Julgados selecionados pelo IBDPE do ano de 2021
Neste último ano de 2021 prevaleceram diversos entendimentos emblemáticos e de suma importância pelos tribunais superiores. Isto posto, o IBDPE selecionou alguns julgados de grande relevância para o direito penal e processo penal do âmbito econômico.
1.É nula busca e apreensão com base em depoimentos de colaboradores:
PENAL E PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. 1. MANDAMUS SUBSTITUTIVO DO RECURSO PRÓPRIO. DESVIRTUAMENTO DE GARANTIA CONSTITUCIONAL. 2. BUSCA E APREENSÃO. ALEGADA AUSÊNCIA DE CONTEMPORANEIDADE. ART. 315, § 1º, DO CPP. NÃO APLICAÇÃO. LOCALIZAÇÃO TOPOGRÁFICA NO CPP. 3. INSTITUTO QUE DIZ RESPEITO A MEDIDAS CAUTELARES PESSOAIS. CONTEMPORANEIDADE DO PERICULUM LIBERTATIS. 4. BUSCA E APREENSÃO. MEDIDA CAUTELAR REAL. MEIO DE OBTENÇÃO DE PROVA. REQUISITOS PRÓPRIOS. DESNECESSIDADE DE CONTEMPORANEIDADE. 5. LAPSO ENTRE FATOS E COLHEITA DE PROVAS. POSSIBILIDADE DE DESAPARECIMENTO DE VESTÍGIOS. SITUAÇÃO BENÉFICA AO RÉU. 6. EXIGÊNCIA DE CONTEMPORANEIDADE. INVIABILIZAÇÃO DE INVESTIGAÇÕES. PRÁTICA CRIMINOSA QUE OCORRE, EM REGRA, NA CLANDESTINIDADE. 7. PRAZO PARA PRODUÇÃO DE PROVAS. LAPSO PRESCRICIONAL. 8. DECRETO DE BUSCA E APREENSÃO. FUNDAMENTO APENAS EM DECLARAÇÕES DE COLABORADORES. INIDONEIDADE. ART. 4º, § 16, LEI 12.850/2013. 9. FUNDAMENTAÇÃO INIDÔNEA. DESNECESSIDADE DE REVOLVIMENTO DE FATOS E PROVAS. DECRETO NULO. 10. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO PARA ANULAR A BUSCA E APREENSÃO.
1. Diante da utilização crescente e sucessiva do habeas corpus, o Superior Tribunal de Justiça passou a acompanhar a orientação da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, no sentido de ser inadmissível o emprego do writ como sucedâneo de recurso ou revisão criminal, a fim de que não se desvirtue a finalidade dessa garantia constitucional, sem olvidar a possibilidade de concessão da ordem, de ofício, nos casos de flagrante ilegalidade.
2. O § 1º do art. 315 do Código de Processo Penal, incluído pela Lei n. 13.964/2019, encontra-se localizado no Capítulo III, intitulado "Da Prisão Preventiva", inserido no Título IX do Código de Processo Penal, denominado "Da Prisão, Das Medidas Cautelares e Da Liberdade Provisória", estando enumerados dentro do mesmo Título, no Capítulo V, as "outras medidas cautelares". Nesse contexto, a contemporaneidade exigida pelo dispositivo indicado pelo impetrante se refere às medidas constritivas da liberdade, seja a própria prisão preventiva ou as medidas cautelares diversas enumeradas no art. 319 do Código de Processo Penal.
3. Não bastasse a questão topográfica, não se pode descurar que a contemporaneidade guarda estreita relação com as medidas cautelares de natureza pessoal, uma vez que o motivo que determina a restrição da liberdade de uma pessoa deve ser contemporâneo à medida constritiva, sob pena de não mais se justificar. De fato, mister ficar demonstrado o perigo atual gerado pelo estado de liberdade do imputado, conforme disposto no art. 312 do Código de Processo Penal.
4. A busca e apreensão é medida cautelar real e não pessoal, tem natureza jurídica de meio de obtenção de prova e se encontra disciplinada no Capítulo XI do Título VII, intitulado "Da Prova". No referido capítulo, constam requisitos próprios da referida diligência, dentre os quais não se verifica a necessidade de contemporaneidade. Nesse sentido: RHC 119.225/SP, Rel. Ministro LEOPOLDO DE ARRUDA RAPOSO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/PE), QUINTA TURMA, julgado em 19/11/2019, DJe 26/11/2019.
5. Quanto mais distante a prática delitiva for da produção da prova, mais chances se tem de eventuais vestígios terem desaparecido, situação que, em verdade, beneficia o investigado. Nesse contexto, não faz sentido agregar às medidas cautelares reais o requisito da contemporaneidade.
- A contemporaneidade de riscos, de outro lado, não é requisito para a produção probatória. Mesmo passado o tempo, sempre poderá o magistrado determinar a produção de provas pertinentes aos fatos, mesmo sendo elas invasivas da intimidade - fundamentadamente (HC 480.092/DF, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 03/03/2020, DJe 10/03/2020.
6. Considerar que as diligências investigatórias dependem da efetiva demonstração da contemporaneidade com a prática criminosa impossibilitaria inúmeras investigações, uma vez que, em regra, os crimes são cometidos de forma clandestina, acreditando-se na sua não descoberta e na consequente impunidade.
7. Não se pode descurar, ademais, que o prazo previsto para se elucidar uma infração penal guarda relação com a prescrição.
Portanto, enquanto o crime investigado não estiver prescrito, são cabíveis todos os meios de produção de prova, desde que devidamente motivada sua necessidade, não havendo se falar, portanto, em contemporaneidade de medida cautelar não pessoal.
8. No que diz respeito à alegada carência de adequada fundamentação do decreto de busca e apreensão, em virtude de se embasar apenas em depoimentos contraditórios de colaboradores, registro, de início, que, de fato, o art. 4º, § 16, da Lei nº 12.850/2013, estabelece que "nenhuma das seguintes medidas será decretada ou proferida com fundamento apenas nas declarações do colaborador: I - medidas cautelares reais ou pessoais; II - recebimento de denúncia ou queixa-crime; III - sentença condenatória".
9. Na hipótese dos autos, verifica-se, sem necessidade de revolvimento de fatos e provas, mas pela simples leitura do decreto de busca e apreensão, que, realmente, a decisão que decretou a busca e apreensão em desfavor do paciente se encontra deficientemente fundamentada, porquanto embasada apenas em declarações de colaboradores, o que vai de encontro ao disposto no art. 4º, § 16, da Lei n. 12.850/2013.
- Precedentes do STF e do STJ.
10. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício, para para anular o decreto de busca e apreensão, bem como as provas dele derivadas, em virtude de sua deficiente fundamentação, sem prejuízo de que seja novamente decretada a medida, em observância ao regramento legal.
(HC 624.608/CE, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 02/02/2021, DJe 04/02/2021)
2. Nos crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores, tanto os bens de origem lícita quanto ilícita poderão ser objeto de constrição. Quando houver confusão patrimonial, a indisponibilidade de bens pode atingir, inclusive, pessoa jurídica ou familiar não denunciado:
PENAL. PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL DA DECISÃO QUE MANTEVE INDISPONIBILIDADE DE BENS. RECURSO TEMPESTIVO. INTERESSE DE AGIR CONFIGURADO. PRELIMINAR DE NULIDADE. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. INOCORRÊNCIA. ALEGAÇÃO DE QUE O PATRIMÔNIO CONSTRITO FOI ADQUIRIDO LICITAMENTE. IRRELEVÂNCIA. ALEGADA BOA-FÉ DE TERCEIROS. CONFUSÃO PATRIMONIAL DE BENS DE FAMÍLIA E DA PESSOA JURÍDICA. CASAMENTO SOB REGIME DE COMUNHÃO UNIVERSAL. COMUNICABILIDADE. PRESSUPOSTOS DA MEDIDA CAUTELAR. ART. 4º, § 4º DA LEI N. 9.613/98. AGRAVANTES SEM FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO. SUPERVENIENTE CISÃO DA AÇÃO PENAL.
CONEXÃO E CONTINÊNCIA. TEORIA JUÍZO APARENTE.
1. As medidas cautelares patrimoniais, previstas nos arts. 125 a 144 do Código de Processo Penal, bem como no art. 4º, § 4º, da Lei n.
9.613/98, destinam-se a garantir, em caso de condenação, tanto a perda do proveito ou produto do crime, como o ressarcimento dos danos causados (danos ex delicto) e o pagamento de pena de multa, custas processuais e demais obrigações pecuniárias impostas.
2. A medida assecuratória de indisponibilidade de bens prevista no art. 4º, § 4º, da Lei n. 9.613/98 permite a constrição de quaisquer bens, direitos ou valores para reparação do dano decorrente do crime ou para pagamento de prestação pecuniária, pena de multa e custas processuais. Desnecessidade de verificar se os bens atingidos têm origem lícita ou ilícita ou se foram adquiridos antes ou depois da infração penal. Interpretação do art. 91, inciso II, alínea b, § 2º, do Código Penal.
3. Hipótese em que a constrição atinge o patrimônio de pessoa jurídica e familiares não denunciados, inclusive o cônjuge casado sob o regime de comunhão universal de bens, o que se mostra necessário, adequado e proporcional às circunstâncias relatadas nos autos, de incorporação de bens ao patrimônio da empresa familiar e transferência de outros bens aos citados familiares, a indicar confusão patrimonial.
4. Investigações iniciadas e denúncia oferecida, perante o STJ, por alcançar Governador de Estado. O posterior desmembramento do processo, com a remessa da ação penal em face dos denunciados sem prerrogativa de foro para outro juízo, não acarreta a nulidade das medidas constritivas determinadas em relação aos agentes não detentores de foro por prerrogativa de função. Caberá ao juiz ao qual distribuída a ação penal desmembrada reexaminar a conveniência ou não de manutenção das medidas cautelares.
5. Agravo regimental a que se nega provimento.
(AgRg no Inq 1.190/DF, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, CORTE ESPECIAL, julgado em 15/09/2021, DJe 24/09/2021)
3. exigência de representação no crime de estelionato não retroage a ações iniciadas antes do Pacote Anticrime:
PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO. ESTELIONATO. LEI N. 13.964/2019 (PACOTE ANTICRIME). RETROATIVIDADE. INVIABILIDADE. ATO JURÍDICO PERFEITO. CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE. WRIT INDEFERIDO.
1. A retroatividade da norma que previu a ação penal pública condicionada, como regra, no crime de estelionato, é desaconselhada por, ao menos, duas ordens de motivos.
2. A primeira é de caráter processual e constitucional, pois o papel dos Tribunais Superiores, na estrutura do Judiciário brasileiro é o de estabelecer diretrizes aos demais Órgãos jurisdicionais. Nesse sentido, verifica-se que o STF, por ambas as turmas, já se manifestou no sentido da irretroatividade da lei que instituiu a condição de procedibilidade no delito previsto no art. 171 do CP.
3. Em relação ao aspecto material, tem-se que a irretroatividade do art. 171, §5º, do CP, decorre da própria mens legis, pois, mesmo podendo, o legislador previu apenas a condição de procedibilidade, nada dispondo sobre a condição de prosseguibilidade. Ademais, necessário ainda registrar a importância de se resguardar a segurança jurídica e o ato jurídico perfeito (art. 25 do CPP), quando já oferecida a denúncia.
4. Não bastassem esses fundamentos, necessário registrar, ainda, prevalecer, tanto neste STJ quanto no STF, o entendimento "a representação, nos crimes de ação penal pública condicionada, não exige maiores formalidades, sendo suficiente a demonstração inequívoca de que a vítima tem interesse na persecução penal. Dessa forma, não há necessidade da existência nos autos de peça processual com esse título, sendo suficiente que a vítima ou seu representante legal leve o fato ao conhecimentos das autoridades." (AgRg no HC 435.751/DF, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 23/08/2018, DJe 04/09/2018).
6. Habeas corpus indeferido.
(HC 610.201/SP, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 24/03/2021, DJe 08/04/2021)
4. A quebra da cadeia de custódia não gera nulidade obrigatória da prova, decide Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça:
"A violação da cadeia de custódia – disciplinada nos artigos 158-A a 158-F do Código de Processo Penal (CPP) – não implica, de maneira obrigatória, a inadmissibilidade ou a nulidade da prova colhida. Nesse caso, eventuais irregularidades devem ser observadas pelo juízo ao lado dos demais elementos produzidos na instrução criminal, a fim de decidir se a prova questionada ainda pode ser considerada confiável. Somente após essa confrontação é que o magistrado, caso não encontre sustentação na prova cuja cadeia de custódia foi violada, pode retirá-la dos autos ou declará-la nula" (fonte: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/09122021-Quebra-da-cadeia-de-custodia-nao-gera-nulidade-obrigatoria-da-prova--define-Sexta-Turma.aspx)
Leia a decisão do HC 653515: stj_dje__0_28370504
5. É inepta a denúncia que atribui responsabilidade penal à pessoa física levando em consideração apenas a sua qualidade dentro da empresa:
AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. PRETENSÃO DE TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. INÉPCIA DA DENÚNCIA. INICIAL CONDUTA IMPUTADA. CONSIDERAÇÃO, APENAS, DA CONDIÇÃO DOS RECORRENTES DENTRO DA EMPRESA. AUSÊNCIA DE MENÇÃO DA COMPETÊNCIA FUNCIONAL DO IMPUTADO. CONFIGURAÇÃO DE RESPONSABILIDADE PENAL OBJETIVA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO.
