O Processo Penal sob a Racionalidade Neoliberal
Thaise Mattar Assad[1]
O fenômeno da globalização ou mundialização, tendentes a um pensamento único, apresenta-se como uma realidade rompendo com as fronteiras, principalmente, em prol das relações comerciais, viabilizando o surgimento do radicalismo, fruto do (neo) liberalismo, que se presta a negar a própria essência do pensamento liberal, seus princípios e postulados, para agora, então, mirar o inimigo a ser combatido, que era e continua sendo o excesso de igualdade que permeia o estado de bem-estar social[2].
Toda essa perspectiva, de forma inevitável, ao tratar a sociedade, tal como, uma ilusória sociedade deliberadamente planejada pela razão utilitarista, como se fosse um sujeito hegemônico (grande sociedade), acaba por eliminar totalmente todas as individualidades dos sujeitos integrantes e, consequentemente, toda pluralidade cultural[3].
Com base na doutrina de Friedrich Hayek[4], critica-se o modelo de democracia por ele entendida como ilimitada, que esteja fora dos preceitos por ele estabelecidos para liberdade individual (percebam o ataque à ideia democrática de igualdade). Critica a razão, ao denominá-la como arrogante por abrir mão da abstração para o domínio do processo social[5].
Surge, então, a ideia de Estado mínimo na busca da justiça social, deixada ao bel-prazer do mercado essa função. Lembrando: no âmbito repressivo (penal e processo penal), o Estado deve agir com mãos de ferro para nada atrapalhar a liberdade do mercado[6].
A manipulação do medo passa a ser o foco do discurso ideológico do mercado livre, eis que o foco dos ideais propulsores do controle e defesa social teria nas manifestações sociais a consideração do paternalismo estatal, logo, cria-se uma insegurança fomentada ideologicamente para associá-la à violência que, por consequência, requer uma ação repressiva contundente do estado para recompor a pseudosegurança abalada.
Um verdadeiro paradoxo, se levarmos em consideração a ideia de estado mínimo em âmbito social e, em contrapartida, um estado máximo, no quesito repressão[7].
Essa noção de Estado penal forte, modeladora de sujeitos ao padrão de mercado, remonta a ideia de inimigo, que seria aquele que rompe com as regras contraídas, considerado como um perigo à sociedade, podendo ser retirado todos seus direitos diante a perda do status de cidadão.
Retomando-se a antiga e ultrapassada ideia de inimigo social[8], cujas garantias penais e processuais seriam mínimas ou nenhuma por conta do risco que impõe à coletividade a ser defendida (atualmente essa ideia é reproduzida com o jargão “cidadão de bem”).
O avançar do radicalismo pós-preceitos liberais, além de sugerir um ataque ao bem-estar social promovido pelo Estado, foi adotado como estratégia de mudança na base estrutural, qual seja, a noção epistemológica de causa e efeito foi substituída pela ideia de ação eficiente[9].
Ocorre, então, uma glorificação do consumidor e adjetivação do não consumidor como verdadeiro excluído, tudo em nome do eficientismo aplicado a um contexto social, agora de competição[10].
Trabalhando a desconstrução das instituições consolidadas, opta-se por substitui-las por um mercado que, naturalmente (dentro da lógica econômica), não repetiria os erros cometidos anteriormente, mediante, a dita “ação eficiente” como fundamento epistêmico em um campo de atuação propício pelas insatisfações existentes, decorrentes da incapacidade de cumprimento das promessas do Estado de bem-estar[11]. Essa visão economicista traz à tona a máxima de: mais sociedade, menos Estado.
Por consequência, de forma estratégica, ocorre um profundo desprezo pelo direito, pois, ainda, único instrumento de manutenção do status quo ante referente a conquistas constitucionais, irrompe, então, a flexibilização, muito aplaudida, e pouco compreendida, por conta de seus obscuros objetivos eficientistas. Cria-se mais uma dicotomia, além das já conhecidas: ricos x pobres; opressores x oprimidos, agora, os incluídos e excluídos[12].
Talvez hoje, uma das principais consequências da lógica eficientista seja confundi-la com impunidade, para, em contrapartida, justificar a necessidade de uma resposta penal mais rápida e dura em face dos excluídos, que insistem em atacar os bens consumeristas, demonizando-os, pelo simples fato de ser quem são e estarem na posição que estão. Essa cruzada de combate a esse inimigo remonta ao que sucedeu na idade média quando reinava o discurso inútil e fracassado de combate à heresia, mesmo a igreja, àquela época, sendo maior e muita mais coesa que uma sociedade neoliberal[13].
Com isso, surge o direito da força, o direito penal máximo, o (mal) dito movimento lei e ordem, como verdadeiro terror legal onde os fins justificam os meios, lembrem: a ação deve ser eficiente e a eficiência retira o Estado de Direito que controla a Economia, que serve à coletividade, e coloca o Mercado e o Comércio, que servem ao Direito Privado em voga.
Nessa lógica, ninguém deve ser excluído, ou seja, todos são potenciais delinquentes, logo, essa (des) humanização, tende a se voltar contra o próprio criador, como se servissem a um Deus que pode os consumir, a partir do momento que não o sirvam mais, tudo isso alimentado por um imaginário alucinante que não consegue perceber a ameaça verdadeira. Típica fala retorica alienante.
Por consequência, no âmbito processual penal, o caminho a ser percorrido deve coadunar com o até aqui exposto, ou seja, para um processo penal máximo não há que se falar em democracia processual, pois, somente um sistema inquisitório pode dar conta de um direito penal da força[14].
Assim, menos burocracia em prol da rapidez pode acarretar em supressão de recursos ou até mesmo em dispensa de determinadas provas essenciais e obrigatórias. A assimilação de que justiça tardia equivale à injustiça não pode desaguar em decisões inseguras e superficiais como se estivéssemos diante de um Judiciário produtivo em razão da quantidade, desprezando-se a qualidade dos atos decisórios[15].
Esse deslocamento da avaliação social através de números, por óbvio, deixa de lado toda a questão social, pautando-se, agora, apenas em externalidades, por exemplo, a pobreza que passa a ser considerada como um custo do sistema, evidenciando-se um abandono às individualidades.
Portanto, é preciso ter presente que toda sociedade civilizada prestigia o direito de defesa, sendo inaceitável que o Advogado seja equiparado a um delinquente e tenha suas prerrogativas violadas pelas autoridades do Estado, simplesmente por estar exercendo o sacerdócio da sua profissão, em nome do direito de defesa, ou seja, em nome de um direito individual inerente a todos! Não só do defendido. Mesmo que o capital, assim queira adjetivar o advogado e advogada, não há que se admitir essa crescente criminalização do exercício da advocacia.
Assim, não haveria eficiência sem que se consumisse menor quantidade de recursos com uma produção maior, ou que se produzisse mais com recursos mais baratos que se encontrasse em maior abundância na natureza, por exemplo, ou seja, o objetivo é a maximização do lucro. Todo assalariado, que na ótica capitalista sempre foi recurso para a produção, se ineficiente fosse, era descartado de sua área de atuação, como um produto defeituoso e sem valor. Esse descarte se perfaz(ia) através da demissão, como uma medida necessária para que a empresa (detentora do capital) não fosse prejudicada em sua expansão econômica.
O desejo pelo exercício do poder de influência sobre os que “não possuem” criou o mito, onde, as ideologias, por oposição ao mito, produto coletivo e coletivamente apropriado, servem interesses particulares, que tendem a apresentar como interesses universais, comuns ao conjunto do grupo. A cultura dominante contribui para a integração real da classe dominante, (assegurando uma comunicação imediata entre todos os seus membros e distinguindo-os das outras classes); para a integração fictícia da sociedade no seu conjunto, portanto, a desmobilização (falsa consciência) das classes dominadas; para a legitimação da ordem estabelecida por meio do estabelecimento das distinções (hierarquias) e para a legitimação destas distinções[16].
A desmobilização das classes controladas torna-se ponto chave na dominação legitimada por todos aqueles que se dão por dominados pelo sistema social classicista. Esse sistema abarca em si o culturalismo adquirido, por meio de repetições que difere de recordações/hábitos, ou seja, a recordação está do lado da lembrança daquilo que pode ser lembrado, enquanto que a repetição está do lado da atuação movida por componentes psíquicos recalcados que não podem ser lembrados. O que se repete, é o próprio furo na linguagem, é a falta, que faz mover os significantes dentro de uma cadeia associativa. A repetição, assim entendida, nos diz sobre sua capacidade de fazer funcionar o simbólico, dar ao desejo seu mote original, de fazer do desejo motor da capacidade dos sujeitos de se conectarem e reconectarem a objetos.
A alienação do sujeito na linguagem é o que se repete. É da impossibilidade de significar o desejo, fazendo da coisa em si algo impossível de ser decodificado[17]. Ou seja, a repetição é a busca pelo desejo inalcançável oriundo da crença de que qualquer que seja o sistema econômico do Estado, este sistema visa o desenvolvimento social para todos igualitariamente (caso o trabalhador mereça por seu empenho pessoal), e pela crença de que os donos do capital querem realmente lucrar e dividir.
As crenças no mundo igualitário e humanitário sem dúvida distorcem a realidade, e depois de enraizadas nas massas, destroem pacificamente qualquer forma individual de repensar o todo, legitimando a desmobilização para qualquer questionamento (prenúncio dos ataques ao exercício da advocacia). A violência aparece-nos hoje, como sinal de desespero das massas ou de grupos, e, designada então como violência social, ela testemunha tão só a raiva (gêmea da impotência), ou seja, o impulso destrutivo dos sem esperança. Dir-se-ia que, progressivamente, a palavra se foi esvaziando da sua negatividade exemplar (fundante, por exemplo, da revolução francesa) para se colorir de um negativismo em que nenhum ideólogo se reconhece[18].
[1] Thaise Mattar Assad é advogada criminalista, especialista em direito penal e processual penal, mestranda em ciências criminais pela PUC/RS, mestranda em ciências jurídicas criminais pela Universidade Autónoma de Lisboa (Portugal), vice-presidente da ABRACRIM/PR – APACRIMI, vice-presidente da Comissão de Defesa das Prerrogativas Profissionais da OAB/PR e conselheira do IBDPE.
