Majorante sobressalente pode entrar na primeira ou segunda fase da dosimetria, decide Terceira Seção

Fonte: STJ 

Em julgamento que pacificou a interpretação do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre o tema, a Terceira Seção concluiu ser possível o deslocamento de majorante sobejante (aquela ainda não considerada) para a primeira ou segunda fases da dosimetria da pena. Para o colegiado, além de não contrariar o sistema trifásico da dosimetria, a movimentação da majorante sobressalente é a medida que melhor se compatibiliza com o princípio da individualização da pena.

"De fato, as causas de aumento (terceira fase), assim como algumas das agravantes, são, em regra, circunstâncias do crime (primeira fase) valoradas de forma mais gravosa pelo legislador. Assim, não sendo valoradas na terceira fase, nada impede sua valoração de forma residual na primeira ou na segunda fases", afirmou o ministro Reynaldo Soares da Fonseca, cujo entendimento prevaleceu.

A discussão teve origem em ação na qual uma mulher foi condenada, com outros réus, à pena de dez anos e seis meses de reclusão, em regime inicial fechado, por roubo triplamente circunstanciado – pena que foi reduzida para sete anos e cinco meses pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso.

Por meio de habeas corpus, a defesa alegou que a existência de três causas especiais de aumento não justificaria a elevação da pena-base, da pena intermediária e, ainda, o aumento na terceira fase, em virtude do chamado bis in idem.

Patamares fixos e ​​variáveis

O ministro Reynaldo Soares da Fonseca apontou inicialmente que não seria possível dar tratamento diferenciado às causas de aumento que trazem patamares fixos e àquelas que indicam patamares variáveis, por considerar não haver utilidade nessa distinção.

"Ademais, eventual conclusão no sentido de que uma interpretação a contrario sensu do parágrafo único do artigo 68 do Código Penal ensejaria a valoração de todas as causas de aumento, previstas no mesmo dispositivo legal, na terceira fase da dosimetria, albergaria, a meu ver, não apenas as majorantes com patamar variável, mas igualmente aquelas com patamar fixo", apontou.

O ministro explicou que o sistema trifásico prevê que a fixação da pena observará três fases: a fixação da pena-base, por meio da valoração das circunstâncias judiciais previstas no artigo 59 do Código Penal; a fixação da pena intermediária, com a valoração das atenuantes e agravantes; e a pena definitiva, após a incidência das causas de diminuição e aumento da pena.

Segundo o ministro, o Código Penal não atribui um patamar fixo às circunstâncias judiciais nem às agravantes, as quais devem ser aplicadas de acordo com o livre convencimento motivado do magistrado, observando-se os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Já as causas de aumento e de diminuição, observou, apresentam os patamares que devem ser utilizados, de forma fixa ou variável.

Perigo de subv​​​​ersão

Por essas razões, da mesma forma como ocorre em relação ao crime qualificado, quando já existe uma circunstância que qualifique ou eleve a pena – o que autoriza a alteração do preceito secundário ou a incidência de fração de aumento –, o ministro considerou correto o entendimento majoritário do STJ segundo o qual as qualificadoras e majorantes sobressalentes podem ser valoradas na primeira ou na segunda fases.

De acordo com Reynaldo Soares da Fonseca, assim como a existência de mais de uma qualificadora não modifica o tipo penal nem o preceito secundário, a existência de mais de uma majorante também não permite a retirada da fração de aumento do mínimo, tendo em vista que, conforme a Súmula 443 do STJ, o aumento na terceira fase do cálculo da pena no crime de roubo circunstanciado exige fundamentação concreta, não sendo suficiente a mera indicação do número de majorantes.

"Nesse contexto, a desconsideração, tanto da qualificadora quanto da majorante sobressalentes, acaba por violar o princípio da individualização da pena, o qual preconiza a necessidade de a pena ser aplicada em observância ao caso concreto, com a valoração de todas as circunstâncias objetivas e subjetivas do crime".