1. É entendimento pacífico do Superior Tribunal de Justiça que o trancamento de ação penal pela via eleita é medida excepcional, cabível apenas quando demonstrada, de plano, a atipicidade da conduta, a extinção da punibilidade ou a manifesta ausência de provas da existência do crime e de indícios de autoria. Precedentes.
2. Esta Corte Superior tem reiteradamente decidido ser inepta a denúncia que, mesmo em crimes societários e de autoria coletiva, atribui responsabilidade penal à pessoa física, levando em consideração apenas a qualidade dela dentro da empresa, deixando de demonstrar o vínculo desta com a conduta delituosa, por configurar, além de ofensa à ampla defesa, ao contraditório e ao devido processo legal, responsabilidade penal objetiva, repudiada pelo ordenamento jurídico pátrio.
3. No caso dos autos, atribuiu-se aos acusados a conduta de promover a redução de tributos devidos ao Estado de Santa Catarina, limitando-se a denúncia a indicar os cargos por eles ocupados no âmbito da empresa, deixando de descrever qualquer conduta ou fato que os ligasse, minimamente, ao delito nela indicado.
4. Agravo regimental provido para prover o recurso em habeas corpus de modo a reconhecer a inépcia da denúncia de fls. 26/29 e trancar a ação penal proposta contra os recorrentes, sem prejuízo de que outra seja oferecida, desde que preenchidas as exigências legais.
(AgRg no RHC 132.900/SC, Rel. Ministra LAURITA VAZ, Rel. p/ Acórdão Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 17/08/2021, DJe 02/09/2021)
6. É ilícita prova obtida por meio de prints do WhatsApp Web:
"As mensagens obtidas por meio do print screen da tela da ferramenta WhatsApp Web devem ser consideradas provas ilícitas e, portanto, desentranhadas dos autos", afirmou o relator do caso, ministro Nefi Cordeiro.
Processo: RHC 133.430 (segredo de justiça)
7. Juiz que questiona detalhadamente a testemunha de acusação desrespeita o preconizado pelo artigo 212 do Código de Processo Penal:
HABEAS CORPUS. IMPETRAÇÃO QUE FIGURA COMO SUCEDÂNEO DE REVISÃO CRIMINAL. NÃO CONHECIMENTO. CONCESSÃO DA ORDEM DE OFÍCIO. POSSIBILIDADE.
ILEGALIDADE FLAGRANTE VERIFICADA NO CASO CONCRETO. ATUAÇÃO DO JUIZ E ORDEM DE INQUIRIÇÃO DE TESTEMUNHAS. ART. 212 DO CPP. AUSÊNCIA DE JUSTIFICATIVA APTA A AFASTAR A INCIDÊNCIA DE NORMA COGENTE E DE APLICABILIDADE IMEDIATA. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. ATUAÇÃO ATIVA E DE PROTAGONISMO DESEMPENHADA PELO JUÍZO A QUO NA INQUIRIÇÃO DE TESTEMUNHAS DE ACUSAÇÃO. AFRONTA AO PRINCÍPIO ACUSATÓRIO. COMPROMETIMENTO AO ACTUM TRIUM PERSONARUM UTILIZAÇÃO DE DEPOIMENTOS COLHIDOS EM DESCOMPASSO COM A LEGISLAÇÃO DE REGÊNCIA PARA FUNDAMENTAR O DECRETO CONDENATÓRIO. PREJUÍZO DEMONSTRADO. RÉU CUSTODIADO EM DECORRÊNCIA DE SENTENÇA ORA REPUTADA NULA. RESTITUIÇÃO AO STATUS LIBERTATIS QUE SE IMPÕE. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO PARA RECONHECER A NULIDADE DA AÇÃO PENAL ORIGINÁRIA A PARTIR DA AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO E JULGAMENTO E DETERMINAR A IMEDIATA SOLTURA DO PACIENTE .
1. A Constituição Federal de 1988, ao atribuir a privatividade da promoção da ação penal pública ao Ministério Público (art. 129, I); ao assegurar aos ligantes o direito ao contraditório e à ampla defesa e assentar o advogado como função essencial à Justiça (art. 5º, LV e 133); bem como, ao prever a resolução da lide penal, após o devido processo legal, por um terceiro imparcial, o Juiz natural (art. 5º, LIII e LXI; 93 e seguintes), consagra o sistema acusatório.
2. A separação entre as atividades de acusar e julgar não autoriza que o juiz, em substituição ao órgão de acusação, assuma papel ativo na produção probatória, sob pena de quebra da necessária imparcialidade do Poder Judiciário.
3. O processo penal é instrumento de legitimação do direito de punir do Estado e, para que a intervenção estatal opere nas liberdades individuais com legitimidade, é necessário o respeito à legalidade estrita e às garantias fundamentais.
4. No que tange à oitiva das testemunhas em audiência de instrução e julgamento, deve o magistrado, em atenção ao art. 212 do CPP, logo após a qualificação do depoente, passar a palavra às partes, a fim de que produzam a prova, somente cabendo-lhe intervir em duas hipóteses: se evidenciada ilegalidade ou irregularidade na condução do depoimento ou, ao final, para complementar a oitiva, se ainda existir dúvida - nessa última hipótese sempre atuando de forma supletiva e subsidiária (como se extrai da expressão “poderá complementar”).
5. A redação do art. 212 é clara e não encerra uma opção ou recomendação. Trata-se de norma cogente, de aplicabilidade imediata, e portanto o seu descumprimento pelo magistrado acarreta nulidade à ação penal correlata quando demonstrado prejuízo ao acusado.
6. A demonstração de efetivo prejuízo no campo das nulidades processuais penais é sempre prospectiva e nunca presumida. É dizer, não cabe ao magistrado já antecipar e prever que a inobservância a norma processual cogente gerará ou não prejuízo à parte, pois desconhece quo ante a estratégia defensiva.
7. Demonstrado, no caso dos autos, iniciativa e protagonismo exercido pelo Juízo singular na inquirição das testemunhas de acusação e verificado que foram esses elementos considerados na fundamentação do decreto condenatório, forçoso reconhecer a existência de prejuízo ao acusado.
8. O Juízo a quo ao iniciar e questionar detalhadamente a testemunha de acusação, além de subverter a norma processual do art. 212 do CPP, violando a diretiva legal, exerceu papel que não lhe cabia na dinâmica instrutória da ação penal, comprometendo o actum trium personarum, já que a “separação rígida entre, de um lado, as tarefas de investigar e acusar e, de outro, a função propriamente jurisdicional” é consectário lógico e inafastável do sistema penal acusatório (ADIMC 5.104, Plenário, Rel. Min. Roberto Barroso, j. 21.5.2014 ).
9. Habeas corpus concedido de ofício a fim de reconhecer a nulidade da ação penal originária a partir da audiência de instrução e julgamento e, como consequência, restituir a liberdade ao acusado, a fim de que responda solto à instrução da ação penal que deverá ser renovada.
Leia o acordão: HC 202.557
8. Em regra, a homologação do acordo de colaboração deverá ser feita no juízo competente para autorizar as medidas de produção de prova e julgar os crimes cometidos pelo colaborador. Se a proposta de acordo ocorrer depois da sentença e antes do julgamento de eventual recurso, a homologação será incluída no acórdão do Tribunal.
Penal e processual penal. Habeas corpus. Cabimento para questionar decisão que não homologou colaboração premiada. Competência para homologação do acordo. Benefício de não oferecimento da denúncia (art. 4º, §4º, Lei 12.850/2013) em relação a três fatos. Processos distintos. Sentença já proferida contra corréus. Competência do Juízo de primeiro grau para análise quanto à homologação em relação a todos os fatos conexos. Ordem parcialmente concedida.
(HC 192063, Relator(a): GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 02/02/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-063 DIVULG 06-04-2021 PUBLIC 07-04-2021)
9. Após o advento da Lei n. 13.964/2019, não é possível a conversão ex offício da prisão em flagrante em preventiva, mesmo nas situações em que não ocorre audiência de custódia:
PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. PRISÃO. CONVERSÃO EX OFFICIO DA PRISÃO EM FLAGRANTE EM PREVENTIVA. IMPOSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE REQUERIMENTO PRÉVIO OU PELO MINISTÉRIO PÚBLICO, OU PELO QUERELANTE, OU PELO ASSISTENTE, OU, POR FIM, MEDIANTE REPRESENTAÇÃO DA AUTORIDADE POLICIAL.
1. Em razão do advento da Lei n. 13.964/2019 não é mais possível a conversão ex officio da prisão em flagrante em prisão preventiva.
Interpretação conjunta do disposto nos arts. 3º-A, 282, § 2º, e 311, caput, todos do CPP.
2. IMPOSSIBILIDADE, DE OUTRO LADO, DA DECRETAÇÃO "EX OFFICIO" DE PRISÃO PREVENTIVA EM QUALQUER SITUAÇÃO (EM JUÍZO OU NO CURSO DE INVESTIGAÇÃO PENAL) INCLUSIVE NO CONTEXTO DE AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA (OU DE APRESENTAÇÃO), SEM QUE SE REGISTRE, MESMO NA HIPÓTESE DA CONVERSÃO A QUE SE REFERE O ART. 310, II, DO CPP, PRÉVIA, NECESSÁRIA E INDISPENSÁVEL PROVOCAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO OU DA AUTORIDADE POLICIAL - RECENTE INOVAÇÃO LEGISLATIVA INTRODUZIDA PELA LEI N.
13.964/2019 ("LEI ANTICRIME"), QUE ALTEROU OS ARTS. 282, §§ 2º e 4º, E 311 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, SUPRIMINDO AO MAGISTRADO A POSSIBILIDADE DE ORDENAR, "SPONTE SUA", A IMPOSIÇÃO DE PRISÃO PREVENTIVA - NÃO REALIZAÇÃO, NO CASO, DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA (OU DE APRESENTAÇÃO) - INADMISSIBILIDADE DE PRESUMIR-SE IMPLÍCITA, NO AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE, A EXISTÊNCIA DE PEDIDO DE CONVERSÃO EM PRISÃO PREVENTIVA - CONVERSÃO, DE OFÍCIO, MESMO ASSIM, DA PRISÃO EM FLAGRANTE DO ORA PACIENTE EM PRISÃO PREVENTIVA - IMPOSSIBILIDADE DE TAL ATO, QUER EM FACE DA ILEGALIDADE DESSA DECISÃO. [...] - A reforma introduzida pela Lei n. 13.964/2019 ("Lei Anticrime") modificou a disciplina referente às medidas de índole cautelar, notadamente aquelas de caráter pessoal, estabelecendo um modelo mais consentâneo com as novas exigências definidas pelo moderno processo penal de perfil democrático e assim preservando, em consequência, de modo mais expressivo, as características essenciais inerentes à estrutura acusatória do processo penal brasileiro. - A Lei n. 13.964/2019, ao suprimir a expressão "de ofício" que constava do art. 282, §§ 2º e 4º, e do art. 311, todos do Código de Processo Penal, vedou, de forma absoluta, a decretação da prisão preventiva sem o prévio "requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público" (grifo nosso), não mais sendo lícita, portanto, com base no ordenamento jurídico vigente, a atuação "ex officio" do Juízo processante em tema de privação cautelar da liberdade. - A interpretação do art. 310, II, do CPP deve ser realizada à luz dos arts. 282, §§ 2º e 4º, e 311, do mesmo estatuto processual penal, a significar que se tornou inviável, mesmo no contexto da audiência de custódia, a conversão, de ofício, da prisão em flagrante de qualquer pessoa em prisão preventiva, sendo necessária, por isso mesmo, para tal efeito, anterior e formal provocação do Ministério Público, da autoridade policial ou, quando for o caso, do querelante ou do assistente do MP. Magistério doutrinário. Jurisprudência. [...] - A conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva, no contexto da audiência de custódia, somente se legitima se e quando houver, por parte do Ministério Público ou da autoridade policial (ou do querelante, quando for o caso), pedido expresso e inequívoco dirigido ao Juízo competente, pois não se presume - independentemente da gravidade em abstrato do crime - a configuração dos pressupostos e dos fundamentos a que se refere o art. 312 do Código de Processo Penal, que hão de ser adequada e motivadamente comprovados em cada situação ocorrente. Doutrina. PROCESSO PENAL - PODER GERAL DE CAUTELA - INCOMPATIBILIDADE COM OS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE ESTRITA E DA TIPICIDADE PROCESSUAL - CONSEQUENTE INADMISSIBILIDADE DA ADOÇÃO, PELO MAGISTRADO, DE MEDIDAS CAUTELARES ATÍPICAS, INESPECÍFICAS OU INOMINADAS EM DETRIMENTO DO "STATUS LIBERTATIS" E DA ESFERA JURÍDICA DO INVESTIGADO, DO ACUSADO OU DO RÉU - O PROCESSO PENAL COMO INSTRUMENTO DE SALVAGUARDA DA LIBERDADE JURÍDICA DAS PESSOAS SOB PERSECUÇÃO CRIMINAL. - Inexiste, em nosso sistema jurídico, em matéria processual penal, o poder geral de cautela dos Juízes, notadamente em tema de privação e/ou de restrição da liberdade das pessoas, vedada, em consequência, em face dos postulados constitucionais da tipicidade processual e da legalidade estrita, a adoção, em detrimento do investigado, do acusado ou do réu, de provimentos cautelares inominados ou atípicos. O processo penal como instrumento de salvaguarda da liberdade jurídica das pessoas sob persecução criminal. Doutrina. Precedentes: HC n. 173.791/MG, Ministro Celso de Mello - HC n. 173.800/MG, Ministro Celso de Mello - HC n. 186.209 - MC/SP, Ministro Celso de Mello, v.g. (HC n. 188.888/MG, Ministro Celso de Mello, Segunda Turma, julgado em 6/10/2020).