[2] MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. O papel do pensamento economicista no direito criminal de hoje. In: Discursos sediciosos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000, p. 75-84.
[3] DA ROSA; LINHARES, 2011, p. 44.
[4] HAYEK, Friederich. Direito, Legislação e Liberdade. Uma nova formulação dos princípios liberais de justiça e economia política. Tradução: Ana Maria Capovilla. São Paulo: Visão, 1985.
[5] HAYEK, 1985, p. 33.
[6] DA ROSA; LINHARES, 2011, p. 44.
[7] DA ROSA; LINHARES, 2011, p. 53.
[8] FERRAJOLI, 2002, p. 218. “Consequentemente, tais doutrinas, em supondo uma concepção do poder punitivo como ‘bem’ metajurídico – o estado pedagogo, tutor ou terapeuta – e, simetricamente, do delito como ‘mal’ moral ou ‘doença’ natural ou social, são as menos liberais e antigarantistas, que historicamente tenham sido concebidas, e, deste modo, justificam modelos de direito penal máximo e tendencialmente sem limites”.
[9] HAYEK, 1985.
[10] MIRANDA COUTINHO, 2000, p.76.
[11] MIRANDA COUTINHO, 2000, p.77.
[12] MIRANDA COUTINHO, 2000, p. 78.
[13] MIRANDA COUTINHO, 2000, p. 80.
[14] MIRANDA COUTINHO, 2000, p. 81
[15] MIRANDA COUTINHO, 2000, p. 82.
[16] BORDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Ed. Bertrand. Rio de Janeiro. 1989, p. 10.
[17] ALMEIDA, Leonardo Pinto de Almeida; ATALLAH, Raul Marcel Filgueiras Atallah. O conceito de repetição e sua importância para a teoria psicanalítica. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-14982008000200003acessado em 22/07/2018.
[18] DIAS. Carlos Amaral. O Negativo ou o Retorno a Freud. Lisboa: Ed. Fim de Século, 1999, p. 111.
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A Insignificância nos Crimes Contra a Ordem Tributária: Os Debates Oriundos do Patamar de 20 Mil Reais
Por Francisco Monteiro Rocha Jr[1].
A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça julgou, em 28 de fevereiro de 2018, o Recurso Especial 1.688.878/SP, afetado ao rito dos recursos repetitivos, no qual se debateu a revisão do Tema Repetitivo 157. Até então, entendia o Superior Tribunal de Justiça que os crimes contra a ordem tributária seriam albergados pelo princípio da insignificância, nas hipóteses em que a fraude dolosa do sistema tributário não ultrapassasse o patamar de dez mil reais[2]. Contudo, e como o Supremo Tribunal Federal entendia (como de fato ainda entende) que a insignificância, nessa espécie de crime, contemplaria as sonegações de até vinte mil reais, o tema foi novamente debatido pela Corte Superior. No julgamento destacado, entendeu o STJ que os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e, da isonomia, impunham que o entendimento do STF passasse a ser paradigma a ser aplicado na espécie. Ademais, porque a decisão da Corte Suprema se escora nas Portarias n. 75 e 130 do Ministério da Fazenda, que estabelecem o valor mínimo de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) para o ajuizamento de execuções fiscais, a partir do que, concluíram ambos os Tribunais Superiores, as sonegações inferiores a tal patamar seriam insignificantes.
A partir de então, um analista mais apressado do tema poderia inferir que as discussões a respeito da aplicação da bagatela nos crimes contra a ordem tributária teria se tornado menos importante, posto que pacificada. Nada obstante, basta se realizar uma rápida pesquisa jurisprudencial, por exemplo, no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, para se deparar com a relevância prática do tema. É que ao se utilizar as expressões “crimes”, “ordem”, “tributária” e “insignificância” no mecanismo de pesquisa jurisprudencial disponibilizada por aquela Corte, chega-se ao resultado de 8.131 registros. Ou seja, somente a partir de uma das várias possibilidades de palavras-chave para a pesquisa do tema, são milhares as decisões que gravitam em torno desse debate.
O que se pretende debater no presente artigo é que existem inúmeros outros desdobramentos relacionados à temática e que devem ser criticamente analisados pela doutrina. Apontaremos alguns, nos limites estabelecidos para a feitura do presente artigo, como a retroatividade das portarias acima referida, a problemática referente ao conceito de habitualidade, a inclusão, ou não, das multas nesse patamar de 20 mil reais, e por fim, a espécie de tributo a partir do qual o valor deve ser considerado.
Estabelecido nosso itinerário, analise-se em primeiro lugar a discussão referente à retroatividade do valor da insignificância dos crimes fiscais. Em outras palavras: se o quantum para a aplicabilidade do princípio da insignificância é estabelecido pelas Portarias 75 e 130 do Ministério da Fazenda, conduta que fosse realizada anteriormente ao advento dessas normativas seria por elas abarcada? O entendimento trazido pelo Supremo Tribunal Federal, como se verifica do HC 139393[3] parece não deixar dúvidas: “Mesmo que o suposto delito tenha sido praticado antes das referidas Portarias, conforme assenta a doutrina e jurisprudência, norma posterior mais benéfica retroage em favor do acusado. III – Ordem concedida para trancar a ação penal”.
Nada obstante tal entendimento, e em decisão que foi posteriormente proferida, entendeu o STJ que não haveria retroatividade “(...) para alcançar delitos de descaminho praticados em data anterior à vigência da referida portaria, porquanto não é esta equiparada a lei penal, em sentido estrito, que pudesse, sob tal natureza, reclamar a retroatividade benéfica, conforme disposto no art. 2º, parágrafo único, do CPP (...)”, conforme se verifica do Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial 1.087.027/PE, em julgamento realizado pela Quinta Turma daquela Corte em 27/06/2017 e publicado em 01/08/2017. A compreensão externada pela Corte Superior a respeito do conceito de “lei penal” parece não resistir a uma análise a partir do princípio da legalidade penal, invocado no acórdão. Previsibilidade e segurança jurídica são seus esteios. E nesse sentido, levando-se em consideração que o sistema penal em nosso país se estrutura muito para além de leis, formalmente consideradas, nada mais razoável do que, à luz da principiologia aqui invocada, imprimir-se retroatividade às portarias referidas.
A segunda discussão a respeito da interseção entre os crimes fiscais e a insignificância constitui-se na noção de habitualidade. Em apertada síntese: deve ser considerado o envolvimento do acusado em outras infrações na análise da insignificância de uma determinada sonegação de tributos? Nada obstante a vetusta concepção de um direito penal do autor que se tem dado ao tema[4] – ao invés de se analisar o fato imputado, analisa-se a vida pregressa do acusado, e por essa razão, o histórico do acusado em impedido a aplicabilidade do instituto – o tema se desdobra em questões ainda mais problemáticas.
É o que se verifica da Apelação Criminal 5003899-25.2017.4.04.7000 julgada pela Sétima Turma do Tribunal Regional Federal em julgamento realizado em 05/06/2019. No caso em discussão, não obstante o valor sonegado fosse inferior aos R$ 20.000,00 (vinte mil reais), a bagatela não foi aplicada pelo fato de que o “(...) o réu possui outros 24 (vinte e quatro) procedimentos administrativos fiscais nos cinco anos anteriores. Portanto, em razão da habitualidade delitiva, incabível a aplicação do princípio da insignificância”. Como se verifica, não suficiente a ampla aplicação de um direito penal de autor pela nossa jurisprudência, sequer os limites do responsabilidade criminal tem sido respeitados para se dar conteúdo à habitualidade delitiva. De forma excessivamente ampliativa, vê-se que até mesmo ilícitos da esfera administrativa tem sido utilizados para se negar o direito do acusado.
Um terceiro aspecto se relaciona ao entendimento de que “(...) Para fins de aferição da lesividade e da adequação típica da conduta, deve-se levar em conta não apenas o valor do tributo, mas também os juros e a multa que compõem o crédito tributário apurado pela autoridade fazendária. Considerando que o valor consolidado supera R$ 20.000,00 (vinte mil reais), deve ser afastada a aplicação do princípio da insignificância”, como tem decidido o TRF da 4ª Região[5]. Estudos que refogem aos limites do autor, e relacionados à área tributária devem ser empreendidos para se analisar a coerência de se somar a multa para os fins da norma em discussão. Mas, de qualquer forma, os juros, normalmente atrelados à circunstâncias que vão além da consciência e da vontade do acusado deveriam ser extirpados.
Por fim, há um último aspecto que pode ser destacado. Diz ele respeito à aplicabilidade do patamar referente aos vinte mil reais somente para as imputações relacionadas à sonegação de tributos de competência federal. Como tem entendido o STJ, a “(...) aplicação da bagatela aos tributos de competência estadual encontra-se subordinada à existência de norma do ente competente no mesmo sentido, porquanto a liberalidade da União não se estende aos demais entes federados (precedentes)”. O Agravo Interno no HC 331.387/SC, relatado pelo Ministro Antonio Saldanha Palheiro da Sexta Turma, em julgamento levado a cabo em 14/02/2017 e publicado em 21/02/2017, donde se retira a citação, contextualiza o debate ao explicar que, como no Estado de Santa Catarina, a Lei n. 12.643/2003, preconiza o valor mínimo de R$ 5.000,00 para execuções fiscais, a incidência da insignificância será limitada a tal parâmetro nesse Estado da Federação.
Como nos explica Roxin[6], o princípio da insignificância atua como auxiliar de interpretação, sua incidência implica a exclusão de tipicidade das condutas e tal ocorre por conta da ausência de lesão ao bem jurídico tutelado pela norma penal. O despretensioso objetivo desse rápido apanhado de ideais foi o de demonstrar as inúmeras imbricações entre a insignificância e os crimes contra a ordem tributária. Como se percebe, há muito mais questões a serem debatidas por doutrina e jurisprudência do que o mero enquadramento (ou não) da conduta no limite de vinte mil reais da sonegação.
