós, militantes de sua posição e história, que militam também (e principalmente) por reestabelecer a legalidade e liberdades perdidas de terceiros.

Somos advogadas criminalistas!

Eis nos aqui. Nós advogadas, por aqui termos chegado, temos que render todas as homenagens às heroínas que nos antecederam e abriram o caminho, e maiores homenagens ainda àquelas que acabaram ficando pelo caminho, por qualquer motivo, eis que nosso caminho não é de flores, é de pedras. Carregamos as mais diversas espécies de dificuldades, por conta de limitações que até então nos foram e são impostas, em uma bagagem histórica muito maior, que nos enche o peito de simbologia e sagacidade, mas que também, por vezes (muitas), nos cansa.

A sensação é de que estamos em permanente “estágio probatório”. Não é suficiente que sejamos boas, é suficiente que comprovemos nossa habilidade em desafios cotidianos que nos são impostos, em uma espécie de “jogo eterno”. “É advogada, com OAB e tudo? ”, “Seu marido sabe que você está na delegacia sozinha? ”, “Mas, e os seus filhos, ficam com quem? ”, “A Dra. está estressada? Tá de TPM? ”, “Quem é o advogado da causa? ”, “É Criminalista?! Com essa carinha? ”.

Além de toda a carga da advocacia – que não deixa de ser prazerosa, pois “eis nos aqui” –, misturada com a responsabilidade advinda da compreensão da nossa missão, precisamos desviar e pular o obstáculo da ignorância do machismo que, mesmo de forma mascarada, em sutis manifestações, nos atinge todos os dias.

Pedir o mínimo e o óbvio, para que possamos desempenhar com dignidade o nosso ofício, é quase que um “pedido de socorro”.

É necessário que saibamos nos postar diante de um “grito” intimidador de uma autoridade arbitrária que tenta “nos diminuir”, que, em verdade, quer mesmo que nos coloquemos “em nosso devido lugar”. Pois bem, muito obrigada, este é o nosso devido lugar: aqui e agora, na defesa intransigente do nosso direito de defesa.

Em verdade, esse contingente (cada vez maior) da força feminina na advocacia, reforça o compromisso histórico dos profissionais da advocacia criminal, a quem está afeta a defesa das liberdades individuais e, de um modo geral, a saga histórica e libertária da advocacia brasileira, que sempre foi resistente no arbítrio e jamais colaboracionista nos regimes de força.

Direito é desafio. A defesa é desafio. Sempre foi. Como salvaguarda de proteção de direitos e liberdades individuais, nossos parlamentares da Assembleia Nacional Constituinte optaram por denominá-la como “ampla”, já em situação de se encontrar a advocacia no sagrado solo do plenário do Tribunal do Júri, designaram a ela o predicado da “plena”.

Talvez seja esse o real motivo de ter sido, nossa Constituição Federal denominada “Cidadã”, pelo saudoso Ulisses Guimarães, a intocável ampla defesa. Dispomos de mecanismos em nosso direito interno e em pactos internacionais que a viabilizam e a asseguram todos os “meios e recursos a ela inerentes”.

Pela defesa, com a palavra, a advogada criminalista: em tempos de crise existencial do direito de defesa, emerge a voz da advocacia feminina na área penal. Com seus enfoques e força própria, se faz presente como uma extraordinária e resistente aliada, que a cada dia aumenta seu contingente.

Em verdade, todas devemos permanecer de mãos dadas em uma grande corrente de anteparo ao arbítrio. O ponto chave é: antes de exercer a defesa de nossos clientes, precisamos nos postar, prontamente, em defesa do nosso direito de defesa.

Muito prazer, somos a voz forte em defesa da democracia, somos advogadas criminalistas!

Fonte: Canal Ciências Criminais


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A inflação dos delitos econômicos e o direito de intervenção penal de Hassemer

Por: Monique Pena Kelles [1]

Com a tendência expansionista do âmbito de proteção do direito penal como um todo, pode-se dizer que os delitos contra a ordem econômica, do ramo que compõe o que se convencionou chamar de direito penal econômico, representam grande contribuição para o alargamento do direito penal.

O conceito de bem jurídico nesse ramo do direito ainda hoje é motivo de discordâncias entre os estudiosos do tema. Afinal, há um bem jurídico bem delimitado quando se fala em delitos de cunho econômico? Ou estamos diante de uma proteção pouco compreendida, sujeita a interpretações variadas?

Pensar o bem jurídico no direito penal ainda se faz muito relevante, merecendo espaço de destaque para que se forme base sólida na aplicação da lei penal, sem atropelar os pilares essenciais do direito penal e por consequência, do Estado de Direito.

Em conformidade com o pensamento de Hassemer, a tendência que se nota é a de flexibilização de conceitos sólidos e bem delimitados, em nome da segurança, ou, sensação desta. Ou seja,

o ideal antropocêntrico, particularizado, com referencial individual, voltado ao erigimento de um elemento crítico limitador da gravosa intromissão juridico-criminal nos direitos fundamentais do cidadão apenas em situações imprescindíveis para harmônica convivência social, passa assim a ser abandonada em nome de outro modelo, qual seja, de gerenciamento de riscos, isto é, de pretensa segurança social. [2]

O direito penal certamente não foi e não é formulado para dar conta de fenômenos dessa magnitude. Daí o esforço de parte da doutrina em se voltar para um direito penal que seja capaz de enfrentar os problemas aos quais se propõe, sem que a intervenção penal seja chamada a “resolver” conflitos de demasiada amplitude.

Quando se pensa o direito penal, com suas clássicas modalidades de pena e responsabilização, é o homem e sua responsabilidade individual que está no centro da punição. Já na proteção da chamada “ordem econômica”, está-se em direção a uma impossibilidade de responsabilização individual no plano da fático, afinal, a proteção dada pelo direito penal é indiscutivelmente supraindividual e de certa forma, abstrata.

Mesmo diante de um desafio de trazer concretude ao tema, o que não se pode fazer, é criar subdivisões no direito sempre que nos deparamos com desafios intrincados nas mais diversas matizes. Ao pensar o direito penal econômico, como próprio nome diz, trata-se de uma linha do direito penal, deve-se, portando, ser tratado com as garantias e postulados formulados pelo direito penal clássico.

Com isso não se está querendo dizer que não se reconheça os avanços da sociedade. Naturalmente a lei penal deve acompanhar o desenvolvimento da sociedade, e a ela se adaptar para protegê-la nos limites a que se propõe.