3. Da análise do auto de prisão é possível se concluir que houve ilegalidade no ingresso pela polícia do domicilio do paciente e, por conseguinte, que são inadmissíveis as provas daí derivadas e, consequentemente, sua própria prisão. Tal conclusão autoriza a concessão de ordem de ofício.
4. Recurso em habeas corpus provido para invalidar, por ilegal, a conversão ex officio da prisão em flagrante do ora recorrente em prisão preventiva. Ordem concedida de ofício, para anular o processo, ab initio, por ilegalidade da prova de que resultou sua prisão, a qual, por conseguinte, deve ser imediatamente relaxada também por essa razão.
(RHC 131.263/GO, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 24/02/2021, DJe 15/04/2021)
10. Terceira Seção define critérios para progressão penal de condenados com reincidência genérica:
"É reconhecida a retroatividade do patamar estabelecido no art. 112, V, da Lei n. 13.964/2019, àqueles apenados que, embora tenham cometido crime hediondo ou equiparado sem resultado morte, não sejam reincidentes em delito de natureza semelhante",
Leia a decisão: 1910240 MG
11. Terceira Seção admite que tempo de recolhimento domiciliar com tornozeleira seja descontado da pena:
HABEAS CORPUS. PENAL. MEDIDA CAUTELAR DE RECOLHIMENTO NOTURNO, AOS FINAIS DE SEMANA E DEMAIS DIAS NÃO ÚTEIS (FISCALIZADA, NA ESPÉCIE, POR MONITORAÇÃO ELETRÔNICA). DETRAÇÃO. PRINCÍPIO DA HUMANIDADE. ESPECIAL PERCEPÇÃO DA PESSOA PRESA COMO SUJEITO DE DIREITOS. ÓBICE À DETRAÇÃO DO TEMPO DE RECOLHIMENTO DOMICILIAR DETERMINADO COMO MEDIDA SUBSTITUTIVA DA PRISÃO PREVENTIVA. EXCESSO DE EXECUÇÃO. MEDIDA CAUTELAR QUE SE ASSEMELHA AO CUMPRIMENTO DE PENA EM REGIME PRISIONAL SEMIABERTO. UBI EADEM RATIO, IBI EADEM LEGIS DISPOSITIO. HIPÓTESES DO ART. 42 DO CÓDIGO PENAL QUE NÃO SÃO NUMERUS CLAUSUS. PARECER MINISTERIAL ACOLHIDO. ORDEM DE HABEAS CORPUS CONCEDIDA.
1. A detração é prevista no art. 42 do Código Penal, segundo o qual se computa, "na pena privativa de liberdade e na medida de segurança, o tempo de prisão provisória, no Brasil ou no estrangeiro, o de prisão administrativa e o de internação em qualquer dos estabelecimentos referido no artigo anterior".
2. Interpretar a legislação que regula a detração de forma que favoreça o Sentenciado harmoniza-se com o Princípio da Humanidade, que impõe ao Juiz da Execução Penal a especial percepção da pessoa presa como sujeito de direitos. Doutrina.
3. No clássico Direito e Razão, Ferrajoli esclareceu a dupla função preventiva do Direito Penal. De um lado, há a finalidade de prevenção geral dos delitos, decorrente das exigências de segurança e defesa social. De outro, o Direito Penal visa também a prevenir penas arbitrárias ou desmedidas. Essas duas funções são conexas e legitimam o Direito Penal como instrumento concreto para a tutela dos direitos fundamentais, ao definir concomitantemente dois limites que devem minimizar uma dupla violência: a prática de delitos é antijurídica, mas também o é a punição excessiva.
4. O óbice à detração do tempo de recolhimento noturno e aos finais de semana determinado com fundamento no art. 319 do Código de Processo Penal sujeita o Apenado a excesso de execução, em razão da limitação objetiva à liberdade concretizada pela referida medida diversa do cárcere.
5. A medida diversa da prisão que impede o Acautelado de sair de casa após o anoitecer e em dias não úteis assemelha-se ao cumprimento de pena em regime prisional semiaberto. Se nesta última hipótese não se diverge que a restrição da liberdade decorre notadamente da circunstância de o Agente ser obrigado a recolher-se, igual premissa deve permitir a detração do tempo de aplicação daquela limitação cautelar. Ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio: onde existe a mesma razão fundamental, aplica-se a mesma regra jurídica.
6. O Superior Tribunal de Justiça, nos casos em que há a configuração dos requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal, admite que a condenação em regime semiaberto produza efeitos antes do trânsito em julgado da sentença (prisão preventiva compatibilizada com o regime carcerário do título prisional). Nessa perspectiva, mostra-se incoerente impedir que a medida cautelar que pressuponha a saída do Paciente de casa apenas para laborar, e durante o dia, seja descontada da reprimenda.
7. Conforme ponderou em seu voto-vogal o eminente Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, o réu submetido a recolhimento noturno domiciliar e dias não úteis - ainda que se encontre em situação mais confortável em relação àqueles a quem se impõe o retorno ao estabelecimento prisional -, "não é mais senhor da sua vontade", por não dispor da mesma autodeterminação de uma pessoa integralmente livre. Assim, em razão da evidente restrição ao status libertatis nesses casos, deve haver a detração.
8. Conjuntura que impõe o reconhecimento de que as hipóteses do art.
42 do Código Penal não consubstanciam rol taxativo.
9. A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça deliberou que a soma das horas de recolhimento domiciliar a que o Paciente foi submetido devem ser convertidas em dias para contagem da detração da pena. Se no cômputo total remanescer período menor que vinte e quatro horas, essa fração de dia deverá ser desprezada.
10. Parecer ministerial acolhido. Ordem de habeas corpus concedida, para que o período de recolhimento domiciliar a que o Paciente foi submetido (fiscalizado, no caso, por monitoramento eletrônico) seja detraído da pena do Paciente, nos termos do presente julgamento.
(HC 455.097/PR, Rel. Ministra LAURITA VAZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 14/04/2021, DJe 07/06/2021)
Leia a decisão: HC 455.097
12. Multa não impede extinção da punibilidade para condenado que não pode pagar:
RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. EXECUÇÃO PENAL. REVISÃO DE TESE. TEMA 931. CUMPRIMENTO DA SANÇÃO CORPORAL. PENDÊNCIA DA PENA DE MULTA. CUMPRIMENTO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE OU DE RESTRITIVA DE DIREITOS SUBSTITUTIVA. INADIMPLEMENTO DA PENA DE MULTA. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. COMPREENSÃO FIRMADA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO JULGAMENTO DA ADI N. 3.150/DF. MANUTENÇÃO DO CARÁTER DE SANÇÃO CRIMINAL DA PENA DE MULTA. PRIMAZIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA EXECUÇÃO DA SANÇÃO PECUNIÁRIA. ALTERAÇÃO LEGISLATIVA DO ART. 51 DO CÓDIGO PENAL. DISTINGUISHING. IMPOSSIBILIDADE DE CUMPRIMENTO DA PENA PECUNIÁRIA PELOS CONDENADOS HIPOSSUFICIENTES. PRINCÍPIO DA INTRASCENDÊNCIA DA PENA. VIOLAÇÃO DE PRECEITOS FUNDAMENTAIS. EXCESSO DE EXECUÇÃO. RECURSO PROVIDO.
1. A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento do Recurso Especial Representativo da Controvérsia n. 1.519.777/SP (Rel. Ministro Rogerio Schietti, 3ª S., DJe 10/9/2015), assentou a tese de que "[n]os casos em que haja condenação a pena privativa de liberdade e multa, cumprida a primeira (ou a restritiva de direitos que eventualmente a tenha substituído), o inadimplemento da sanção pecuniária não obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade".
2. Entretanto, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.150 (Rel. Ministro Marco Aurélio, Rel. p/ Acórdão Ministro Roberto Barroso, Tribunal Pleno, DJe-170 divulg. 5/8/2019 public.6/8/2019), o Pretório Excelso firmou o entendimento de que a alteração do art. 51 do Código Penal, promovida Lei n. 9.268/1996, não retirou o caráter de sanção criminal da pena de multa, de modo que a primazia para sua execução incumbe ao Ministério Público e o seu inadimplemento obsta a extinção da punibilidade do apenado. Tal compreensão foi posteriormente sintetizada em nova alteração do referido dispositivo legal, levada a cabo pela Lei n. 13.964/2019.
3. Em decorrência do entendimento firmado pelo STF, bem como em face da mais recente alteração legislativa sofrida pelo artigo 51 do Código Penal, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento dos Recursos Especiais Representativos da Controvérsia n. 1.785.383/SP e 1.785.861/SP (Rel. Ministro Rogerio Schietti, 3ª S., DJe 21/9/2021), reviu a tese anteriormente aventada no Tema n. 931, para assentar que, "na hipótese de condenação concomitante a pena privativa de liberdade e multa, o inadimplemento da sanção pecuniária obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade".
4. Ainda consoante o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal julgamento da ADI n. 3.150/DF, "em matéria de criminalidade econômica, a pena de multa desempenha um papel proeminente de prevenção específica, prevenção geral e retribuição".
5. Na mesma direção, quando do julgamento do Agravo Regimental na Progressão de Regime na Execução Penal n. 12/DF, a Suprema Corte já havia ressaltado que, "especialmente em matéria de crimes contra a Administração Pública - como também nos crimes de colarinho branco em geral -, a parte verdadeiramente severa da pena, a ser executada com rigor, há de ser a de natureza pecuniária. Esta, sim, tem o poder de funcionar como real fator de prevenção, capaz de inibir a prática de crimes que envolvam apropriação de recursos públicos".
6. Mais ainda, segundo os próprios termos em que o Supremo Tribunal Federal decidiu pela indispensabilidade do pagamento da sanção pecuniária para o gozo da progressão a regime menos gravoso, "[a] exceção admissível ao dever de pagar a multa é a impossibilidade econômica absoluta de fazê-lo. [...] é possível a progressão se o sentenciado, veraz e comprovadamente, demonstrar sua absoluta insolvabilidade. Absoluta insolvabilidade que o impossibilite até mesmo de efetuar o pagamento parcelado da quantia devida, como autorizado pelo art. 50 do Código Penal" (Rel. Ministro Roberto Barroso, Tribunal Pleno, DJe-111 divulg. 10/6/2015 public.
11/6/2015).
7. Nota-se o manifesto endereçamento das decisões retrocitadas àqueles condenados que possuam condições econômicas de adimplir a sanção pecuniária, de modo a impedir que o descumprimento da decisão judicial resulte em sensação de impunidade.
8. Oportunamente, mencione-se também o teor da Recomendação n. 425, de 8 de outubro de 2021, do Conselho Nacional de Justiça, a qual institui, no âmbito do Poder Judiciário, a Política Nacional Judicial de Atenção a Pessoas em Situação de Rua e suas interseccionalidades, abordando de maneira central a relevância da extinção da punibilidade daqueles a quem remanesce tão-somente o resgate da pena pecuniária, ao estabelecer, em seu art. 29, parágrafo único, que, "[n]o curso da execução criminal, cumprida a pena privativa de liberdade e verificada a situação de rua da pessoa egressa, deve-se observar a possibilidade de extinção da punibilidade da pena de multa".
9. Releva, por seu turno, obtemperar que a realidade do País desafia um exame do tema sob outra perspectiva, de sorte a complementar a razão final que inspirou o julgamento da Suprema Corte na ADI 3.150/DF. Segundo dados do Infopen, até dezembro de 2020, 40,91% dos presos no país estavam cumprindo pena pela prática de crimes contra o patrimônio; 29,9%, por tráfico de drogas, seguidos de 15,13% por crimes contra a pessoa, crimes que cominam pena privativa de liberdade concomitantemente com pena de multa.
10. Não se há, outrossim, de desconsiderar que o cenário do sistema carcerário expõe as vísceras das disparidades sócio-econômicas arraigadas na sociedade brasileira, as quais ultrapassam o inegável caráter seletivo do sistema punitivo e se projetam não apenas como mecanismo de aprisionamento físico, mas também de confinamento em sua comunidade, a reduzir, amiúde, o indivíduo desencarcerado ao status de um pária social. Outra não é a conclusão a que poderia conduzir - relativamente aos condenados em comprovada situação de hipossuficiência econômica - a subordinação da retomada dos seus direitos políticos e de sua consequente reinserção social ao prévio adimplemento da pena de multa.
11. Conforme salientou a instituição requerente, o quadro atual tem produzido "a sobrepunição da pobreza, visto que o egresso miserável e sem condições de trabalho durante o cumprimento da pena (menos de 20% da população prisional trabalha, conforme dados do INFOPEN), alijado dos direitos do art. 25 da LEP, não tem como conseguir os recursos para o pagamento da multa, e ingressa em círculo vicioso de desespero".
12. Ineludível é concluir, portanto, que o condicionamento da extinção da punibilidade, após o cumprimento da pena corporal, ao adimplemento da pena de multa transmuda-se em punição hábil tanto a acentuar a já agravada situação de penúria e de indigência dos apenados hipossuficientes, quanto a sobreonerar pessoas próximas do condenado, impondo a todo o seu grupo familiar privações decorrentes de sua impossibilitada reabilitação social, o que põe sob risco a implementação da política estatal proteção da família (art. 226 da Carta de 1988).
