Sobre a retroatividade da exigência de representação da vítima no crime de estelionato
Por: Guilherme Brenner Lucchesi[1] e Ivan Navarro Zonta[2]
Considerando que a discussão ainda se encontra "aberta", é importante levar em conta todas essas questões antes da formação de uma solução definitiva.
A recente reforma da legislação penal pela lei 13.964/19 ("Lei Anticrime") provocou diversas alterações no sistema de justiça criminal brasileiro. Na proposição originária, advinda de anteprojeto de lei do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, defendia-se de um lado o maior rigor para os crimes cometidos por organizações criminosas enquanto, de outro, buscava-se criar mecanismos com o intuito de "desafogar" a Justiça criminal. Dentre estes, ganharam notoriedade as propostas de expansão da justiça penal negocial, com o acordo de não persecução penal (incorporado ao CPP no art. 28-A) e o chamado "acordo penal" (rechaçado pelo Poder Legislativo).
Outra modificação relevante, tendente a reduzir a incidência de feitos para a apuração de delitos patrimoniais, foi a previsão de que a ação penal no crime de estelionato passa a ser condicionada à representação do ofendido. Nos termos do recém-criado § 5.º do art. 171 do CP, exige-se representação do ofendido para que o fato possa ser investigado e, eventualmente, torne-se objeto de ação penal. Não basta que o fato chegue a conhecimento das autoridades; somente haverá responsabilidade penal do autor do estelionato se houver manifestação de vontade da vítima nesse sentido.1
A análise da nova regra condicionando a ação penal no crime de estelionato à representação do ofendido traz uma importante reflexão: pode haver retroatividade da norma para fatos ocorridos anteriormente à vigência da lei e que já deram azo à instauração de inquérito policial ou ação penal? A questão está pendente de resolução definitiva pelo Supremo Tribunal Federal, havendo decisões conflitantes, tanto no STF quanto no STJ, a depender do posicionamento adotado.
Uma coisa é certa: a lei penal não retroage, salvo para beneficiar o acusado (art. 5.º, XL, CR). Esse postulado é elementar ao direito penal, e se encontra também no art. 3.º do CP. No problema em análise, parte do cerne da controvérsia reside no fato de que a exigência de representação da vítima consiste, em primeira leitura, em dispositivo de natureza processual (condição de procedibilidade), mas que enseja consequências relevantes de natureza penal material, que condicionam a própria punibilidade do fato e a apuração da responsabilidade penal de seu autor.
Por brevidade, partamos da noção - que parece ser consensual - de que a exigência de representação da vítima como requisito para investigação e oferecimento de denúncia quanto ao crime de estelionato beneficia indivíduos que tenham praticado, venham a ser investigados e possam vir a ser denunciados pela prática de tal delito. Isso porque cria um requisito legal para exercício do poder punitivo, ensejando a existência de hipóteses que impedem a investigação do fato e o oferecimento de denúncia. Aí caberá analisar, em resumo, se a exigência da representação da vítima será aplicada retroativamente (i) a fatos ocorridos anteriormente à vigência da lei, (ii) a investigações que já estejam em curso quando da vigência da lei, (iii) a ações penais que já estejam em curso quando da vigência da lei e (iv) para casos em que já houve condenação.
Essa discussão já foi levada aos Tribunais Superiores, havendo a adoção de diferentes entendimentos nos órgãos colegiados.
No Superior Tribunal de Justiça, a 5.ª Turma - sob a relatoria do ministro Reynaldo Soares da Fonseca, acompanhado pelos ministros Ribeiro Dantas, Felix Fischer e Jorge Mussi2 - reconheceu que "o novo comando normativo apresenta caráter híbrido, pois, além de incluir a representação do ofendido como condição de procedibilidade para a persecução penal, apresenta potencial extintivo da punibilidade". Contudo, ante a inexistência de regra quanto à aplicação do dispositivo a casos já em trâmite, a Turma decidiu que "seus efeitos não podem atingir o ato jurídico perfeito e acabado (oferecimento da denúncia), de modo que a retroatividade da representação no crime de estelionato deve se restringir à fase policial, não alcançando o processo" (STJ, 5.ª T., HC 573.093/SC, rel. ministro Reynaldo Soares da Fonseca, julg. 9 jun. 2020).
Já a 6.ª Turma, em posicionamento divergente - sob a relatoria do ministro Sebastião Reis Junior, acompanhado pelos ministros Rogério Schietti Cruz, Nefi Cordeiro, Antonio Saldanha Palheiro e Laurita Vaz -, decidiu que a exigência da representação consiste em condição de procedibilidade e não enseja a extinção da punibilidade nos feitos em curso em que não houve manifestação da vítima (antes da vigência da Lei). Contudo, a Turma decidiu que a exigência de representação deveria ser aplicada retroativamente aos feitos em curso, sem trânsito em julgado, aplicando-se analogicamente a regra prevista no art. 91 da lei 9.099, de 1995, com a intimação da vítima para manifestação no prazo de 30 (trinta) dias, sob pena de decadência (STJ, 6.ª T., HC 583.837/SC, rel. ministro Sebastião Reis Junior, julg. 4 ago. 2020).
Ante a divergência dos órgãos colegiados do STJ, a questão foi posta a julgamento em 24 de março de 2021 - no HC 610.201/SP - pela 3.ª Seção, a qual "pacificou" naquele Tribunal o posicionamento de que a exigência da representação para o crime de estelionato não pode ser aplicada de forma retroativa em processos que já estavam em curso quando da entrada em vigência da lei 13.964. Vencidos os ministros Nefi Cordeiro (relator) e Sebastião Reis Junior, os ministros Ribeiro Dantas (prolator do voto vencedor), Antonio Saldanha Palheiro, Felix Fischer, Laurita Vaz, Otávio de João Noronha e Rogério Schietti Cruz decidiram que a representação não seria exigível nos processos já em curso, porque (i) ambas as Turmas do STF já haviam decidido nesse sentido, em homenagem ao princípio da segurança jurídica, bem como a 5.ª Turma do STJ, (ii) o Congresso, exercendo o poder popular, já decidiu tratar-se de condição de procedibilidade, e não de "prosseguibilidade" (conforme constava originalmente no anteprojeto do chamado "Pacote Anticrime" do MJSP), e (iii) seria necessário evitar a abertura da "Caixa de Pandora" que seria a aplicação retroativa sem algum parâmetro limitador.
Até o presente momento, portanto, a questão está aparentemente resolvida no âmbito do STJ. Embora aquela Corte tenha mencionado que o STF também já teria se posicionado no mesmo sentido em ambas as suas Turmas, atualmente não há consenso no Supremo a respeito da questão.
De fato, a 1.ª Turma - sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes, no HC 187.341/SP - já decidiu que a exigência de representação quanto ao crime de estelionato consiste em norma de natureza mista, com aplicação retroativa para todos os casos em que ainda não tiver ocorrido o oferecimento de denúncia, independentemente da data da prática do fato (STF, 1.ª T., HC 187.341/SP, rel. ministro Alexandre de Moraes, julg. 13 out. 2020). Limitou a Turma, porém, o alcance da exigência aos casos ainda sem denúncia oferecida, pois nos demais a peça acusatória teria sido oferecida em momento em que a lei processual não previa a referida condição de procedibilidade. Esse entendimento foi mais tarde reiterado pela Turma no HC. 190.683, julgado em 7 de dezembro de 2020, sob a relatoria do ministro Marco Aurélio.
O caso julgado pela 2.ª Turma e mencionado no acórdão da 3.ª Seção do STJ consiste no AgRg no ARE 1.230.095/SP, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, no qual o relator entendeu por indeferir pleito preliminar de baixa dos autos a fim de fosse intimada a vítima a respeito da exigência da representação. A fundamentação do voto, nesse tocante, deu-se inteiramente de forma remissiva ao parecer ministerial, no sentido de que a norma seria de conteúdo processual e irretroativa, e, subsidiariamente, não poderia retroagir ao caso, pois já havia ocorrido instrução processual e decisão condenatória. No mais, o voto tratou da questão do (des)cabimento de recurso extraordinário interposto pela parte. Note-se que embora o posicionamento do ministro Gilmar Mendes tenha sido acompanhado pelos ministros Celso de Mello, Ricardo Lewandowski, Carmen Lúcia e Edson Fachin, a questão da retroatividade da exigência da representação surgiu apenas incidentalmente, em caso específico no qual já havia condenação mantida em segundo grau.
Embora parecesse haver consenso na Corte até esse ponto, recentemente a 2.ª Turma adotou posicionamento diverso. No julgamento de agravo regimental no HC 180.421/SP, finalizado em 22 de junho de 2021, a Turma concedeu ordem de ofício a fim de trancar a ação penal originária, ante "aplicação retroativa do § 5.º do art. 171 até o trânsito em julgado". O ministro Edson Fachin, relator do feito, asseverou no dia 15 de junho que o dispositivo em questão deve retroagir para beneficiar o réu, não podendo a aplicação da norma mais favorável ser condicionada por regulação legislativa. O ministro Gilmar Mendes acompanhou o posicionamento e ressaltou a natureza mista - material e processual - da norma, ressaltando que a Corte adotou o mesmo entendimento quando da previsão de exigência de representação nos casos de lesão corporal leve e culposa, na lei 9.099, de 1995. Os ministros Nunes Marques, Carmen Lúcia e Ricardo Lewandowski acompanharam o entendimento do relator quanto à retroatividade (embora tenha havido divergências em outros pontos no caso), tendo havido unanimidade na Turma quanto à aplicação da exigência de representação e necessidade de intimação da vítima para manifestação mesmo nos casos com denúncia oferecida antes da vigência da lei 13.964, de 2019.
Com esse novo posicionamento da 2.ª Turma do STF, e ainda não havendo decisão com força vinculante em âmbito nacional, a questão está pendente de resolução definitiva.
Até o presente momento, os argumentos mais coerentes - tanto do ponto de vista jurídico técnico processual quanto do ponto de vista dos aspectos práticos e operacionais da justiça criminal - são os adotados pela 5.ª Turma do STJ - posicionamento que prevaleceu na 3.ª Seção - e pela 1.ª Turma do STF. Ou seja, a posição de que a exigência de representação da vítima nos casos de crimes de estelionato não ser aplicada retroativamente aos casos em que já havia denúncia oferecida quando da entrada em vigência da lei 13.964, de 2019.
Não há dúvidas a respeito do seguinte: a alteração legislativa em comento é um grande acerto da recente reforma operada na legislação penal e processual penal. A exigência de representação para os casos de estelionato, em resumo, (i) favorece a composição civil entre os envolvidos, na medida em que encoraja a reparação voluntária do prejuízo no interesse da renúncia ou retratação da representação, (ii) potencialmente reduz a incidência do aparato persecutório sobre situações que consistiram em desacordos comerciais e/ou contratuais e (iii) atenua e relativiza o questionável peso elevado dado ao Código Penal ao bem jurídico do patrimônio - em comparação com outros como a vida, a liberdade e a integridade física. De fato, a exigência da representação poderia perfeitamente ser estendida a outros crimes contra o patrimônio, como o furto e a receptação3. Isso muito provavelmente ensejaria, ao mesmo tempo, alguma redução nos casos de lesões patrimoniais que chegam à seara penal e maiores oportunidades de composição consensual de prejuízos financeiros pequenos e médios.
Por outro lado, isso não significa que a exigência da representação deva retroagir de forma absoluta.
Como apontado inicialmente pela 5.ª Turma do STJ, a representação consiste em condição de procedibilidade cuja ratio está indissociavelmente associada à fase pré-processual anterior ao oferecimento de denúncia. A natureza de norma penal mista - visto que também enseja efeitos diretos sobre a punibilidade em si, e não apenas sobre questões processuais - não altera o fato de que a exigência da representação só faz sentido se considerada até o oferecimento da peça acusatória, visto que esse é o marco processual já estabelecido pela lei processual penal como divisor nesse tocante. Justamente por isso, a lei processual penal já prevê que a representação será irretratável depois de oferecida a denúncia (art. 25, CPP).
Isso significa dizer que, para além da discussão da natureza do dispositivo em análise, a sua aplicação está inseparavelmente relacionada à instauração da ação penal: a partir do momento em que a peça acusatória é oferecida, não mais importa a vontade da vítima quanto ao prosseguimento da persecução penal.
Na situação em análise, nos casos em que a denúncia já foi oferecida antes da vigência da lei 13.964 - e, portanto, sem a exigência da representação -, o marco processual até o qual o interesse da vítima é condicionante já foi ultrapassado validamente (art. 1.º, CPP: tempus regit actum). Embora realmente se possa reconhecer a natureza mista da exigência da representação, a aplicação retroativa só faz sentido para os casos em que ainda não houve oferecimento válido da peça acusatória sob a égide da lei vigente à época.