[1] Professor Adjunto do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Doutor, Mestre e Especialista pela UFPR. Coordenador geral da área de Direito e Processo Penal da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst). Ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico (IBDE). Advogado criminalista.
[2] Ainda que revisado pelo julgamento que se discute, cite-se o Tema 157: “Incide o princípio da insignificância aos débitos tributários que não ultrapassem o limite de R$ 10.000,00 (dez mil reais), a teor do disposto no art. 20 da Lei nº 10.522/02”.
[3] Relator Min. Ricardo Lewandowski, Segunda Turma, julgado em 18/04/2017, publicado em 02/05/2017.
[4] Os Embargos de Divergência no Recurso Especial 1.217.514/RS, Relatado pelo Min. Reynaldo Soares da Fonseca, em julgamento realizado pela Terceira Seção na data de 09/12/2015 pacificou a questão (entendida até então de formas distintas na Quinta e Sexta Turmas) no sentido de que “(...) a reiteração criminosa inviabiliza a aplicação do princípio da insignificância nos crimes de descaminho, ressalvada a possibilidade de, no caso concreto, as instâncias ordinárias verificarem que a medida é socialmente recomendável”. O STF possui a mesma hermenêutica, como se vê, dentre outros
[5] Apelação Criminal 5003124-10.2017.4.04.7000, OITAVA TURMA, Relator JOÃO PEDRO GEBRAN NETO, juntado aos autos em 28/09/2018.
[6] ROXIN, Claus. Política Criminal e Sistema Jurídico-penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 47-48.
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Acordo de Cooperação Técnica Interinstitucional e o Princípio da Segurança Jurídica nos Acordos de Leniência
Por Caio Marcelo Cordeiro Antonietto[1], Rafael Guedes de Castro[2] e Douglas Rodrigues da Silva[3]
Em julho do corrente ano, o Supremo Tribunal Federal deu início ao julgamento conjunto de quatro mandados de segurança[4] impetrados por empresas que se insurgiam em relação a alguns aspectos da dinâmica dos acordos de leniência. Especificamente, o objeto da controvérsia apreciada pela Corte dizia respeito à possibilidade do Tribunal de Contas declarar a inidoneidade de pessoas jurídicas que tenham firmado acordos de leniência com outras instituições públicas.
Malgrado a discussão ainda não tenha sido concluída na Suprema Corte, o caso concreto apresenta peculiaridades dignas de realce diante da sistemática então adotada na feitura dos acordos de leniência no país. O pano de fundo da discussão, na hipótese, diz respeito à segurança jurídica dos acordos. Em que pese os avanços da Lei Anticorrupção na regulamentação do acordo de leniência no âmbito das infrações praticadas por pessoas jurídicas contra a administração pública, a Lei não apresenta uma sistemática unificada no que atine às tratativas e assinatura do acordo. Isso acarreta diversos problemas práticos aos eventuais pretendentes aos benefícios do instituto colaborativo, o principal deles reside na inconstância das instituições públicas em relação ao leniente. Não é incomum que o acordo firmado por uma instituição seja desconsiderado por outra, gerando incertezas quando às vantagens da postura colaborativa.
No caso em comento, o Ministro Gilmar Mendes, na condição de relator dos remédios constitucionais impetrados, apresentou importantes contribuições nessa seara. Conforme pontuou, os espaços de consenso têm ganhado relevância na dinâmica processual brasileira e, de forma crescente, são utilizados em âmbito penais, como a colaboração premiada, e demais esferas jurídicas, como é o caso da leniência. Isso traz à baila a necessidade de se discutir os diversos regimes do acordo de leniência que convivem paralelamente na rotina brasileira. Compreender e estabelecer uma dinâmica única poderia otimizar o uso desses instrumentos colaborativos e, a um só tempo, auxiliaria o Estado na obtenção de relevantes informações no combate à corrupção e se apresentaria como benéfica à pessoa jurídica afetada.
Desse modo, um verdadeiro alinhamento e uma cooperação institucional séria entre os diversos órgãos que compõem o microssistema anticorrupção contribuiria demasiadamente na sedimentação dos acordos de leniência como uma opção viável às empresas afetadas. Apresentar-se-ia como um garantidor da segurança jurídica desses acordos, trazendo maior confiança às empresas que optam em negociar benefícios com o Estado em troca de uma menor sanção (ou até mesmo o afastamento dessa punição).
Não se pode perder de vista que a crescente complexidade da organizações empresariais, sobretudo aquelas que possuem relações com o Estado, pode se apresentar como um terreno fértil à ilegalidade e, por isso mesmo, a sedimentação de um instrumento de colaboração que preveja a remessa de informações por parte da própria empresa pode ser benéfico à persecução da infração. Como alerta Athayde[5], quanto mais difícil de se detectar uma ilicitude, maior devem ser os benefícios oferecidos a quem queira colaborar. Até porque, nesses casos, a tendência seria o acobertamento. Portanto, os acordos de leniência devem vir como opção a essa “regra”, oferecendo um caminho viável à empresa ao mesmo tempo que serve de ferramenta imprescindível ao estado.
Eis aí o ponto crucial em se debater a necessidade de critérios mais seguros à realização do acordo.
Seguindo nessa tendência, recentemente sobreveio uma proposta de Acordo de Cooperação Técnica entre os diversos órgãos públicos que se encarregam do combate à corrupção no país. Numa ação inédita, Controladoria-Geral da União (CGU), Advocacia-Geral da União (AGU), Tribunal de Contas da União (TCU), Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) - sem a subscrição da Procuradoria Geral da República após Nota Técnica apresentada pela 5ª Câmara de Coordenação e Revisão – Combate à Corrupção / Comissão Permanente de Assessoramento para Acordos de Leniência e Colaboração Premiada do Ministério Público Federal (MPF) - apresentaram um plano de unificação e atuação conjunta na negociação de acordos de leniência.
A ideia, de maneira geral, vem com o propósito de unificar os procedimentos institucionais nas negociações e requisitos do acordo, permitindo que o leniente, numa só vez, consiga assegurar os benefícios propostos em todas as esferas de controle, não correndo o risco de ver sua colaboração se esvaziar diante da atuação isolada de órgão que eventualmente não aderiu à proposta de leniência.
Essa atitude interinstitucional emerge num momento de crucial importância na atividade desses órgãos e, sobretudo, se apresenta como uma proposta de solução ao maior entrave no momento de se optar pela autodenunciação: o possível conflito entre as agências de controle.
Como destacou o Sebastião Botto de Barros Tojal, já em 2019[6], não fazia sentido o distanciamento entre AGU/CGU e do Ministério Público. Embora o MP tenha por costume compreender que o objetivo da leniência é a colaboração com a investigação e a CGU/AGU, por sua vez, compreendam que ela se presta à reparação dos danos, vê-se que ambos os entendimentos não são inconciliáveis. Ao revés. É certo que uma atuação conjunta que prime não só pela colaboração, mas também pela efetiva reparação do dano, tende muito mais a trazer benefícios que prejuízos. E não só. Seria uma oportunidade única de maximizar a expertise entre os diversos polos institucionais.
E o atual acordo de cooperação se mostra, numa primeira vista, afinado com tal objetivo. Segundo se extrai do documento conjunto, os subscritores se preocuparam em estabelecer parâmetros seguros de atuação conjunta dos órgãos de controle, possibilitando uma otimização dos trabalhos e, principalmente, solidificando a segurança jurídica necessária para despertar o interesse das empresas nesse instrumento de colaboração. Isso, como primeira consequência, tem por finalidade demonstrar à pessoa jurídica que ela pode se dirigir a uma única mesa de negociação e ter a certeza de que os benefícios ali estipulados serão observados pelas demais agências. Não haverá riscos de se beneficiar por um lado e se retirar de outro.
Seria, pois, um grande passo inicial na tentativa de se construir uma cultura empresarial afinada com os deveres de compliance e, ao mesmo tempo, passa um recado importante sobre a atuação conjunta e organizada do Estado no momento de negociar eventual colaboração.
Outro ponto de destaque, nesse sentido, pode ser visto na proposta de unificação dos parâmetros de cálculo dos compromissos pecuniários exigidos no acordo. Essa proposta vem muito a calhar diante dos patentes conflitos entre os mecanismos de cálculo adotados pelo Ministério Público e o Tribunal de Contas, por exemplo. Se levada a efeito, como se pretende, a unificação permitirá uma metodologia específica e segura na negociação do acordo, reduzindo eventuais discrepâncias e apresentando a certeza ao leniente de que não pagará nem mais e nem menos do que lhe foi proposto. Novamente, uma oportunidade de concretização da segurança jurídica também em relação aos efeitos reparatórios do acordo.
À vista disso, embora seja preciso esperar a aplicação prática desse instrumento, já se pode vislumbrar contundentes efeitos positivos na unificação das práticas negociais no acordo de leniência. De um lado, otimiza-se a expertise das diversas instituições de controle, permitindo ao Estado uma melhor eficiência nos resultados das ações de combate à corrupção. De outro, ganha a empresa, que terá a segurança jurídica e os incentivos necessários para se utilizar do acordo de leniência. Há potencial para grandes avanços.
[1] Doutorando em Direito pela Universitat Pompeu Fabra. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Advogado Criminal. Sócio do Antonietto e Guedes de Castro Advogados Associados.
[2] Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Professor de Direito Processual Penal. Advogado Criminal. Sócio do Antonietto e Guedes de Castro Advogados Associados.
[3] Mestrando em Direito pelo Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Especialista em Direito Penal e Processo Penal pelo Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Professor de Direito Penal. Advogado Criminal. Sócio do Antonietto e Guedes de Castro Advogados Associados.
[4] Mandado de Segurança 35.435, 36.173, 36.496 e 36.526
[5] ATHAYDE, Amanda. Manual dos acordos de leniência no Brasil: teoria e prática. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 31.
[6] TOJAL, Sebastião Botto de Barros. Perspectivas para segurança jurídica dos acordos de leniência. Revista CONJUR. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-set-05/leniencias-questao-perspectivas-seguranca-juridica-acordos-leniencia. Acesso em: 06 ago. 2020.