13. Demais disso, a barreira ao reconhecimento da extinção da punibilidade dos condenados pobres, para além do exame de benefícios executórios como a mencionada progressão de regime, frustra fundamentalmente os fins a que se prestam a imposição e a execução das reprimendas penais, e contradiz a inferência lógica do princípio isonômico (art. 5º, caput da Constituição Federal) segundo a qual desiguais devem ser tratados de forma desigual. Mais ainda, desafia objetivos fundamentais da República, entre os quais o de "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais" (art. 3º, III).
14. A extinção da punibilidade, quando pendente apenas o adimplemento da pena pecuniária, reclama para si singular relevo na trajetória do egresso de reconquista de sua posição como indivíduo aos olhos do Estado, ou seja, do percurso de reconstrução da existência sob as balizas de um patamar civilizatório mínimo, a permitir outra vez o gozo e o exercício de direitos e garantias fundamentais, cujo panorama atual de interdição os conduz a atingir estágio de desmedida invisibilidade, a qual encontra, em última análise, semelhança à própria inexistência de registro civil.
15. Recurso especial provido, para acolher a seguinte tese: Na hipótese de condenação concomitante a pena privativa de liberdade e multa, o inadimplemento da sanção pecuniária, pelo condenado que comprovar impossibilidade de fazê-lo, não obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade.
(REsp 1785861/SP, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 24/11/2021, DJe 30/11/2021)
13. Terceira Seção admite realização de audiência de custódia em comarca diversa do local da prisão:
CONFLITO DE COMPETÊNCIA. PROCESSUAL PENAL. PRISÃO EM FLAGRANTE REALIZADA QUANDO DO CUMPRIMENTO DE MANDADO DE BUSCA E APREENSÃO.
UNIDADE JURISDICIONAL DIVERSA. AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA. INVESTIGADO JÁ TRANSFERIDO PARA A COMARCA PREVENTA. AUSÊNCIA DE RAZOABILIDADE DE RETORNO PARA A REALIZAÇÃO DO ATO. CONFLITO CONHECIDO PARA DECLARAR COMPETENTE O JUÍZO SUSCITADO.
1. Nos termos da jurisprudência desta Corte, a audiência de custódia deve ser realizada na localidade em que ocorreu a prisão.
No caso, porém, o Investigado já foi conduzido à Comarca do Juízo que determinou a busca e apreensão, há aparente conexão probatória com outros casos e prevenção daquele Juízo, de forma que não se mostra razoável determinar o retorno do Investigado para análise do auto de prisão em flagrante, notadamente em razão da celeridade que deve ser empregada em casos de análise da legalidade da custódia.
2. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo de Direito da Comarca de São Lourenço do Oeste/SC, o Suscitado.
(CC 182.728/PR, Rel. Ministra LAURITA VAZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 13/10/2021, DJe 19/10/2021)
Leia a decisão: CONFLITO DE COMPETÊNCIA Nº 182.728
Presidente Jair Bolsonaro sanciona nova lei sobre mercado de câmbio
O presidente Jair Bolsonaro sancionou a Lei 14.286/2021, que dispõe sobre o mercado de câmbio brasileiro, o capital brasileiro no exterior, o capital estrangeiro no País e a prestação de informações ao Banco Central do Brasil. Conhecida como o novo marco cambial do País, o texto moderniza a legislação atual, que é de 1935, e representa uma “revolução” no mercado de câmbio, de acordo com o Banco Central. A lei sancionada está publicada no Diário Oficial da União (DOU) desta quinta-feira (30) e entra em vigor em um ano.
Dentre as principais novidades da nova lei sobre o mercado de câmbio, estão: mudança do teto do valor permitido durante viagens internacionais, de R$ 10 mil para US$ 10 mil ou equivalente; liberação para que pessoa física possa realizar no País operações de compra ou venda de moeda estrangeira em espécie no valor de até US$ 500 ou seu equivalente em outras moedas, de forma eventual e não profissional; facilitação para que compra e venda de moeda estrangeira possa ser feita com outros agentes, e não apenas bancos e corretoras; facilitação para que bancos e instituições financeiras possam investir no exterior; possibilidade de abertura de conta em dólar no Brasil por um investidor estrangeiro ou em casos específicos que devem ser justificados ao Banco Central; e facilitação de remessa do exterior para uma instituição brasileira que tenha um correspondente bancário fora do País.
Em nota, a Secretaria-Geral da Presidência da República ressalta que “a proposta possibilita que bancos e instituições financeiras brasileiros invistam no exterior recursos captados no País ou no exterior, além de facilitar o uso da moeda brasileira em transações internacionais”. Também, as instituições financeiras autorizadas a funcionar pelo Banco Central poderão usar os recursos para alocar, investir, financiar ou emprestar no território nacional ou estrangeiro.
A lei ainda abre maior possibilidade de pagamento em moeda estrangeira de obrigações devidas no território nacional e passa a permitir pagamentos de contratos de arrendamento mercantil (leasing) feitos entre residentes no Brasil, se os recursos forem captados no exterior.
Pelo novo marco cambial, algumas atribuições do Conselho Monetário Nacional (CMN) são transferidas para o Banco Central, “como a regulação das operações de câmbio, contratos futuros de câmbio usados pelo Banco Central e a organização e fiscalização de corretoras de valores de bolsa e de câmbio”.
Com informações de Estadão Conteúdo (Luci Ribeiro)
Fonte: Mercado e Consumo
Acessado dia 01/01/2022 no link: https://mercadoeconsumo.com.br/2021/12/30/presidente-jair-bolsonaro-sanciona-nova-lei-sobre-mercado-de-cambio/amp/
BOLETIM DO NUPPE
O Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da UFPR apresenta o seu Boletim do ano de 2021. O IBDPE tem grande felicidade em patrocinar este promissor grupo de pesquisa e O Boletim esá disponível no seguinte link:
O ETERNO RETORNO DO AUTORITARISMO
''Curiosamente, vale relembrar, a Súmula 691 do próprio Supremo Tribunal Federal veda o conhecimento de habeas corpus impetrado contra decisão monocrática. No mesmo sentido, por coerência sistêmica, imperativo também seria o não conhecimento de pleito acusatório.
Importante, então, deixar claro: os precedentes citados não guardam qualquer relação concreta com o caso da boate Kiss''.
Ainda, e pelo único período da história nacional, foi determinado no art. 10 do Ato Institucional a suspensão da garantia do habeas corpus nos crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social, e a economia popular.
O Ato vigorou até a promulgação da Emenda Constitucional nº 11, em outubro de 1978, que revogou os Atos Institucionais que contrariassem a Constituição.
Exatamente uma década depois, em 1988, promulgou-se a vigente Constituição Cidadã, consagrando em seu segundo título direitos e garantias fundamentais, dentre os quais se insere a concessão de habeas corpus (art. 5º, LXVIII). Direito que, passadas cinco décadas do AI-5, vê-se novamente em risco de mitigação.
Na última semana, noticiou-se amplamente o julgamento de quatro acusados de terem agido com suposto dolo eventual na trágica fatalidade que vitimou centenas de pessoas na boate Kiss, em Santa Maria/RS. Ao final, foram os quatro condenados, tendo o juiz presidente decretado a execução imediata da pena privativa de liberdade, nos termos do art. 492, I, e, CPP. Uma das defesas, porém, havia impetrado writ preventivo de habeas corpus, tendo obtido decisão liminar do TJRS impedindo a execução provisória da pena.
Em face disso, no dia 13 de dezembro, o Ministério Público do Rio Grande do Sul, em grave deturpação de seu papel institucional, sem interpor sequer agravo interno, como pontuou Alberto Zacharias Toron[5], não aguardou o julgamento de mérito do writ nem encaminhou qualquer medida ao Superior Tribunal de Justiça (instância imediatamente superior), mas dirigiu-se diretamente ao Supremo Tribunal Federal protocolando pedido de Suspensão de Liminar (SL 1504 MC).
O fundamento buscado para tanto teve por base o art. 297 do Regimento Interno do STF e o art. 4º da Lei nº 8.437/92 - cuja redação expressa aponta a possibilidade de suspensão de execução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes. Cita como precedentes a SL 453 MC, a SL 787 e a SL 1395. Necessário, portanto, um breve distinguishing dos casos mencionados.
A SL 453 MC, de relatoria do Min. Cezar Peluso, foi julgada em 2010, e tinha por objeto a suspensão de ordem liminar de habeas corpus deferida para que o paciente, condenado, retornasse à unidade prisional onde cumpria inicialmente a pena:
“Requer o Estado do Rio de Janeiro, em síntese, que o réu cumpra o restante da pena privativa de liberdade em presídio federal de segurança máxima (Mossoró), alega que seu retorno aos presídios do Rio de Janeiro causará irreparável lesão à ordem e à segurança pública.”
A SL 787, por sua vez, de relatoria do Min. Joaquim Barbosa, foi julgada em 2014, e tinha por objeto a suspensão de ordens liminares de habeas corpus deferidas que versavam sobre a alteração das posições cênicas dos plenários de júri no Rio Grande do Sul:
“Por essa razão, argumenta, ajuizou a presente suspensão de liminar sustentando: a) impropriedade do habeas corpus para o questionamento da disposição cênica do plenário do Tribunal do Júri, haja vista que a tutela pretendida no caso não se refere à liberdade de locomoção; b) violação ao enunciado da Súmula Vinculante 10, pois as decisões proferidas pelo TJRS afastaram a incidência de dispositivos da Lei Orgânica do Ministério Público, mesmo sem haver declaração expressa de inconstitucionalidade; e c) lesão à ordem e à segurança públicas em decorrência do cancelamento sucessivo de sessões de julgamento, o que ocasionou o prolongamento indefinido/“eternizando” a existência de inúmeros processos.”
Ambos os casos, em que pese sejam igualmente pedidos de suspensão de liminar em habeas corpus, tem no objeto do mandamus original um ponto específico: atos do poder público. No primeiro, o estabelecimento (federal ou estadual) para o prosseguimento da execução penal. No segundo, a reestruturação cênica dos plenários do Tribunal do Júri. Nenhuma versava diretamente sobre cerceamento imediato do direito de ir e vir.
Situação distinta do que ocorreu na SL 1395, julgada em 2020 pelo próprio min. Luiz Fux. Ali, a partir de pedido formulado pela Procuradoria-Geral da República, pugnava-se pela suspensão de ordem liminar em habeas corpus concedido pelo Min. Marco Aurélio ao paciente alcunhado “André do Rap”, supostamente líder de uma das maiores organizações criminosas do país. A discussão versava sobre se a ausência de revisão periódica da prisão preventiva, advinda com a Lei nº 13.964/19, implicaria ou não a revogação automática da prisão.
Note-se que, em que pese versasse este último caso de habeas corpus liberatório, tampouco se assemelha ao caso da boate Kiss. A liminar cassada por decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal havia sido concedida por outro ministro da mesma Corte. Em que pese a discussão sobre a legitimidade de o presidente, monocraticamente, suspender decisão de outro ministro, distingue-se por completo do caso atual oriundo do TJRS, em que a postulação se deu per saltum.
Curiosamente, vale relembrar, a Súmula 691 do próprio Supremo Tribunal Federal veda o conhecimento de habeas corpus impetrado contra decisão monocrática. No mesmo sentido, por coerência sistêmica, imperativo também seria o não conhecimento de pleito acusatório.
Importante, então, deixar claro: os precedentes citados não guardam qualquer relação concreta com o caso da boate Kiss.
No mérito, fundamentou o órgão de acusação gaúcho nos votos - ainda em discussão - divulgados acerca do RE 1.235.340, nas decisões monocráticas proferidas nas ADIs 6735 e 6783, bem como em suposta ofensa do Desembargador atacado à cláusula de reserva de plenário, sendo necessário o respeito às decisões colegiadas do TJRS, e infirma violações à ordem e à segurança jurídica, à ordem social e à paz pública.
Em menos de um dia, o min. Luiz Fux deferiu a suspensão da liminar pleiteada. Para fundamentar o conhecimento do pleito, fundamentou no art. 297 do Regimento Interno do STF, no art. 4º da Lei nº 8.437/92 e no art. 15 da Lei nº 12.016/09 (que versa sobre o mandado de segurança), bem como indicou como precedentes os seguintes julgados: SS 846 AgR, SS 5049 AgR, SL 1165 AgR, STA 782 AgR, SS 5112 AgR, STA 729 AgR e STA 152 AgR. Distinguishing novamente necessário:
- A SS 846 AgR (Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 29/05/1996) era em face de mandado de segurança, que versava sobre a equiparação e os vencimentos dos policiais civis e militares do Distrito Federal;
- A SS 5049 Agr (Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 22/10/2015) versava sobre ação reintegratória de posse que implicava na retirada de comunidade indígena em terras sob litígio;
- A SL 1165 AgR (Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 13/02/2020) era sobre o distanciamento de veículos em corredores exclusivos de ônibus. Consignou o presidente que “é inadmissível, ademais, o uso da suspensão como sucedâneo recursal”;
- A STA 782 AgR (Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 26/02/2015) versava sobre determinação à Companhia Paulista de Força e Luz a realizar limpezas em áreas ocupadas;
- A SS 5112 AgR (Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 07/04/2017) tratava de discussão sobre pagamento de precatórios ao Instituto de Previdência do Estado de Santa Catarina;
- A STA 729 AgR (Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 22/10/2013) também tinha como parte o Instituto de Previdência de Santa Catarina, que discutia a constitucionalidade dos arts. 206, inc. VI, e 212, inc. I, da lei estadual 6.843/1986;
- A STA 152 AgR (Rel. Min. Ellen Gracie, j. 10/03/2008), por fim, tinha por objeto suspensão de pagamento de taxa de limpeza pública.