Lembre-se que a alteração da legitimidade para persecução do estelionato - de ação penal pública para ação penal pública condicionada - não indica redução da reprovabilidade do delito. Não somente as penas permanecem as mesmas - ou seja, não foram reduzidas - como foram criadas (i) uma nova hipótese incriminadora com penas consideravelmente elevadas (fraude eletrônica - art. 171, § 2.º-A) e (ii) uma majorante para casos praticados contra idosos e pessoas vulneráveis (art. 171, § 4.º). Isso demonstra que a exigência da representação decorre de razões de natureza prática, operacional, de política criminal numérica, e não propriamente de redução no juízo de reprovabilidade que o legislador faz sobre o fato abstrato criminalizado.
Em havendo exigência de representação tão somente por razões de ordem prática, não faz qualquer sentido estender a retroatividade dessa exigência para os casos em que o marco processual divisor - a partir do qual a representação deixa de ser relevante, pois irretratável - já foi ultrapassado pelo oferecimento válido da denúncia sob a égide da lei anterior vigente à época. Se a intenção do legislador é, presumidamente, reduzir números e economizar atos processuais, a retroatividade desmedida da exigência de representação para os casos que já estavam em fase de ação penal quando da vigência da lei nova causa justamente o contrário: o surgimento da necessidade de praticar um sem-número de atos processuais - buscas de endereços, intimações, abertura de vistas às partes, conclusão aos julgadores, prolação de decisões - que simplesmente não fazem mais sentido após o início válido da ação penal.
Cite-se, inclusive, a existência de outras dificuldades de ordem prática que decorrem da aplicação retroativa da exigência da representação para os casos com denúncia já oferecida quando da entrada em vigor da nova lei: Qual será o termo inicial para apresentação da representação? O prazo legal "geral" de 6 (seis) meses para exercício da representação não exige intimação prévia da vítima; no caso em comento, exigir-se-á ou contar-se-á o prazo a partir da entrada em vigência da nova Lei? Qual será o prazo a partir do termo inicial estabelecido?
Sobre isso, o posicionamento pela retroatividade da exigência da representação às ações penais em curso - atualmente esposado pela 2.ª Turma do STF - entendeu pela aplicação analógica do art. 91 da lei 9.099, de 19954, conforme o qual o ofendido e/ou seu representante devem ser intimados para manifestação em 30 (trinta) dias, sob pena de decadência. Tal solução, contudo, cria mais problemas que resolve. Afinal, não havendo expressa previsão legal de termo inicial para a contagem do prazo decadencial, o único termo inicial válido seria a data em que o ofendido ou seu representante legal toma conhecimento da autoria da infração (art. 38, CPP). Nesse caso, o estabelecimento de um termo inicial posterior - e possivelmente posterior ao decurso de seis meses da data em que o ofendido veio a saber quem foi o autor da infração - dilata o prazo decadencial para data posterior àquela que seria em se aplicando a regra geral do processo penal. Paradoxalmente, tratar-se-ia de analogia in malam partem, e não in bonam partem, como defendem segmentos da doutrina e da jurisprudência.
Por fim, a situação ora discutida parece diferir consideravelmente da discussão a respeito da aplicabilidade retroativa do acordo de não persecução penal. Enquanto esse instrumento prevê diversas consequências de natureza eminentemente material - como a exigência de confissão, necessidade de reparação do dano causado e até aplicação de penas restritivas de direitos -, a exigência de representação trata de mera condição processual de procedibilidade, com efeitos materiais reflexos, e cuja ratio se esgota quando já instaurada validamente a ação penal.
Como se vê, diante da evidente previsibilidade de alcance de fatos praticados anteriormente à vigência da nova regra, andou mal o legislador a não estabelecer, de forma clara, uma regra de transição, da forma como feito na lei 9.099, de 1995. A solução ora apresentada, de impossibilidade de alcance dos fatos já denunciados, somente resolve este problema em parte. Não há segurança jurídica para a persecução penal dos fatos havidos anteriormente à vigência da lei 13.964, de 2019, ainda sem denúncia oferecida.
Considerando que a discussão ainda se encontra "aberta", é importante levar em conta todas essas questões antes da formação de uma solução definitiva. A fim de evitar o surgimento de novos problemas advindos da própria solução, parece coerente reconhecer que, nos casos em que houve oferecimento válido de denúncia antes da entrada em vigência da nova lei, a exigência da representação não deverá retroagir.
[1] Advogado sócio da banca Lucchesi Advocacia. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico.
[2] Mestrando em Direito pela UFPR. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela ABDConst. Graduado em Direito pela UFPR. Advogado sócio da Lucchesi Advocacia.
1 Ver MENDES, Tiago Bunning; LUCCHESI, Guilherme Brenner. Lei Anticrime: a (re)forma penal e a aproximação de um sistema acusatório? São Paulo: Tirant Lo Blanc, 2020. p. 166-169.
2 Ausente, justificadamente, o ministro Joel Ilan Paciornik.
3 Ver MENDES, Tiago Bunning; LUCCHESI, Guilherme Brenner. Lei Anticrime: a (re)forma penal e a aproximação de um sistema acusatório? São Paulo: Tirant Lo Blanc, 2020. p. 168-169.
4 Art. 91. Nos casos em que esta Lei passa a exigir representação para a propositura da ação penal pública, o ofendido ou seu representante legal será intimado para oferecê-la no prazo de trinta dias, sob pena de decadência.
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O PREDOMÍNIO DO PARADIGMA POSITIVISTA NA INTERPRETAÇÃO DA LAVAGEM DE DINHEIRO: O CASO DO ADVOGADO
Por: Marcelo Augusto Rodrigues de Lemos[1] Marina Brentano Colombo[2]
Desde a alteração da Lei n.º 9.613/98, em 2012, o crime de lavagem de dinheiro se tornou um campo fértil para discussões jurídico-penais. Não por menos. Se antes a lavagem de capitais era um delito desconhecido por parte da maioria dos atores do processo penal – fundamentalmente nas ações de competência do juízo comum –, hoje parece que há, inclusive, uma indevida banalização do crime, de modo a perder a sua própria razão de existência. O que se pretende neste artigo não é trazer razões político-criminais sobre o delito, tampouco trabalhar os aspectos dogmáticos da conduta, mas sim trazer à lume – embasado nos pressupostos teóricos da Crítica Hermenêutica do Direito[3] – a análise do tipo penal sob o enfoque da interpretação judicial. Nesse sentido, trabalhar-se-á com a hipótese do recebimento de honorários maculados e da imputação específica da lavagem de dinheiro em casos tais.
Afinal, por que há juízes que asseveram que a lavagem de capitais se materializa com a simples realização de um dos verbos nucleares do tipo (art. 1.º, caput)? Por que se chama de “lavagem” a conduta que – de acordo com alguns tribunais – se destina tão somente a punir o indivíduo que oculta ou dissimula o ativo, em tese, ilícito? Não é verdade que o crime aqui referido se projeta para coibir a circulação de ativos ilícitos na economia formal? Se o é, por que a simples realização da ocultação ou da dissimulação configuram o tipo penal? Essas são questões tomadas por complexas – em que pese, inseridas em uma tradição, sejam óbvias – uma vez que os tribunais, levando a discricionariedade ao último estágio, tendem a ditar os limites jurídico-penais do tipo penal, descolando-o, por consequência, da sua própria natureza[4].
Sob este espectro, questiona-se, prima facie, se seria possível apenas enxergar o dispositivo legal do crime de lavagem de dinheiro e, a partir disso, concluir-se pela perfeita – e pretendida – interpretação hermenêutica do tipo penal ali inserido. Seria a norma um fim em si mesma? Teria, portanto, a gramaticalidade da norma logrado êxito em alcançar o seu integral sentido interpretativo? Os exegéticos talvez diriam que sim. A questão, entretanto, atinge um ponto sensível e que demanda atenção. Observe-se, nesse sentido, que a leitura amarrada ao puro textualismo da norma do art. 1º da Lei 9.613/98 conduz a uma interpretação limitada, na medida em que, não é possível extrair da sua literalidade, por exemplo, a necessidade de aferição do elemento subjetivo do agente para a configuração do delito de lavagem de dinheiro. E este é o ponto fundamental para a discussão deste ensaio.
Objetivamente: o crime da Lei n.º 9.613/98 censura penalmente a conduta do indivíduo que reintroduz os ativos ilícitos – provenientes de infração penal antecedente – na economia formal. Ao revés, não pode ser utilizado como mecanismo de imputação criminal de condutas que são desdobramentos do crime antecedente (v.g. como aquisição de imóveis) ou mesmo de delitos que sequer se materializaram (como, por ex., a sonegação fiscal). Quer dizer, da forma como introduzido no ordenamento jurídico, a lavagem de dinheiro não existe sem, ao menos, ter indícios veementes de que a prática visa a dar uma capa de legalidade aos ativos ilícitos. Por uma premissa básica, destarte, pagar honorários advocatícios com dinheiro advindo de prática delitiva não configura o tipo penal, uma vez que não há qualquer intenção de acoplar um sentido de licitude aos ativos.
É nesse ponto, de tal arte, que ingressa o debate sobre a interpretação judicial da lavagem de dinheiro e o motivo pelo qual alguns tribunais compreendem a tipificação de tal delito por meio da mera ocultação ou dissimulação. De logo, é possível se afirmar que tal entendimento advém de um problema geral e de uma de suas ramificações: o predomínio do paradigma do positivismo jurídico, expressados através da ausência de superação do exegetismo do século XIX (textualismo)[5]. Portanto, é possível ver, na práxis, os problemas aqui abordados: quando o juiz – ao analisar o art. 1.º da Lei n.º 9.613/98 – diz que o tipo penal se configura por meio da simples ocultação ou dissimulação dos ativos ilícitos, sem considerar a tradição epistemológica que lhe antecede, compreende que o legislador previu todas as hipóteses de aplicação do referido tipo penal, de sorte que a mera subsunção do tipo ao caso concreto é suficiente, quando, na verdade, não o é.
Veja-se que: a interpretação literal do art. 1º da Lei 9.613/98, além de atentar contra a essência da hermenêutica, abre um vasto campo à criação de completas aberrações jurídicas e condenações infiéis ao que, de fato, se pretendia, desde o início, com a criação do tipo penal de lavagem – e para compreender isso basta revolver ao passado histórico da sua criação. É dizer, portanto, que: ao se admitir a interpretação pura e literal da norma, excluindo-se, dessa forma, a aferição do dolo da lavagem, passa-se a admitir que condutas como a de pagar honorários advocatícios com valores ilícitos possam ser configuradas como lavagem de dinheiro - pelo simples fato de se ter, de certo modo, ocultado ou dissimulado o ativo.
E mais: a interpretação puramente literal do referido dispositivo conduz a afirmação de que o crime de lavagem de dinheiro seria um caminho necessário a todos os delitos que visam ou tem como resultado o lucro. Assim, todo aquele que, por exemplo, furta um bem e o vende, e, em seguida utiliza esse valor ilícito – seja pagando honorários advocatícios ou comprando desde um imóvel até uma peça de roupa –, responderá, automaticamente, por lavagem de dinheiro. Tal afirmação não parece, nem de longe, razoável.
De todo modo, a resposta adequada à problemática está refletida no passado histórico da criação do delito de lavagem de capitais, de sorte que colocou em evidência a necessidade da comprovação da vontade do agente em tornar o ativo ilícito em lícito – do contrário, a própria criação da norma não teria existido, já que derivou da engenhosa conduta da máfia italiana que, buscando driblar a instituição da Lei Seca nos Estados Unidos, criou a venda irregular de bebidas e, para justificar seus ganhos ilícitos com tais práticas, adquiriu lavanderias que serviram de fachada para justificar os seus lucros. E é a partir dessa perspectiva que deve se dar a interpretação da norma do art. 1º da Lei 9.613/98.
Assim, o conteúdo do tipo penal do art. 1º da Lei 9613/98 não se esgota em sua literalidade. Vai muito além. De acordo com Lenio Streck, ‘... há sempre algo que lhe antecede e que foi construído pela cadeia de sentido produzida ao longo da relação entre os sujeitos.’[6]. Nessa perspectiva, o referido dispositivo somente pode ser interpretado adequadamente, e, portanto, em sua integralidade, se houver a compreensão de sua cadeia construtiva.
Em nosso juízo - embora os ares do positivismo exegético ainda pareçam reinar em terrae brasilis - a interpretação literal do art. 1º da Lei 9613/98 é perigosa e conduz a uma compreensão incompleta acerca do dispositivo. A necessidade de exigir que seja ilustrada, na conduta do agente, o intuito de conferir a aparência lícita ao ativo – e, portando, exceder a barreira da literalidade da norma -, é, com inabalável convicção, a correta, pretendida e integral interpretação do delito de lavagem de dinheiro. Nesse sentido, a criminalização do pagamento de honorários advocatícios com valores ilícitos só poderia ser corretamente enquadrada no contexto da lavagem de capitais se a intenção do agente com tal conduta fosse, efetivamente, a de conferir caráter lícito aos ativos, do contrário, estar-se-ia diante de conduta atípica.