O que aqui se chama atenção, é para um grande entrave ao lidar com esse ramo de delitos econômicos, que tem como característica lidar com fatos potencialmente delituosos, que são frutos de ações ou omissões advindos de uma ordem de fatores e agentes muitas vezes difícil de se delimitar.

Além disso, por se tratar de delitos que potencialmente lesam um grupo grande de atividades, surgem os tipos penais que punem os que intervieram ilegalmente nas chamadas ordens econômica, financeira, tributária, fiscal etc.[3] Pensando num contexto prático, punir penalmente um agente que dê causa a delitos dessa natureza, pode ser da ordem do impossível, uma vez que se pretenda punir nos moldes dos princípios básicos do direito penal como individualização da pena; culpabilidade; imputação subjetiva e demais.

Assim, face a dificuldade de constatação linear para prosseguir com uma clássica persecução penal, faz-se necessário pensar afundo como o direito penal pode lidar com esses casos que, sem dúvida, serão cada vez mais frequentes e diversos.

Ou seja, não se está dizendo que o direito penal deva sair de cena por completo, e sim, que talvez a resposta até então oferecida, através das tradicionais medidas penais, não seja a melhor resposta.

Na prática, o que se nota em países como o Brasil é a administrativização do direito penal na seara econômica, o que é negativo, visto que consagradora de ilegítima utilização deste gravoso meio de intervenção do Estado.[4]

Com o reduzido espaço nesse texto, será possível apenas apresentar a chamada teoria da intervenção de Winfried Hassemer, elaborada no final do século passado, que em muito contribui para a construção de um direito penal mais racional e condizente com os problemas atuais no que diz respeito aos delitos econômicos.

O diagnóstico do autor é no sentido de que, considerando o período pós Nuremberg, o direito penal passa por reformas expansionista, onde é permitido a modificação de conceitos que formavam até então a base do direito penal.

No caso específico do bem jurídico, o problema parece se acentuar ao longo do tempo, afinal “no tienen como objeto de preteccion sólo bienes jurídicos universales sino asimismo que estos bienes jurídicos están formulados de forma especialmente vaga”. (1995, p. 32)

O autor tem a pessoa humana como o centro da proteção penal, assim, seria incompatível com as garantias penais em conjunto com os princípios e valores democráticos, buscar a criminalização indiscriminada de condutas que simbolizam uma ordem social, construindo tipos penais abertos, além de ter na coletividade sua principal proteção.

Em termos gerais, cada vez mais se busca na punição penal a resposta para lidarmos com conflitos dos mais diversos e complexos, em nome de uma suposta segurança. É o que se observa na tendência de formulação de tipos penais de perigo abstrato e bens jurídicos que não dialogam com as propostas do direito penal clássico.

Construindo uma ponte entre direito penal e direito administrativo sancionador, a teoria da intervenção propõe uma resposta aos delitos econômicos, com previsão de uma maior interdisciplinaridade entre os ramos do direito. Seria essa uma espécie de terceira via que se situa entre o direito penal clássico e o direito administrativo sancionador, extraindo de cada um, as respostas mais adequadas ao lidarmos com a ordem econômica e áreas afins.

O que torna essa teoria peculiar no próprio pensamento de Hassemer, é que há possibilidade de sanção aplicada à bens jurídicos supraindividuais, justamente por concordar que há uma dificuldade peculiar em se traçar uma responsabilidade penal individual em delitos econômicos.

O direito de intervenção se desenvolveria a partir de regras mercadológicas, com a possibilidade de um controle estatal mais sutil e preventivo (ante a possibilidade de adoção de regras de controle interno e externo escoradas no direito de polícia), passando ao largo das questões relativas à imputação e à culpabilidade e sem as amarras de um processo hermético como é o processo penal, garantindo-se ao acusado, a seu turno, a certeza da impossibilidade de submissão a penas privativas de liberdade.[5]

A nota marcante do direito de intervenção seria, pois, a adoção de um complexo sistema de regras de prevenção técnica, aglutinando em um único ramo do direito normas sancionadoras oriundas do direito administrativo, do direito civil (responsabilidade civil por danos), do direito tributário, do trabalho e do direito penal, ocupando-se de uma contenção prematura de perigos em lugar de uma resposta penal posterior à lesão do bem jurídico. [6]

Hassemer apresentou propostas também nessa temática, nos fornecendo substrato para desenvolver ainda mais sua teoria da intervenção. Cabe a nós estudarmos as melhores propostas deixadas por quem se dedicou exaustivamente ao tema, elaborando como poderia se dar sua aplicação no contexto atual.

Eis o cenário que se põe para os pensadores do direito penal constitucional daqui em diante. Formular propostas e estratégias no campo dogmático, bem como no processo legislativo e de política criminal, que possibilite a expansão do direito penal, mas, sempre na direção correta, além de manter as garantias individuais intactas, em plena conformidade com a limitação do poder punitivo e do fortalecimento de Estado de Direito.


[1] Advogada e mestranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais


[2] SOUZA, Luciano Anderson. 2012, P. 162

[3] DISSENHA, Rui Carlo. Bem Jurídico penal supraindividual e a obrigatoriedade de repressão. P. 295

[4] SOUZA, Luciano Anderson de. Direito Penal Econômico. Fundamentos, Limites e Alterantivas p. 169

[5] MENTOR, Diogo. Teoria da. Intervenção: a alternativa de Winfried Hassemer à inflação dos crimes econômicos. p. 86

[6] HASSEMER, Winfried. Perspectivas del derecho penal futuro. 1998, p.40

Referências

DISSENHA, Rui Carlo. Bem Jurídico penal supraindividual e a obrigatoriedade de repressão. Grupo de Pesquisa, Liberdades Públicas e Direito Econômico

HASSEMER, Winfried. Perspectivas del derecho penal futuro.  Revista Penal, ano 1. 1998,

MENTOR, Diogo. Teoria de intervenção: a alternativa de Winfried Hassemer à inflação dos crimes econômicos. Rio de Janeiro. Lumen Juris. 2016

SOUZA, Luciano Anderson de. Direito Penal Econômico – Fundamentos, Limites e Alternativas. São Paulo. Quartier Latin, 2012.