Importante assentar, mais uma vez, que nenhum dos precedentes apontados na decisão do min. Luiz Fux guarda qualquer similitude fática com o caso da boate Kiss.
No mérito, trouxe à tona o entendimento assentado no ARE 964.246[6], bem como a nova redação do art. 492, §4º, CPP, afirmando que a decisão liminar atacada teria se dado “ao arrepio da lei e da jurisprudência”, e afirmou verificar “elevada culpabilidade em concreto dos réus”.
Ocorre, porém, que o Supremo Tribunal Federal não tomou ainda decisão colegiada acerca da constitucionalidade da nova redação do art. 492 no tocante à execução imediata da pena. O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, tem entendimento já pacífico em ambas as turmas que julgam matéria penal, e ambas no mesmo sentido: não se admite a execução antecipada da pena[7].
Em face da decisão, porém, se apresentaram voluntariamente os acusados para darem cumprimento à ordem de prisão. Um deles, ao arrepio da Súmula Vinculante nº 11 e da determinação expressa do magistrado de primeiro grau, foi algemado. Ao arrepio da Lei nº 13.869/18, foi exibido como troféu para a imprensa.
Na tarde de quinta feira, 16/12, iniciou o julgamento do mérito do habeas corpus. Em sessão virtual, disponibilizaram-se dois votos, ambos pela concessão da ordem. Se um dos fundamentos do pleito ministerial era violação ao princípio da colegialidade, agora tal argumento já cairia por terra. No entanto, em face disso, o órgão acusador do Rio Grande do Sul protocolou nova petição, nos mesmo autos de SL 1504 MC: em vista da provável concessão da ordem, requereu a concessão de provimento preventivo a fim de impedir eventual concessão de Habeas Corpus pelo TJRS, afirmando que o decreto prisional vigente seria de competência do STF.
Para o espanto da comunidade jurídica, o ministro presidente do Supremo Tribunal Federal deferiu o pedido, para sustar os efeitos de eventual concessão de Habeas Corpus pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, até o trânsito em julgado da ação.
O que se verifica é absolutamente estarrecedor.
A uma, pela inaplicabilidade da Lei nº 8.437/92 a processos criminais, eis que versa expressamente sobre atos do poder público.
A duas, pela impossibilidade de conhecimento de pedido formulado per saltum, desrespeitando o trâmite recursal ordinário.
A três, pela absoluta discrepância entre os precedentes citados e o caso concreto.
A quatro, pela impossibilidade de execução imediata da pena, nos termos do decidido nas ADCs 43, 44 e 54, bem como na recente jurisprudência pacífica do STJ.
A cinco, pela grave violação às garantias constitucionais de presunção de inocência e devido processo legal.
A seis, pela constatação de um arbitrário poder monocrático, exercido pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, contra o qual o Plenário da Corte deve se insurgir.
Em 13 de dezembro de 1968 foi promulgado o Ato Institucional nº 5, que permitia ao Presidente da República exercer seus poderes “sem as limitações previstas na Constituição”, bem como suspendia a ordem de habeas corpus.
Em 13 de dezembro de 2021 o Ministério Público do Rio Grande do Sul protocolou pedido que escancarou uma atuação do Presidente do STF fora das limitações previstas na Constituição, e suspendendo ordem futura de habeas corpus.
A potencialização exponencial dos poderes monocráticos dos ministros ultrapassou todos os limites admissíveis ao Estado Democrático de Direito. Uma revisão urge. Por mais nobres que pudessem ser as intenções individuais, são absolutamente incompatíveis com a democracia.
Por enquanto, a cada dia se torna mais necessário responder à indagação da sexta sátira de Juvenal: quis custodiet ipsos custodes?
Khalil Vieira Proença Aquim
Advogado criminalista
Professor de direito penal da faculdade inspirar
Especialista em direito penal e processual penal
Membro do conselho estadual da associação paranaense dos advogados criminalistas (Apacrimi)
Ex presidente da comissão de advogados iniciantes OAB PR (2016/2018).
NOTAS:
[1] Artigos 2º, 3º e 4º.
[2] Art. 5º.
[3] Art. 6º.
[4] Art. 7º.
[5] https://www.conjur.com.br/2021-dez-15/alberto-toron-justica-todos-boate-kiss
[6] Julgado em 2016, e cujo entendimento foi superado pelo superveniente julgamento das ADCs 43, 44 e 54.
[7] https://www.conjur.com.br/2021-nov-13/tribunal-juri-execucao-provisoria-pena-tribunal-juri
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As novas regras da PGFN para elaboração de representações fiscais para fins penais
Por Thiago Diniz Nicolai e Natália Di Maio
Há pouco mais de três anos, a Receita Federal do Brasil editou a Portaria RFB nº 1.750/2018, que apresentou nova sistemática para a elaboração de representação fiscal para fins penais referente a crimes contra a ordem tributária, contra a Previdência Social, de contrabando ou descaminho, contra a Administração Pública Federal, em detrimento da Fazenda Nacional ou contra administração pública estrangeira, de falsidade de títulos, papéis e documentos públicos e de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores, e sobre representação referente a atos de improbidade administrativa.
Referida norma, além de expor a forma a ser seguida e o que seria obrigatório em termos de conteúdo e documentos instrutórios, ainda contém requisitos de essencial importância, relacionados a prazos para encaminhamento e hipóteses de exceção.
Prevê, por exemplo, o artigo 10, caput — em consonância com a Súmula Vinculante nº 24 do Supremo Tribunal Federal —, que representações fiscais para fins penais relativas a crimes contra a ordem tributária ou contra a Previdência Social devem "permanecer no âmbito da unidade responsável pelo controle do processo administrativo fiscal até a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente". A única hipótese de envio ao MPF antes desse prazo estava relacionada a casos excepcionais de contrabando e descaminho (conforme artigo 10, §1º, artigo 12, §2º, e artigo 15, IV, da referida portaria).
Já o §2º do mesmo artigo determina que, "na hipótese prevista no caput, se o crédito tributário correspondente ao ilícito penal for integralmente extinto por decisão administrativa ou pelo pagamento, os autos da representação, juntamente com cópia da respectiva decisão administrativa, deverão ser arquivados".
A despeito de a matéria estar amplamente positivada, contudo, no último dia 13 de outubro a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional publicou a Portaria nº 12.072/2021 para estabelecer "os procedimentos de envio das representações para fins penais aos órgãos de persecução penal" e dispor "sobre a atuação na esfera penal, da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional", assunto este nunca debatido até então.
Ocorre, no entanto, que tal portaria trouxe diversos pontos que colidem com outras normas e o entendimento jurisprudencial vigente.
O mais grave deles é o fato de não consignar a necessidade de o encaminhamento da representação ter de aguardar o término do processo administrativo relacionado a crimes contra a ordem tributária, em absoluta afronta à Súmula Vinculante nº 24 do STF e ao texto expresso dos artigo 83, caput, e §1º da Lei nº 9.430/96 [1] e do Decreto nº 2.730/98 [2].
Pelo contrário, a nova norma — que não revoga a anterior, pois formulada por órgão distinto — dispõe em sentido diverso, sobre a necessidade de encaminhamento das representações em até 60 dias, contados do encerramento de investigação feita pela Fazenda Nacional ou da ciência dos fatos, na hipótese de o procurador fiscal entender dispensáveis as diligências investigativas ou "se mostrar conveniente e oportuno o encaminhamento imediato" (artigo 3, I e II). Entretanto, a portaria não impõe limites ao entendimento do que seria "conveniente e oportuno", abrindo, assim, possibilidade para que a Fazenda Nacional dite as regras como bem entender.
Mas não é só isso, e não é preciso um raciocínio muito profundo para perceber os demais problemas intrínsecos às novas disposições normativas. Numa análise rasa, estamos diante desde a afronta direta a texto de súmula vinculante até questões de ordem processual, tendo em vista o previsível aumento de reclamações junto ao STF nos casos em que inquéritos policiais forem instaurados para apurar crimes materiais contra a ordem tributária sem que o débito esteja definitivamente constituído, por exemplo.
Nem mesmo casos em que o débito for parcelado foram excluídos da discricionariedade fiscal, já que, nessas hipóteses, o prazo de 60 dias será contado do restabelecimento da exigibilidade, "salvo se houver indicativo de concurso de crimes com outras espécies delitivas, caso em que será aplicada a regra geral do caput deste artigo" (artigo 3º, §1º).
Nesse ponto, a norma aumenta de maneira vertiginosa os poderes dos procuradores da Fazenda, que agora terão a possibilidade e a discricionariedade de decidir se, além do delito fiscal, há indícios de eventual lavagem de capitais, falsidades, crimes contra a Administração Pública etc.
Outra novidade é a possibilidade de a Procuradoria da Fazenda Nacional poder recorrer de arquivamentos de representações fiscais feitos pelo Ministério Público Federal (artigo 5º), providência prevista pela primeira vez, tal qual a possibilidade de o Fisco se tornar assistente do MPF em ações penais (artigo 6º, caput), participar ativamente em colaborações premiadas (artigo 6º, §2º) e oferecer ação penal privada subsidiária da pública em caso de inércia ministerial (artigo 7º).
Primeiramente, a possibilidade de recurso do arquivamento está fundamentada no artigo 28, §1º, do Código de Processo Penal. Entretanto, tal norma está com sua vigência suspensa, em razão de decisão liminar proferida Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.305/DF, sem previsão de julgamento. Não bastasse isso, a legislação fala em possibilidade de recurso da vítima, cabendo aqui, ainda, uma discussão sobre se a PGFN seria vítima de delitos tributários — o que não nos parece o caso.
Noutro passo, a figura dos assistentes é prevista nos artigos 268 a 273 do CPP, que autorizam a intervenção, em todos os termos da ação pública, do ofendido ou de seu representante legal. E quando se fala em "ofendido", quer-se dizer a vítima pessoa física ou quem lhe represente. Como ensina Aury Lopes Jr., a possibilidade de que órgãos ou entidades sejam assistentes da acusação só é relativizado em casos excepcionais e previstos em lei de forma expressa [3], como acontece com a CVM e o Banco Central nas Leis nº 6.385/79 e 7.492/86.
Para que a PGFN pudesse cogitar auxiliar formalmente o MPF em ações penais, seria preciso haver uma alteração legislativa prevendo essa hipótese, alteração essa que não pode, nunca, ser substituída por uma portaria do órgão fiscal.
O mesmo entendimento deve ser aplicado para a participação ativa do Fisco em procedimentos de colaboração premiada, ante a sua ilegitimidade para atuação em processos criminais. No entanto, visando a celeridade, transparência e segurança jurídica, nada impede que exista uma negociação conjunta do acordo em matéria penal com uma transação tributária, em consonância com o disposto na Lei nº 13.988/20 [4].
Como se pode perceber, o texto proposto pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional destoa não só de dispositivos legais e da jurisprudência, como da própria Secretaria da Receita Federal do Brasil, entidade que está hierarquicamente pareada a ela dentro do Ministério da Fazenda. Ora, não é possível que dois órgãos fiscais tenham entendimentos diferentes sobre um mesmo assunto; que o fiscal da RFB fale uma coisa enquanto o Procurador da PGFN pensa de forma diversa. É preciso que a União esteja alinhada numa posição única, e, diante do quanto exposto neste artigo, não nos parece que a melhor saída seja tomar a posição da Portaria nº 12.072/21 como norte.
[1] Nos termos dos quais "a representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária previstos nos artigos 1º e 2º da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e aos crimes contra a Previdência Social, previstos nos artigos 168-A e 337-A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), será encaminhada ao Ministério Público depois de proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente". "Na hipótese de concessão de parcelamento do crédito tributário, a representação fiscal para fins penais somente será encaminhada ao Ministério Público após a exclusão da pessoa física ou jurídica do parcelamento".
[2] "Artigo 1º - O Auditor-Fiscal do Tesouro Nacional formalizará representação fiscal, para os fins do artigo 83 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, em autos separados e protocolizada na mesma data da lavratura do auto de infração, sempre que, no curso de ação fiscal de que resulte lavratura de auto de infração de exigência de crédito de tributos e contribuições administrados pela Secretaria da Receita Federal do Ministério da Fazenda ou decorrente de apreensão de bens sujeitos à pena de perdimento, constatar fato que configure, em tese; I - crime contra a ordem tributária tipificado nos artigos 1º e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990; II - crime de contrabando ou descaminho. Artigo 2º Encerrado o processo administrativo-fiscal, os autos da representação fiscal para fins penais serão remetidos ao Ministério Público Federal, se: I - mantida a imputação de multa agravada, o crédito de tributos e contribuições, inclusive acessórios, não for extinto pelo pagamento; II - aplicada, administrativamente, a pena de perdimento de bens, estiver configurado em tese, crime de contrabando ou descaminho".
[3] Direito Processual Penal, 17ª ed., Saraiva, São Paulo, 2020, p. 613. Isso sem contar, como segue o professor, que "se o crime for praticado em detrimento do patrimônio ou interesse da União, Estado e Município, a ação penal será de iniciativa pública. Logo, quem defende em juízo os interesses do órgão público afetado é o Ministério Público, sendo sem sentido (salvo para gerar desequilíbrio processual e contaminar o processo com o sentimento de vingança) admitir-se a assistência. Do contrário, teríamos que admitir que o Ministério Público é negligente na tutela do patrimônio público, o que seria um contrassenso" (Opus citatum, p. 613/614).