Além disso, para o ministro, a desconsideração das majorantes sobressalentes na dosimetria acabaria por subverter a própria individualização da pena prevista pelo legislador, uma vez que as circunstâncias consideradas mais graves, a ponto de serem tratadas como causas de aumento, seriam desprezadas.

Com base nesses parâmetros, o ministro fez nova dosimetria da pena e fixou a condenação da ré em sete anos de reclusão, em regime inicial fechado.

Leia o acórdão.​​

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s):HC 463434

O avanço do populismo, também no direito penal

Helena Regina Lobo da Costa[2]

Há alguns anos, o estudo do populismo vem ganhando espaço entre cientistas políticos, filósofos e juristas, embora nem todos usem a mesma terminologia. Há quem se refira a novos despotismos (Norberto Bobbio), poderes selvagens (Luigi Ferrajoli) ou fascismo eterno (Umberto Eco). Ainda que multifacetada, essa nova forma de autoritarismo - mais dissimulada e sofisticada do que aquela que se apresentou no século passado - tem alguns traços comuns.

Como primeira característica, o populismo não busca romper com a democracia e instalar uma ditadura, embora isso possa acontecer em algumas de suas manifestações. Seu objetivo é estabelecer, no âmbito de uma democracia formal, um conteúdo autoritário, que se choca com a Constituição, com a ideia de sociedade plural e com a separação de Poderes.

Em segundo lugar, o populismo não é uma ideologia, no sentido de ter um conteúdo político específico. Ele não é necessariamente de direita, como no caso do fascismo. Pode ser de direita, esquerda, centro, etc.

O historiador Federico Finchelstein, grande estudioso do tema, identifica, ademais, outros elementos. O populismo centra-se num líder messiânico e carismático, que é a personificação do povo. Nesse processo, há uma homogeneização do povo como uma única entidade, bem como a configuração dos antagonistas políticos como inimigos, os antipovo, a antipátria, os traidores da nação. O populismo é, portanto, profundamente avesso ao pluralismo e à tolerância e, por consequência, contrário à democracia e à política.

Há, ainda, questões importantes no âmbito da comunicação. Por exemplo, a internet criou bolhas informacionais, com relevância crescente de influenciadores digitais e grupos de WhatsApp. Muitas vezes, o discurso simplista falso é mais compreensível do que as explicações científicas e complexas sobre a realidade. Além disso, o debate público tem com frequência dificuldade de distinguir o que é legítima manifestação da liberdade de expressão e o que é puro negacionismo, criando espaços de equivalência para a desinformação e diluindo os parâmetros do que é verdade. Cria-se um ambiente de desorientação, para além da desinformação.

Frente a isso, o populismo oferece uma suposta segurança, por meio de soluções simples, ainda que erradas. Ele trabalha, assim, com os sentimentos e as paixões humanas, com o medo e as ansiedades contemporâneas.

O populismo não afeta apenas a política. Está, por exemplo, cada vez mais presente no campo penal, já que a legislação penal é uma ferramenta particularmente apta para a concretização do populismo. Se o objetivo é construir uma artificial homogeneidade social, com a ideia do “nós contra eles”, nada melhor do que usar o direito penal para castigar os inimigos, os párias, os antipovo.

O direito penal perde, assim, sua pretensão de racionalidade e efetividade, transfigurando-se em puro terror, vingança e brutalidade. Os contrários no campo da política são transformados em inimigos e tratados pela via penal – não há mais arena de discussão, não há tolerância; há combate, há luta, há guerra.

Ao tentar mobilizar sentimentos humanos, o populismo busca despertar a vingança e o ódio, fazendo com que as pessoas desejem mais polícia, mais prisões, mais penas e, até mesmo, mais armas em suas mãos. E, uma vez mais, esse discurso é apresentado como hegemônico.

Assim, criam-se normas cada vez mais rigorosas no âmbito penal. Tudo é válido para combater o inimigo, o diferente, o outro. Ocorre que todas essas alterações fundam-se na busca por votos, não em evidências e efetividade. Predomina, então, o engano. Finge-se que o recrudescimento penal resolverá todos os problemas, mas obviamente não resolve, pois a premissa é falsa. Há, então, nova decepção dos destinatários do discurso, que passam a desacreditar ainda mais a política e a democracia.