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ADVOCACIA, LAVAGEM DE CAPITAIS E A OMISSÃO DE COMUNICAR OPERAÇÕES SUSPEITAS AO COAF: CEGUEIRA DELIBERADA E A RESPONSABILIDADE PENAL DOS ADVOGADOS

Por: Gabriela Preturlon[1]

 

A relação entre advocacia e lavagem de capitais é alvo de intensa discussão doutrinária e desencadeia muito mais dissensos do que consensos. Um dos importantes pontos desta relação é o dever de reportar operações suspeitas de branqueamento por parte dos advogados – tendo em vista as alterações oriundas da Lei de Lavagem de Capitais – e o sigilo inerente à advocacia. Assim, em que pese a relevante contribuição doutrinária que já existe sobre tal controvérsia[2], nota-se que ainda são escassos os estudos quando desloca-se a análise da possibilidade de responsabilizar dolosamente os advogados que deixam de comunicar operações suspeitas de branqueamento aos órgãos responsáveis pois se colocam em um estado de cegueira deliberada.

Diante deste cenário, extrai-se o seguinte problema: o advogado que omite informações suspeitas de atos de branqueamento cometidos por seu cliente à autoridade competente - quando se encontra em um estado de cegueira deliberada – pode ser responsabilizado pelo delito de branqueamento de capitais?

Para responder com propriedade à indagação posta, faz-se necessário entender, em um primeiro momento, que o delito de lavagem de capitais consiste em um conjunto de atos cuja finalidade é acobertar a origem ilícita do capital, bens ou valores e reinseri-los na economia com falsa aparência de licitude, cuja tipicidade subjetiva é adstrita ao dolo direto, sendo inadmissível sequer a punibilidade por dolo eventual – ainda que esta não seja a posição jurisprudencial e doutrinária dominante[3].

Logo, sendo o branqueamento composto por variados atos sofisticados e complexos, diversas são as vezes em que os agentes se valem de serviços de profissionais que acabam contribuindo, ainda que involuntariamente, para a lavagem intentada[4]. Outrossim, para reprimir e prevenir o crescente sucesso na execução deste crime, surgiram diretivas internacionais cujo foco é a imposição aos sujeitos que operam nos setores definidos como sensíveis à lavagem de capitais deveres de informação e comunicação aos órgãos responsáveis quando se depararem com operações suspeitas.

O Brasil, buscando adequar-se a demanda internacional de combate à lavagem de dinheiro, com a reforma da Lei de Lavagem de Capitais, ampliou o rol de pessoas obrigadas a comunicar atos suspeitos de branqueamento a autoridade competente, trazendo deveres específicos administrativos para as pessoas que classifica como agentes sensíveis decorrentes de determinadas funções[5].

Embora não haja menção expressa aos advogados na lei, verificamos, que as pessoas obrigadas foram definidas, na verdade, a partir de serviços prestados. Primordialmente, a partir das atividades típicas da advocacia - serviços de consultoria, aconselhamento ou assistência, de qualquer natureza – concluímos que os advogados se encaixam nesta previsão[6].

A relação entre lavagem de capitais e advocacia é agudizada pelos recorrentes escândalos que são muito explorados pela mídia como possíveis atos de lavagem de capitais e, em que pese a superficialidade e a imprecisão do debate travado pela opinião pública, a voz quase uníssona da sociedade clama – ao mesmo tempo – pelo sigilo profissional do advogado no exercício da advocacia e por maiores deveres preventivos por parte destes profissionais no que tange a lavagem de capitais. Uma equação de impossível cálculo.

Portanto, deve-se delimitar quais os advogados são obrigados a cumprir com o dever preventivo de comunicar às autoridades de atividades suspeitas de lavagem de capitais, isto é, quais advogados podem ser considerados garantidores – já que estes são os sujeitos ativos dos delitos comissivos por omissão – para, somente então, examinar se estes profissionais podem ser responsabilizados quando presente o estado de cegueira deliberada.

A análise do dever de comunicar as autoridades competentes imposto aos advogados, a partir da possibilidade, em abstrato, de participação omissiva e comissiva nos delitos previstos pelo art.1º, da Lei de Lavagem de Capitais, envolve também a análise da extensão do dever de sigilo profissional, norma fundante da advocacia. Isto posto, a partir da categorização dos serviços prestados, constatamos que não são todos os advogados que estão incluídos nas obrigações da Lei de Lavagem, mas tão somente aqueles que prestam serviços extrajurídicos e extrapolam os previstos pelo EAOAB.

A um porque entendemos que o sigilo profissional deve ser analisado de modo amplo, a partir de uma análise extensiva da Lei, abrangendo todas as atividades prestadas tipicamente pelos advogados que atuam dentro do limite da norma penal já que este direito/dever é essencial ao exercício da profissão[7], inclusive às atividades de assessoria e consultora jurídicas nas operações mencionadas no parágrafo único, inc. XIV, art. 9.º da Lei de Lavagem e não apenas aos serviços prestados pelo advogado ligados ao contencioso[8]. Vale destacar que a exceção, aqui, recai nas atividades de consultorias atinentes a questão não jurídica[9].

A dois pois inferimos que o sigilo profissional deve prevalecer em face do dever de comunicação, em razão do princípio da especialidade, já que o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil tem a mesma hierarquia que a Lei de Lavagem de Dinheiro e, ainda que a Lei de Lavagem de Dinheiro, em seu art. 9.º, estabeleça um rol de obrigados a prestar informações de atividades suspeitas, a advocacia é regida por lei especial.[10]

Ademais, a lei de branqueamento não é expressa no que diz respeito ao dever do advogado em comunicar operações suspeitas, sendo este tratado apenas genericamente[11], de modo que o sigilo, a partir do critério da especialidade, afasta a obrigação genérica de comunicação do branqueamento.[12]

Não há, pois, qualquer obrigação para que o advogado, diante de uma atividade suspeita de lavagem, comunique os órgãos competentes quando estiver no exercício dos atos típicos da sua profissão, pouco importando se estes se dão no contencioso ou consultivo, já que todas as atividades de advocacia são essenciais à administração da justiça não havendo como desvincular uma consultoria de um potencial litígio. Vê-se que os deveres administrativos previstos pela Lei de Lavagem de Capitais apenas prevalecem quando o profissional presta consultoria em questão não jurídica ou em atividade distinta daquelas descritas no art. 1.º do EOAB, atuando, por exemplo, como administrador de bens, já que essas atividades extrapolam aquelas previstas no EAOAB[13].