REFERENCIAS:
DE CARLI, Carla Veríssimo. Lavagem de dinheiro: ideologia da criminalização e análise do discurso. Porto Alegre: Dissertação de Mestrado, 2006.
STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: cinquenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte (MG): Letramento: Casa do Direito, 2020.
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11 ed. rev. atual. e ampl. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014.
[1] Doutorando em Direito (UNISINOS/RS), Mestre em Ciências Criminais (PUC/RS) e Especialista em Direito Penal Empresarial (PUC/RS). Advogado criminalista – marcelo@lemos.adv.br.
[2] Graduada em Direito (UNISINOS/BR) e pós-graduanda em Direito Penal Econômico (PUC/MG). Advogada criminalista – marina@lemos.adv.br.
[3] A propósito: STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11 ed. rev. atual. e ampl. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014.
[4] A construção histórica do tipo penal de lavagem de dinheiro, originalmente, remonta às primeiras décadas do século XX, através da persecução criminal dos membros de organizações criminosas atuantes na comercialização ilegal de bebidas alcoólicas. O referido crime solidificou-se a partir do maior rigor imposto às organizações criminosas, especialmente após a entrada em vigor da chamada “Lei Seca” nos Estados Unidos da América, a qual vetou a comercialização de bebidas alcoólicas naquele país. Esta proibição fez surgir um mercado paralelo e clandestino que visava à efetivação de práticas ilícitas. Neste momento, enalteceu-se a figura do lendário gangster de origem italiana Al Capone e, também, de Meyer Lansky. O termo cunhado para o referido crime, ademais, inspirou-se na prática de Al Capone, porquanto este, por intermédio da manutenção de lavanderias com aparência plenamente lítica, ocultava e dissimulava os ganhos provenientes dos crimes anteriormente aludidos. Ainda que tenha sido materializada, a priori, nos Estados Unidos da América, a lavagem de dinheiro encontra seus primeiros traços legais na Itália. Durante os “anos de chumbo”, por volta de 1978, o grupo armado denominado Brigate Rosse (Brigada Vermelha) provocou uma série de atos, a fim de desmantelar o poder político da época. Nessa linha, em 16 de março de 1978, dando sequência a gigante onda de seqüestros que vinham dando cabo, a Brigada Vermelha capturou o político Aldo Moro que, em maio do mesmo ano, veio a ser assassinado. Tal fato gerou uma relevante comoção internacional e chamou a atenção do governo italiano. Com o escopo de enfraquecer as organizações criminosas, as autoridades italianas introduziram ao Código Penal o art. 648, bis[4], criminalizando a substituição de dinheiro proveniente de ilícitos, notadamente, roubo qualificado, extorsão qualificada ou extorsão mediante seqüestro. DE CARLI, Carla Veríssimo. Lavagem de dinheiro: ideologia da criminalização e análise do discurso. Porto Alegre: Dissertação de Mestrado, 2006.
[5] Acerca do tema, leia-se o verbete “Positivismo Jurídico” em: STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: cinquenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte (MG): Letramento: Casa do Direito, 2020.
[6] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: cinquenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte (MG): Letramento: Casa do Direito, 2020, p. 184.
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2ª Turma decide que dispositivo da Lei Anticrime deve retroagir para benefício do acusado
Fonte: STF
A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por unanimidade, que a alteração no Código Penal que tornou necessária a manifestação da vítima para o prosseguimento de acusação por estelionato pode retroagir para beneficiar o réu. O entendimento se formou no julgamento do Habeas Corpus (HC) 180421, com relatoria do ministro Edson Fachin, no qual também se determinou o trancamento da ação penal aberta pelo Ministério Público (MP) contra o acusado.
Venda de automóvel
O impetrante do HC é o dono de uma revendedora de automóvel, e o caso discute a venda de um carro deixado com ele em regime de consignação. Na época dos fatos, o MP podia apresentar denúncia mesmo sem expressa vontade da vítima. Porém, alteração no parágrafo 5º do artigo 171 do Código Penal, introduzida pelo Pacote Anticrime (Lei 13.964/2019), condicionou o prosseguimento do processo à manifestação do prejudicado contra o suposto estelionatário.
Não interesse
O julgamento foi retomado com o ajuste de voto do ministro Gilmar Mendes, em razão de discussão sobre a tipicidade do delito diante de termo tratado entre as partes em que se acertou a devolução do bem e o estorno do valor pago. O acordo, promovido antes do recebimento da denúncia pelo juízo de primeiro grau, atesta a quitação do veículo e foi comunicado à autoridade policial.
Para o ministro, o caminho mais adequado, nesse caso, é considerar o termo de quitação como indicativo objetivo e seguro do não interesse da vítima na persecução penal. A retração via acordo e a inovação legislativa no Código Penal implicam, a seu ver, o trancamento do processo penal, em razão da ausência de procedibilidade.
Dessa forma, o ministro seguiu, em parte, o voto do ministro Nunes Marques, na sessão anterior do julgamento, no sentido de conceder o habeas corpus e trancar a ação, como consequência.
Novo entendimento
A ministra Cármen Lúcia lembrou que a Primeira Turma havia decidido o tema de forma diferente, mas levou em consideração, no caso, o princípio da máxima efetividade do Direito e das garantias individuais, reconhecendo a natureza mista (material e processual) da alteração legislativa, e, por isso, fundamentou seu voto no princípio da norma penal mais benéfica ao acusado.
Apesar de chegar à mesma conclusão pela concessão do HC, o ministro Ricardo Lewandowski ponderou que o caso trata de conflito de natureza civil, pois, com a celebração do acordo, não há dolo. Para ele, instigar a vítima a apresentar representação é comportamento proibido no Direito. Portanto, sugeriu o trancamento da ação com base na ausência de justa causa.
GT/AS//CF
A LEI Nº 12.850/2013 SOB A PERSPECTIVA DO DIREITO PENAL ECONÔMICO
Por: José Ewerton Bezerra Alves Duarte[1] Mayara de Lima Paulo[2] e Matheus Ribeiro Barreto Dias[3]
1 INTRODUÇÃO
O crime organizado, enquanto um meio para atingir poder e riquezas por meios ilícitos, configuram-se em modalidade típica extremamente complexa e com várias nuances e ramos, que vão desde o uso de meios ilegais/ilegítimos para a geração de lucro, como lobbies nas bolsas de valores e cartéis empresariais, até a exploração dos mais nefastos mercados, por exemplo, o tráfico de drogas, armas, órgãos e humanos (MICHAEL, 2004)[4]. Assim, é oportuno pontuar que a doutrina se debruçou timidamente em relação à análise da Lei 12.850/2013[5], devido, sobretudo, as variadas maneiras de incidência deste tipo penal[6] (CAMPOS, SANTOS, 2004).
A problemática nacional e até internacional, em relação à temática exposta, consiste no fato de o Poder Público não ter logrado ainda êxito pleno no efetivo combate às ações das Organizações Criminosas (OC’s). Neste sentido, enquanto aparato normativo, a Lei de Organizações Criminosas (LOC) aperfeiçoou tanto materialmente quanto processualmente a antiga Lei nº 9.034/1995, diversificando também seus meios de obtenção de provas, visto às excepcionalidades desta modalidade típica, que não se limitam aos métodos tradicionais (DA SILVA, 2014)[7].
A LOC também aparece como uma espécie normativa preparada a coibir os aspectos dos chamados “crimes de colarinhos branco”, cujos agentes possuem elevado poder aquisitivo e se utilizam de modus operandis que envolvem desde a corrupção de agentes estatais até o estabelecimento de estruturas piramidais aptas à lavagem de dinheiro. Mendroni (2015)[8] consigna que a LCO se incorpora à sistemática jurídica e constitui uma importante ferramenta na luta contra a delinquência organizada, evitando-se, outrossim, as mazelas socioeconômicas. Assim, o presente artigo se propõe a problematizar o instituto normativo das OC’s utilizando-se de metodologia bibliográfica e documental por meio de uma abordagem exploratória, doutrinária e jurisprudencial.
2 DAS PROVAS NA LEI 12.850/2013
Conforme discorre Capez (2013)[9], as provas são de extrema importância para a ciência do processo, pois é nelas que estão o alicerce para dar seguimento a um processo de forma efetiva (amparando a justa causa), devendo elas serem válidas e idôneas. Fazendo-se valer como um meio de compreensão dos fatos que dizem respeito ao crime, sua presença em termos processuais, é vital para a instauração do rito processualístico criminal.
Sendo o juiz orientado pelo princípio do livre convencimento motivado ou persuasão racional, cabe a ele, como julgador (e não como combatente do crime), julgar os fatos, aplicando-lhe a subsunção deles à norma, inclusive tendo o próprio Código de Processo Penal vedado a possibilidade de se basear exclusivamente nas provas colhidas na investigação. Noberto Avena (2013)[10] explica que a valoração da prova investigatória colhida pode vir a possuir elementos secundários de motivação, isto é, supletiva ou subsidiariamente, como forma de reforço às conclusões extraídas do contexto judicializado, onde em relação às organizações criminosas, as provas necessitam de novo revestimento, aplicabilidade e hermenêutica.
2.1. O INSTITUTO DA COLABORAÇÃO PREMIADA
Tratando-se de meio apto à variação da colheita de provas, a colaboração premiada foi modernizada na Lei 12.850/2013. Mendonça (2013)[11] a define como a eficaz atividade do investigado, imputado ou condenado de contribuição com à persecução penal - na prevenção ou na repressão de infrações penais graves - em troca de benefícios penais, segundo acordo formalizado por escrito entre as partes (investigado e Polícia Judiciária ou Ministério Público) e homologado pelo Juízo após realização do devido controle da legalidade do instituto.
2.2 DA AÇÃO CONTROLADA
Em se tratando ainda do art. 3º da LOC e, mais adiante, em seu art. 8º, a ação controlada se mostra como mais uma de suas possibilidades de obtenção de prova. Masson e Marçal (2018, p. 258, 259)[12] entendem que a ação controlada não seria um meio, mas, sim, fonte probatória, que origina provas testemunhais e documentais, não se confundido, inclusive, com alguma espécie de flagrante preparado ou forjado que são, a propósito, ilegais.
Também chamada de flagrante prorrogado ou retardado que, mediante autorização legal para que as Autoridades Policiais e seus agentes possam efetuar uma prisão com a intenção de uma melhor apuração criminal (CABETTE, NAHUR, 2014)[13], revela-se como forma de prender um maior número de integrantes de determinada OC ou obter provas mais robustas para uma possível condenação da organização (FELTRIM, 2018)[14].
Importante salientar que seu uso também é expandido às autoridades administrativas, tais como os agentes das receitas estaduais e federais, integrantes da ABIN, órgãos do Ministério Público, corregedorias e afins também irão poder retardar sua atuação para um momento mais oportuno para obter maior eficácia na colheita de elementos de informação, como em caso de crimes de posse ou tráfico de drogas (FELTRIM, 2018)[15]. Sendo assim, a ação controlada também se demonstra primordial como meio de embate ao crime organizado.
2.3 AS INFILTRAÇÕES POLICIAIS
Segundo Cunha (2013)[16], a infiltração de agentes policiais é uma técnica de investigação que consiste em um agente de polícia se inserir no meio criminoso, passando a participar dos delitos ou de seu planejamento, com a finalidade de conseguir o maior número de provas e informações possíveis para evitar ou reprimir a prática de crimes praticados por essas OC’s.
Portanto, tratando-se de meio de obtenção de prova extraordinário, o inquérito policial que o precede necessita ser sigiloso e sob prévia consulta ao Ministério Público. Salienta-se, inclusive, que esta tática pode ser requisitada pelo Ministério Público e pela Autoridade Policial, sendo vedada a sua decretação de ofício pelo Juiz, sob pena de ilicitude de obtenção de provas.
Todavia, a proporcionalidade e a razoabilidade devem ser os princípios motrizes desta modalidade, visto que o agente encarregado não pode permitir eventuais descompassos e falta de adequação em seu principal objetivo, quer seja, o investigativo. Por se tratar de figuras proeminentes e de difícil acesso aos elementos de autoria e materialidade (e os bens lesados em crimes dessa espécie costumam ser de significante valor socioeconômico), em que pese ser o período mínimo de seis meses para a investigação, a doutrina e a jurisprudência são pacíficas ao estabelecer que o número de prorrogações deste tempo é indeterminado até que se consiga as eventuais provas e indícios acerca do caso em concreto, conforme o artigo 10, §3º da LOC.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme abordado, ainda que sucintamente pelo presente trabalho, a LOC se revelou, não somente como parâmetro inovador e modernizador do processo penal por parte do Estado na atuação da persecução criminal, mas também revestiu de constitucionalidade e razoabilidade os institutos já existentes no ordenamento jurídico, mas ainda pouco desenvolvidos.