[4] "Artigo 1º - Esta Lei estabelece os requisitos e as condições para que a União, as suas autarquias e fundações, e os devedores ou as partes adversas realizem transação resolutiva de litígio relativo à cobrança de créditos da Fazenda Pública, de natureza tributária ou não tributária".
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Considerações sobre o chamado jurado 'suplente'
Por Adriano Bretas
Entre a teoria e a prática, têm sido convencionadas adaptações que moldam a realidade. A teoria sem a prática é um encastelamento dogmático estéril. A prática sem a teoria cavalga no campo da temeridade. É, pois, na intersecção entre a legalidade e a sua aplicação que se modulam a doutrina e a jurisprudência.
Isso não muda em relação à figura do jurado dito "suplente".
Fixemos algumas premissas.
De acordo com o CPP, dez a 15 dias úteis antes do início da reunião periódica do Tribunal do Júri deve ser realizado o sorteio de jurados (artigo 433, parágrafo 1º). Premissa um.
Ainda de acordo com o CPP, nessa ocasião, devem ser sorteados 25 jurados (artigo 433, caput). Premissa dois.
Do mesmo modo, conforme o CPP, no dia do júri, devem comparecer, pelo menos, 15 jurados (artigo 463) para a instalação dos trabalhos, dos quais serão sorteados os sete para compor o conselho de sentença. Premissa três.
Pois bem.
Até aqui, a legislação não prevê a figura do chamado jurado suplente. Do ponto de vista legal, conforme o artigo 464, o jurado dito suplente só passa a entrar em cena a partir do momento em que não houver quórum para instalação dos trabalhos, situação em que o juiz deverá sorteá-los e designar nova data para o júri.
Isso é o que prevê a lei.
Mas não é o que tem sido feito Brasil afora.
A práxis tem convencionado algo distinto. A doutrina [1] (Avelar e Faucz) e a jurisprudência (TJ-PR [2]) já consagraram a prática de sortear os jurados suplentes desde o sorteio primitivo dos 25 jurados iniciais. Convencionaram-se, assim, duas categorias de jurados: os titulares e os suplentes.
No dia do júri, todos — titulares e suplentes — têm o dever de comparecer. Essa prática tem evitado o chamado estouro de urna e a consequente redesignação de diversos júris.
Perfeito.
À figura do jurado suplente, em si, nenhuma objeção.
À possibilidade de o jurado suplente ser sorteado na mesma ocasião em que são sorteados os titulares, mesmo que a lei defina outra oportunidade, também, nenhuma objeção.
Todavia, algumas questões práticas têm causado preocupação.
A primeira questão (a menos preocupante, na verdade) concerne ao número de jurados suplentes. Em alguns casos práticos, tem-se sorteado mais suplentes do que titulares. Vinte e cinco são os titulares. Há situações em que os suplentes somam mais de 30. Com base em qual critério são sorteados 35 suplentes? Por que não 25? Ou 93? Ou 327? Seja como for, consoante dito acima, essa questão é a menos preocupante.
Outra questão (esta, sim, relevante) diz respeito à ocasião em que o jurado suplente passa a integrar o universo de jurados potencialmente sorteáveis para a composição do conselho de sentença. Na prática, jurados titulares e jurados suplentes acabam se misturando no mesmo elenco. Assim, se existem 25 jurados titulares e outros tantos 35 suplentes, o juiz sorteia um a um do universo de 60 jurados.
Isso é inaceitável.
O correto seria que os jurados suplentes só passassem a figurar no universo de jurados potencialmente sorteáveis a partir do momento em que os titulares faltassem ao comparecimento do júri. Aliás, foi exatamente assim que se fez ainda há pouco no rumoroso caso da boate Kiss.
E aí duas possibilidades poderiam ser abertas.
A primeira possibilidade é que os jurados suplentes só fossem acionados a partir do momento em que faltasse o quorum de pelo menos 15 jurados presentes para a instalação dos trabalhos. Se comparecerem, por exemplo, 13 jurados titulares, dois suplentes seriam escalados para compor o quórum de 15 jurados para a instalação dos trabalhos.
A segunda possibilidade é que os jurados suplentes pudessem ser acionados desde o momento em que faltasse um dos 25 jurados titulares. Se comparecerem, por exemplo, 20 jurados, cinco suplentes seriam escalados para compor o número de 25 jurados sorteáveis para o conselho de sentença.
A primeira solução nos parece a mais acertada.
De todo modo, seja pela primeira possibilidade (15 jurados), seja pela segunda possibilidade (25 jurados), não se pode aceitar que jurados titulares e jurados suplentes componham um universo indistinto de pessoas potencialmente sorteáveis para integrar o conselho de sentença.
Não se pretende o estouro de urna.
Não se pretende adiamentos de júris.
O que não se admite é que jurados suplentes funcionem como se titulares fossem.
Mas, aqui, outra ordem de preocupação: qual o critério para se escalar tal ou qual jurado suplente?
Uma das alternativas seria sortear, entre os suplentes, os nomes que passarão a integrar o universo dos que serão posteriormente sorteados para o conselho de sentença. Haveria, assim, três sorteios. O primeiro, de dez a 15 dias úteis antes do início da reunião periódica, sortearia titulares e suplentes. O segundo, no dia do júri, sortearia suplentes para compor o universo de potenciais jurados efetivos. E o terceiro, finalmente, sortearia os jurados que farão parte do conselho de sentença. Parece-nos uma inovação um tanto ousada.
Outra alternativa seria tomar, entre os suplentes, os primeiros nomes que figuram na ordem da lista do sorteio inicial. Parece-nos o mais razoável.
Uma terceira preocupação é que, durante a pandemia, inaugurou-se uma terceira figura: o jurado dito complementar.
Nem titular, nem suplente.
Existe uma lista de jurados titulares e uma lista de jurados suplentes (sorteados com a antecedência que o código define). E existe uma lista de jurados ditos complementares que são sorteados às vésperas do júri, fora do prazo preconizado em lei, sob o argumento de que a pandemia tem acarretado muitas ausências de jurados.
Assim, todos os jurados — titulares, suplentes e complementares — passam a integrar o universo de jurados que são sorteados para compor o conselho de sentença.
Titulares: 25. Sorteados com a antecedência legal. Tudo bem.
Suplentes: às vezes 20, 30 ou até mais. Sorteados com a antecedência legal. Não é bem o que define o código, mas tem lá o seu respaldo doutrinário e jurisprudencial. Passa. Com ressalvas: de forma subsidiária aos titulares.
Complementares: por vezes, 20. Sorteados a destempo. Um absurdo.
Somados, titulares, suplentes e complementares, os jurados chegam a alcançar um universo da casa de 80 pessoas. 80!
Mais do que o triplo dos 25 previstos em lei.
E o prejuízo decola do fato de que as recusas imotivadas permanecem sendo três. Uma coisa é recusar três jurados de um universo de 25. Uma coisa é recusar três jurados de um universo de 15 — o que equivale a 20% do universo dos sorteáveis.
Outra coisa, bem distinta, é recusar três jurados de um universo de 80. As recusas acabam se diluindo num contingente muito mais amplo.
Essas preocupações todas acabam tendo profundas ressonâncias num princípio basilar de um processo penal de base garantista: o juiz natural da causa. É direito de todo jurisdicionado saber, de antemão, os critérios que definem quem vai lhe julgar. A existência de critérios prévios, definidos em lei, para a definição de quem vai julgar a causa, constitui garantia processual intransponível. Desbordar esses limites espanca de morte a espinha dorsal de princípios que garantem a segurança jurídica do jurisdicionado.
Nem se alegue que a prática já está consagrada pelo uso.
O certo é certo. O errado é errado.
O certo é certo, mesmo que nunca tenha sido feito.
O errado é errado, mesmo que sempre tenha sido feito.
Se a realidade posta está errada, que seja corrigida. Errar é humano. Permanecer no erro é teimosia.
[1] AVELAR, Daniel Ribeiro Surdi de e SILVA, Rodrigo Faucz Pereira e. Plenário do Tribunal do Júri. São Paulo: RT, 2020, p. 40.
[2] Correição Parcial nº 0005257-58.2018.8.16.0000.
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O que é “lavagem de provas” na colaboração premiada?
por Guilherme Brenner Lucchesi[1] e Lucas Gandolfi Vida[2]
Imagine uma situação hipotética: o Ministério Público deflagra operação contra cinco alvos, todos dirigentes empresariais, a fim de investigar atos de fraude a licitações públicas, corrupção ativa e passiva e lavagem de dinheiro. Segundo o Ministério Público, os alvos integram suposta organização criminosa que, mediante o pagamento de vantagens indevidas a agentes públicos, mantinha-se hegemônica no mercado por vencer indevidamente licitações públicas. Parte dos recursos era movimentado para fora do país mediante companhias offshore.
Após diligências investigativas de interceptação telefônica e quebras de sigilo, houve a expedição de ordens de busca apreensão e mandados de prisão temporária contra os cinco dirigentes. Sabendo-se da existência de fortes indícios de atividade delitiva nos materiais apreendidos, dando conta de reiterada prática criminosa, dois dos cinco alvos, por recomendação de seus respectivos advogados, buscam o Ministério Público para a propositura de um acordo de colaboração premiada. Embora o MP já detivesse informações suficientes para a desarticulação da organização criminosa, percebeu, na busca, que os agentes possuíam outras informações relevantes do modus operandi da organização, bem como outras informações que poderiam levar ao desbaratamento de outras organizações criminosas conexas. Por isso, o MP dá início a tratativas com os dois potenciais colaboradores que, por sua vez, apresentam documentos relevantes que corroboram outros dados já arrecadados, de modo a guiar novas diligências em investigações que já estavam em curso, bem como auxiliam na compreensão da estrutura organizacional e na interpretação dos inúmeros documentos coletados.
São realizadas as tratativas pré-acordo, assinados termos de confidencialidade e entregues anexos com rica descrição das atividades criminosas desenvolvidas, acompanhadas de documentos ainda desconhecidos pelas autoridades e indicações de linhas frutíferas para as investigações em curso. Em síntese, estão preenchidos todos os requisitos para a celebração do acordo, resultante em benefícios aos colaboradores e em provas para serem usadas pelo Ministério Público. Contudo, sob a justificativa de que as informações apresentadas seriam insuficientes – alegação de suposta justa causa – o membro do Ministério Público rejeita a oferta de acordo, devolvendo os documentos e encerrando as tratativas com os pretensos colaboradores. Todos os alvos são denunciados, e a peça acusatória apresenta peculiar riqueza de detalhes sobre os fatos em apuração, não descrita no requerimento de busca e apreensão e prisão temporária dos alvos. Indica-se ter havido novas diligências investigativas posteriormente às buscas e prisões. Tais medidas foram baseadas nas informações obtidas nas tratativas com os pretensos colaboradores?
Há uma questão relevante surgida a partir do exemplo hipotético. Tendo em vista o aparente uso das informações fornecidas pelos alvos durante as tratativas, não se pode simplesmente afirmar que as novas provas, obtidas a partir de diligências investigativas posteriores, tenham sido obtidas por fonte propriamente independente. Caso a investigação tenha sido direcionada para obter algo que não estava ao alcance das autoridades antes das tratativas preliminares de acordo, pode-se reconhecer que os pretensos colaboradores auxiliaram na elucidação do fato e na construção da narrativa acusatória. Caberia um argumento pela impossibilidade de rejeição unilateral do acordo diante de uma efetiva colaboração pelos investigados.
Tendo em vista que as diligências investigativas resultaram na obtenção de provas inicialmente identificadas nas tratativas iniciais para a colaboração premiada, pode-se efetivamente dizer que as informações obtidas dos pretensos colaboradores foram efetivamente utilizadas? Desse questionamento surgem outros, referentes à eventual quebra de custódia da prova e quanto à criação de um mecanismo interno de controle da discricionariedade do Ministério Público na celebração/recusa de acordos.
É neste contexto que identificamos o fenômeno da lavagem de provas, compreendida como a dissimulação ou a ocultação da origem de uma informação inutilizável no processo como fonte de meios de prova, a fim de conferir aparência de legitimidade à sua origem.
Ainda que este fenômeno possa ter lugar em outros momentos processuais, optamos por explorá-lo justamente à luz de sua potencial incidência na formação dos acordos de colaboração premiada, em artigo recente publicado na Revista Brasileira de Direito Processual Penal, v. 7, n. 3, sob o título “Perspectivas quanto à lavagem de provas na colaboração premiada: proposta para controle de abuso processual”. [3]
O artigo busca compreender o fenômeno da lavagem de provas, a partir da definição proposta, analisando os contornos legais do fenômeno e a (i)licitude das provas dele derivadas. Ademais, também examinamos a lavagem de provas também à luz da cadeia de custódia das provas, de modo a verificar se a obtenção — premeditada ou não — de informações fornecidas pelo pretenso colaborador, sem a concessão de um benefício premial, viola alguma regra processual penal. Por fim, buscando estabelecer medidas para controle da ocorrência do fenômeno, apresentamos possíveis soluções extraídas a partir da experiência do programa de leniência do CADE.
Tratando-se de discussão ainda incipiente na práxis dos acordos de colaboração premiada, de relativa complexidade teórica e prática, o tema da lavagem de provas merece discussão qualificada na doutrina processual penal. Enfatiza-se que, mais do que trazer as consequências jurídicas e as eventuais soluções definitivas, o trabalho buscou explorar uma possível saída, assim como um modo de controlar a lavagem de provas na colaboração premiada, convidando a comunidade jurídica ao diálogo quanto às potenciais soluções apresentadas.
[1] Advogado sócio da Lucchesi Advocacia. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Foi Presidente do IBDPE (2017-2021).