Não obstante, superada a questão dos deveres administrativos e da impossibilidade de obrigar os advogados a cumprir os deveres de prevenção à lavagem de capitais tendo em vista a necessidade de preservação do sigilo profissional quando exercem atividades descritas no art. 1º da Lei 8.906/1995, ainda assim existem situações em que suas condutas, que embora não estejam sujeitas as medidas de controle podem, eventualmente, contribuir com a prática de lavagem de capitais, sem serem, a priori, puníveis, já que dotadas normalidade e, sobretudo, aceitáveis socialmente[14]. Neste viés, indaga-se, quando a atividade profissional que contribui com atos de branqueamento de capitais não pode ser criminalizada?

As construções doutrinárias[15] apontam para o âmbito da teoria do tipo[16] para resolver a questão da punibilidade ou não dessas ações. Mais a mais, a resposta  - tendo em vista primordialmente a obra de Greco - reside na tipicidade objetiva, que fixa os limites do permitido e proibido, a partir da teoria das ações neutras[17]. Sendo assim, não são puníveis aquelas condutas que criam um risco não juridicamente reprovado ao bem jurídico, sendo que este risco é analisado a partir da ponderação de interesses e da fungibilidade da prestação advocatícia, analisada, em suma, a partir da observação das normas de cuidado delineadoras das atividades da advocacia.

Entretanto, quando a conduta perde a neutralidade e supera o âmbito do tipo objetivo, reconhecemos que é o elemento subjetivo do tipo que deve ser analisado. Dito tudo isto, devemos verificar, portanto, a eventual posição de garantidor dos advogados bem como os elementos subjetivos do tipo sob o recorte do tipo comissivo por omissão.

Para que exista o dever de garantidor – isto é, a quem se impõe o dever de agir para evitar os resultados – dos advogados, o entendimento hodierno da doutrina e da jurisprudência é de que alguns elementos devem coexistir. São eles: o elemento formal[18] – neste caso, a ingerência, sendo que as regras administrativas não criam, sozinhas, o dever de garantia, mas apenas delimitam o dever de cuidado e denuncia onde o bem jurídico está mais vulnerável  – e o elemento material [19]– dever de vigilância de uma fonte de perigo. Ressalta-se que o dever formal se atrela diretamente com os riscos criados pelo próprio agente, de sorte que nos casos de ingerência a existência de lei que obrigue o agente a evitar o resultado não é relevante, já que a criação do risco exige um ato de controle[20].

É nesse contexto que concluímos que a Lei – elemento formal - não é suficiente para limitar o dever de evitar o resultado e fixar a posição de garante. O dever jurídico fixado a partir do critério formal deve ser complementado a partir de um conteúdo material, que é “a assunção fática de uma fonte de perigo ou da proteção de um bem jurídico”[21].

Como conclusão preliminar ao ponto que nos interessa, temos, portanto, que os advogados exercem atividades típicas da advocacia não estão sujeitos aos deveres impostos pela Lei de Lavagem de Capitais, pois ausente o requisito formal necessário[22]. Vê-se que o dever de garante vai além disso. Isto porque a lei administrativa, por si só, não transforma o sujeito obrigado em garante contra o branqueamento, mas sim, denuncia onde o bem jurídico está mais vulnerável, definindo os espaços de risco e delimitando o dolo e imprudência destes sujeitos, que é indicador da responsabilidade do garante[23].

Neste contexto, a simples infração do dever administrativo de informação não gera responsabilidade penal em comissão por omissão, mas sim, o domínio do sujeito sobre a situação de perigo e a gravidade equivalente da conduta típica do omitente a de seu cliente[24]. Portanto, o advogado, que atuou fora dos limites das atividades dispostas no EAOAB, criou o risco do resultado, devendo observar todas as normas de cuidado para manter este risco dentro do permitido. Em conclusão, o garante deve ter sempre a possibilidade e o dever de agir para evitar o resultado, sendo que no caso dos advogados este dever não depende de determinação extrapenal modo que os garantes estão, na realidade, obrigados a não criar uma situação que favoreça a prática delitiva de terceiros ou colaborar com a prática ilícita, sendo que a omissão deve ter equivalência à ação típica[25].

Como interpretação assumida, temos que são as disposições administrativas da lei de lavagem e os regramentos administrativos, como as resoluções do COAF, estabelecem as regras de cuidado e delimitam, por via de consequência, “os contornos das condutas imprudentes e dolosas”[26]. Isto posto, o dever de garante dos advogados por ingerência depende do elemento subjetivo[27], razão pela qual se faz necessário entendê-lo para que na sequência possamos resolver o problema que este trabalho se propõe.

É precisamente neste ponto que os entornos do elemento subjetivo dos crimes comissivos por omissão, mais especificamente da determinação deste na posição do dever de garante, ganham importância, até mesmo porque a prova do dolo apresenta verdadeiro desafio aos parâmetros de imputação do Direito Penal Clássico, tendo em vista a dificuldade de prova deste elemento[28].

Exatamente por isso que a doutrina da cegueira deliberada[29] - hipóteses de desconhecimento provocado, consciente, produto de uma decisão do sujeito no sentido de não obter acesso a uma informação que lhe é factível - passou a ser invocada como possível fundamento para a imputação subjetiva do delito, admitindo a imputação subjetiva no tipo penal de lavagem de capitais notadamente nos casos em que o agente possuía elevada consciência de que os bens ou recursos envolvidos poderiam advir de infração penal antecedente e, mesmo assim, agiu de modo indiferente a esse conhecimento[30].

Antes de adentrarmos, contudo, no ponto nevrálgico da questão, deve-se entender o elemento subjetivo do delito de branqueamento a partir da teoria do dolo normativo, sendo a capacidade de ação (dever de garante) elemento objetivo ao passo que o conhecimento da situação típica (posição de garante), reside no elemento subjetivo.

Na hipótese específica do delito em estudo, levando em consideração os conceitos assentados alhures e coadunando as ideias apresentadas por Pardini[31], Estellita[32] , Bottini[33] e Tavares[34], o dolo restaria caracterizado – e o profissional poderia então ser responsabilizado pelo delito de branqueamento por comissão por omissão quando verificados os demais requisitos - em síntese, quando: i) tem conhecimento da posição de garantidor – a qual não advém simplesmente da lei extrapenal e não é determinante para colocar o agente nesta posição a partir da relação fática; ii) se produziu com alguma conduta prévia, o risco do resultado, deve saber que sua atuação era arriscada e, caso tenha se comprometido faticamente a exercer a proteção, deve ter conhecimento dessa assunção; iii) existe a comprovação de que o profissional decidiu não executar a ação possível e necessária, mas tem capacidade de agir de acordo com a norma; iv) identifica que a omissão mantém um risco não permitido ou cria um[35]; v) percebe que a ação esperada evitaria um resultado típico com alguma certeza e; vi) verifica que o resultado está dentro do âmbito de abrangência da norma de cuidado violada.