Em se tratando do Direito Penal Econômico, as OC’s constituem gravíssimas afrontas ao Estado Democrático de Direito nos planos doméstico e internacional, visto que organizações desse tipo não costumam se prender às fronteiras estatais. E nisto, a LOC assegura seu lugar como um excelente instrumento de garantia de segurança socioeconômica, devido, em muito, aos seus métodos excepcionais de colheita de provas e táticas investigativas.
O Magistrado, enquanto aplicador da norma aos fatos, deve se atentar às particularidades e à evolução no tratamento e percepção das OC’s, visto que seu relacionamento com figuras públicas e estatais de poder não surpreendentemente é muito mais próximo do que dos crimes comuns. Portanto, cabe ao Direito Penal Econômico tutelar as condutas que venham a ferir os bens jurídicos protegidos por sua esfera, seja no campo mercantil, tributário, empresarial, difuso-coletivo e até mesmo das políticas públicas.
4 REFERÊNCIAS
AVENA, Norberto. Processo Penal: Esquematizado. 5. ed. atual. e ampl. São Paulo. Método. 2013. p. 150.
CABETTE, Eduardo Luiz Santos; NAHUR, Marcius Tadeu Maciel. Criminalidade organizada & globalização desorganizada: curso completo de acordo com a lei 12.850/13. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 2014.
CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 20. ed. Saraiva. 2013.
CUNHA, Rogério Sanches. Crime organizado – comentários à nova Lei sobre o Crime Organizado – Lei nº 12.850/2013. Juspodivm, 2013. p. 95.
DA SILVA, Eduardo Araújo. Organizações criminosas: aspectos penais e processuais da Lei nº 12850/13. São Paulo: Atlas, 2014, p. 33.
FELTRIM, Victor Kfouri Palma. "A (in) possibilidade da aplicação da ação controlada na Lei 12.850/2013 (Lei de Organizações Criminosas) frente a súmula 145 do STF." Direito-Tubarão (2018). p. 23.
MEIRA, José Boanerges, et al. "A colaboração premiada e processo penal brasileiro: uma análise crítica." Virtuajus 2.3 (2017). p. 32.
MENDONÇA, Andrey Borges de. "A Colaboração premiada e a nova Lei do Crime Organizado (Lei 12.850/2013)." Revista Custos Legis. Vol. 4 – 2013, p.4.
MENDRONI, Marcelo Batlouni. Comentários à lei de combate ao crime organizado: Lei n° 12.850/13. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 1.
MICHAEL, Andréa. “Crime Organizado funciona como holding, diz estudioso”. Folha. In. CAMPOS, Lidiany Mendes e SANTOS, Nivaldo dos. "O Crime Organizado e as prisões no Brasil." Artigo Científico, CONPEDI, ciências penais UFG (2004), p. 2.
[1] Mestrando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará (PPGD/UFC). Pós-graduando em Docência do Ensino Superior pela Universidade Federal de Campina Grande. Pós-Graduando em Direito Constitucional pela Faculdade Futura de São Paulo. Bacharel em Direito pela Faculdade São Francisco da Paraíba (2017). Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Faculdade São Francisco da Paraíba (2019) e em Direito Público pela Faculdade Legale de São Paulo (2020). Pesquisador do Grupo de Estudos de Direito e Assuntos Internacionais (GEDAI/UFC). Aprovado no Exame da Ordem dos Advogados do Brasil. Servidor Público Efetivo na Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Estado da Paraíba. E-mail: ewertonduartecz@gmail.com
[2] Advogada. Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará (PPGD/UFC). Bacharela em Direito pela Universidade de Fortaleza (2012). Membro do Núcleo de Estudos Aplicados Direito, Infância e Justiça (NUDIJUS/UFC) e do GEDAI/UFC. Membro do Conselho Jovem da OAB/CE. E-mail: mayaralp.adv@gmail.com
[3] Graduando em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Pesquisador do GEDAI/UFC. Pesquisador bolsista do projeto “Proteção e Promoção dos Direitos Humanos no Brasil à luz de casos emblemáticos da Corte Regional Interamericana: Controle de Convencionalidade e Desafios de Integração Normativa”, e do Laboratório Internacional de Investigação em Transjurisdicidade (LABIRINT), vinculados à UFPB. Estagiário junto ao MPF-PB. E-mail: matheusbarreto14@hotmail.com
[4] MICHAEL, Andréa. “Crime Organizado funciona como holding, diz estudioso”. Folha. In. CAMPOS, Lidiany Mendes e SANTOS, Nivaldo dos. "O Crime Organizado e as prisões no Brasil." Artigo Científico, CONPEDI, ciências penais UFG (2004), p. 2.
[5] CAMPOS, Lidiany Mendes e SANTOS, Nivaldo dos. Op. Cit. p. 4.
[6] “Considera-se Organização Criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.”
[7] DA SILVA, Eduardo Araújo. Organizações criminosas: aspectos penais e processuais da Lei nº 12850/13. São Paulo: Atlas, 2014, p. 33.
[8] MENDRONI, Marcelo Batlouni. Comentários à lei de combate ao crime organizado: Lei n° 12.850/13. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2015. P. 1.
[9] CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 20. ed. Saraiva. 2013.
[10] AVENA, Norberto. Processo Penal: Esquematizado. 5. ed. atual. e ampl. São Paulo. Método. 2013. P. 150.
[11] MENDONÇA, Andrey Borges de. "A Colaboração premiada e a nova Lei do Crime Organizado (Lei 12.850/2013)." Revista Custos Legis. Vol. 4 – 2013, p.4.
[12] CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 20. ed. Saraiva. 2013.
[13] CABETTE, Eduardo Luiz Santos; NAHUR, Marcius Tadeu Maciel. Criminalidade organizada & globalização desorganizada: curso completo de acordo com a lei 12.850/13. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 2014
[14] FELTRIM, Victor Kfouri Palma. "A (in) possibilidade da aplicação da ação controlada na Lei 12.850/2013 (Lei de Organizações Criminosas) frente a súmula 145 do STF." Direito-Tubarão (2018). P. 23.
[15] FELTRIM, Victor Kfouri Palma. Op. Cit. P. 25
[16] CUNHA, Rogério Sanches. Crime organizado – comentários à nova Lei sobre o Crime Organizado – Lei nº 12.850/2013. Juspodivm, 2013. P. 95
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O PROBLEMA DOS MÚLTIPLOS REGIMES DE LENIÊNCIA E O NECESSÁRIO ALINHAMENTO PÚBLICO INSTITUCIONAL
Por: Samuel Justino de Moraes[1]
A higidez da ordem econômica, como aborda Patrícia Sampaio, constitui direito difuso de que é titular toda a coletividade[2]. Por essa razão, o Estado estrutura uma política rigorosa de prevenção e repressão às práticas anticompetitivas, buscando salvaguardar a saudável disputa entre os agentes no mercado.
Este estudo, por sua vez, volta-se para os instrumentos não repressivos utilizados alternativamente no combate às práticas anticoncorrenciais. Com efeito, por meio de uma reciprocidade de concessões, os negociantes firmam um acordo que lhes traga benefícios, de modo a extinguir um cenário de litigiosidade.
Nesse sentido, seguindo uma tendência do direito moderno, o ordenamento jurídico pátrio assistiu, recentemente, a um “verdadeiro espraiamento da figura dos acordos de Leniência Administrativa, em paralelo ao uso de institutos análogos na seara criminal”, como pontuado pelo Min. Gilmar Mendes no julgamento do MS 35.435[3].
Esses acordos, ainda segundo o Ministro, são instrumentos relevantes voltados ao fortalecimento de uma política de combate às infrações econômicas, de modo a desarticular ilícitos que envolvem a atuação concertada de uma multiplicidade de agentes econômicos com o intuito de restringir a concorrência ou fraudar as regras de processos seletivos públicos. Nessa linha, no âmbito da atuação do Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência (CADE)[4], há dois instrumentos fundados no consenso utilizados alternativamente para o enfrentamento de práticas infracionais anticompetitivas, a saber, o acordo de leniência e o termo de compromisso de cessação.
Em linhas gerais, como dispõem Giannini et al, o acordo de leniência pode ser entendido como um instrumento de cooperação entre o integrante de eventual prática ilícita e a autoridade pública, em que, auxiliando na obtenção de provas de determinadas infrações à ordem econômica e na identificação dos demais envolvidos na prática, o leniente recebe um abrandamento da sua punição ou, ainda, imunidade administrativa e penal. O termo de compromisso de cessação, por sua vez, é um instituto destinado a possibilitar à autoridade antitruste o encerramento de processo instaurado para apurar infração à ordem econômica, por meio de acordo em que o representado assume obrigações visando à cessação da prática investigada ou de seus efeitos lesivos, sempre que, em juízo fundamentado de conveniência e oportunidade, entender a autoridade que a medida atende aos interesses protegidos pela legislação[5].
Esses instrumentos de consenso desburocratizantes permitem, indubitavelmente, respostas estatais mais céleres, efetivas e menos onerosas, concretizadas por meio da negociação entre o aparelho estatal e o representado ou investigado.
No que tange ao acordo de leniência, instituto objeto do estudo, a relevância é ainda mais notória, vez que se projeta como instrumento para romper com as dificuldades de detecção de práticas anticompetitivas. Com efeito, sua utilização materializa a estratégia estatal de desestabilização dos laços de confiança entre os integrantes das práticas ajustadas, permitindo que o agente colaborador receba benefícios para expor os meandros da conduta, trazendo provas relacionadas à atuação das quais o Estado não tinha conhecimento. No entanto, a multiplicidade de regimes de leniência existentes torna problemática a atuação multifacetada do Estado, o que pode comprometer a própria eficácia do instrumento, como pontua Luiz Guilherme Ros[6].
Com efeito, uma prática anticoncorrencial pode repercutir em diversas áreas do direito, de modo que cada uma das respectivas autoridades públicas pode ter interesse na investigação e na punição do infrator. A título do exemplo, uma prática ajustada entre uma pluralidade de agentes econômicos pode ser considerada criminosa, corruptiva sob a ótica da pessoa jurídica, anticoncorrencial e ofensiva ao erário. Diante disso, por um mesmo fato, é possível, quando não necessária, a celebração de acordos de leniência com múltiplas autoridades, a exemplo da Superintendência Geral (SG) na esfera do CADE, da Controladoria-Geral da União (CGU) e a Advocacia Geral da União (AGU) no âmbito da Lei Anticorrupção, do Ministério Público Federal (MPF) e do Tribunal de Contas da União (TCU).
Esse fenômeno desnuda, assim, a falta de alinhamento institucional, o que pode minar a eficiência dos mecanismos de solução consensual adotados pelo Poder Público. Como o acordo visa a romper com o silêncio dos agentes envolvidos na conduta ilícita, retirando-os de uma situação confortável e vantajosa, o sucesso do programa de leniência depende da previsibilidade e da sensação de segurança jurídica provocada pela negociação, além da necessária garantia de proteção ao leniente em outras áreas que o possam atingir mais severamente, como o direito penal. Não por outro motivo garante-se imunidade penal e administrativa ao colaborador, até pela necessidade de reconhecimento de participação na conduta anticoncorrencial, o que pode resultar na incriminação do leniente em outras esferas.
No entanto, não basta a mera promessa, mas a garantia de efetivo desfrute das vantagens oferecidas, com a previsão potencial das consequências do ajuste com o Estado, sob pena de se desestimular a cooperação. Entretanto, a coexistência dos diversos regimes de leniência previstos no direito brasileiro, não raras vezes, colide com essa exigência, ante o descompasso da atuação estatal com a sobreposição de múltiplas autoridades interessadas na celebração do acordo. Nesse sentido, destaca-se o julgamento do MS 35.435 pelo STF, case apto a ilustrar a controvérsia que ora se demonstra.
No caso, a sociedade empresária Andrade Gutierrez S.A. havia firmado acordo de leniência com o MPF e termo de compromisso de cessação com o CADE, em função de ilícitos relacionados às contratações para as obras de Angra III. Não obstante, o TCU aplicou à leniente a sanção de declaração de inidoneidade, determinando, contudo, a suspensão da execução da medida, subordinando a eficácia do acordo de leniência junto ao MPF ao cumprimento de outras condições impostas pelo TCU, a saber, a reabertura das negociações com o parquet para que se obtivesse o compromisso de cooperação com as fiscalizações e de ressarcimento integral do dano causado ao erário.