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Confissões Inocentes nos Acordos de Não Persecução Penal
Por Beno Brandão[1] e Felipe Américo Moraes[2]
O Tribunal Regional Federal da 4º Região, mais especificamente sua 8ª Turma, debruçou-se recentemente sobre os acordos de não persecução penal[3], quando tratou diversos aspectos jurídicos do novo instituto, especialmente sua inspiração no plea bargain estadunidense e sua “identidade genética” com a transação penal.
Dentre os temas, destaca-se a parte que fala da confissão. Afirmou ser indispensável mesmo nos casos já sentenciados, nos quais os condenados deveriam rever sua estratégia processual. Mesmo assim, esclareceu que não se trataria de uma coação ilegítima realizada pelo Estado, eis que o acordo de não persecução penal possuiria feições de negócio jurídico processual, assim como a colaboração premiada. Segundo o julgado, “as partes ponderam aquilo que, sob o amparo do contraditório e da ampla defesa, lhes será mais conveniente e transigem conforme seus interesses”. Foi salientado, também, que a participação obrigatória de um advogado rechaçaria toda e qualquer possibilidade de coação.
Chama atenção que esse primeiro julgado do Tribunal Regional Federal sobre a matéria possui estranha identidade com o primeiro que houve pela Corte Federal estadunidense sobre o plea bargain, ainda em 1970[4]. A mesma afirmação de liberalidade do acusado e assistência da defesa foi colocada como evidência da ausência de coação para confissão (mesmo que, naquele caso, a pena a ser submetida fosse de morte). E será que a experiência norte americana, ao longo de mais de 50 anos, mostrou que isso é verdadeiro?
Essa dúvida tem razão de ser diante do expressivo número de acordos que passaram a ser realizados nos EUA, que chegou a alcançar 97% na justiça Federal daquele país[5]. O que se constatou foi que o plea bargain estimula que inocentes confessem crimes que não praticaram. Estudo conduzido pelo Innocence Project americano revelou que mais da metade dos participantes admitiram falsamente um crime para obter algum benefício[6]. Aventou-se que a motivo seria menos jurídico e mais psicológico. Dervan e Edkins[7]colocaram em prática o raciocínio. Durante uma prova acadêmica, um professor aplicou o teste e deixou a sala de aula. Foi pedido a um dos alunos, previamente combinado, que solicitasse uma “cola” a seus colegas. Os que aceitaram foram colocados na condição de “culpados”, enquanto os que não aceitaram ou não foram solicitados, na condição de “inocentes”. Quando o professor retornou, disse que ficara sabendo da fraude e fez a seguinte proposta: àqueles que admitissem culpa ficariam sem nota naquela prova, entretanto, para os que nada falassem, teriam que comparecer posteriormente junto à coordenação do curso, em uma data à ser agendada, onde seriam ouvidos ambos os lados e dado um parecer que poderia resultar na perda da bolsa de estudo que possuíam. O resultado fora de que 56.4% dos inocentes aceitaram a barganha.
Com precisão técnica, estudo conduzido por Michael Finkelstein[8], cujo resultado rendeu uma publicação neste ano de 2020, comparou o número de pessoas que aceitaram acordos na justiça americana até o ano de 1975 com o número dos que aceitaram entre os anos de 2013 a 2017. O número passou de 63% para 89%. Foi reconhecido de que raras vezes há um equacionamento racional pelo acusado na escolha entre enfrentar o processo e cumprir uma pena. Nesses casos, prevaleceu a aversão ao risco, eis que os acusados se sentem ameaçadas com processos considerados injustos, a serem julgados por um sistema de justiça que carece de segurança. Decorrente disso, constatou-se que um terço dos inocentes confessavam para obter o benefício. Ou seja, há evidências de que no plea bargain estadunidense inocentes confessam crimes que não cometeram. Há, em alguma medida, coação pelo Estado.
Antes de falar do panorama brasileiro, necessário falar do sistema alemão. Isso, pois a primeira aparição do instituto no Brasil, através da Resolução nº 181/2017[9], também se inspirou no sistema daquele país. Diferentemente do modelo estadunidense, no plea bargain alemão (Absprachen) não há encerramento do caso com a mera admissão da culpa. Isso decorre especialmente do fato de os acordos serem realizados durante o processo criminal e conduzidos pelo juiz do caso. Além disso, lá vigora o princípio inquisitorial, de modo que o juiz alemão possui o dever de investigar a verdade material[10], dispondo de ferramentas para aprofundar sua busca independentemente da provocação das partes. Ou seja, até mesmo uma completa confissão feita pelo acusado não exime o juiz de descobrir a verdade.[11]
No ano de 1997, quando a Corte Federal alemã foi chamada pela primeira vez para avaliar a constitucionalidade do instituto, foi expresso, dentre outros princípios, a impossibilidade de pressionar um acusado a confessar um crime[12]. Mesmo assim fala-se que existe coação. Aliás, segundo Turner[13], é tão notória que possui nomenclatura: Sanktionsschere, em tradução livre “tesoura da sanção”, que significa o cálculo feito pelo acusado da diferença entre a pena a ser recebida caso condenado e a que receberia caso houvesse um acordo. Esta é normalmente um terço daquela, patamar muito semelhante ao praticado no Brasil[14]. Ou seja, desnecessário que a pena seja de morte para se falar em coação, bastando que seja superior.
Feitos tais esclarecimentos, remanesce a dúvida: por que isso seria diferente no Brasil? Aqui também estamos sujeitos à mesma “tesoura da sanção”. Recusar o acordo pode resultar em uma pena três vezes mais alta, a ser julgada por um judiciário cuja segurança frequentemente é alvo de criticas. Assim, a decisão se torna mais econômica do que jurídica. Somente o fato de ter que enfrentar um processo criminal (e consequentemente ter que dispender maiores honorários advocatícios), aliado ao risco de ser injustamente condenado, acaba por ser motivo suficiente para fazer um inocente confessar.
E delegar a responsabilidade pela guarda da coação do acusado a seu advogado não parece ser suficiente. Bastaria pensar: o que poderia fazer o advogado quando seu cliente inocente, conhecendo suas chances de absolvição, mesmo assim opta por fazer um acordo? Deveria o advogado impedir? Assim como na medicina há o consentimento informado, o advogado não pode se desincumbir de informar as nuances do processo criminal a seu cliente, mas, também, de prover-lhe a defesa que ele quer para si, e não a que entende (paternalisticamente) ser a juridicamente mais adequada. Se o acusado, ciente da sua inocência, opta por aceitar o acordo para evitar um longo e tortuoso processo criminal, não deve o advogado subtrair-lhe a possibilidade de assim agir. Em outras palavras, o advogado não é filtro da coação do Estado nos acordos de não persecução penal.
O que acertou em essência o julgado do TRF-4, mas não em conteúdo, é que o nosso acordo de não persecução penal guarda inspiração no plea bargain, mas não se trata (ou ao menos não deveria) de uma fiel reprodução. Como dito, sua identidade genética é da transação penal, na qual inexiste necessidade de confissão ou admissão de culpa. Então, qual seria o motivo de haver a necessidade de confessar “formal e circunstancialmente” o crime?
Pode-se cogitar que a exigência fundamentaria o dever de reparar o dano à vítima (art. 28-A, I, CPP), inexistente na transação penal. Entretanto, a reparação do dano é prevista para a suspensão condicional do processo, instituto que igualmente não resulta na admissão de culpa ou necessita de confissão.
Há quem entenda que a necessidade de confissão fora importada do sistema alemão[15]. Tendemos a acreditar que não. Quando Rodrigo Cabral, autor da redação da Resolução do nº 181/2017 do CNMP, falou sobre a forte inspiração nesse sistema, percebe-se que sua referência se deveu tão somente à origem extralegal dos acordos alemães[16]. Entende-se, portanto, que a confissão fora uma importação malfeita do plea bargain estadunidense.
Para sanar essa incompatibilidade, TRF-4 equiparou o acordo de não persecução penal à colaboração premiada, afirmando ser também um negócio jurídico firmado entre as partes, das quais haveria liberalidade de aceite ou renúncia. Ocorre, entretanto, que a lei que trata dos acordos de não persecução penal prevê, ao contrário da lei que trata das colaborações premiadas, a participação ativa do Juiz, devendo ele, além de verificar a voluntariedade e legalidade, avaliar se existem condições inadequadas ou abusivas no acordo (art. 28-A, § 5º, CPP).
Ademais, o controle de legalidade, também existente para as colaborações premiadas, aqui vai além: somente poderá haver acordo de não persecução penal quando não for caso de arquivamento. Em outras palavras, quando for caso de denúncia e, portanto, estiverem presentes os indícios de autoria e materialidade de um crime. E o magistrado deve fazer esse detido controle sobre a legalidade, adequação e abusividade do acordo de maneira muito mais próxima do instituto alemão, e menos do estadunidense. Concordando com isso, o STF, em voto proferido pelo Ministro Luiz Fux, na ADI nº 6.299, já afirmou que o juiz poderá não homologar o acordo ou devolver os autos para que o parquet quando verificar a necessidade de complementar as investigações.[17]
Vale destacar que a interpretação para a transação penal é idêntica. Nesse instituto, que também possui previsão de que somente será oferecido quando não for caso de arquivamento, o FONAJE editou o enunciado nº 73, o qual afirma que o juiz, para homologar, deve verificar a existência de justa causa. Há, portanto, um dever de atuação do Juiz em avaliar se o fato possui a materialidade e indícios de autoria suficientes. Não é ele, como na colaboração, mero homologador.
Há, também, problemas materiais em se exigir o acordo. Na situação em que dois acusados inocentes são investigados, mas um deles já aceitou a transação penal, o que o impede objetivamente de realizar o acordo, como ficaria a situação do outro que poderia aceitar? Ele poderia confessar crime que não cometeu, como estratégia de defesa segundo entendeu o TRF-4, mas como ficaria para a defesa do coinvestigado? Seria uma espécie de colaboração premiada. Ou pior, uma falsa colaboração premiada. O descompasso é evidente.