Caso mencionados elementos não estiverem presentes, inexistirá delimito comissivo por omissão doloso eis que ausente o elemento subjetivo essencial à tipicidade do crime de lavagem de capitais[36]. Em contrapartida, caso se fizerem presentes tais requisitos, haverá punição dolosa por comissão por omissão e é aqui que reside, portanto, o problema principal, fazendo-se necessário avaliar a possibilidade de punir o profissional que coloca-se deliberadamente em estado de desconhecimento quanto às elementares do tipo que reclama sua intervenção, destarte, o dever de informar, somada à dificuldade da imputação e do elemento probatório do dolo nos crimes de lavagem de capitais, conforme já asseverado anteriormente.

Com efeito, percebemos que estamos diante de casos, na realidade, de dolo e de erro de tipo. Desta feita, o que deve ser verificado é em qual âmbito de imputação subjetiva, isto é,  dolo ou culpa (âmbito do ser), o agente que deliberadamente se cega quanto às elementares do tipo (âmbito do dever ser) enquadra-se, de modo que, conforme afirma Lucchesi “a identificação do dolo nas situações de cegueira deliberada depende menos da definição de um conceito de cegueira deliberada do que do conceito de dolo adotado[37]”.

Com isso, ainda que a doutrina da ignorância intencionada não seja equivalente ao dolo[38], muitas vezes há, sim, a possibilidade de responsabilização a título de dolo quando presente o estado de cegueira deliberada por parte dos advogados considerados garantidores. A solução é encontrada justamente na noção de dolo normativo.

Nota-se que para que a imputação dolosa nestes casos seja possível, deve-se analisar, mais precisamente, o objeto e os elementos do dolo normativo. Feitas todas essas considerações, reconhecemos que a solução proposta é a previsibilidade da ocorrência do fato típico, independentemente do conhecimento psicológico da situação. Isto porque, o conhecimento da situação típica é objeto do dolo, considerado a partir do conceito normativo.

Em síntese: trabalha-se, aqui, com a hipótese de que os advogados que prestam assessoria e consultoria não jurídica sujeitam-se aos deveres previstos na Lei 12.683/2012 e possuem, portanto, o dever de garante por ingerência na modalidade de vigilância da fonte do perigo. Desta maneira, quando aferido o estado de cegueira deliberada podem os profissionais forenses ser responsabilizados dolosamente desde que constatado que possuíam previsibilidade objetiva do resultado em momento anterior a sua omissão, analisada caso a caso.

 


Referências bibliográficas

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[1]  Advogada. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst). Contato: gabrielapreturlon@hotmail.com.


 

[2] ESTELLITA, Heloisa. (coord.). Exercício da advocacia e lavagem de capitais. São Paulo: Editora FGV, 2016.

[3] BOTTINI, Pierpaolo Cruz; BADARÓ, Gustavo Henrique. Lavagem de dinheiro: Aspectos penais e processuais penais, 4.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.p.27.

[4] SOUZA, Alvaro Augusto Macedo Vasques Orione. Estudo de casos acerca da advocacia consultiva e do recebimento de honorários maculados. In: ESTELLITA, Heloisa. (coord.). Op.cit, p.202.

[5] OLIVEIRA, Ana Carolina Carlos de. Lavagem de dinheiro: responsabilidade pela omissão de informação. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019.p.25.

[6] FESTINO, Bianco de Britto. A situação nos países-membros e associados ao Mercosul. In: ESTELLITA, Heloisa. (coord.). Op.cit, p.56.

[7] LÔBO, Paulo. Sigilo profissional é mais  dever que direito do advogado. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-mai-09/paulo-lobo-sigilo-profissional-nao-privilegio-advogado> Acesso em: 18 de julho de 2020.

[8] BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Op.cit, p.194.

[9] ESTELLITA, Heloisa. Advocacia e lavagem de capitais: considerações sobre a conveniência da autorregulação. In: ESTELLITA, Heloisa (coord.). Op.cit, p. 22.

[10] LÔBO, Paulo. Sigilo profissional é mais  dever que direito do advogado. Op.Cit.

[11] BOTTINI, Pierpaolo. Lavagem de dinheiro: no que consiste o ocultar necessário ao crime?. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2015-set-22/direito-defesa-lavagem-dinheiro-consiste-ocultar-necessario-crime> Acesso em 02 de junho de 2020.

[12] CALLEGARI, André Luis; WEBER, Ariel Barazzetti. Lavagem de Dinheiro. 2 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2017.p.217.

[13] ESTELLITA, Heloisa. Advocacia e lavagem de capitais: considerações sobre a conveniência da autorregulação. In: ESTELLITA, Heloisa (coord.). Op.cit, p. 22.

[14] GRECO, Luís. Op.cit.p.107-109.

[15] BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Op.cit., p.197-199 e GRECO, Luís. Cumplicidade através das ações neutras: a imputação objetiva na participação. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.p.118.

[16] Destaca-se que no âmbito da tipicidade, as teorias dividem-se entre resolução do problema no tipo objetivo, subjetivo e, ainda, propostas – como a de Roxin Cf. ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Tomo II. Madrid: Thomson Civitas, 2014.p.287- que defendem a resolução mista. Mas, no presente trabalho, iremos nos restringir a resolução da punibilidade de tais ações a partir do tipo objetivo já que relevante setor da doutrina formula propostas neste âmbito.

[17] GRECO, Luís. Op.cit..118.

[18] Sistematizado por Feuerbach. Cf. TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2012.Op.cit.. p. 299 apud FEUERBACH, Anselm Ritter von. Lehrbuch des gemeinen in Deutschland gultigen peinlichen Rechts, 1803. p. 24.