Nota-se, portanto, que, embora os ilícitos investigados tenham sido objeto de acordos firmados em programas de leniência com outras instituições a nível federal, o TCU veiculou ameaça expressa de declaração de inidoneidade pelos mesmos fatos. Por isso, a discussão versava acerca da possibilidade de aplicação da sanção, de modo a garantir-se a completa reparação dos danos, sem que a medida se traduzisse em comportamento contraditório do Estado, o que poderia ofender o princípio da unidade estatal, da legítima confiança, da segurança jurídica e da eficiência da atuação pública.
Em assim sendo, em que pese a relevância do poder sancionatório do Tribunal de Contas, parece insustentável a aplicação da referida sanção, vez que, quando da celebração, o suporte fático que sustentou o acordo não incluía as condições impostas pelo TCU, de modo que não poderia a Corte, posteriormente, determinar a reabertura das negociações para inclusão de condições inicialmente não previstas no ajuste originário. Do contrário, a sensação que se poderá causar é a de que o Estado não cumpre com os seus compromissos, o que poderia minar os incentivos para a colaboração no âmbito do acordo de leniência. Caso estritamente cumpridas as condições do acordo, não há espaço para aplicação de sanção por outro órgão estatal, se assegurada, nesse mesmo instrumento negocial, a não aplicação da referida penalidade.
Diante desse cenário, o Min. Gilmar Mendes apontou, acertadamente, para aquilo que entendeu evidenciar o desalinhamento entre os diversos regimes de leniência, a saber, a ausência de convergência nos requisitos para a celebração dos acordos, bem como a inexistência de harmonia entre os benefícios passíveis de serem obtidos, além da imprevisibilidade acerca da extensão desses benefícios às outras frentes da atuação pública.
Para solucionar os fatores da controvérsia elencados, o aludido Ministro indicou que, para prestigiar os múltiplos regimes de leniência, deve-se zelar pelo alinhamento de incentivos institucionais à colaboração e pela realização do princípio da segurança jurídica, a fim de que os colaboradores tenham previsibilidade quanto às sanções e benefícios premiais cabíveis quando optarem por cooperar com a Administração Pública.
Para tanto, é importante que a atuação do Poder Público se expresse de maneira coordenada, de modo que as empresas investigadas não tenham a percepção de que o Estado falta com os compromissos assumidos. Além disso, sob o viés prático, as sanções aplicadas pelo Estado não podem esvaziar o cumprimento de outra medida por ele determinada, ainda que pela via negocial, como no caso da declaração de inidoneidade, verdadeira “pena de morte” para o empresário, dado o comprometimento da capacidade econômica, o que pode inviabilizar o cumprimento das obrigações assumidas no instrumento consensual.
Por essa razão, o STF formou maioria para reconhecer a impossibilidade de imposição de sanção de inidoneidade pelo TCU pelos mesmos fatos que deram ensejo à celebração de acordo de leniência, ante a incompatibilidade com os princípios constitucionais da eficiência e da segurança jurídica.
Essa decisão mostra-se paradigmática para demonstrar a necessidade de harmonização da atuação das diversas entidades no âmbito dos regimes de leniência. A existência de inúmeros instrumentos de acordos nas mais diversas frentes de atuação do Estado exigem atuação alinhada, de modo que reste assentada a transparência e a previsibilidade necessárias para a celebração dos ajustes de vontades, como o é em toda negociação jurídica. Uma atuação mais harmônica, coerente e coordenada do Poder Público implica em ganhos institucionais e consolida a credibilidade desejável para o sucesso dos instrumentos consensuais institucionalizados para o enfrentamento das infrações à ordem econômica.
Em meio a esse contexto, em maio de 2020, a Presidência do Supremo Tribunal Federal tomou a iniciativa de capitanear a celebração de um Acordo de Cooperação Técnica envolvendo a AGU, a CGU, o TCU e o Ministério da Justiça e Segurança Pública, no âmbito da atuação da Lei Anticorrupção, o qual foi assinado em setembro de 2020.
No documento, ficou assentado que, quando algum ilícito envolver fatos de competência do TCU, as entidades enviarão informações à corte, para estimação dos danos. Ademais, após a celebração do acordo de leniência, a CGU e a AGU compartilharão as informações e documentos fornecidos pela empresa colaboradora com as demais autoridades, não podendo esses dados serem usados para punir a companhia pelos mesmos fatos. Estabeleceu-se, ainda, que a AGU e o MPF poderão buscar a responsabilização, por meio de ações de improbidade administrativa, das demais pessoas e empresas envolvidas nos atos revelados pela companhia colaboradora, o que, no âmbito administrativo, incumbirá à CGU e ao TCU. Por fim, as instituições também concordaram em estabelecer mecanismos de compensação ou abatimento de multas pagas pelas empresas em condutas tipificadas por mais de uma lei[7].
Esse acordo, mesmo que relacionado apenas à matéria de combate à corrupção, é positivo, pois é elementar a consolidação de uma cultura de alinhamento institucional, dado que a consolidação e o fortalecimento da estratégia estatal de enfrentamento às práticas antijurídicas por meio da colaboração dos envolvidos na prática dependem da percepção de atratividade da celebração de acordo com o Estado, o que perpassa, sobretudo, pela observância dos marcos de previsibilidade e de segurança jurídica. A expectativa é a de que medidas como essa se disseminem por todas as frentes da atuação estatal em temas de acordo de leniência, de modo a garantir uma atividade mais coordenada do Poder Público.
[1] Bacharelando em Direito pela PUC Minas.
[2] SAMPAIO, Patrícia Regina Pinheiro. A utilização do termo de compromisso de cessação de prática no combate aos cartéis. Revista de Direito Administrativo, v. 249, p. 245-265, 2008.
[3] BRASIL. STF. MS 35.435, 36.173, 36.496 E 36.526. Relator: Ministro Gilmar Mendes. 27 mai. 2020.
[4] BRASIL. Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011. Brasília 2011. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12529.htm. Acesso em: 25 abr. 2021.
[5] GIANNINI et al. Comentários à nova lei de defesa da concorrência: lei 12.529, de 30 de novembro de 2011 / coordenadores Eduardo Caminati Anders, Vicente Bagnoli, Leopoldo Pagotto– Rio De Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012.
[6] ROS, Luiz Guilherme. Criando incentivos, a partir da teoria dos jogos, para celebração de termos de compromisso de cessação por pessoas físicas: uma análise das ações penais da lava jato. 114 f. Dissertação (mestrado em direito). Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), Brasília, 2020.
[7] TCU aprova termo de cooperação com instituições para acordos de leniência. Consultor Jurídico. 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-ago-05/tcu-aprova-cooperacao-instituicoes-acordos-leniencia2. Acesso em: 03 mar. 2021.
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DOGMÁTICA PENAL E DIREITO PENAL ECONÔMICO
Hellen Luana de Souza e João Pedro Barione Ayrosa[1]
A melhor definição da função da ciência do direito penal é a que lhe atribui a orientação da produção legislativa e da prática jurídico-penal, de forma a possibilitar maior segurança e controle na concretização da “justiça penal historicamente situada”[1]. Realiza sua tarefa por meio de desenvolvimento de conceitos, fundamentos, limites e metodologia para a produção e realização do direito[2], que, em termos práticos, deve conduzir à resolução de determinado caso concreto enfrentado na jurisprudência. Em síntese, o direito penal é uma ciência normativa propositiva[3], devendo indicar caminhos.
A crítica dentro deste desenho é, por certo, bem vinda. Porém, se o cientista do direito penal se limita a apenas desconstruir, deixando para trás uma terra arrasada, não está cumprindo com a função atribuída à dogmática. Aqui, pode-se apontar o problema das críticas “historicizantes” (direito penal moderno x clássico, p.e.), que acabam se perdendo por difusas, não conseguindo enfrentar, na maior parte das vezes, um problema normativo específico[4].
Portanto, parece-nos mais produtivo uma ciência que enfrenta questões localizadas, atentando para sua função de racionalização, com o desenvolvimento de categorias cujo conteúdo, limites e consequências sejam claros e capazes de solucionar um caso problema localizado[5]. Olhemos agora para o objeto deste pequeno estudo, o direito penal econômico.
Há muitas discussões sobre a autonomia ou não do direito penal econômico[6], sobre sua fundamentação[7], limites etc. O que nos interessa aqui é encontrar a forma como esse ramo específico do direito penal se relaciona com a colocação acima apresentada da função da dogmática penal.
E esse elo é mais simples do que parece: se a função da dogmática do direito penal é a racionalização e indicação de caminhos para a resolução de problemas, a dogmática voltada para o direito penal econômico deve analisar o quadro normativo e jurisprudencial, sistematizar seus conceitos e apresentá-los de forma ordenada e útil para a prática. Com isso, encontram-se caminhos para a redução de complexidade dos problemas do direito penal dito econômico e possibilita-se o estreitamento entre os fundamentos da parte geral (regras e categorias) e os novos problemas oferecidos pelo desenvolvimento econômico-social, sem que se caia no erro da fuga do direito penal, reputando tudo como ilegítimo[8] – ou seja, a crítica que olvida a função da dogmática.
Buscando concretizar o que foi apresentado, vejamos um tópico importante do direito penal econômico e como ele pode ser enfrentado na hora do desenvolvimento dogmático.
O bem jurídico coletivo é apontado reiteradamente como o centro do que protege o direito penal econômico[9]. No entanto, a doutrina não se ocupa muito com sua conceituação, limitando-se a definir bens coletivos como aqueles bens jurídicos pertencentes à coletividade, o que não está errado, mas pouco esclarece[10]. Além disso, sobre eles pairam dois problemas destacados: em primeiro lugar, o bem jurídico coletivo facilita a vida do legislador porque, ao incriminar certa conduta para proteger um bem coletivo ao invés de um individual, consegue justificar uma consumação ou proibição antecipada, autorizando uma intervenção originalmente ilegítima[11]; em segundo, o problema do bem jurídico coletivo aparente, cuja diferença para bens jurídicos de fato coletivos muitas vezes não encontra instrumental claro na produção dogmática.[12]
Entretanto, conforme exposto no início deste estudo, não cabe ao cientista do direito apenas desconstruir e criticar, é preciso apontar caminhos para a resolução dos problemas, de forma a cumprir a função da dogmática. Conjugando isso com a problemática dos bens jurídicos coletivos protegidos pelo direito penal econômico e com a necessidade de “considerar em que casos a atividade económica pode comportar ataques intoleráveis a bens jurídicos relevante”[13], temos que a contribuição da dogmática deve ser a elaboração de critérios objetivos para identificar e diferenciar um bem jurídico coletivo legítimo de um falso bem jurídico coletivo.
Exemplo disso é o já referido estudo de Greco[14] que, após discorrer sobre os argumentos de ataque aos bens jurídicos coletivos, extrai três conclusões intermediárias sob a forma de regras/testes que funcionam como critérios para identificação de bens jurídicos coletivos, são elas: (a) teste de circularidade, pelo qual “o fato de que um dispositivo penal não seria legitimável sem um bem coletivo não fornece qualquer razão para postular um tal bem”[15]; (b) teste da divisibilidade, fundado no “fato de que um número indeterminado de indivíduos tem interesse em um bem não é uma razão para postular um bem coletivo”[16]; (c) teste da não-especificidade, segundo o qual “não é permitido postular um bem coletivo como objeto de proteção de uma determinada norma penal, se a afetação desse bem necessariamente pressupõe a simultânea afetação de um bem individual”[17]. Traçados os critérios, o passo seguinte é submeter a eles os bens jurídicos coletivos a fim de verificar se são de fato coletivos ou falsos, sendo; por exemplo, a saúde pública tutela pelo crime de tóxicos não passa pelo teste da não-especificidade[18].
No mesmo rumo, mas por outra via, está a definição do bem jurídico tutelado pelo direito penal econômico através do diálogo interdisciplinar entre direito penal e economia[19], o que nos parece, assim como os critérios acima descritos, um bom caminho, haja vista que, tanto no aspecto metodológico quanto em relação a sua função – proteção de bens jurídicos -, o direito penal necessita de outros saberes e ciências[20],, cujas categorias podem contribuir para o desenvolvimento do ferramental dogmático, impedindo uma “ultradogmatização” [21], na qual a ciência do direito torna-se mero relicário de teorias e categorias que não são manejáveis.
Disso se extrai que cabe à doutrina, de um lado, travar um diálogo com outros campos do saber que possibilite a aproximação das categorias dogmáticas com o objeto concreto de regulamentação; e, de outro, a criação de filtros próprios da dogmática penal - no caso, o filtro de controle da legitimidade do bem jurídico. Por meio desse procedimento, consegue-se racionalizar um conceito que originalmente poderia ser perigoso, restringindo seu alcance e extraindo suas eventuais virtudes. Também se preenche uma função crítica sem cair na “fuga do direito penal”, posto que há critérios claros para indicar uma criminalização ilegítima, abrindo espaço para o controle prévio (projeto de lei) e posterior (controle de constitucionalidade).