O que parece, portanto, é que exigir a confissão dá ao Direito Penal, clandestinamente, uma nova ferramenta não somente para evitar uma sobrecarga de processos criminais, mas também evitar a necessidade de investigação de crimes. Entretanto, o acordo de não persecução penal não pode ser utilizado para eximir a responsabilidade da polícia de investigar, do Ministério Público de fazer uma profunda análise das provas que estão nessa investigação, e do Juiz em, subsidiariamente, fazer detido controle sobre a legalidade, dos quais igualmente cumpre verificar a existência dos indícios de autoria e materialidade, adequação e abusividade do acordo.
[1] Sócio fundador da Beno Brandão Advogados Associados. Advogado Criminalista.
[2] Mestrando em Direito Empresarial. Especialista em Direito Penal Econômico. Advogado Criminalista na Beno Brandão Advogados Associados.
[3] Correição Parcial nº 5009312-62.2020.4.04.0000, TRF4, 8ª Turma, Rel. Des. Federal João Pedro Gebran Neto.
[4] US SUPREME COURT. Brady v. United States, 397 U.S. 742 (1970).
[5] CHEESMAN, Samantha Joy. Comparative Perspectives on Plea Bargaining in Germany and the USA. 2014.
[6]DERVAN, Lucian E.; EDKINS, Vanessa A. The innocent defendant's dilemma: An innovative empirical study of plea bargaining's innocence problem. J. Crim. L. & Criminology, 2013.
[7] DERVAN, Lucian E.; EDKINS, Vanessa A. Ob. Cit.
[8] FINKELSTEIN, Michael O.; LEVIN, Bruce. Why plea bargains are a bad deal for some. Significance, 2020.
[9] CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. O acordo de não-persecução penal criado pela nova Resolução do CNMP. CONJUR, 2017.
[10] §257c e § 244 do StPO.
[11] JACKSON, John D.; LANGER, Máximo (Ed.). Crime, Procedure and Evidence in a Comparative and International Context: Essays in Honour of Professor Mirjan Damaska. Bloomsbury Publishing, 2008.
[12] JACKSON, John D.; LANGER, Máximo (Ed.). Ob. Cit.
[13] WEIGEND, Thomas; TURNER, Jenia Iontcheva. Ob. Cit.
[14] Eis que nosso instituto prevê a redução da pena de um a dois terços.
[15] FRANCO, José Henrique Kaster. O papel do Juiz no acordo de não persecução penal em Acordo de não persecução penal. Belo Horizonte: D’Plácido, 2020. p. 287-301.
[16] CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Ob. Cit.
[17] STF. ADI nº 6.299/DF. Rel. Min. Luiz Fux. Julg. em 22 jan. 2020.
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A Criminalização da Lavagem de Dinheiro: Uma Breve Análise Histórica e a Importância dos Programas de Compliance
Por Camila Rodrigues Forigo[1]
A lavagem de dinheiro consiste no ato ou na sequência de atos “praticados para mascarar a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, valores e direitos de origem delitiva ou contravencional, com o escopo último de reinseri-los na economia formal com aparência de licitude”[i].
Na tentativa de combater essa prática, as últimas décadas[ii] são marcadas pela elaboração de diversas estratégias político-criminais para criminalizar essas condutas e para ampliar o confisco dos bens de origem delitiva.
Não por outra razão, Blanco Cordero explica que a filosofia adotada na luta contra a lavagem de dinheiro consiste em seguir o dinheiro de origem delitiva (“follow the money”) e realizar o seu confisco[iii].
A primeira reação formal da Comunidade Europeia contra o perigo da introdução do capital de origem delitiva no circuito econômico foi a Recomendação do Conselho da Europa nº R(80)10 sobre medidas contra a transferência e custódia de fundos de origem criminal, de 27 de junho de 1980[iv].
Referida recomendação destacou não só os danos causados pela introdução na economia de valores provenientes de origem delitiva de um país a outro, como também ressaltou a necessidade de os Estados membros definirem uma política global de prevenção e da necessidade de contribuição das entidades privadas com as autoridades judiciais e policiais na fiscalização e fornecimento de informações.
No ano de 1986 tem-se a publicação do Money Laudering Act Control nos Estados Unidos, responsável pela criação do delito de lavagem de capitais naquele país e pelo estabelecimento de ferramentas eficazes para lutar contra a lavagem de capitais[v].
Essa lei impôs uma série de obrigações às instituições financeiras, bem como às empresas e profissões não financeiras expressamente designadas, no sentido de determinar o estabelecimento de sistemas de controle interno e auditoria contra a lavagem de dinheiro, com base no risco da atividade[vi].
A Convenção de Viena, ou Convenção das Nações Unidas sobre drogas de 1988, internalizada no Brasil por meio do Decreto nº 154/1991, ao dispor sobre regras de combate ao tráfico de drogas, traz a previsão da lavagem de dinheiro[vii] e impõe aos Estados partes que tipifiquem penalmente atos consistentes em conversão, transferência e ocultação de bens que procedam de delitos relacionados a drogas[viii].
Com a pretensão de privar os agentes que praticam tráfico ilícito de entorpecentes dos produtos oriundos de suas atividades, o instrumento exige a cooperação internacional entre os Estados Partes na extração, apreensão de bens e assistência judicial recíproca[ix].
A Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo) de 2000, incluída no ordenamento jurídico nacional pelo Decreto nº 5.015/2004, teve por objetivo promover a cooperação entre os Estados signatários para prevenir e combater de forma mais eficaz a criminalidade organizada transnacional. O texto legislativo indica que os bens passíveis de lavagem podem decorrer de outros crimes além do tráfico de drogas[x] e impõe aos Estados deveres para criminalizar o pertencimento a grupos criminosos organizados[xi].
Por fim, a Convenção de Mérida (Convenção da ONU contra a Corrupção), firmada em 2003 e ratificada no Brasil por meio do Decreto nº 5.687/2006, estabelece aos Estados membros a implantação de mecanismos de transparência contábil, auditoria interna, transparência nas relações comerciais e códigos de governança corporativa.
A Convenção tratou de assuntos como lavagem de dinheiro, tráfico de influência, abuso de funções, peculato, suborno de oficiais públicos, práticas ativas e passivas de corrupção, encobrimento e obstrução da justiça. Igualmente impõe a obrigação de tipificar a lavagem de dinheiro[xii] e disciplina a cooperação entre os Estados[xiii].
Convém citar, ainda, a Lei Sarbanes-Oxley (SOX), publicada no ano de 2002 nos Estados Unidos, que exige relatórios acerca dos controles internos da empresa e declarações financeiras[xiv]. A legislação também determinou o estabelecimento e manutenção de estruturas adequadas de controles internos[xv] e criou mecanismos para a responsabilização cível e criminal de executivos, conselheiros e auditores responsáveis por declarações imprecisas[xvi].
Não se pode deixar de mencionar a criação, em 1989, do Grupo de Ação Financeira sobre Lavagem de Dinheiro (GAFI/FATF) no âmbito da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) cujo objetivo é examinar, desenvolver e promover políticas de combate à lavagem de dinheiro[xvii]. Em 1990, o GAFI emitiu 40 (quarenta) recomendações, as quais são regularmente atualizadas, que constituem verdadeiros modelos a se seguir pelos Estados em matéria de lavagem de capitais[xviii].
No ano 2000 é criado o Grupo de Ação Financeira Internacional da América do Sul (GAFISUD), voltada à prevenção da lavagem do dinheiro em âmbito regional, envolvendo países da América do Sul[xix], seguindo a tendência da criação de grupos regionais de lavagem de dinheiro[xx].
No ordenamento nacional, a lavagem é criminalizada pela Lei Federal nº 9.613/1998, com as alterações introduzidas pela Lei Federal nº 12.683/2012. Além de tipificar a conduta de mascaramento em diversas modalidades, a lei estabelece regras e obrigações administrativas para aqueles que exercem atividades em setores sensíveis aos esquemas de lavagem[xxi].
As condutas que caracterizam a lavagem de dinheiro estão dispostas no artigo 1º, em seus parágrafos e incisos, da Lei nº 9.613/1998, sendo punido o ato de distanciar os valores de sua origem delitiva, com o disfarce das movimentações e criação de empecilhos para rastrear tais recursos[xxii].
Cite-se que a lei originalmente publicada, em 1998, trazia uma relação taxativa de condutas ilícitas que poderiam dar origem à bens e valores passíveis de lavagem de dinheiro[xxiii], mas com a reforma legislativa operada pela Lei nº 12.683/2012, o rol taxativo foi suprimido, de modo que a prática de qualquer crime ou contravenção penal pode gerar produtos passíveis de lavagem de dinheiro. Essa alteração do rol, de acordo com Badaró e Bottini[xxiv], seguiu a tendência internacional de ampliação progressiva da abrangência de lavagem de dinheiro.
A lei também criou a unidade de inteligência financeira nacional — o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) —, cujo principal objetivo é proteger os setores econômicos contra a lavagem de dinheiro e o financiamento do terrorismo.
Com esse breve panorama, resta evidente que há uma obrigação de os Estados cooperarem e atuarem de forma positiva para prevenir, descobrir, reprimir atos de lavagem de dinheiro e recuperar os produtos derivados do crime.
Para isso, considerando a complexidade com que se praticam esses atos e o fato de que muitas operações de lavagem são realizadas através de instituições financeiras, transações imobiliárias e aquisição de objetos de valor, torna-se indispensável a colaboração das entidades relacionadas ao exercício de tais atividades.
Isso porque o Estado não tem capacidade de controlar todas as estruturas empresariais e detectar, de forma direta, atos que indiquem a prática de lavagem de dinheiro, principalmente se considerada a complexidade das relações sociais, o desenvolvimento tecnológico, a especialização de setores de atividade e as modernas estruturas organizativas[xxv].
Não por outra razão, os programas de compliance adquirem um papel fundamental nesse cenário, pois representam a estratégia de regular a atividade empresarial por meio da autorregulação, em que o poder público delega parte de sua função regulatória às próprias empresas e se utiliza delas para intervir de forma mais rigorosa e eficaz[xxvi], buscando, principalmente, atingir a finalidade preventiva da prática de ilícitos[xxvii], especialmente aqueles relacionados à lavagem de dinheiro.