[19] Baseada primordialmente na obra de Kaufmann. Cf. AUFMANN, Armin. Dogmática de los delitos de omisión. Trad. 2ª edição alemã por Joaquin Cuello Contreras e José Luis Serrano González de Murillo. Madrid: Marcial Pons,2006,

[20] PARDINI, Lucas. Imputação dolosa do crime omissivo impróprio ao empresário em cegueira deliberada. São Paulo: Marcial Pons, 2019.
p.87. e TAVARES, Juarez. Op.cit.p. 316

[21]ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresas por omissão: estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. p.166.

[22]TANGERINO, Davi de Paiva Costa; MENDES, Caio César Tomioto. Advocacia e ações neutras no crime de lavagem de dinheiro. Advocacia e ações neutras no crime de lavagem de dinheiro, Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. vol. 159/2019, ed. 2019, p. 177 - 203, setembro 2019.p.9-11.

[23] SCHUNEMANN, Bernd. El llamado delito de omisión impropia o la comisión por omisión. In: GARCÍA VALDÉS, Carlos; et alii. Estudios penales em homenaje a Enrique Gimbernat. Madrid: Edisofer, 2008, p., 1613.

[24] OLIVEIRA, Ana Carolina Carlos de. Op.cit., p.112.

[25] Id.p. 112-116.

[26] OLIVEIRA, Ana Carolina Carlos de. Op. cit. p.187.

[27] Nunca é demais rememorar que estamos a tratar do estudo do delito de lavagem de capitais, o qual, no ordenamento jurídico brasileiro não é punível na forma culposa, conforme já abordado anteriormente, razão pela qual a análise deste trabalho está adstrita ao dolo.  Importante destacar, ainda, que o Supremo Tribunal Federal entende que considerar o dolo eventual nos delitos de branqueamento de capitais seria ampliar o papel de garantidor do profissional forense em todos os serviços que presta.

[28] MORO, Sérgio Fernando. Crime de lavagem de dinheiro. São Paulo: Saraiva, 2010.p.70.

[29] A doutrina da cegueira deliberada, que ronda o espectro da imputação subjetiva ,foi importada sem maiores ressalvas pela jurisprudência brasileira, sofrendo duras – e necessárias – críticas por parte da doutrina, que apontou a perigosa punição de uma conduta culposa a título de dolo e a consequente aproximação da responsabilidade penal objetiva, o que é vedado pelo ordenamento penal pátrio.

[30] Embora hodiernamente –– diga-se, quiçá, até há algumas décadas -  a doutrina da cegueira deliberada esteja sendo utilizada como novo tipo de imputação subjetiva, conclui-se que sua utilização é desnecessária ante sua incompatibilidade com o Direito Penal continental já que nos termos em que fixada no common law é inútil para o Direito brasileiro na medida em que buscou resolver problemas inexistentes no contexto jurídico-penal nacional e expande o conceito legal de dolo. Cf. LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a culpa como dolo. São Paulo: Marcial Pons, 2018.p.153-154.

[31] PARDINI, Lucas. Op. cit. p. 177.

[32] ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresas por omissão. Op.cit., p.189.

[33] BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Op.cit.p.143.

[34] JUAREZ, Tavares. Op.cit. p. 397.

[35] A omissão por ingerência culposa – que é, diga-se, atípica nos delitos de branqueamento - resta caracterizada, em síntese, quando: i) o agente transforma, por omissão, o risco permitido em um não permitido; ii) o resultado é desdobramento deste risco não permitido; e iii) o resultado está dentro da abrangência da norma violada. Cf. BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Op.cit.p.251.

[36] Restando lugar apenas à configuração culposa – a qual, ressalta-se, não é admitida nos delitos de branqueamento

[37] LUCCHESI, Guilherme Brenner. Op. cit. p. 163,

[38] CALLEGARI, André Luis; WEBER, Ariel Barazzetti. Op. Cit., p. 28. e LUCCHESI, Guilherme Brenner. Op cit. p.153-154


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É PRECISO SABER A VERDADE DA MENTIRA: A TORTURA DA PÓS MODERNIDADE. ERA LAVA JATO.

Por Pablo Domingues Ferreira de Castro[1]

 

Em 1978 John H. Langbeint escreveu um artigo intitulado “Torture and Plea Bargaining” publicado na  The University of Chicago Law Review[2], no qual explicou, dentre tantas outras diversas luzes que o ensaio lançou sobre a origem de fenômenos repugnantes que adentraram na maioria do sistemas jurídicos, sobretudo ocidental (e aí inclua-se o próprio Brasil), as razões pelas quais o Direito Penal passou a permitir mecanismos de tortura para se obter, em determinadas situações, as provas que interessavam à persecução criminal.

 

A origem? Idade medieval. Entre os Séculos XIII e Séculos XVIII a Europa e, notadamente, a Itália, viu-se envolvida em um sistema penal capaz de tolerar a tortura física como meio de obtenção de provas, verificação e confirmação de fatos indiciários de delitos.

 

Mas, o autor registra em seu artigo que “Os juristas europeus conceberam o que os advogados anglo-americanos hoje chamariam de regra de causa provável, concebida para assegurar que apenas pessoas com grande probabilidade de serem culpadas seriam examinadas sob tortura. Assim, a tortura era permitida apenas quando uma chamada "meia prova" tivesse sido estabelecida contra o suspeito.”[3]

 

Ou seja, existia um “critério” para se torturar (como se algum critério fosse legitimamente justificável).

 

Traçando-se um paralelo à origem da permissão, sob regras estatais, da tortura como meio de obtenção de prova, John H. Langbeint comparou os métodos utilizados, há séculos, com o que foi implementado no sistema americano, por meio do Plea Bargaining e a possibilidade do Ministério Público negociar uma pena diretamente com um suspeito, em troca de confissões e informações outras capazes de elucidar crimes.

 

A causa justificante que legitimou legalmente a tortura na Idade Medieval com aquilo que se realizou nos Estados Unidos era a mesma: Criou-se, cada um em sua época, um sistema penal com garantias ao investigado/acusado muito sólidas, de modo que o processo penal ficou, de certo modo, obsoleto, pois não se conseguia, com tantas garantias possíveis e aplicáveis, obter a condenação de um indivíduo que se acreditava ser culpado.

 

Portanto, em ambos os casos sobrevieram subterfúgios: lá (na idade medieval) optou-se pela tortura física e acolá (nos Estados Unidos) pelo Plea Bargaining. Irmãos gêmeos separados por um hiato histórico significante, porém, com métodos que conciliam da mesma dinâmica: retira-se o livre arbítrio no direito, se assim entender o investigado/acusado, de confessar, seja, um primeiro, através da coerção física, seja, um segundo, por meio de uma coerção psicológica. Abomináveis, ambas.