[2] Advogado sócio da Gustavo Alberine Pereira Advocacia. Pincadista da 40ª Edição do Programa de Intercâmbio do CADE. Membro do IBDPE.
[3] LUCCHESI, Guilherme Brenner; VIDA, Lucas Gandolfi. Perspectivas quanto à lavagem de provas na colaboração premiada: proposta para controle de abuso processual. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, v. 7, n. 3, p. 2203-2243, set./dez. 2021. https://doi.org/10.22197/rbdpp.v7i3.542
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O recebimento de propina mediante utilização de conta bancária de terceiros
Por: Claudia da Rocha e Gabriel Bertin de Almeida
A lavagem de dinheiro pode ser conceituada como a conduta por meio da qual pretende-se ocultar ou dissimular a origem, localização, disposição ou movimentação de ativos provenientes da prática de uma infração penal. Quanto a esses ativos, há a finalidade de sua reinserção na economia formal, revestida de aparência de licitude.
Por isso, o processo penal envolvendo esse crime necessita da presença de justa causa duplicada, devendo haver lastro probatório mínimo quanto à lavagem e quanto à infração antecedente, que tenha gerado bens, direitos e valores passíveis de serem lavados.
Dessa maneira, não basta a existência de um crime anterior e uma operação posterior. É necessário que haja um nexo entre os bens ocultados, dissimulados e reinseridos e a prática delitiva prévia. Em outros termos, além de existir o crime anterior, ele necessariamente deve ter gerado um proveito (produto em sentido amplo), já que não é possível lavar-se o que não existe.
Fixadas essas premissas, questiona-se se o recebimento de propina mediante utilização de conta bancária de terceiros configura corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Trata-se de concurso de crimes ou mera consumação do crime de corrupção passiva?
Conforme elucida Pierpaolo Bottini, a situação ora discutida é bastante recorrente em processos penais:
Personagens corriqueiros nos processos penais atuais, a corrupção e a lavagem de dinheiro andam de mãos dadas em denúncias e condenações. Sempre que algum servidor público recebe vantagem indevida por interpostas pessoas (esposa, mãe, irmão, sócio) ou empresas laranjas é acusado por ambos os crimes — corrupção pela vantagem indevida, e lavagem de dinheiro pelo recebimento dissimulado.
No entanto, é de ver-se que no crime de corrupção passiva, consoante expressa previsão do artigo 317 do Código Penal, o recebimento da vantagem indevida pode dar-se de forma direta ou indireta .
Na forma direta, o próprio agente recebe a vantagem indevida. Já na indireta o recebimento dá-se por terceiros, por interpostas pessoas, físicas ou jurídicas.
Nesse sentido, BOTTINI esclarece que se um funcionário público recebe vantagens indevidas por intermediários, há corrupção passiva consumada. Mas não há lavagem de dinheiro, pois o recebimento de valores por interposta pessoa já está previsto no tipo penal da corrupção, de modo que o reconhecimento de concurso de crimes, nessa situação, implicaria na punição duplicada pelo mesmo fato.
Por outro lado, HOFFMANN e SANNINI pontuam que na corrupção passiva, o delito consuma-se com a mera solicitação, de modo que se a propina é recebida de forma dissimulada e em um contexto distinto da solicitação anteriormente realizada pelo agente público, estar-se-ia diante de um caso típico de concurso material.
Todavia, o argumento de que a consumação do crime de corrupção passiva já teria ocorrido na solicitação da vantagem indevida, também prevista no tipo penal, não afasta a conclusão de que inexiste o concurso de crimes.
Como se sabe, muito embora a solicitação seja suficiente para a consumação do crime de corrupção passiva, o posterior recebimento da vantagem indevida consubstancia a renovação do fato típico, com nova consumação que absorve a precedente.
Do mesmo modo, TORON aduz o seguinte:
Em outras palavras, para a corrupção passiva consumada, basta a ‘solicitação’, não é necessário o ‘recebimento’, mas se este efetivamente ocorrer, consubstancia ato típico novo, que absorve o precedente, e renova inclusive o início do prazo prescricional. [...] Por isso, a conduta típica da corrupção passiva em análise é o recebimento, e não a solicitação prévia que – embora típica – é absorvida pelo segundo ato. Vale repetir: a consumação da corrupção passiva se dá – sem dúvida – pela solicitação, mas o recebimento posterior é nova consumação, um ato de renovação do fato típico, a partir do qual, inclusive, recomeça a contagem do prazo prescricional, sendo este o núcleo típico que justificou a condenação.
Nesse quadro, para que se possa falar em concurso material entre lavagem de dinheiro e corrupção passiva, deve houver outro ato de ocultação ou dissimulação, para além do recebimento indireto, como, por exemplo, na hipótese de simulação de negócios posteriores com o intuito de conferir aparência lícita aos recursos recebidos.
Sobre o assunto, vale destacar o entendimento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento da Ação Penal 804-DF, na qual tratou justamente do tema em discussão:
11. Está documentalmente provado nos autos o depósito de R$ 30.000,00 (trinta mil reais) por pessoa interposta na conta de uma assessor do acusado (...)
12. Dessa forma, o tipo legal reportado no art. 317 do Código Penal (corrupção passiva) se encontra devidamente configurado, e, ao contrário do alegado pelo réu, entendo que incide no caso a causa de aumento do art. 317, § 1º, do Código Penal (...)
13. No que tange ao delito de lavagem de capitais, previsto no art. 1º, inc. V, § 4º, da Lei n. 9.613⁄1998, destaca-se que (...) Por mais que o crime antecedente - "a corrupção passiva qualificada" - tenha existido, a dissimulação ocorrida no caminho que o dinheiro percorreu até chegar nas mãos do acusado não caracteriza a lavagem de capitais, mas apenas a ocultação normal que ocorre no pagamento de propinas. Ou seja, trata-se da mera consumação do crime de corrupção, e não de crime autônomo de lavagem de dinheiro.
15. É admissível a punição pelo crime de autolavagem no Brasil. Precedentes do STF e do STJ. Entretanto, a utilização de terceiros para o recebimento da vantagem indevida não configura, per si , o delito de lavagem de dinheiro, conforme precedente do STF na AP 694⁄MT (Rel. Min. Rosa Weber, Primeira Turma, julgado em 2⁄5⁄2017, publicada do DJE 195, de 31⁄8⁄2017). Assim, não há que se falar, no caso concreto, de "autolavagem de capitais", pois o réu não realizou ações posteriores e autônomas com aptidão para convolar os valores obtidos com a prática delituosa em valores com aparência de licitude na economia formal.
(STJ - APn: 804 DF 2015/0023793-9, Relator: Ministro Og Fernandes, Data de Publicação: DJe 07/03/2019 - grifou-se).
O Supremo Tribunal Federal, já no caso denominado Mensalão, ao julgar o ex-Presidente da Câmara dos Deputados, João Paulo Cunha, acusado da prática do crime de corrupção passiva, consistente no recebimento de R$ 50.000,00, para favorecer determinada agência de publicidade, e lavagem de dinheiro, porque o recebimento da propina teria ocorrido por meio de sua esposa, a qual sacou a respectiva quantia, decidiu da seguinte maneira:
EMBARGOS INFRINGENTES NA AP 470. LAVAGEM DE DINHEIRO . 1. Lavagem de valores oriundos de corrupção passiva praticada pelo próprio agente:
1.1. O recebimento de propina constitui o marco consumativo do delito de corrupção passiva, na forma objetiva “receber”, sendo indiferente que seja praticada com elemento de dissimulação. 1.2. A autolavagem pressupõe a prática de atos de ocultação autônomos do produto do crime antecedente (já consumado), não verificados na hipótese. 1.3. Absolvição por atipicidade da conduta.
(STF - AP: 470 MG, Relator: Min. LUIZ FUX, Data de Julgamento: 13/03/2014, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 21/08/2014 – grifou-se).
Portanto, tendo em vista que o delito de lavagem de dinheiro caracteriza-se pelo emprego de meios para ocultar ou dissimular a origem, natureza, movimentação e propriedade do produto do crime antecedente, o ato configurador do crime de lavagem de capitais deve ser distinto e posterior à disponibilidade sobre o produto do crime.
Por conseguinte, não é possível a imputação de qualquer mecanismo de lavagem de produto de ilícito que anteceda a consumação do crime de corrupção passiva (em modalidade que tenha gerado recursos), como delito autônomo de lavagem de dinheiro, pois, repita-se, não é possível lavar-se o que ainda não existe.
Claudia da Rocha é advogada, pós-graduada em Direito Constitucional pelo IDCC, em Direito e Processo Penal pela UEL, pós-graduada em Direito Penal Econômico pelo IDPEE/IBCCRIM, mestranda em Direito Negocial na UEL, professora de Direito Penal, Processo Penal e Prática Penal no Centro Universitário Unifamma e Conselheira Fiscal no IBDPE.
Gabriel Bertin de Almeida é advogado, mestre e doutor em Filosofia pela USP e professor de Processo Penal na PUC-PR.
Este artigo reflete a opinião de seus autores e não necessariamente a opinião do IBDPE.
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LAVAGEM DE DINHEIRO: BREVES APONTAMENTOS SOBRE O EXAURIMENTO DO DELITO ANTECESSOR
Por: Ludmilla Braga Gomes[1] eMatheus Cordeiro Distler[2]
A lavagem de dinheiro tem sua tipificação penal disposta na Lei n. 9.613/98, podendo ser definida como o processo complexo que visa dar aparência de licitude vantagens de origem ilícita.
Nesse sentido, assevera Guilherme Lucchesi[3], citando Blanco Cordero “que a lavagem de dinheiro é um processo, o que significa não tratar de um fato pontual, mas sim de uma série de atos realizados progressivamente, com um determinado objetivo”, e complementa conceituando a lavagem de dinheiro como “o processo em virtude do qual os bens de origem delitiva se integram no sistema econômico legal com aparência de terem sido obtidos de forma lícita”[4].
Segundo Sánchez Rios[5], o Grupo de Atuação Financeira (GAFI)[6] indica que o processo de “lavar dinheiro” consiste em três fases, a colocação (placement), fase em que o bem ilícito é inserido no sistema financeiro, a dissimulação ou mascaramento (layering), que compreende dificultar o rastreamento desse ilícito para impedir sua localização, e por fim, a integração (integration), momento qual o capital volta para o sistema financeiro como se de origem legal fosse.
Retratando cada uma das fases, Badaró e Bottini descreve a primeira como “ocultação” (também, como anteriormente mencionado, placement/colocação/conversão), qual se refere ao movimento inicial, que busca “distanciar o valor de sua origem criminosa, como a alteração qualitativa dos bens, seu afastamento do local da prática da infração antecedente, ou outras condutas similares”, destacando que é a fase em que há “maior proximidade entre o produto da lavagem e a infração penal que o origina”. A segunda etapa, o mascaramento ou dissimulação do capital, caracteriza-se “pelo uso de transações comerciais ou financeiras posteriores à ocultação que, pelo número ou qualidade, contribuem para afastar os valores de sua origem ilícita”. Por último, a integração, marcada “pelo ato final da lavagem: a introdução dos valores na economia formal com aparência de licitude”.[7]
As três fases caracterizam o exemplo de uma movimentação completa e “bem-sucedida” de lavagem de dinheiro, contudo, não é necessário a realização de todas as fases para a configuração do delito, bem como adequação ao tipo penal. Ou seja, ocorrendo a prática somente da fase de mascaramento já estará configurado o crime de lavagem. No mesmo sentido é o entendimento da jurisprudência pátria, que compreende a desnecessidade da realização das três etapas para a configuração do delito de lavagem de dinheiro, igualmente desnecessário a prática de atos complexos ou uso da rede bancária.
Ademais, como observado acima, o crime de lavagem de dinheiro é delito que necessita de outro crime anterior, pois está vinculada a este, bem como os atos realizados com os bens, direitos ou valores provenientes daquele crime que visem torná-lo aparentemente lícito e tão somente podemos dizer que se tornou devidamente delito[8].
Nesse sentido, o crime de lavagem de dinheiro somente aceita a modalidade dolosa, o que implica dizer que somente quando o agente tem vontade dirigida consciente de ocultar ou dissimular a ilicitude do bem, direito ou valores a ser reciclado[9], pode ser considerado que cometeu o crime de lavagem de dinheiro. Se, ao contrário, o agente usufrui o objeto ilícito, sem que, de modo algum, tenha a “vontade dirigida” para reciclar esse objeto ilícito, não há que se falar em lavagem de dinheiro, senão em exaurimento do delito que originou o objeto ilícito.[10]
Sob este viés, o mero recebimento dos proveitos do crime anterior, bem como sua utilização sem o objetivo de fazer parecer que é lícito não configura o crime de lavagem de dinheiro, senão o mero exaurimento do delito anterior.
Voltemos, desta forma, às fases da lavagem de dinheiro, a jurisprudência entende que a realização da segunda etapa do processo (mascaramento) já basta para a configuração da lavagem de dinheiro. No entanto, não podemos confundir o uso dos bens, direitos ou valores derivados do delito anterior, o que se busca quando da realização de qualquer delito, com a fase de mascaramento, assim assevera André Luis Callegari[11], que o artigo 1º da lei 9.613/98 “exige que o autor dos fatos tenha que atuar com alguma das finalidades previstas legalmente, é dizer, seja a de ocultar ou dissimular a origem criminosa dos bens”.
É importante ressalva, haja visto o atual cenário das grandes operações contra os delitos citados e seus julgamentos, podemos relembrar, como meio exemplificativo, a malversação em alguns momentos do exaurimento do delito anterior e a configuração da lavagem de dinheiro no julgamento do mensalão (Ação Penal 470/MG), resultando em muito dos entendimento dos ministros em bis in idem.