Para atingir essa finalidade, os programas de compliance precisam se estruturar de forma a atender não só a legislação ordinária, como também as normativas relacionadas ao órgão administrativo regulador do exercício de suas atividades.
[1] Doutoranda em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Direito Econômico e Desenvolvimento, pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal - ICPC. Conselheira do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico. Secretária da Comissão da Advocacia Criminal da OAB-PR (Triênio 2019 - 2021). Advogada.
[i] BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais: comentários à lei 9.613/1998 com as alterações da lei 12.683/2012. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. p. 25.
[ii] BADARÓ; BOTTINI, 2019, p. 31.
[iii] BLANCO CORDERO, Isidoro. El delito de Blanqueo de Capitales. 4.ed. Thomson Reuters; Arazandi: Navarra, 2015. p. 59.
[iv] CERVINI, Raúl; OLIVEIRA, William Terra de; GOMES, Luiz Flávio. Lei de lavagem de capitais: comentários à Lei 9.613/1998. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 110/111.
[v] CORDERO, 2015, p. 114.
[vi] Conforme diretrizes estabelecidas no artigo 6 do Money Laudering Act. In: UNITED States of America. Money Laudering Act. Disponível em: < https://law.moj.gov.tw/ENG/LawClass/LawAll.aspx?pcode=G0380131>. Acesso em 25 jun. 2020.
[vii] BADARÓ; BOTTINI, 2019, p. 32.
[viii] BLANCO CORDERO, 2015, p. 125/126.
[ix] BLANCO CORDERO, 2015, p. 125.
[x] BADARÓ; BOTTINI, 2019, p. 33.
[xi] ESTELLITA, Heloisa. Criminalidade de empresa, quadrilha e organização criminosa. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 45.
[xii] BLANCO CORDERO, 2015, p. 130.
[xiii] CARVALHO, Marina Amaral Egydio de; SILVEIRA, Luciana Dutra de Oliveira. Corrupção e Direito Internacional: o combate internacional à corrupção e a regulação do lobby praticado por empresas transnacionais. In: LAUFER, Daniel (Coord). Corrupção: uma perspectiva entre as diversas áreas do Direito. Curitiba: Juruá, 2013, p. 119-151. p. 127-129.
[xiv] MAEDA, Bruno Carneiro. Programas de compliance anticorrupção: importância e elementos essenciais. In: DEBBIO, Alessandra Del; MAEDA, Bruno Carneiro; AYRES, Carlos Henrique da Silva (Coord). Temas de anticorrupção & compliance. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013, p. 167-201. p. 174-175.
[xv] CLAYTON, Mona. Entendendo os desafios de compliance no Brasil: um olhar estrangeiro sobre a evolução do compliance anticorrupção em um país emergente. In: DEBBIO, Alessandra Del; MAEDA, Bruno Carneiro; AYRES, Carlos Henrique da Silva. Temas de anticorrupção & compliance. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013. p. 149-166. p. 156.
[xvi] MAEDA, 2013, p. 174-175.
[xvii] Vale mencionar que, de acordo com Sánchez Rios, o Grupo de Atuação Financeira (GAFI) estabelece que a lavagem pode ocorrer em três fases, isto é, a colocação (placement), a dissimulação dos ativos (layering) e a integração dos bens, direitos ou valores à economia regular (integration). (Cf. SÁNCHEZ RIOS, Rodrigo. Advocacia e lavagem de dinheiro: questões de dogmática jurídico-penal e de política criminal. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 48.)
[xviii] BLANCO CORDERO, 2015, p. 207.
[xix] MANZI, Vanessa Alessi. Compliance no Brasil: consolidação e perspectivas. São Paulo: Saint Paul, 2008. p. 31.
[xx] BADARÓ; BOTTINI, 2019, p. 35.
[xxi] BADARÓ; BOTTINI, op. cit., p. 27.
[xxii] BRASILEIRO, Renato. Lavagem ou ocultação de bens: lei 9.613, 03.03.1998. In: GOMES, Luiz Flávio; CUNHA, Rogério Sanches. Legislação criminal especial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 519.
[xxiii] De acordo com a redação original, apenas os crimes de tráfico de entorpecentes, terrorismo, contrabando ou tráfico de armas ou munições, extorsão mediante sequestro, contra a Administração Pública (inclusive a exigência de qualquer vantagem para a prática ou omissão de atos administrativos), contra o sistema financeiro nacional e praticado por organização criminosa poderiam ser considerados como crimes antecedentes. A Lei 10.701, de 9 de julho de 2003 incluiu o financiamento ao terrorismo no rol da Lei 9.613/1998.
[xxiv] BADARÓ; BOTTINI, 2019, p. 94.
[xxv] COCA VILA, Ivó. ¿Programas de Cumplimiento como forma de autorregulación regulada? In: SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María (Dir.). MONTANER FERNÁNDEZ, Raquel (Coord). Criminalidad de empresa y compliance: prevención y reacciones corporativas. Atelier: Barcelona, 2013. p. 43-76. p. 43-44.
[xxvi] COCA VILA, 2013, p. 45.
[xxvii] SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; SAAD-DINIZ, Eduardo. Compliance, direito penal e lei anticorrupção. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 250.
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Desafios da Justiça Restaurativa no Brasil
Por Cristina Oliveira[1]
A tradução da justiça restaurativa como um movimento sociojurídico, um paradigma, um “modo-de-ser no mundo” ou como uma tecnologia de não-violência (Schuch, 2008: 500) destinada à solução de conflitos (aqui, penais) são semânticas inacabadas, utilizadas para definir novos modelos de tratamento do crime adotados por variados atores protagonistas (Poder Judiciário, Legislativo, Executivo, Ministério Público, comunidade, etc.) e que podem ser aplicados no âmbito do direito material e processual penal de diferentes países[2].
Como tudo o que é recente e que, portanto, está em permanente construção, a dificuldade de precisão na definição da justiça restaurativa carrega consigo, por um lado, o problema da confusão dos seus significantes e propostas de fundo – ao mesmo tempo em que a sua fluidez e adaptação às necessidades econômicas, políticas e sociais dos contextos em que são inseridas viabilizam que estejam ajustadas aos conflitos/contextos que regulamentam. É de se ressaltar, entretanto, que aspectos mínimos devem ser respeitados para delimitar e reconhecer uma prática como restaurativa: a alargada participação dos atores envolvidos no conflito (autor, vítima e comunidade) e a satisfação das suas específicas necessidades, efetivadas a partir de um processo dialogado e voluntário (Pelikan, 2017).
As críticas abolicionistas já denunciavam, desde a década de setenta, que o sistema penal se fundamenta e reproduz violências, encarcerando (em massa) populações vulneráveis e marginais ao modelo capitalista; por sua vez, o surgimento da vitimologia destacou que a vítima é coisificada no curso do procedimento (Dias, 2009: 115) e que, abandonada e sem voz, pouco participa e se satisfaz com os resultados advindos da sentença. Como alternativa, a justiça restaurativa se apresentaria como uma contraproposta à racionalidade punitivista que conduz o modelo dominante, implementando algo melhor do que o sistema penal.
É bem verdade que o espaço de inserção da justiça restaurativa não parece estar alheio ou ser alternativo ao sistema penal. No Brasil, já dentro do seu incipiente movimento, a justiça restaurativa está demarcada por hegemonias teóricas e práticas na definição da sua ratio, empobrecendo as suas potencialidades (Oliveira, 2020): diante da inércia do Poder Legislativo, coube ao Poder Judiciário a proposição de normativas, modos de implementação e estratégias de replicação de práticas que, ainda pouco avaliadas, são sustentadas em doutrinas e experiências estrangeiras, especialmente americanas e canadenses.
Sendo o Brasil um país de desigualdades sociais estruturantes, as práticas que são importadas e replicadas no seio do sistema punitivo devem ser analisadas com cautela e suspeição, sob pena de que, colonizadas pela ratio punitiva, expandam o controle penal sobre os mais desfavorecidos. Nesse passo, Cláudia Santos (2009: 228) aponta que a clara divisão que existe no país entre a “criminalidade dos pobres” e a “criminalidade dos ricos” poderia “desafiar” a proposta restaurativa: no primeiro caso, “a impossibilidade da reparação reconduziria à punição”, novamente selecionando os sujeitos indesejáveis a adentrar no sistema. No segundo caso, sob o discurso da impunidade dos white-collar crimes, a justiça restaurativa poderia ser traduzida num modelo soft de responsabilização, em que “a reparação, fácil, “compraria a não punição” e outorgaria como que um direito a ir cometendo crimes e pagando por eles”. Em síntese, para os muito ricos, a autora aponta para a “possibilidade de a reparação não ter suficiente força dissuasora num sistema em que as penas criminais, mais severas, acabariam por ficar adstritas aos desfavorecidos” (Santos, 2009: 228).
Apesar disso, ressalta-se que não existem limitações às formas de institucionalização das práticas restaurativas, inclusive no que toca à tipologia dos conflitos que serão por elas reguladas – desde que a sua implementação seja decorrente de processos empiricamente avaliados e ajustados às demandas das realidades em que serão inseridas, uma tradição que, frise-se, está pouco enraizada no ordenamento nacional. Sabe-se que a justiça restaurativa foi primeiramente implementada no âmbito da justiça juvenil (seguindo-se os delitos de menor potencialidade lesiva), mas suas ferramentas têm sido paulatinamente aplicadas a casos complexos, em que existem sérias lesões a bens jurídicos individuais ou coletivos.
Exemplo disso é a utilização da justiça restaurativa no âmbito das graves ofensas causadas ao meio ambiente, para lidar com os traumas (passados) e memórias (das gerações futuras) que decorreram da ação (Varona, 2020). Nos casos em que existem empresas envolvidas, defende-se que as práticas podem ser aplicadas para facilitar aos ofendidos a reparação dos seus danos, cientes de que o “comprometimento das grandes corporações com as comunidades vitimadas pode facilitar a gestão de crises e de recuperação pós-conflito” (Saad-Diniz, 2020: 3), ao alocar recursos financeiros, materiais e sociais para a reconstrução dos espaços, apostando, ainda, em políticas sociais que ajudem a reconstruir a vida dos prejudicados.