REFERÊNCIAS
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[1] Hellen Luana de Souza, graduanda do quarto ano do curso de Direito da Universidade Estadual de Londrina,
João Pedro Barione Ayrosa, graduando do quarto ano do curso de Direito da Universidade Estadual de Londrina, joaobayrosa@gmail.com.
[1] RUIVO, Marcelo Almeida. Quatro diferenças científicas fundamentais entre a criminologia e o direito penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 25, v. 137, p. 323-345, nov. 2017, p. 337
[2] Ibidem, p. 339-340
[3] Ibidem, p. 339
[4] GRECO, L. A criminalização no estágio prévio: um balanço do debate alemão. Revista do Instituto de ciências penais, vol. 5, dez./mai. 2020, p. 11 – 34. Belo Horizonte: Editora D-Plácido, 2020, p. 21-22; GRECO, L. Existem critérios para a postulação de bens jurídicos coletivos? Revista de Concorrência e Regulação, a. 2, v. 7-8, p. 349-374, jul.-dez. 2012, p. 350. ROTSCH, T. Concerning the hypertrophy of law: a plea for the harmonization between theory and practice. Zeitschrift für Internationale Strafrechtsdogmatik, v. 4, n.3, p. 89-96, 2009, p. 92-93.
[5] PUPPE, I. Ciência do direito penal e jurisprudência. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 58, p. 105-113, jan-fev., 2006, p. 113.
[6] COSTA, José de Faria; ANDRADE, Manuel da Costa. Sobre a concepção e os princípios do direito penal económico. In: PODVAL, Roberto. Temas de direito penal econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 107; SCHIMIDT, Andrei Zenkner. Fundamentos para uma parte geral do direito penal econômico. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 22, v. 111, p. 61-90, nov.-dez. 2014, p. 64, KALACHE, Maurício. Direito penal econômico. In: PRADO, Luiz Regis. Direito penal contemporâneo: estudos em homenagem ao professor José Cerezo Mir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 393; TIEDEMANN, Klaus. El concepto de delito económico y de derecho penal económico. Nuevo Pensamiento Penal: Revista de Derecho y Ciencias Penales. Buenos Aires, a. 4, v. 5-8, p. 461-475, 1975, p. 464; DARCIE, Stephan Doering. Notas reflexivas em torno do direito penal econômico e do conteúdo material do ilícito penal econômico. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 95, p. 357-404, mar.-abr. 2012, p. 374; BATISTA, Nilo. Concepção e princípios do direito penal econômico, inclusive a proteção dos consumidores, no Brasil. Revista de Direito Penal, Rio de Janeiro, n. 33, p. 78-89, jan.-jun.. 1982, p. 89.
[7] SCHIMIDT, op. cit., p. 69; RODRIGUES, Anabela Miranda. Direito penal econômico – É legítimo? É necessário? Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 25, v. 127, p. 15-38, jan. 2017, p. 24-26.
[8] RODRIGUES, 2017, p. 35; BATISTA, op. cit., p. 82-84.
[9] RODRIGUES, op. cit., p. 33; KALACHE, op. cit., p. 397; COSTA; ANDRADE, 2000, p. 103; SCHIMIDT, 2014, p. 76; TIEDEMANN, 1975, p. 467; DARCIE, 2012, p. 372; SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Teoría del delito y Derecho penal económico. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 20, v. 99, p. 327-356, nov.-dez. 2012, p. 330; DIAS, Jorge de Figueiredo. O direito penal económico entre o passado, o presente e o futuro. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Coimbra, v. 22, n. 3, p. 521-543, jul.-set. 2012, p. 535.
[10] GRECO, 2012, p. 66
[11] Ibidem, 2012, p. 64-65.
[12] GRECO, 2020, p. 23-24.
[13] RODRIGUES, 2017, p. 33.
[14] GRECO, 2012, p. 66-72.
[15] Ibidem, p. 69.
[16] Ibidem, 2012, p. 71
[17] Ibidem, 2012, p. 72.
[18] Ibidem, 2012, p. 73.
[19] SCHIMIDT, 2014, p. 64.
[20] RUIVO, 2017, p. 335-337.
[21] Sobre: ROTSCH, op. cit.
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Coaf não tem última palavra de licitude de movimentações financeiras
Para STJ, mesmo que Coaf não identifique movimentação atípica, deve viabilizar o acesso às movimentações ao Ministério Público.
A 6ª turma do STJ fixou que o Coaf não tem a única e última palavra sobre movimentações financeiras atípicas. O colegiado, sob relatoria do ministro Schietti, considerou que mesmo quando não identificada pelo Coaf movimentação atípica, não há impedimento a que o Ministério Público, por meio de autorização judicial, tenha acesso ao conteúdo daquelas movimentações financeiras.
Consta nos autos que o MPF recebeu notícia-crime anônima, por meio de mensagem eletrônica, acerca de possíveis irregularidades envolvendo saques de altos valores na agência do Banco do Brasil em Jacareí/SP, desacompanhada de qualquer documento.
O MPF requereu ao Coaf informações relativas à existência das movimentações financeiras narradas na notícia anônima e foram confirmadas, porém consideradas lícitas. O Coaf informou que os saques em espécie, acima de 100 mil, eram realizados semanalmente, mas não resultaram em RIF.
Diante disso, o MPF instaurou procedimento investigatório criminal e formulou pedido de quebra de sigilo financeiro visando obter do Coaf a relação de transações financeiras. Sobreveio decisão indeferindo o pedido sob o fundamento, em suma, de que, até o momento, não se vislumbrava a existência de elementos concretos que autorizassem o afastamento do sigilo.
O STJ analisa, então, se o parquet teria direito de acesso a movimentação financeira ou se o fato de o Coaf não ter lavrado RIF e não ter encontrado nenhuma irregularidade justificaria o indeferimento da quebra de sigilo bancário.
Trabalho coordenado
Para o relator, ministro Rogerio Schietti, não se pode admitir que a única e última palavra sobre movimentações financeiras atípicas seja do órgão administrativo.
"O titular da ação penal é o Ministério Público, que necessita desses dados para exercer seu juízo valorativo sobre a licitude das movimentações financeiras. Não há uma condição de procedibilidade que vincule o Parquet ao entendimento do Coaf sobre a legalidade da movimentação financeira do contribuinte. O MP deve ter acesso ao conteúdo apurado para que possa exercer as atribuições."
Schietti salientou que o Estado é uno e a regra é que os seus diversos órgãos trabalhem de modo coordenado.
Compartilhamento de informações
No caso concreto, o ministro ressaltou que não se pode negar que saques semanais de valores expressivos em moeda corrente são lícitos, porém é possível afirmar que são também sujeitos à fiscalização não apenas do Coaf mas ainda por parte do MP.
"As informações sobre essas operações financeiras devem ser compartilhadas porquanto, de fato, o que ocorre é apenas uma transferência de sigilo entre os órgãos e, com a devida venia aos que pensam de modo diverso, entendo que carece de fundamento jurídico decisão que imponha óbice ao compartilhamento."
Para Schietti, garantir o acesso do parquet a movimentações suspeitas é viabilizar o exercício de sua função constitucional.
Dessa forma, conheceu e proveu o recurso.
- Processo: RMS 42.120
Veja o acórdão.
Por: Redação do Migalhas
ALGUMAS NOTAS SOBRE SOLIDARIEDADE NAS MEDIDAS CAUTELARES REAIS NO PROCESSO PENAL
Marion Bach[1] e Isabela Maria Stoco[2]
O tempo, como se sabe, é um dos fatores que mais frustra a eficácia do processo penal. Seja o trâmite mais célere ou mais lento, há, sempre, um intervalo de tempo a permitir que ocorram eventos que afetem diretamente a utilidade – e, consequentemente, a justiça – do (futuro) provimento jurisdicional.
Na intenção de minorar os riscos advindos da passagem do tempo, o processo penal lança mão das chamadas medidas cautelares/assecuratórias. “São providências urgentes, com as quais se busca evitar que a decisão da causa, ao ser obtida, não mais satisfaça o direito da parte e não realize, assim, a finalidade instrumental do processo, consistente em uma prestação jurisdicional justa.[3]”
As medidas cautelares, no âmbito do Processo Penal, são divididas em (i) medidas cautelares pessoais; (ii) medidas cautelares probatórias; e (iii) medidas cautelares reais. Quanto à última hipótese – que a estas linhas interessa -, a legislação processual prevê três distintas hipóteses: sequestro, hipoteca legal e arresto. Existem, porém, outras medidas constritivas previstas em leis extravagantes, como por exemplo - e sem a pretensão de esgotá-las -: (i) Lei nº 11.343 de 2006 (Lei de Drogas); (ii) Lei nº 9.613, de 1998 (Lei de Lavagem de Dinheiro), (iii) Lei nº 13.260 de 2016; (iv) Decreto-lei nº 3.240 de 1941; (v) Lei nº 11.346 de 2006 e (vi) Lei nº 13.322 de 2016.
As medidas assecuratórias reais – ou patrimoniais -, através da limitação da disponibilidade de bens, têm como objetivo assegurar a execução dos pronunciamentos patrimoniais de qualquer classe que possa constar da sentença condenatória[4]. Leia-se: buscam assegurar a reparação do dano ao(s) ofendido(s), o pagamento das despesas processuais[5], de eventuais penas pecuniárias e multas e, ainda, garantir o perdimento caso comprovada a origem criminosa dos bens e valores.
Tais instrumentos podem ser deferidos tanto na fase inquisitorial quanto já durante a Ação Penal.[6]
Não é demais afirmar que as medidas assecuratórias reais vêm ganhando significativo espaço nos últimos anos, no Brasil.
A previsão do art. 91 do Código Penal – sobre os efeitos secundários genéricos da condenação – ganhou novos contornos em 2008, com a obrigatoriedade de fixação de indenização mínima pelo juiz sentenciante, nos termos do artigo 387, IV, do Código de Processo Penal.
Mais recentemente, com a Lei nº 13.964 de 2019 (Pacote Anticrime), notadamente com a inserção do artigo 91-A do Código Penal - o qual reconhece o instituto da perda alargada do patrimônio incompatível com a renda do condenado -, adveio a permissão para o Estado adentrar no patrimônio não diretamente relacionado com o fato delitivo. Tornou-se possível, então, promover o confisco de (todos os) bens de posse do acusado, desde que, para tanto, o Ministério Público demonstre que tal patrimônio é incompatível com seu rendimento e, ao final, requerê-lo.[7]
Aliado a isto, o Pacote Anticrime incluiu o artigo 133-A no Código de Processo Penal, o qual autoriza a utilização dos bens apreendidos, sequestrados ou sob o regime de qualquer outra medida cautelar pelos órgãos públicos. Criada, então, a custódia provisória de bem apreendido – o qual, após o trânsito em julgado, poderá ser transferido definitivamente ao órgão que realizava tal custódia.
Em razão dos severos impactos na esfera individual econômica dos investigados, parece redundante afirmar que os valores e/ou bens assegurados deveriam limitar-se ao valor incontroverso nos autos, sempre obedecendo os pressupostos do fumus comissi delicti e periculum in mora[8], e, em caso de coautoria no cometimento do crime, que cada um respondesse na medida de sua culpabilidade. Não é, porém, a lógica que vem operando nos tribunais brasileiros.
A regra que atualmente impera é: se determinado crime – cometido em coautoria - produziu o prejuízo X ou permitiu o ganho ilícito no valor de Y, o Poder Judiciário automaticamente autoriza a constrição dos bens/valores no valor X ou no valor Y, na íntegra, de cada um dos corréus.
Veja-se, por exemplo, o Tribunal Regional Federal da 4º Região, no julgamento dos autos n. 5014604-14.2019.4.04.7000[9], ao entender que "a responsabilidade pela reparação dos danos decorrentes de atos ilícitos, até a liquidação, é solidariamente compartilhada por todos aqueles que os praticaram ou deles se beneficiaram" e, por consequência, "enquanto não definida a responsabilidade de cada coobrigado, a medida cautelar deve atingir os respectivos patrimônios das pessoas físicas e jurídicas, de forma simultânea e pelo montante integral correspondente ao valor mínimo estimado para o dano".
A lógica que parece guiar os pedidos ministeriais e os deferimentos judiciais é: se o crime foi causado por (por exemplo) dois réus e causou um prejuízo total (e atualizado) de R$ 100.000,00 (cem mil reais) à vítima, defere-se o bloqueio do valor total de R$ 100.000,00 (cem mil reais) de cada um dos réus. Assim, caso não haja sucesso em localizar e bloquear bens/valores de um deles, o outro suprirá (e, depois, ambos que se resolvam na esfera cível, em ação de cobrança regressiva...).