O populismo no direito penal aprofunda, portanto, as causas de surgimento do próprio populismo na política, criando um círculo vicioso.

Se na Europa tais ferramentas penais recrudescidas e inefetivas voltam-se sobretudo ao imigrante, eleito como o inimigo pelo populismo, no Brasil o direito penal aprofunda sua aplicação socialmente desigual e racista. O populismo penal torna-se ferramenta do processo contínuo de dominação de grupos minoritários.

Além disso, volta-se aos crimes de colarinho branco apenas para, qualitativamente, enfraquecer as garantias penais. As consequências serão suportadas, no entanto, sobretudo pela clientela de sempre do sistema penal.

Ademais, a concepção de que quem pratica crime é inimigo leva ao descaso pela situação carcerária, se é que é possível piorar algo que já alcançara o absoluto desrespeito à dignidade da pessoa. As prisões são o inferno, pois para lá não vão cidadãos, vão apenas os párias, os antipovo.

O populismo é um fenômeno disseminado e recorrente na contemporaneidade, manifestando-se de forma particularmente grave no direito penal. Para combatê-lo com eficácia, é imprescindível identificá-lo bem, suas características e seus efeitos.


Este trabalho foi publicado, originalmente, em O Estado de São Paulo, edição do dia 2 de janeiro de 2021, p. A2.


[2] Professora livre docente da Faculdade de Direito da USP e advogada


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Sexta Turma reafirma invalidade de prova obtida pelo espelhamento de conversas via WhatsApp Web

Fonte: STJ notícias

​Por unanimidade, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) aplicou entendimento já firmado pelo colegiado para declarar que não podem ser usadas como provas as mensagens obtidas por meio do print screen da tela da ferramenta WhatsApp Web.

No caso julgado, o recorrente e dois corréus foram denunciados por corrupção. Segundo os autos, telas salvas com diálogos obtidos a partir do WhatsApp Web teriam sido entregues por um denunciante anônimo aos investigadores.

No recurso, a defesa alegou constrangimento ilegal sob o argumento de que os prints das telas de conversas, juntados à denúncia anônima, não têm autenticidade por não apresentarem a cadeia de custódia da prova.

O relator, ministro Nefi Cordeiro, afirmou que não se verificou ilegalidade no inquérito policial, pois, após a notícia anônima do crime, foi adotado um procedimento preliminar para apurar indícios de conduta delitiva, antes de serem tomadas medidas mais drásticas, como a quebra do sigilo telefônico dos acusados.

Sem vestígios

O magistrado esclareceu que as delações anônimas não foram os únicos elementos utilizados para a instauração do procedimento investigatório, como demonstra o acórdão proferido no RHC 79.848.

Ele apontou ainda que o tribunal estadual não entendeu ter havido quebra da cadeia de custódia, pois nenhum elemento probatório demonstrou adulteração das conversas espelhadas pelo WhatsApp Web ou alteração na ordem cronológica dos diálogos.

No entanto, destacou o relator, a Sexta Turma tem precedente que considera inválida a prova obtida pelo espelhamento de conversas via WhatsApp Web, porque a ferramenta permite o envio de novas mensagens e a exclusão de mensagens antigas ou recentes, tenham elas sido enviadas pelo usuário ou recebidas de algum contato, sendo que eventual exclusão não deixa vestígio no aplicativo ou no computador (RHC 99.735).

"As mensagens obtidas por meio do print screen da tela da ferramenta WhatsApp Web devem ser consideradas provas ilícitas e, portanto, desentranhadas dos autos", afirmou.

Ao dar parcial provimento ao recurso, apenas para declarar nulas as mensagens obtidas por meio do print screen da tela do WhatsApp Web, o ministro determinou o desentranhamento dessas mensagens dos autos, mantendo as demais provas produzidas após as diligências prévias que a polícia realizou em razão da notícia anônima.

O número deste processo não é divulgado em razão de segredo judicial.