Nos crimes que atentam contra a ordem econômica e financeira, a atuação em conformidade das grandes corporações deve estar também pautada pela previsão da sua participação em práticas restaurativas: aqui, se as pessoas jurídicas são furtadas à responsabilidade penal, não deixariam de ser, nessa nova perspectiva, responsáveis pela construção de modelos de reparação que, em conjunto com os indivíduos/comunidades afetadas, efetivam o compromisso ético e social de atuar de acordo com uma cultura de legalidade. Como alerta Nieto Martín (2018: 31), se as vítimas da delinquência empresarial são absolutamente invisíveis e vulneráveis frente ao poder das instituições – o que, para o autor, faz lembrar a luta de David contra Golias (2018: 32) na busca por seus direitos –, mais importante se faz a adesão aos modelos restaurativos, criando espaços de fala destinados a recomposição dos danos concretamente suportados pelos desprivilegiados.
Entretanto, a justiça restaurativa pouco evoluiu no âmbito da criminalidade clássica, sendo ainda incipiente o debate acerca de qual espaço deverá ocupar (dentro ou fora) do sistema penal nacional. Ora, ainda mais longe disso está a perspectiva de construção de um debate crítico acerca de como serão desenvolvidas práticas correlacionadas a crimes de maior complexidade (em que estejam envolvidos bens jurídico coletivo, abstratos, crimes sem vítimas, etc).
Existe, aqui, um vácuo que precisa ser ocupado com criativas metodologias destinadas ao tratamento da questão.
Bibliografia:
DIAS, Augusto Silva. Reconhecimento e coisificação nas sociedades contemporâneas. Uma reflexão sobre os Limites da Intervenção Penal do Estado. In: ______ (org.). Liber Amicorum de José de Sousa e Brito em comemoração do 70° aniversário. Coimbra: Almedina, 2009, p. 113-131.
NIETO MARTÍN, Adán. Empresas, víctimas y sanciones restaurativas: cómo configurar un sistema de sanciones para personas jurídicas pensando en sus víctimas? In: SAAD-DINIZ, Eduardo; LAURENTIZ, Victoria Vitti de (org). Corrupção, direitos humanos e empresa. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018, p. 31-43.
OLIVEIRA, Cristina Rego de. Rupturas ou continuidades na administração do conflito penal? Os protagonistas e os processos de institucionalização da justiça restaurativa em Portugal e no Brasil. Tese de Doutoramento em Direito, Justiça e Cidadania no Século XXI apresentada à Universidade de Coimbra, 2020, 545p.
PELIKAN, Christa; KREMMEL, Katrien. Lifeworld, Law and Justice. In: AERTSEN, Ivo; PALI, Brunilda. Critical Restorative Justice. Oxford: Hart Publishing, 2017, p. 159-174.
SAAD-DINIZ, Eduardo. Vitimização corporativa e dependência comunitária na criminologia ambiental: o acerto de contas com os desastres ambientais. Boletim do IBCCRIM, 27, n.º 327, fev., 2020, p. 2-5
SANTOS, Cláudia Cruz. A proposta restaurativa em face da realidade criminal brasileira. Revista Brasileira de Ciências Criminais, 2009, 17 (81), nov/dez, p. 209-229.
SCHUCH, Patrice. Tecnologias da não-violência e modernização da justiça no Brasil: o caso da justiça restaurativa. Civitas, 8(3), 498-520.
VARONA, Gema. Restorative pathways after mass environmental victimization: walking in the landscapes of past ecocides. Oñati Socio-legal Series,10, 3 (2020), p. 664-685.
[1] Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina – UEL. Especialista em Direito Penal Econômico e Europeu pelo Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu (IDPEE) – Coimbra. Mestra em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito (FDUC) da Universidade de Coimbra. Doutora em Direito, Justiça e Cidadania no Século XXI pela Faculdade de Direito (FDUC) e Faculdade de Economia (FEUC), ambas da Universidade de Coimbra – Portugal.
[2] Em Portugal, a Mediação Penal de Adultos (Lei 21/2007, de 12 de Junho) somente poderá ser aplicada durante o processo investigatório; na Bélgica, por sua vez, não há limitação da utilização da justiça restaurativa em quaisquer estágios do procedimento penal.
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A Pandemia de COVID-19: O Entendimento jurisprudencial sobre a inexigibilidade de conduta diversa no crime de Apropriação Indébita Previdenciária (art. 168-A, CP)
Por Bibiana Fontella[1]
A doutrina e a jurisprudência admitem o reconhecimento da excludente de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa no crime de apropriação indébita previdenciária (art. 168-A, CP[i]), quando demonstrado que as dificuldades financeiras foram de tal monta que impossibilitou o recolhimento do tributo.[ii]
O tema acaba por não ser objeto de apreciação pelo Superior Tribunal de Justiça em razão de ser matéria com necessidade de reexame fático-probatório, isto sob o velho argumento de óbice na Súmula n. 7 do STJ, de modo que, os recursos especiais não são, sequer, admitidos.
Para delimitar a aplicabilidade da referida excludente de culpabilidade os Tribunais Regionais Federais afirmam a necessidade de excepcionalidade da situação financeira da empresa, não sendo justificável qualquer dificuldade de pagamento, mas a real impossibilidade de recolhimento dos tributos. Isto deve ser demonstrado pela defesa técnica (nos termos do artigo 156 do Código de Processo Penal), em especial pela prova documental[iii], sendo admitido em alguns casos a prova testemunhal desde que corroboradas por outros elementos de prova. [iv]
Além da necessidade probatória, a jurisprudência convencionou quais critérios seriam utilizados para fins de reconhecimento da excludente de culpabilidade. Sendo uma situação específica vivenciada pela sociedade empresária é imprescindível a análise do caso concreto, portanto, não seria uma argumentação genérica da crise econômica em decorrência do COVID-19 que seria suficiente para a exclusão do crime. É necessário mais: demonstrar que, no caso de recolhimento da contribuição previdenciária, estariam comprometidos outros pagamentos imprescindíveis à sobrevivência da própria empresa.[v]
Apenas a título de exemplo, em julgamento no TRF2, entendeu-se pelo reconhecimento da inexigibilidade de conduta diversa, pois se o administrador realizasse o recolhimento da contribuição previdenciária comprometeria verbas imprescindíveis à alimentação do agente e seus funcionários.[vi]
Da leitura do entendimento jurisprudencial dos Tribunais Regionais Federais, notadamente do TRF4, não são suficientes, para demonstrar a impossibilidade de recolhimento da contribuição, a existência de execuções fiscais, notas promissórias, débitos previdenciários, avisos de cobranças e parcelamentos fiscais, os quais são considerados comuns no meio empresarial.[vii]
Assim, é necessária a demonstração de crise econômica excepcional que impediria ao empresário agir de outro modo, no entendimento do TRF4, a comprovação da redução de quadro de funcionários, a necessidade empréstimos e até mesmo falência de outras empresas do grupo empresarial.[viii] Além disso, no caso concreto julgado pelo TRF4, testemunha arrolada pela defesa afirmou que a empresa não teria condições de honrar com todos os seus compromissos, tendo priorizado o pagamento dos funcionários, energia elétrica e fornecedores para evitar o enceramento das atividades. [ix]
Desde o final do ano passado, vivencia-se no Mundo uma pandemia, a qual chegou ao Brasil no começo do corrente ano, conta-se com milhões de pessoas ao redor do mundo infectada pelo novo coronavírus. O método mais eficaz para conter o contágio é o isolamento social, haja vista que até o momento não há vacinas e medicamento eficazes para a população. Com isto, as medidas tomadas pelos governos de vários países foi fechamento do comércio, permanecendo abertas apenas as chamadas atividades essenciais.
No Brasil a orientação do Ministério da Saúde não foi diferente. Assim, ficou a cargo dos Governadores dos Estados e Prefeitos Municipais, sendo determinado inicialmente a chamada quarentena, com fechamento de comércio local, shoppings, restaurantes (em especial os self-service), teatros, cinemas, escolas, faculdades, bem como o cancelamento de qualquer atividade que gere aglomeração de pessoas. No Judiciário os prazos foram suspensos por aproximadamente 30 dias e os funcionários, juízes e promotores começaram a operar por teletrabalho, sendo prorrogado até o momento. As audiências e sessões de julgamento também foram suspensas e retornaram pelo meio virtual, a partir de plataformas on-line.
Várias atividades profissionais, quando é possível, operam por home office. Não restam dúvidas que, inevitavelmente, teremos drásticas consequências de ordem econômica. Pois, além do fechamento do comércio, o recado que ecoa em todos os meios de comunicação é: FIQUE EM CASA. Com isto, a frequência de compras por parte da população é significativamente menor. Já é efeito disto o fato de que há algumas empresas que dependem exclusivamente da movimentação de pessoas nas ruas que podem ter tido queda de faturamento de 90%, como é o caso de cafés e confeitarias. Apenas a título de exemplo, cita-se o encerramento das atividades do PolloShop, shopping localizado em Curitiba há 25 anos, que com o surto da COVID teve a crise completamente estabelecida.[x]
O Governo Federal tomou algumas medidas econômicas – bastante contidas – de auxílio às empresas e à população, as quais não serão suficientes para o grande desastre econômica que está por assolar o Brasil pelos próximos anos.
Neste cenário, como já aconteceu em outras situações de crise econômica, muitos empresários estarão em situação de ausência de receita para cumprir todos os seus compromissos essenciais, podendo incorrer, em casos de extrema gravidade, no crime previsto no artigo 168-A do Código Penal.
Com isto, inevitavelmente, a discussão e os parâmetros para inexigibilidade de conduta diversas no âmbito do crime de apropriação indébita previdenciária serão objeto de apreciação pelo Poder Judiciário, devendo a presente situação econômica e social ser sopesada diante da singular crise vivenciada no Brasil e no Mundo.
[1] Mestre em Ciências Jurídico-Criminais, Advogada Criminal e Professora de Direito Penal. Secretária-Geral do IBDPE.