 

Especialmente no tocante aos Estados Unidos, a crítica do autor, cinge-se justamente no ponto em que não haveria voluntariedade nestas confissões, feitas, em boa parte das situações, pelo temor de se responder a um processo criminal e sofrer as consequências de uma futura pena de prisão. A barganha é feita num ambiente de medo e insegurança daqueles que, inclusive, estão assistidos por uma defesa técnica. Afinal, quem arriscaria pôr sua própria liberdade em risco apostando numa possibilidade incerta de absolvição?

 

É neste contexto que se enquadra as recentes revelações advindas com a operação Spoofing, dentre as quais e especialmente, um diálogo estabelecido no chat entre os Procuradores da autoproclamada entidade Lava Jato no qual, Deltan Dallagnol, reconhece que “Nunca uma transferência foi tão eficiente, rsrsrs" (Veja-se a matéria aqui).

 

A fala foi decotada num diálogo em que se abordava a possível transferência de Aldemir Bendine, ex-presidente da Petrobras e do Banco do Brasil, para outra ala prisional mais precária, o que teria lhe motivado a aceitar uma colaboração premiada.

 

Eis, portanto, o problema que se impõe com este artigo: ao se confirmar o conteúdo das conversas encartas na operação Spoofing, estariam os procuradores da Lava Jato praticando métodos análogos àqueles de tortura na época medieval? A mesma comparação feita por John H. Langbeint com o direito americano seria aplicável ao direito brasileiro?

 

A resposta, irremediavelmente, é sim. Tortura da pós-modernidade, à lá século XXI. E as consequências disso precisam ser enfrentadas e a elas atribuídas as implicações jurídicas próprias: a ilegalidade das provas obtidas a partir de uma colaboração premiada feitas nesses moldes.

 

A voluntariedade é requisito de validade do acordo de colaboração premiada (art. 4º, §7º, inciso IV da lei 12.850/2013), sem a qual é dever do Poder Judiciário reconhecer a sua ilegalidade e nulidade do próprio pacto, conforme premissas estabelecidas no julgamento do HC 142205 PR.[4]

 

A tortura também pode ser compreendida como um tormento de espírito e não apenas uma dor física. Incutir em alguém, que já se encontra preso (e, portanto, já fragilizado com as agruras próprias de estar submetido a uma investigação ou processo penal) a possibilidade de um cenário ainda pior em termos de condições carcerárias, é autêntica e genuína interferência nefasta e cruel no processo de formação de vontade. Ou, em outros termos, pode-se falar (e por que não?) na própria exumação do direito de ter vontade?

 

Quem colabora porque teme ver ofendida sua própria integridade física não é um colaborador e, sim, um refém, diante do poder massacrante de um Estado Policialesco que, em pleno Século XXI, utiliza métodos aprimorados, modernos e sofisticados de obter uma versão de fatos que interessem à acusação, ainda que estes fatos não representem a verdade. Esta última, ao que parece, menos importante quando o que se precisa é uma coerência acusatória.

 

Sendo mais claro: o que se precisa é que versões de “colaboradores” distintos, ainda que irreais, sejam capazes de se confirmarem. Afinal, “Dizer a verdade”, em sociedade, nada mais é do que respeitar a mentira sancionada pelo todo[5]

 

Novamente: desde que a mentira seja orquestrada e confirmada por outros “colaborares”, será, aos olhos daqueles que querem se livrar do ônus probatório, válida. Para Schopenhauer a mentira até pode ser utilizada, desde que não acarrete injustiça. A contrário senso, se a mentira gera injustiça ela não poderia ser utilizada. [6]

 

Voltemos ao caso: há aviltante injustiça. “Colaboração” que tem como consequência uma autoincriminação e uma incriminação de terceiros obtidas por ameaça velada (ou até mesmo direta) é nula, falta-lhe, como bem pontuado no precedente citado do STF, o requisito básico (e óbvio) da voluntariedade, além de prejudicar terceiros, que resolveram não partilhar de uma trama falaciosa. E mais: se por um lado falta a vontade livre e consciente de quem confessou (sem verdadeiramente querer) um fato, por outro sobra má fé e maldade de quem lhe impôs a única alternativa de produzir provas contra si mesmo.

 

Os escritos de John H. Langbeint, de 43 (quarenta e três) anos atrás, são absolutamente atuais e descortinam uma realidade (se, e se apenas se, comprovados forem os conteúdos dos diálogos revelados – que nunca foram negados) de acordos de colaboração e delação premiados ilegais e todos os atos deles decorrentes igualmente devem ser nulificados.

 

A propósito, nos dizeres de Celso de Mello (RE 251.445-GO- STF) “A cláusula constitucional do due process of law encontra, no dogma da inadmissibilidade processual das provas ilícitas, uma de suas mais expressivas projeções concretizadoras, pois o réu tem o direito de não ser denunciado, de não ser processado e de não ser condenado com apoio em elementos probatórios obtidos ou produzidos de forma incompatível com os limites ético-jurídicos que restringem a atuação do Estado em sede de persecução penal

 

Veja-se que neste Julgado o STF impõe limites até mesmo éticos na obtenção da prova, cuja inobservância tem como corolário lógico a sua correlata ilicitude. Sob qualquer ângulo que se analise, o constrangimento psicológico para extrair-se uma “confissão” é ilegal.

 

Não se quer defender (e jamais será esta a pretensão) que estes fatos sejam utilizados criminalmente contra aqueles que engendraram as colaborações feitas em modos não democráticos (a rigor, a prova foi obtida por meio ilícito, por meio de ação ilegal).

 

Todavia, a prova, ainda que ilícita, deverá servir em benefício daqueles que foram acusados e até condenados, para comprovarem sua inocência. Este é um desdobramento que vem desde a interpretação dada a partir do precedente no Julgado RE 402.717 PR do STF[7]

 

Reconheça-se a ilegalidade dessas colaborações e a nulidade das provas que delas defluírem. É medida de rigor e de manutenção de um Estado Democrático de Direito. As bases são constitucionais.