Tal lógica, porém, faz algum sentido[10] no momento da autorização/determinação das medidas cautelares reais. Porém, realizadas as cautelares, e supondo que foi, sim, localizado e constrito o valor integral de R$ 100.000,00 (cem mil reais) de cada um dos réus, como justificar – de modo razoável e proporcional – que tais valores sigam constritos? Se os valores declaradamente buscam garantir a restituição do prejuízo – o qual, por sua vez, está claramente delineado nos autos, em cem mil reais -, como justificar a manutenção do bloqueio do dobro do valor até o fim do processo?
Há situações em que o prejuízo causado (e atualizado) é de R$ 100.000,00 (cem mil reais) – em um crime licitatório, imagine-se – e são dez réus denunciados. Há, por anos a fio, a manutenção do bloqueio de R$ 100.000,00 (cem mil reais) no patrimônio de cada um dos réus, o que faz com que o Estado constrinja, por anos e anos, o valor de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais) para garantir, desde sempre, o valor de R$ 100.000,00 (cem mil reais).
Veja-se que, ao final, mesmo que advenha a condenação dos réus, injustiça já há. Isso porque cada réu perderá – na medida da própria culpabilidade apurada - parte do valor que estava constrito, e terá a si restituída a outra parte. Sobre essa parte restituída, o prejuízo é significativo, posto que foram valores que ficaram sem movimentação, sem investimento, sem a devida valorização.
Recentemente, as subscritoras presenciaram, em processo que atuam, a seguinte situação: três pessoas físicas – integrantes da mesma pessoa jurídica – foram denunciadas por crime licitatório. Tal crime teria causado um prejuízo de R$ 300.000,00 (trezentos mil reais) ao erário, em benefício da referida pessoa jurídica. O Ministério Público pugnou e o Poder Judiciário deferiu medidas cautelares reais no valor de R$ 300.000,00 (trezentos mil reais) para cada uma das três pessoas físicas denunciadas.
A pessoa jurídica – supostamente beneficiada pelo crime licitatório -, então, ofereceu o depósito judicial de (exatamente) R$ 300.000,00 (trezentos mil reais) para garantia do processo, pugnando, em troca, a liberação dos valores das pessoas físicas. O Ministério Público se manifestou contrariamente, alegando que há solidariedade entre as pessoas físicas. Ora, qual o sentido? O valor do prejuízo já não está garantido, na íntegra? Independentemente de qual réu – ou de quantos – seja condenado, há o valor assegurado, na íntegra. Ou seja, a medida assecuratória cumpre satisfatoriamente o seu papel.
Tal situação se agrava de modo contundente quando se verifica que, no campo do direito penal econômico, é bastante usual que haja medidas assecuratórias deferidas no âmbito penal e, exatamente pelos mesmos fatos, no âmbito do direito administrativo sancionador.
Pense-se, assim, em determinado fato que causa o prejuízo total ao Estado de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais). Este mesmo fato é considerado um ilícito penal e um ilícito administrativo. Por consequência, o juízo penal deferirá cautelares patrimoniais na intenção de indisponibilizar R$ 200.000,00 (duzentos mil reais) de cada coautor denunciado, bem como haverá o (mesmo) deferimento no âmbito do administrativo sancionador.
O resultado é: para garantir a restituição de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais) – advinda do prejuízo causado por apenas um fato -, torna-se indisponível R$ 400.000,00 (quatrocentos mil reais) de cada coautor do crime (sendo dez coautores, o Estado está indisponibilizando, por anos, R$ 4.000.000,00 (quatro milhões de reais) para salvaguardar um total de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais) (!).
Não se olvida da justificação constitucional das medidas cautelares patrimoniais, as quais se destinam a concretizar e harmonizar direitos fundamentais em conflito, tampouco se olvida da importância de seu manejo para a garantia de um processo penal justo. Porém, caso sejam mantidas cegamente tais relatadas práticas, a cautelar passará a configurar, antes, uma inaceitável pena - sem processo - para o acusado.
[1] Advogada Criminalista. Doutora em Ciências Criminais pela PUC/RS. Mestre em Direito do Estado pela UFPR. Professora de Direito Penal em cursos de graduação e pós-graduação. Contato: marion@marionbach.com.br.
[2] Advogada Criminalista. Pós-graduanda em Direito Penal Econômico (PUC/MG) e Compliance (FAE). Contato: isabela@marionbach.com.br.
[3] FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 279.
[4] ARAGONESES MARTINEZ, Sara; OLIVA SANTOS, Andrés; HINOJOSA SEGOVIA, Rafael; TOMÉ GARCIA, José Antonio. Derecho Procesal Penal. 8ª ed. Madrid: Ramon Areces, 2007, p. 429.
[5] NICOLITT, André. Processo Penal Cautelar: prisão e demais medidas cautelares. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 130.
[6] "O legislador visa assegurar o interesse público ou o direito da vítima ou de seus sucessores em relação à futura reparação do dano proveniente do ilícito penal, podendo as medidas cautelares de sequestro, arresto e hipoteca legal serem propostas, visando assegurar a reparação do dano, durante a investigação criminal ou a ação penal, tendo como limite o trânsito em julgado desta ação" (LIMA, Marcellus Polastri. A tutela cautelar no Processo Penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 164).
[7] MENDES, Tiago Bunning; LUCCHESI, Guilherme Brenner. Lei anticrime – a (re)forma e a aproximação de um sistema acusatório. 1.ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, p. 85-86.
[8] Há doutrinadores que entendem que referidos requisitos são fumus boni iuris e periculum in mora. Vide: LIMA, Marcellus Polastri. A tutela cautelar no Processo Penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 164. No mesmo sentido: AgRg no REsp 1861850/PR, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 08/09/2020, DJe 15/09/2020. Estamos, porém, com Marta Saad ao afirmar que “não se deve exigir a presença do fumus boni iuris, como na seara civil. Isso porque um juízo de probabilidade implicaria numa previsão da resolução final do processo, o que não se admite no âmbito criminal. Deve-se apenas fazer um juízo a respeito da materialidade delitiva e autoria, ainda que indiciário, sem prévia consideração da culpabilidade” (fumus comissi delicti). No que refere ao periculum in mora, entendido como o perigo causado pela demora inerente ao processo garantista, bem como o perigo da ocorrência de algum evento que dificulte ou impossibilite a efetividade da decisão, embora o Código de Processo Penal silencie a respeito da exigência de comprovação do risco efetivo de dano, que é necessário no âmbito do processo civil, não se pode dispensá-lo. Assim, devem ser colhidos elementos que tenham o condão de concretizar o dano temido, tais como indícios de que a situação patrimonial do investigado ou acusado sofrerá alterações no caso da não decretação de medidas patrimoniais.” SAAD, Marta. As medidas assecuratórias do Código de Processo Penal como forma de tutela cautelar destinada à reparação do dano causado pelo delito. Tese de Doutorado apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2007, p. 36 e ss.
[9] Neste sentido: TRF4, ACR 5014604-14.2019.4.04.7000, SÉTIMA TURMA, Relator DANILO PEREIRA JUNIOR, juntado aos autos em 28/08/2019. Ainda no mesmo trilhar: TRF4, ACR 5008589-29.2019.4.04.7000, SÉTIMA TURMA, Relatora SALISE MONTEIRO SANCHOTENE, juntado aos autos em 21/08/2019.
[10] Diz-se “algum sentido”, pois como se sabe, à lume da codificação civil brasileira – a qual tanto se apega o regime cautelar do processo penal -, a solidariedade das obrigações decorre da lei ou do contrato. Inexiste qualquer menção à solidariedade na lei penal e não há o que se falar em obrigação contratual da questão. "Art. 265. A solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes."
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O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA E SUA APLICABILIDADE NOS CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA
Por: Giulia Mazzetto Coqueiro[1] eIsabela Corso Baptista dos Santos[2]
RESUMO
Este artigo põe em análise o princípio da insignificância e sua aplicação nos crimes contra a ordem tributária. A doutrina majoritária atrela a existência do princípio a Roxin e menciona a tipicidade conglobante como importante aspecto para a análise do fato típico. O princípio em questão foi produto de uma construção doutrinária e o histórico de sua formação revela a necessidade de sua aplicabilidade para o ordenamento jurídico e também fundamenta a sua existência. O tema trabalhado neste artigo cujo escopo é entender a relação entre os dois institutos, envolve um conglomerado de jurisprudências, as quais serão objeto de estudo.
- INTRODUÇÃO
O Estado Democrático de Direito, pautado na Constituição de 1988, possui o Jus Puniendi, ou seja, a prerrogativa sancionadora do Estado - direito estatal de punir. No que tange à análise do crime e seus elementos, a teoria predominante no ordenamento jurídico brasileiro é a tricrômica ou tripartida. Essa teoria apresenta o crime como fato típico, ilícito e culpável.
A tipicidade, diretamente afetada pela incidência do princípio em estudo, pode ser analisada a partir de dois ângulos - formal e material - O aspecto formal é a mera relação entre o fato concreto e o tipo penal. No entanto, essa interpretação restritiva exclui o aspecto prático da conduta. Se sob a égide da teoria finalista da ação, a ação é uma conduta humana consciente e voluntária, dirigida a uma finalidade (WELZEL), a lei penal sempre será aplicada quando presentes os três elementos citados? O caso em concreto pode demonstrar difícil compreensão quando além da lei penal, se relaciona com os costumes, bem jurídicos e princípios constitucionais. Dessa forma, o conflito entre Estado e indivíduo exige que, juntamente com a aplicação da norma penal, exista uma reflexão que seja capaz de relacionar os aspectos teóricos da lei com a prática dos casos em concreto. O princípio da razoabilidade demonstra que todo representante do Estado está, ao mesmo tempo, obrigado a fazer uso de meios adequados e de abster-se de utilizar meios e recursos desproporcionais. (BITENCOURT, 2011, p. 55).
Com isso, a teoria social da ação define a ação como uma conduta positiva socialmente relevante, dominada pela vontade e dirigida a uma finalidade[3]. Destarte, essa teoria desenvolvida por Jascheck e Wessels consegue vincular a aplicação do direito penal a uma conduta penalmente relevante e por fim, demonstrando a proporcionalidade entre a conduta e a norma.
A partir da tipicidade conglobante de Zaffaroni - tipicidade material juntamente com a antinormatividade - observa-se que a adequação do fato à norma envolve a proibição e o alcance proibitivo da norma. Portanto, a limitação ao ius puniendi propõe fazer-se mister que esteja presente o exame do bem jurídico tutelado antes da aplicação da lei penal ao caso em estudo.
- O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NO DIREITO PENAL: ANÁLISE JURISPRUDENCIAL
Com base no conflito entre indivíduo e Estado, foi verificado que nem todo resultado é penalmente relevante. Em 1964, Claus Roxin iniciou o estudo do princípio da insignificância, o qual seria analisado posteriormente no Brasil pelo jurista Francisco de Assis Toledo:
“Segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária, só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas. Assim, no sistema penal brasileiro, por exemplo, o dano do art. 163 do Código Penal não deve ser qualquer lesão à coisa alheia, mas sim aquela que possa representar prejuízo de alguma significação para o proprietário da coisa; o descaminho do artigo 334, parágrafo 1°, d, não será certamente a posse de pequena quantidade de produto estrangeiro, de valor reduzido, mas sim a de mercadoria cuja quantidade ou cujo valor indique lesão tributária, de certa expressão, para o Fisco; o peculato do artigo 312 não pode ser dirigido para ninharias como a que vimos em um volumoso processo no qual se acusava antigo servidor público de ter cometido peculato consistente no desvio de algumas poucas amostras de amêndoas.” (TOLEDO, 1982, p.133).
O STJ dispõe que: “A admissão da ocorrência de um crime de bagatela reflete o entendimento de que o Direito Penal deve intervir somente nos casos em que a conduta ocasionar lesão jurídica de certa gravidade, devendo ser reconhecida a atipicidade material de perturbações jurídicas mínimas ou leves, estas consideradas não só no seu sentido econômico, mas também em função do grau de afetação da ordem social que ocasionam." (STJ, 5ª Turma, AgRg no HC 480.413/SC, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 21/02/2019, publicado 01/03/2019).
Dessa forma, observa-se que que o STJ admite a aplicabilidade do princípio da insignificância caso o autor do fato seja reincidente, porém negou a sua aplicação em habeas corpus envolvendo reincidência específica[4].
- A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NOS CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA
O Direito Tributário, instituído pelo Art. 145 da constituinte, prevê o poder da criação de tributos pela União, Estado e Município como meio de viabilizar a garantia do desenvolvimento nacional. No que concerne a sua concretização na ordem tributária, percebe-se que muito embora o haja um sentido minorado da insignificância, nos crimes contra o sistema de tributação a ocorrência constitui-se como um dos mais nefastos e confrontadores tipos de delito, posto que coloca em voga a atuação estatal. Com sua prática torna-se cerceado o intuito basilar da tributação, o qual seja, promover o equilíbrio nas relações entre os que têm e os que não tem poder, ou ainda entre aqueles que têm mais poder e os que têm menos.