O controle jurisdicional de legalidade da oferta de acordo de não persecução penal pelo Ministério Público

 Por Guilherme Brenner Lucchesi e Marlus H. Arns de Oliveira

O acordo de não persecução penal (ou "ANPP") foi um dos institutos inseridos na legislação processual penal brasileira com a reforma parcial promovida pela lei 13.964/19. O objetivo é o de evitar a instauração de processo nos casos em que o Ministério Público e o imputado chegarem a um acordo quanto à continuidade da persecução penal, deixando a acusação de oferecer denúncia - mesmo presentes as condições da ação e pressupostos processuais - e, em troca, o imputado cumpre as condições ajustadas entre as partes, proporcionais e compatíveis com a infração imputada, definidas a partir de rol não taxativo previsto em lei.

Da leitura do art. 28-A do CPP, em sua redação atual, percebe-se que o instituto tem natureza dúplice: ao mesmo tempo que constitui um benefício processual, inserido no contexto das medidas despenalizadoras, difundidas principalmente a partir dos benefícios da lei 9.099/95, também possui inequívoca natureza de acordo, estando o ANPP no seio da justiça penal negocial. Em outras palavras, o ANPP não pode ser limitado a uma espécie de "suspensão condicional do processo qualificada", havendo no ANPP um componente negocial adicional.

Na suspensão condicional do processo, a lei estabeleceu a possibilidade de evitar o prosseguimento de um processo criminal a partir do cumprimento de condições obrigatórias, durante um período de prova por prazo pré-estabelecido. É menos acordo e mais termo de adesão, com reduzida margem de negociação entre as partes. Nesses termos, o Ministério Público não se coloca como parte, mas como autoridade que concede ao acusado um benefício - ainda que não tenha discricionariedade para tanto1, visto que não há margem para negociação, exceto para suplicar eventual redução de exigência de alguma das condições obrigatórias.

Essa não é a realidade do ANPP. Ainda que o art. 28-A estabeleça algumas condições, não o faz em numerus clausus. A própria cabeça do artigo estabelece que as condições ali previstas podem ser ajustadas isolada ou cumulativamente, havendo no inciso V a previsão de qualquer condição proporcional e compatível com a infração imputada. A proposta feita pelo Ministério Público não pode ser um simples "é pegar ou largar" empurrado ao imputado. O texto da norma prevê que as condições a serem cumpridas devem ser ajustadas, isso é, objeto de discussão e concordância numa relação horizontal entre partes - ou, no mínimo, menos verticalizada que a relação autoridade-réu.

Dessa maior abertura estabelecida legalmente ao ANPP, poder-se-ia chegar a duas percepções equivocadas.

Primeiro, diante da aplicação do ANPP a crimes mais graves do que aqueles que admitem suspensão condicional do processo (estes, pena mínima de até um ano; aqueles, pena mínima de até quatro anos), poder-se-ia concluir que o benefício acordado entre as partes no ANPP não poderia superar o benefício concedido ao imputado no sursis processual. Não há qualquer previsão legal nesse sentido. O ANPP foi criado mais de duas décadas depois da suspensão condicional do processo, após a oportunidade de diagnosticar a prática desses acordos no âmbito dos Juizados Especiais Criminais. Tendo a oportunidade de estabelecer condições obrigatórias, o legislador caminhou em sentido contrário, rumo às práticas negociais no processo penal. Desse modo, a única limitação que se impõe ao ANPP é a impossibilidade de sua celebração nos casos que admitem transação penal (art. 76, Lei n.º 9.099). Em cabendo tanto a celebração de ANPP quanto de suspensão condicional do processo, estando o imputado disposto a confessar a prática da infração - o que nem sempre será o caso -, é possível que as partes ajustem os termos de ANPP, somente se impondo aos limites estreitos da suspensão condicional caso o acordo não evolua. Apesar de suas aparentes similitudes, como se vê, trata-se de institutos distintos, não se podendo querer aplicar automaticamente ao ANPP toda a jurisprudência desenvolvida quanto à prática da suspensão condicional do processo.