 

Não se pode praticar um spoofing no processo ou, no bom português tupiniquim, intrujar as regras do jogo, com as garantias constitucionais e materiais próprias de quem está sujeito à jurisdição penal para se alcançar aquilo que se conseguiria pelas vias processuais próprias e legais. A eventual “dificuldade” de se obter eventuais provas não autoriza a vulneração de direitos constitucionais (inclusive de presunção de inocência; de ser submetido a uma acusação balizada por um devido processo legal, com ampla defesa e contraditório).

 

Também não há de se valer mão de um argumento de eficientismo, suprimindo as tão caras garantias penais, como se a condenação criminal de alguém fosse um fim em si mesmo. A propósito, a absolvição também deve ser um resultado a ser considerado na persecução penal. Nem todos são inocente, mas nem todos são culpados.

 

Que o devido processo legal e um sistema acusatório bem definidos prevaleçam, porque a mentira contada com coerência pode se tornar verdade. E já não se sabe mais quem é o criminoso e o inocente.


[1] Advogado criminalista, doutorando pelo IDP(DF), mestre pela UFBA, especialista pelo IBCCRIM, pós-graduado pela UFBA, professor de cursos de graduação (Unifacs) pós-graduação, coordenador adjunto da pós-graduação em Ciências Criminais da Faculdade Baiana de Direito


[2] https://www.jstor.org/stable/1599287?seq=1

[3] The European jurists devised what Anglo- American lawyers would today call a rule of probable cause, de-signed to assure that only persons highly likely to be guilty would be examined under torture. Thus, torture was permitted only when a so-called "half proof' had been established against the suspect (fls. 5). https://www.jstor.org/stable/1599287?seq=1

 

[4] Penal e Processual Penal. 2. Colaboração premiada, admissibilidade e impugnação por corréus delatados. Provas produzidas em razão do acordo e utilizadas no caso concreto. Abusos da acusação e fragilização da confiabilidade. Nulidade do acordo e inutilização de declarações dos delatores. 3. Possibilidade de impugnação do acordo de colaboração premiada por terceiros delatados. Além de caracterizar negócio jurídico entre as partes, o acordo de colaboração premiada é meio de obtenção de provas, de investigação, visando à melhor persecução penal de coimputados e de organizações criminosas. Potencial impacto à esfera de direitos de corréus delatados, quando produzidas provas ao caso concreto. Necessidade de controle e limitação a eventuais cláusulas ilegais e benefícios abusivos. Precedente desta Segunda Turma: HC 151.605 (de minha relatoria, j. 20.3.2018). 4. Nulidade do acordo de colaboração premiada e ilicitude das declarações dos colaboradores. Necessidade de respeito à legalidade. Controle judicial sobre os mecanismos negociais no processo penal. Limites ao poder punitivo estatal. Precedente: “O acordo de colaboração homologado como regular, voluntário e legal deverá, em regra, produzir seus efeitos em face do cumprimento dos deveres assumidos pela colaboração, possibilitando ao órgão colegiado a análise do parágrafo 4º do artigo 966 do Código de Processo Civil” (STF, QO na PET 7.074, Tribunal Pleno, rel. Min. Edson Fachin, j. 29.6.2017) 5. Como orientação prospectiva ou até um apelo ao legislador, deve-se assentar a obrigatoriedade de registro audiovisual de todos os atos de colaboração premiada, inclusive negociações e depoimentos prévios à homologação. Interpretação do art. 4º, § 13, Lei 12.850/13. Nova redação dada pela Lei 13.964/19. 6. Situação do colaborador diante da nulidade do acordo. Tendo em vista que a anulação do acordo de colaboração aqui em análise foi ocasionada por atuação abusiva da acusação, penso que os benefícios assegurados aos colaboradores devem ser mantidos, em prol da segurança jurídica e da previsibilidade dos mecanismos negociais no processo penal brasileiro. Precedente: direito subjetivo ao benefício se cumpridos os termos do acordo (STF, HC 127.483/PR, Plenário, rel. Min. Dias Toffolli, j. 27.8.2015) e possibilidade de concessão do benefício de ofício pelo julgador, ainda que sem prévia homologação do acordo (RE-AgR 1.103.435, Segunda Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 17.5.2019). 7. Dispositivo. Ordem de habeas corpus concedida de ofício para declarar a nulidade do acordo de colaboração premiada e reconhecer a ilicitude das declarações incriminatórias prestadas pelos delatores, nos termos do voto. (STF - HC: 142205 PR 0003138-90.2017.1.00.0000, Relator: GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 25/08/2020, Segunda Turma, Data de Publicação: 01/10/2020)

 

[5] FONSECA, Thelma Lessa da. Impulso à verdade e impulso artístico: uma leitura de Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. Cadernos de Filosofia Alemã. nº 12 – p. 29-50 – jul.-dez. 2008. Acesso: file:///Users/pablocastro/Downloads/64796-Texto%20do%20artigo-85783-1-10-20131118%20(1).pdf

 

[6] FIGUEIREDO, Nara Miranda de. Sobre um suposto direito de mentir: um paralelo entre Kant, Schopenhauer e Constant, e alguns conceitos schopenhauerianos. Revista Urutágua - revista acadêmica multidisciplinar Centro de Estudos Sobre Intolerância - Maurício Tragtenberg. Publicada em 03.12.04 - Última atualização: 19 agosto, 2005. Acesso em: http://www.urutagua.uem.br/007/07figueiredo.htm

 

[7] PROVA. Criminal. Conversa telefônica. Gravação clandestina, feita por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro. Juntada da transcrição em inquérito policial, onde o interlocutor requerente era investigado ou tido por suspeito. Admissibilidade. Fonte lícita de prova. Inexistência de interceptação, objeto de vedação constitucional. Ausência de causa legal de sigilo ou de reserva da conversação. Meio, ademais, de prova da alegada inocência de quem a gravou. Improvimento ao recurso. Inexistência de ofensa ao art. 5º, incs. X, XII e LVI, da CF. Precedentes. Como gravação meramente clandestina, que se não confunde com interceptação, objeto de vedação constitucional, é lícita a prova consistente no teor de gravação de conversa telefônica realizada por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro, se não há causa legal específica de sigilo nem de reserva da conversação, sobretudo quando se predestine a fazer prova, em juízo ou inquérito, a favor de quem a gravou. (STF - RE: 402717 PR, Relator: CEZAR PELUSO, Data de Julgamento: 02/12/2008, Segunda Turma, Data de Publicação: DJe-030 DIVULG 12-02-2009 PUBLIC 13-02-2009 EMENT VOL-02348-04 PP-00650)


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