A Lei 8.137/90, chamada Lei dos Crimes Contra Ordem Tributária, vem justamente para incriminar a conduta de sonegar tributos, ao discorrer como crime suprimir ou reduzir tributos - ou quaisquer outras contribuições - omitindo informações, falsificando notas, fraudando a fiscalização, sob pena de aplicação de multa e reclusão. Na prática o que se observa é que o abalo entre o dever de pagar e a sonegação dos tributos acaba por refletir nos direitos fundamentais dos indivíduos ao passo em que ao valores não recolhidos não são aplicáveis na estruturação da sociedade.
Ocorre que, o sistema penal brasileiro admite a aplicação do princípio da insignificância no limite de R$20.000,00 (vinte mil reais) com a justificativa de que esse seria o montante que a Fazenda Nacional poderia requerer o ajuizamento de ação de execução fiscal[5]. É bem verdade que o Direito, enquanto ultima ratio deve criminalizar as condutas graves que levem a supressão ou diminuição da arrecadação tributária - com o fito de equilibrar a distribuição de riquezas e gerar equilíbrio entre o poder de tributar e a obrigação de pagar tributos - mas, os tribunais entendem que valores inferiores ao montante acima não seriam relevantes à atuação penal.
De acordo com o Sistema Tribunal Federal, em seus julgados recentes, existem alguns requisitos necessários à aferição da tipicidade penal, os quais sejam (i) a mínima ofensividade da conduta do agente, (ii) a nenhuma periculosidade social da ação, (iii) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (iv) a inexpressividade da lesão jurídica provocada[6]. No caso de lesão à aplicação tributária esse requisitos não são observados.Esse entendimento decorre da limitação da atuação do Direito Penal, afastando a sua imposição aos crimes que, pela sua característica de baixo grau de lesividade, não necessitam de sanção penal.
- CONCLUSÃO.
O Direito Penal é exceção à regra, sendo aplicável somente quando observados requisitos de ilicitude, culpabilidade e punibilidade. Deve ser invocado apenas quando outros ramos do Direito não forem suficientes à titulação dos direitos, o que, reitera-se, não ocorre nas sanções do Direito Tributário. O fato é tão verdade que na aplicação do sistema tributário, a banalização do Direito Penal fica evidente quando observado que com o pagamento dos tributos devidos, a punibilidade é extinguida, posto que não há como se falar em lesão ao bem jurídico. Em mesmo sentido, o princípio da insignificância nos crimes contra ordem tributária não atinge a tipicidade do fato, visto que não são verificados requisitos - de consideráveis prejuízos - para que o ato criminoso seja considerado repulsivo e de imprescindível repressão estatal.
O que se conclui é que o Direito Penal na esfera tributária tem um único objetivo: de o Estado “ameaçar” a população para o pagamento do tributo. Não importa se já houve sonegação do imposto ou recolhimento indevido - mesmo com a observância da concretização do crime - quando há a devida quitação tributária, não existe mais crime e portanto, afastamento do Direito Penal.
Assim, o princípio da insignificância traduz a ideia de que o Direito Penal somente deve atuar na incriminação de situações com consequência juridicamente relevantes não cabendo na atuação do sistema tributário.
[1] Graduanda na Universidade Estadual de Londrina – UEL participante do Grupo de Direito Penal Econômico da PUC em Londrina\PR.
[2] Graduanda na Universidade Estadual de Londrina – UEL
[3] Comentários adicionados pelo autor na obra Direito Penal Esquematizado, 2019, no capítulo dirigido à análise da tipicidade
[4] HC 491.970/SP da 5ª Turma do STJ.
[5] Lei nº 10.522/02, que dispõe sobre o cadastro informativo dos créditos não quitados do setor público federal.
[6] HC 94.439 da 1ª Turma do STF discorrendo sobre o princípio da insignificância no caso concreto de furto.
- REFERÊNCIAS
- ESTEFAM, André. Direito Penal Esquematizado: parte geral. / André Estefam e Victor Eduardo Rios Gonçalves, Editora Saraiva, 2017, São Paulo
- SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 5ª Turma, HC 491.970/SP, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 26/02/2019, publicado em 08/03/2019.
- CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal I. 16. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. 651p.
- SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 5ª Turma, AgRg no HC 480.413/SC, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 21/02/2019, publicado 01/03/2019.
- Lei nº 522/02 e Portarias nº 75 e 130, de 2012, do Ministério da Fazenda.
- Primeira turma. Habeas corpus 94.439/RS. Rel. Min. Menezes Direito, julgado em 03/03/2009.
- GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte geral. v. 1. 12. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Impetus, 2010. p. 63.
A CADEIA DE CUSTÓDIA E SEUS PRIMEIROS REFLEXOS NOS TRIBUNAIS
Por: Rafael Junior Soares
O pacote anticrime inseriu no Código de Processo Penal o instituto da cadeia de custódia (arts. 158-A a 158-F), considerado como mecanismo importante para a lisura da prova na persecução penal, tendo em vista que há necessidade de se demonstrar documentalmente que o vestígio recolhido é o mesmo valorado na tomada de decisão judicial, pairando uma desconfiança entre as partes, a qual somente poderá ser superada pela correta demonstração dos elos inerentes à custódia da prova[1].
O objetivo da cadeia de custódia é o de “garantir a preservação da integridade dos vestígios de um crime, documentando-se, inclusive, os agentes estatais que tiveram contato com a prova”[2]. Diante disso, garante-se todo o percurso da prova, que vai desde o reconhecimento do vestígio até o descarte, de modo que eventual interferência poderá redundar na imprestabilidade[3].
A discussão mais importante reside nos desdobramentos que poderão ocorrer em razão da quebra ou não preservação da cadeia de custódia, tendo em vista que existem duas correntes com a defesa de consequências bem distintas. A primeira sustentando que a violação implicará na exclusão do material probatório, enquanto a segunda advoga que caberá ao juiz valorar o elemento probatório à luz da irregularidade constatada[4].
Neste contexto, independentemente da posição a ser adotada, é possível verificar os primeiros reflexos do novo instituto na jurisprudência, como por exemplo, a decisão prolatada pelo Superior Tribunal de Justiça no habeas corpus nº. 461.709/SP[5], no qual se reconheceu vícios no reconhecimento de vozes dos investigados. O caso examinado pela Corte Cidadã chama a atenção em dois aspectos: i) o reconhecimento de voz, em inobservância ao art. 226 do Código de Processo Penal; ii) a quebra da cadeia de custódia pela não conservação das vozes recolhidas na investigação preliminar.
Com efeito, o Ministro Rogério Schietti asseverou em seu voto o seguinte: “a inexistência de formalidade para a identificação do suspeito afasta seu potencial epistêmico. A gravação das vozes não foi preservada (quebra de cadeia de custódia), as falas não foram colocadas ao lado de outras, que com elas tivessem qualquer semelhança e não foi feito nenhum tipo de comparação, por perícia técnica, com as escutas dos sequestradores, que o delegado afirmou ter feito.”.
Desse modo, observa-se que o reconhecimento de voz realizado na delegacia de polícia não foi repetido em juízo, além de ter sido produzido em desconformidade com o art. 226 do Código de Processo Penal[6]. Assim, especialmente no que interessa ao presente trabalho, observa-se que as gravações de vozes não foram preservadas pelas autoridades, a fim de que pudessem ser comparadas em juízo, bem como periciadas e objeto de contraprova pela defesa.
Com efeito, o caso é muito interessante porque apresenta influxos concretos dos novos dispositivos na jurisprudência relativa à irregularidade da cadeia de custódia. Além disso, a partir do exame da decisão mencionada, entendeu-se como “ausentes critérios mínimos para garantir o nível de confiabilidade racional do elemento informativo”. Isso demonstra que a suposta quebra da cadeia de custódia foi interpretada como fator de diminuição da credibilidade da prova e não como sua ilicitude, cabendo ao magistrado valorar o elemento probatório.
Portanto, a inclusão da cadeia de custódia no ordenamento jurídico apresenta-se como mais um dos institutos essenciais para que ocorra uma “filtragem epistêmica” da prova penal[7], fixando-se procedimentos específicos para a produção de cada meio de prova, tudo com o objetivo de garantir um processo penal que seja capaz de respeitar as garantias processuais.
Rafael Junior Soares
Doutorando em Direito pela PUC/PR.
Mestre em Direito Penal pela PUC/SP
Professor de Direito Penal na PUC/PR. Advogado.
E-mail: rafael@advocaciabittar.adv.br
REFERÊNCIAS
BORRI, Luiz Antonio. SOARES, Rafael Junior. A cadeia de custódia no pacote anticrime. Boletim IBCCRIM, ano 28, nº. 335, p. 17-19, out./2020.
MATIDA, Janaina. A cadeia de custódia é condição necessária para a redução dos riscos de condenações de inocentes. Boletim IBCCRIM, ano 28, 331, p. 06-08, jun./2020.
MATIDA, Janaina. MASCARENHAS, Marcella; HERDY, Rachel. A prova penal precisa passar por uma filtragem epistêmica. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-13/limite-penal-prova-penal-passar-filtragem-epistemica. Acesso em: 30 abr. 2021.
MENEZES, Isabela A.; BORRI, Luiz A.; SOARES, Rafael J. A quebra da cadeia de custódia da prova e seus desdobramentos no processo penal brasileiro. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 4, n. 1, p. 281, jan./abr. 2018. Disponível em: https://doi.org/10.22197/rbdpp.v4i1.128. Acesso em: 30 abr. 2021.
PRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova penal. São Paulo: Marcial Pons, 2019, p. 94-97.
[1] PRRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova penal. São Paulo: Marcial Pons, 2019, p. 94-97.
[2] BORRI, Luiz Antonio. SOARES, Rafael Junior. A cadeia de custódia no pacote anticrime. Boletim IBCCRIM, ano 28, nº. 335, p. 17-19, out./2020.
[3] MENEZES, Isabela A.; BORRI, Luiz A.; SOARES, Rafael J. A quebra da cadeia de custódia da prova e seus desdobramentos no processo penal brasileiro. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 4, n. 1, p. 281, jan./abr. 2018. Disponível em: https://doi.org/10.22197/rbdpp.v4i1.128. Acesso em: 30 abr. 2021.
[4] MATIDA, Janaina. A cadeia de custódia é condição necessária para a redução dos riscos de condenações de inocentes. Boletim IBCCRIM, ano 28, 331, p. 06-08, jun./2020.
[5] HC 461.709, Rel. Ministro Rogério Schietti, Sexta Turma, DJ 30/04/2021.
[6] O Superior Tribunal de Justiça construiu precedente importante a respeito do reconhecimento de pessoas, o qual foi reproduzido para o reconhecimento de vozes: HABEAS CORPUS. ROUBO MAJORADO. RECONHECIMENTO FOTOGRÁFICO DE PESSOA REALIZADO NA FASE DO INQUÉRITO POLICIAL. INOBSERVÂNCIA DO PROCEDIMENTO PREVISTO NO ART. 226 DO CPP. PROVA INVÁLIDA COMO FUNDAMENTO PARA A CONDENAÇÃO. RIGOR PROBATÓRIO. NECESSIDADE PARA EVITAR ERROS JUDICIÁRIOS. PARTICIPAÇÃO DE MENOR IMPORTÂNCIA. NÃO OCORRÊNCIA. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA. (...) Conclusões: 1) O reconhecimento de pessoas deve observar o procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se encontra na condição de suspeito da prática de um crime; 2) À vista dos efeitos e dos riscos de um reconhecimento falho, a inobservância do procedimento descrito na referida norma processual torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita e não poderá servir de lastro a eventual condenação, mesmo se confirmado o reconhecimento em juízo; 3) Pode o magistrado realizar, em juízo, o ato de reconhecimento formal, desde que observado o devido procedimento probatório, bem como pode ele se convencer da autoria delitiva a partir do exame de outras provas que não guardem relação de causa e efeito com o ato viciado de reconhecimento; 4) O reconhecimento do suspeito por simples exibição de fotografia(s) ao reconhecedor, a par de dever seguir o mesmo procedimento do reconhecimento pessoal, há de ser visto como etapa antecedente a eventual reconhecimento pessoal e, portanto, não pode servir como prova em ação penal, ainda que confirmado em juízo. (...) . (HC 598.886/SC, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 27/10/2020, DJe 18/12/2020).
[7] MATIDA, Janaina. MASCARENHAS, Marcella; HERDY, Rache. A prova penal precisa passar por uma filtragem epistêmica. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-13/limite-penal-prova-penal-passar-filtragem-epistemica. Acesso em: 30 abr. 2021.