Segundo, e mais importante: em que pese a sua natureza de acordo e as suas diferenças com a suspensão condicional do processo, não se pode concluir haver qualquer discricionariedade por parte do Ministério Público na propositura do acordo. Ainda que não se possa falar propriamente em um direito público subjetivo do imputado a uma proposta de ANPP, também não há como se reconhecer qualquer discricionariedade ampla ao órgão oficial da acusação no processo penal. Muito se fala - inclusive na Exposição de Motivos do "Pacote Anticrime", que deu origem à lei 13.964/192 - na mitigação do sistema da obrigatoriedade da ação penal a partir dos modelos de justiça penal negocial. Essa suposta mitigação, contudo, não resulta em um sistema de livre oportunidade e conveniência. Como qualquer agente estatal, o órgão ministerial é regido pela garantia de legalidade (art. 37, Constituição), tendo a sua atuação vinculada às disposições legais3. Em outras palavras, do mesmo modo que o MP não pode promover o arquivamento nos casos em que estiverem reunidos os requisitos para propositura da ação penal, também não pode deixar de propor acordo de não persecução penal quando os requisitos legais para a formação de uma proposta estiverem presentes4. Não há liberalidade nessa atuação, tratando-se de um poder-dever do Ministério Público a oferta de alguma proposta de ANPP, proporcional e compatível com a infração imputada, uma vez preenchidos os requisitos legais.

Quanto à atuação jurisdicional, o CPP prevê a necessidade de homologação do ANPP por parte do magistrado, devendo-se verificar não apenas a voluntariedade do acordo (art. 28-A, § 4.º), como também a adequação das propostas e condições ajustadas, não podendo ser insuficientes nem tampouco abusivas (art. 28-A, § 5.º). Essa verificação pelo juiz é obrigatória e independe de qualquer provocação pelas partes, sendo obrigatória no rito do ANPP instituído por lei. Caso o juiz entenda por não homologar o acordo, deve devolver ao Ministério Público e à defesa para nova negociação (art. 28-A, § 5.º), cabendo a continuidade das investigações ou o oferecimento de ação penal apenas quando não for possível chegar a algum ajuste adequado entre as partes (art. 28-A, §§ 7.º e 8.º).

A jurisdição não tem a possibilidade de se imiscuir no acordo, sendo esse um negócio jurídico processual entre partes. Contudo, diante da necessidade de homologação, é possível que o juiz analise os termos acordados, a fim de verificar se cumprem o requisito da legalidade. É certo que o juízo, portanto, controla a legalidade na fase de celebração do ANPP. Defende-se que deve também controlar a legalidade na fase anterior, de formação da proposta.

Tratando-se a formulação de proposta do ANPP de poder-dever do Ministério Público, eventual não oferta de proposta deve ser motivada e apresentada ao imputado e também ao juízo. Neste caso, o CPP faculta ao imputado a possibilidade de remessa dos autos à instância revisional do Ministério Público, na forma do art. 28 do CPP (art. 28-A, § 14).

Há, nesse ponto, uma importante questão de direito intertemporal. O § 14 do art. 28-A remete ao art. 28 do CPP, que, em sua redação dada pela lei 13.964/19, prevê a possibilidade de revisão da atuação do membro do Ministério Público pela instância de revisão ministerial. Havendo sido suspensa a eficácia do art.28 pela decisão em Medida Cautelar nos autos de Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.298 pelo STF, resta a dúvida se a remissão contida no § 14 do art. 28-A pode se referir ao texto com eficácia suspensa ou se deve remeter à redação anterior (atualmente vigente) do art. 28 do CPP. Na redação anterior, não se falava em pedido de revisão à instância revisional do MP, mas sim na possibilidade de o juízo remeter os autos ao Procurador Geral do Ministério Público nos casos em que discordar da opinio delicti. Está-se, portanto, diante de dois modelos distintos de atuação: uma, voluntária, promovida pela parte interessada na revisão dos atos do membro do Ministério Público; outra, de ofício, realizada pelo juízo no controle da legalidade da atuação ministerial.