[i] Deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional:
[ii] TRF4, Apelação Criminal n. 5010322-95.2017.4.04.7001/PR, Relator Desembargador Federal João Pedro Gebran Neto, julgamento em 09/10/2019.
[iii] Neste sentido: TRF3, Apelação Criminal n. 0007761-66.2008.4.03.6181, Relator Desembargador Federal Nino Toldo, julgamento em 30/01/2020.
[iv] Neste sentido: TRF2, Apelação Criminal n. 0000593-06.2013.4.02.5004, Relator Juiz Federal Convocado Gustavo Arruda Macedo, julgamento em 11/09/2019.
[v] TRF2, Apelação Criminal n. 0000703-81.2004.4.02.5513, Desembargador Federal Abel Gomes, julgamento em 04/12/2019.
[vi] Idem.
[vii] TRF4, Apelação Criminal n. 5002010-97.2017.4.04.7012/PR, Relator Desembargador Federal Luiz Canalli, julgamento em 17/03/2020.
[viii] TRF4, Apelação Criminal n. 5010322-95.2017.4.04.7001/PR, Relator Desembargador Federal João Pedro Gebran Neto, julgamento em 09/10/2019.
[ix] Idem.
[x]https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2020/04/20/polloshop-encerra-atividades-comerciais-apos-crise-financeira-em-curitiba.ghtml
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Primeiras Linhas sobre o Acordo de Não Persecução Penal
Por Marlus H. Arns de Oliveira[1] e Mariana N. Michelotto[2]
A Lei “Anticrime” (como se existisse Lei “a favor do crime) trouxe o art. 28-A para o Código de Processo Penal. Referido, e já debatido, artigo nos apresentou o acordo de não persecução penal ampliando as possibilidades da defesa e acusação realizarem acordo no âmbito penal.
Os acordos penais, sempre controversos, não se tratam de instrumento recente na legislação brasileira. A Lei nº 9.099/95, dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, prevê no artigo 76 a transação penal para as infrações de menor potencial ofensivo e no artigo 89 a suspensão condicional do processo para crimes em que a pena mínima for igual ou inferior a um ano.
Não se pode ignorar o próprio instituto da colaboração premiada, que embora previsto na legislação desde a década de 90 (Lei nº 8.072/1990 entre outras tantas), passou a ser comumente utilizada após o ano de 2013 quando ganhou suas primeiras balizas legislativas com a Lei nº 12.850/2013 - também alterada pela Lei nº 13.684/2019, que avançou na construção legal do referido instituto.
O acordo de não persecução penal é o novo instituto do direito penal negocial, ampliando profundamente as possibilidades anteriormente existentes de realização de acordo com as autoridades públicas – em especial o Ministério Público – antes de haver acusação formal quanto à prática de crimes.
Conforme previsão expressa do art. 28-A do Código de Processo Penal, em não sendo caso de arquivamento da investigação, se houver confissão quanto a prática da infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal. O mesmo artigo ressalta que o acordo será proposto, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do delito.
Neste ponto reside a primeira crítica ao acordo de não persecução penal visto não ser lógico, sob a ótica da ampla defesa, do contraditório e da presunção de inocência, que o investigado confesse crime como condição para o acordo de não persecução penal. A razão é simples: em não sendo realizado o acordo ou no caso de não cumprimento do mesmo a confissão trará danos irreparáveis ao investigado, sendo tal fato inclusive objeto da ADI 6304 ajuizada pela Abacrim – Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas.
O rol dos delitos em que será possível a propositura do acordo é extensa, pois a pena mínima inferior a 4 (quatro) anos engloba inúmeros crimes, desde furto até peculato e lavagem de dinheiro. Tal previsão alcançará tanto os crimes comuns, que correspondem a maior parte dos processos da justiça criminal, como os crimes do chamado “direito penal econômico”, que comumente são objeto das maiores operações policiais no país.
As condições para o cumprimento do acordo, que poderão ser ajustadas cumulativa e alternativamente são: a reparação do dano ou a restituição da coisa à vítima, salvo na impossibilidade de fazê-lo; a renúncia voluntária aos bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime; a prestação de serviços à comunidade por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços; o pagamento de prestação pecuniária; e o cumprimento, por prazo determinado, de outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.
Veja-se que a Lei concede ao Ministério Público um alto nível de discricionaridade, visto que admite expressamente a estipulação de obrigações não previstas no referido artigo. É preciso muito cuidado e preparo técnico dos Advogados para que o acordo não seja mera antecipação do cumprimento de pena, afinal, trata-se de negociação entre as partes, devendo as condições deverão ser ajustadas. Não estamos frente a um “contrato de adesão”.
Infelizmente, a prática tem demonstrado, que não raras vezes tanto na suspensão condicional do processo quanto na transação penal, afora no próprio acordo de colaboração premiada, que as condições sejam unilateralmente propostas pelo Ministério Público, sem qualquer (ou mínima) possibilidade ou interesse de negociação, de modo que o acusado acaba optando por “aderir” ao acordo ou decidindo por enfrentar o processo.
É preciso ressaltar que, por vezes, mesmo que haja condenação, as penas fixadas não diferem significativamente do acordo (anteriormente proposto) ou muitas vezes acabam por ser inferiores ao efetivado no acordo. Tal fato desencoraja sobremaneira a evolução da justiça negocial na esfera penal, afinal, o acordo – em qualquer de suas modalidades – precisa verdadeiramente ser negociado pelas partes e ao final ser extremamente vantajoso em relação a possível pena.
Neste ponto, ousamos afirmar que deveríamos caminhar, na doutrina, jurisprudência e legislação, para uma concretização do acordo de não persecução penal como verdadeiro direito subjetivo do acusado, que preenchendo os requisitos legais teria direito a realização do acordo de não persecução penal. Vamos além, a própria colaboração premiada deveria também caminhar neste sentido. Tal orientação diminuiria sensivelmente a discricionariedade do parquet ministerial e poderia facilitar as tratativas de acordo em verdadeiros acordos e não “contratos de adesão”.
A previsão do §2º do art. 28-A dispõe quais as hipóteses em que não será cabível o acordo de não persecução penal: a) caso seja cabível transação penal; b) se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas; c) se o agente tiver sido beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração pelo acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; d) nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar ou praticados contra mulher por razões da condição de sexo feminino.
Aqui reside uma segunda crítica, especialmente quanto à previsão de que não será possível a realização do acordo nos casos em que a conduta criminal é habitual, reiterada ou profissional. A princípio, parece que esse inciso poderá limitar consideravelmente as hipóteses de oferecimento do acordo em casos de grandes operações, vez que na maior parte das denúncias o Ministério Público descreve condutas praticadas de forma habitual e reiterada. Ainda, a maioria das denúncias oferecidas no âmbito do direito penal econômico incluem o delito de organização criminosa, com descrição, às vezes genérica, de prática delitiva reiterada e profissional, sem qualquer individualização quanto a seus diversos acusados. Assim, caso o Ministério Público continue incluindo em boa parte de suas denúncias a investigação a possível prática do delito de organização criminosa e descrevendo de forma generalizada a habitualidade da prática delitiva, as hipóteses de aplicação dessa forma específica de acordo serão consideravelmente reduzidas.
Quanto ao procedimento do acordo a lei determina que será formalizado por escrito e será realizado pelo membro do Ministério Público, pelo investigado e seu defensor. Após a formalização, será marcada audiência para homologação, em que o magistrado ouvirá o investigado na presença de seu Advogado para aferir a voluntariedade e legalidade. Previsão semelhante já era trazida no bojo dos dispositivos referentes ao acordo de colaboração premiada na Lei nº 12.850/2013. A legislação trouxe avanços permitindo que se o juiz considerar inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições do acordo, devolverá os autos ao Ministério Público para que reformule a proposta de acordo. Vale dizer, a nova lei deslocou o juiz de simples homologador do acordo para posição em que é permitido avaliar as condições negociadas.
Nos processos já em andamento, anteriores a Lei “Anticrime”, os magistrados tem determinado abertura de “vistas as partes para manifestação acerca da possiblidade de acordo de não persecução penal”. Já o Ministério Público em seus pareceres tem advertido que a confissão é pressuposto para celebração do acordo; que o seu descumprimento gerará rescisão do acordo; e que o descumprimento do acordo poderá ser utilizado como justificativa para o não oferecimento de suspensão condicional do processo nos termos dos §§ 10º e 11º do art. 28-A.
É fato, portanto, que a celebração do acordo de não persecução penal implicará a assunção de risco considerável pelo investigado, em especial, quanto a confissão e ao alto índice de discricionariedade conferido ao parquet ministerial pela nova Lei.
Os reflexos do acordo de não persecução penal nos procedimentos cíveis foram objeto de preocupação do legislador que alterou o art. 17, §1º da Lei 8429/92, prevendo a celebração de acordo de não persecução cível nas ações de improbidade. O avanço é importante mas é tímido pois havendo acordo na esfera penal, e na área cível, restarão em aberto ainda as questões perante a Receita Federal, órgãos e agências reguladoras e fiscalizadoras, que sofrerão reflexos diretos da confissão na esfera penal e poderão restar sem a possibilidade de acordo por ausência de previsão legal.
Ao final, caberá a defesa técnica profunda análise quanto a utilização deste novo instrumento de acordo como uma das opções de estratégia de defesa, sendo necessário reavaliar as estratégias de defesa tradicionais e a utilização – ou não – dos instrumentos de acordo.
A vulgarização dos acordos, em quaisquer de suas modalidades, podem custar-lhe a credibilidade, sendo que para alcançarem sua plenitude como legítimos instrumentos de defesa, devem ser aprimorados, cabendo a nós Advogados, diante desses novos desafios, adequar a orientação político-criminal à dogmática penal, sendo a garantia da aplicação prática dos princípios da presunção de inocência, do contraditório e da ampla defesa nosso norte.
[1] Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUC/PR, Advogado Sócio do escritório Arns de Oliveira e Andreazza Advogados Associados, vice-Presidente do IBDPE.
[2] Mestranda em Direito Penal Econômico na Fundação Getúlio Vargas - FGV/SP, Advogada do escritório Arns de Oliveira e Andreazza Advogados Associados, membro do IBDPE.
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