Desta forma, a conclusão acima é extremamente importante para evitar-se, portanto, o bis in idem, não é necessário explicar a preocupação que o ordenamento jurídico brasileiro tem quanto à proibição, e a busca para que este não ocorra, ainda mais, em crimes no âmbito do direito penal econômico, contra a administração pública e contra o sistema financeiro.
[1] Acadêmica de Direito no Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA.
[2] Acadêmico de Direito no Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA.
[3] BLANCO CORDERO, Isidoro, 2012 apud LUCCHESI, Guilherme Brenner. Lavagem de dinheiro como mascaramento: limites à amplitude do tipo penal. Revista de Direito Penal Econômico e Compliance, v. 1/2020, p. 143 – 162, jan-mar, 2020, p. 4. Disponível em: <https://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/resultList/document?&src=rl&srguid=i0ad6adc50000017939a2767024d456c1&docguid=I24e8c44070b411ea915da7cefb575693&hitguid=I24e8c44070b411ea915da7cefb575693&spos=1&epos=1&td=1&context=105&crumb-action=append&crumb-label=Documento&isDocFG=false&isFromMultiSumm=&startChunk=1&endChunk=1>. Acesso em: 31/04/2021.
[4] BLANCO CORDERO, 2012 apud LUCCHESI. 2020.
[5] SÁNCHEZ RIOS, Rodrigo. Advocacia e lavagem de dinheiro: questões de dogmática jurídico-penal e de política criminal. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 48.
[6] Em 1989 foi instituído o Grupo de Ação Financeira – GAFI, “uma organização intergovernamental cujo propósito é desenvolver e promover políticas nacionais e internacionais de combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo.”. BRASIL. Ministério da Fazenda. Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (Gafi/FATF). Disponível em: <https://www.gov.br/coaf/pt-br/assuntos/o-sistema-de-prevencao-a-lavagem-de-dinheiro/sistema-internacional-de-prevencao-e-combate-a-lavagem-de-dinheiro/o-coaf-a-unidade-de-inteligencia-financeira-brasileira>. Acesso em: 04 mai. 2021.
[7] BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais: comentários à Lei 9.613/1998, com as alterações da Lei 12.683/2012. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 81.
[8] BITENCOURT, Cezar Roberto; MONTEIRO, Luciana de Oliveira. Lavagem de dinheiro segundo a legislação atual money laundry according to current legislation. Revista Brasileira de Ciências Criminais, Local, v. 102/2013, p. 163-220, maio-Jun, 2013. p. 8. Disponível em: <https://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/resultList/document?&src=rl&srguid=i0ad6adc60000017939a87320903922ff&docguid=Ide470a70beb211e29562010000000000&hitguid=Ide470a70beb211e29562010000000000&spos=1&epos=1&td=1&context=255&crumb-action=append&crumb-label=Documento&isDocFG=false&isFromMultiSumm=&startChunk=1&endChunk=1>. Acesso em 31/04/2021.
[9] Ibid., p. 14.
[10] No mesmo sentido, assevera Mendroni: “Importa, entretanto, sobremaneira, a caracterização do elemento subjetivo do tipo – o dolo específico. Deve haver indícios suficientes de que o agente efetivamente pretenda “ocultar” ou “dissimular”, e não somente “guardar”, o provento do crime.”. Ainda, há que se falar da modalidade tentada, que será definida a partir dos acontecimentos da primeira fase, desde que por vontade alheia a do agente, seja impedida a ocultação. MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime de Lavagem de dinheiro: Consumação e Tentativa. Portal Jurídico Investidura, Florianópolis/SC, 29 Ago. 2009. Disponível em: <investidura.com.br/biblioteca-juridica/artigos/direito-penal/4221-crime-de-lavagem-de-dinheiro-consumacao-e-tentativa>. Acesso em: 04 Mai. 2021.
[11] CALLEGARI, C.A.L.; BARAZZETTI, W.A. Lavagem de Dinheiro [Livro eletrônico]. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2017. p. 184.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais: comentários à Lei 9.613/1998, com as alterações da Lei 12.683/2012. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.
BITENCOURT, Cezar Roberto; MONTEIRO, Luciana de Oliveira. Lavagem de dinheiro segundo a legislação atual money laundry according to current legislation. Revista Brasileira de Ciências Criminais, Local, v. 102/2013, p. 163-220, maio-Jun, 2013. <https://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/resultList/document?&src=rl&srguid=i0ad6adc60000017939a87320903922ff&docguid=Ide470a70beb211e29562010000000000&hitguid=Ide470a70beb211e29562010000000000&spos=1&epos=1&td=1&context=255&crumb-action=append&crumb-label=Documento&isDocFG=false&isFromMultiSumm=&startChunk=1&endChunk=1>. Acesso em 31/04/2021.
BRASIL, Lei n.º 9.613, de 3 de Março de 1998. Dispõe sobre os crimes de "lavagem" ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9613.htm>. Acesso em 30/04/2021.
BRASIL. Ministério da Fazenda. Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (Gafi/FATF). Disponível em: <https://www.gov.br/coaf/pt-br/assuntos/o-sistema-de-prevencao-a-lavagem-de-dinheiro/sistema-internacional-de-prevencao-e-combate-a-lavagem-de-dinheiro/o-coaf-a-unidade-de-inteligencia-financeira-brasileira> Acesso em 04/05/2021.
CALLEGARI, C.A.L.; BARAZZETTI, W.A. Lavagem de Dinheiro [Livro eletrônico]. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2017.
LUCCHESI, Guilherme Brenner. Lavagem de dinheiro como mascaramento: limites à amplitude do tipo penal. Revista de Direito Penal Econômico e Compliance, v. 1/2020, p. 143–162, jan-mar, 2020. Disponível em: <https://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/resultList/document?&src=rl&srguid=i0ad6adc50000017939a2767024d456c1&docguid=I24e8c44070b411ea915da7cefb575693&hitguid=I24e8c44070b411ea915da7cefb575693&spos=1&epos=1&td=1&context=105&crumb-action=append&crumb-label=Documento&isDocFG=false&isFromMultiSumm=&startChunk=1&endChunk=1>. Acesso em: 31/04/2021.
MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime de Lavagem de dinheiro: Consumação e Tentativa. Portal Jurídico Investidura, Florianópolis/SC, 29 Ago. 2009. Disponível em: <investidura.com.br/biblioteca-juridica/artigos/direito-penal/4221-crime-de-lavagem-de-dinheiro-consumacao-e-tentativa>. Acesso em 04/05/2021.
SÁNCHEZ RIOS, Rodrigo. Advocacia e lavagem de dinheiro: questões de dogmática jurídico-penal e de política criminal. São Paulo: Saraiva, 2010.
Este artigo reflete a opinião de seus autores e não necessariamente a opinião do IBDPE.
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AS IMPLICAÇÕES DO ANPP NAS ESFERAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR
Jéssyca Priscila Hayume Tamiya e Joelson Pereira Alves
O Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) é um instituto que foi inserido
no art. 28-A do CPP, a partir da vigência da Lei 13.964/2019, conhecida como pacote ou lei
anticrime. É válido salientar que a justiça penal negocial não é recente na legislação brasileira,
uma vez que a Lei 9.099/95 já elencava a possibilidade de transação penal e a suspensão
condicional do processo, ao lado do acordo de leniência (Lei 12.846/2013) e da colaboração
premiada (Lei 12.850/13).
Por certo, começaram a surgir inúmeras críticas por parte da doutrina. A
saber, não era nítido como o Acordo de Persecução Penal reagiria diante dos princípios da
segurança jurídica, da indisponibilidade da ação penal pública, da impessoalidade, da ampla
defesa, do contraditório e, de certa forma, como responderia diante do devido processo legal
em geral. Afinal, esse instituto veio para aprimorar o consenso, o diálogo, ou seja, a justiça
negociada no processo penal.
Em suma, o ANPP é um negócio jurídico extrajudicial que acontece
mediante proposta do Ministério Público para o investigado que deve estar sendo assistido
pelo seu defensor em todas as tomadas de decisões. Caso o acordo seja aceito pelo
investigado, deverá ser, em seguida, homologado pelo juízo competente, no qual será passado
para o mesmo todas as condições do acordo, ou seja, as condições não privativas de liberdade,
que geralmente é algum tipo de serviço comunitário e/ou multa, em troca do compromisso de
o Parquet não oferecer a denúncia, tendo em vista, que esse acordo acontece, geralmente, antes da persecução penal iniciar. Assim sendo, se o acordo for cumprido integralmente, a
punibilidade do agente é extinta.
Com efeito, pode ser celebrado independentemente da natureza do
procedimento investigatório – seja ele um inquérito policial ou um PIC – procedimento
investigatório criminal. Nessa toada, em observância ao sistema acusatório, outorgou-se ao
titular da ação penal pública a legitimidade para o oferecimento do referido instituto
despenalizador.
O art. 28-A, §3º, CPP dispõe que: “O acordo de não persecução penal será
formalizado por escrito e será firmado pelo membro do Ministério Público, pelo investigado e
por seu defensor.” Logo, Note-se que o Ministério Público detém a legitimidade para propor o
ANPP “desde que necessário e suficiente para reprovação do crime” diante dos requisitos de
confissão formal e circunstancial da prática da infração penal, sem violência ou grave ameaça
e com pena mínima inferior a quatro anos.
Vale ressaltar que, a confissão formal e circunstanciada do crime tem esse
problema: a partir do momento que a pessoa confessa, de forma detalhada, essa confissão
pode ser levada a outros processos. Mas como faz? Porque o ANPP só atinge a esfera penal,
como que faz lá no PAD, na Improbidade.
Nesse sentido, é visível as dificuldades que surgem com o acordo
extrajudicial e pré-processual, razão pela qual deve haver uma diferenciação do que seja um
ilícito penal e administrativo. Por um lado, se o réu confessar o crime de forma detalhada
conseguirá a não persecução penal, já por outro lado, toda essa confissão detalhada poderá ser
utilizada em uma possível Improbidade administrativa e até mesmo em um PAD.
A Lei 12.850/13, em seu artigo 4º, § 10, estabelece que: “As partes podem
retratar-se da proposta, caso em que as provas autoincriminatórias produzidas pelo
colaborador não poderão ser utilizadas exclusivamente em seu desfavor.” Assim, é evidente
que havendo a retratação, as provas produzidas não poderão ser utilizadas. No entanto, o
debate acerca da possibilidade de valer-se da confissão como meio de prova após a rescisão
do ANPP gera polêmica.
Um dos requisitos para que aconteça o Acordo de Não Persecução Penal é a
exigência de confissão formal e circunstanciada do investigado, ou seja, na prática o
investigado deverá confessar o crime, com detalhes. Logo, na esfera penal, depois de
cumprida as exigências, e extinta a punibilidade, o Ministério Público poderá se valer dessa
confissão formal e circunstanciada para usar no direito administrativo sancionador.
Sobre isso, afirma a doutrina:
“A unidade do jus puniendi do Estado obriga a transposição de garantias
constitucionais e penais para o direito administrativo sancionador. As
mínimas garantias devem ser: legalidade, proporcionalidade, presunção de
inocência e ne bis in idem” (OLIVEIRA, Ana Carolina. Direito de
Intervenção e Direito Administrativo Sancionador, 2012, p. 241).
A partir dessa compreensão, é visível que, o princípio do ne bis in idem, está
elencado para que não haja condenação nas duas esferas, ou seja, se o investigado fez o
Acordo de Não Persecução Penal, indicando e confessando com detalhes o ilícito, essa
confissão não deve ser utilizada para que o mesmo seja condenado no âmbito administrativo,
como, por exemplo, perdendo a função pública que exerce.
Com isso, vale ressaltar o artigo 935 do Código Civil, o qual disciplina que:
“A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a
existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem
decididas no juízo criminal.”
Destarte, se as questões já foram decididas no juízo criminal, mesmo com
natureza administrativa, não se deve falar em responsabilização no âmbito administrativo,
uma vez que as questões já foram resolvidas através de um Acordo de Não Persecução Penal.
A Constituição Federal anuncia, no art. 37, § 4º, uma noção de
independência entre as diferentes esferas sancionadoras:
“Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos
políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário,
na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.”
4
Explica-se: o subsistema do direito penal comina, de modo geral, sanções
mais graves do que o direito administrativo sancionador. Isso significa que mesmo que se
venha a aplicar princípios penais no âmbito do direito administrativo sancionador – premissa
com a qual estamos totalmente de acordo, o escrutínio do processo penal será sempre mais
rigoroso. A consequência disso é que a compreensão acerca de fatos fixada definitivamente
pelo Poder Judiciário no espaço do subsistema do direito penal não pode ser revista no âmbito
do subsistema do direito administrativo sancionador. Todavia, a construção reversa da
equação não é verdadeira, já que a compreensão acerca de fatos fixada definitivamente pelo
Poder Judiciário no espaço do subsistema do direito administrativo sancionador pode e deve
ser revista pelo subsistema do direito penal – este é ponto da independência mitigada.
REFERÊNCIA
OLIVEIRA, Ana Carolina. Direito de Intervenção e Direito Administrativo Sancionador,
2012, p. 241.
Jéssyca Priscila Hayume Tamiya: Pós-graduanda em Direito Penal Econômico pela Pontifícia Universidade Católica – PUC/PR, campus
Londrina-PR. Advogada.
Joelson Pereira Alves: Estudante de Direito na Universidade Federal do Paraná - UFPR.