Ainda que o art. 28 tenha sido reformado pela lei 13.964/19 - e apesar da suspensão de eficácia determinada pelo STF -, entende-se que o controle de legalidade da atuação ministerial é dever do juízo, independentemente de provocação por parte do interessado. É dever dos magistrados, nos termos do inciso I do art. 35 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei Complementar n.º 35/1979) "cumprir e fazer cumprir, com independência, serenidade e exatidão, as disposições legais e os atos de ofício". Desse modo, não há que se falar em excesso ou mesmo em violação do princípio dispositivo - princípio reitor de um sistema processual acusatório - na atuação de ofício do magistrado para assegurar o cumprimento da lei no processo. Este dever se traduz na necessidade de avaliar o cumprimento do poder-dever atribuído ao membro do Ministério Público de iniciar as tratativas de acordo de persecução penal com o imputado nos casos em que estiverem presentes os requisitos legais.

Nesses casos, caberá ao juízo, uma vez percebendo-se o cabimento de ANPP e a ausência de sua propositura pelo Ministério Público, intimar a acusação para que ofereça proposta ou decline os motivos pelos quais entende incabível a sua oferta. Nessas circunstâncias - devendo-se buscar sempre ouvir o imputado, em homenagem à garantia de contraditório -, em não havendo justificativa pelo Ministério Público ou, em a considerando insuficiente, deverá o juízo remeter os autos à instância de revisão ministerial - ou ao Procurador Geral, caso a eficácia da nova redação do art. 28 siga suspensa -, a fim de que seja verificada a possibilidade ou não de celebração de acordo.

Com o intuito de assegurar às partes o seu devido papel no processo, o que cabe ao juízo é tão somente a verificação de legalidade da atuação ministerial. Tratando-se o acordo de não persecução penal de um negócio jurídico processual entre partes, não poderá, sob hipótese alguma, o magistrado fazer as vezes do órgão acusatório, estabelecendo ele próprio condições e/ou benefícios ao imputado, ou mesmo determinando a alteração de alguma cláusula ajustada entre as partes.

Com isso espera-se conferir maior racionalidade aos acordos de não persecução penal, reforçando o seu caráter negocial e conferindo maior participação do imputado na negociação das condições a serem ajustadas. O controle de legalidade pela jurisdição sobre a atuação do Ministério Público nessa fase não retira do imputado o seu protagonismo na negociação. Ao contrário, reforça que na justiça penal negocial a atuação do Ministério Público não se dá como autoridade, mas, sim, como parte.

 


1 A jurisprudência consagrou o entendimento de que é poder-dever do Ministério Público oferecer proposta de sursis processual quando o acusado preencher os requisitos legais.

2 BRASIL. Ministério da Justiça e da Segurança Pública. EM 00014/2019 MJSP. 31 jan. 2019.

3 "O MP está obrigado a proceder e dar acusação por todas as infracções de cujos pressupostos - factuais e jurídicos, substantivos e processuais - tenha tido conhecimento e tenha logrado recolher, na instrução, indícios suficientes. Não há pois lugar para qualquer juízo de «oportunidade» sobre a promoção e prossecução do processo penal, antes esta se apresenta como um dever para o MP [...] A actividade do MP desenvolve-se, em suma, sob o signo da estrita vinculação à lei (daí o falar-se em princípio da legalidade) e não segundo considerações de oportunidade de qualquer ordem, v.g. política (raison d'État) ou financeira (custas)." FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito processual penal. Coimbra: Coimbra, 1974. reimp. 2004. p. 126-127.

4 Não se analisa nesta oportunidade como se devem dar os acordos de não persecução penal nos casos de ação penal de iniciativa privada, o que será objeto de reflexão futura.


Guilherme Brenner Lucchesi é advogado sócio da Lucchesi Advocacia. Presidente do IBDPE. Doutor em Direito pela UFPR. Master of Laws pela Cornell Law School. Professor de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da UFPR.

Marlus H. Arns de Oliveira é advogado, sócio do escritório Arns de Oliveira & Andreazza Advogados Associados e doutor em Direito pela PUC/PR.


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A Lava-Jato e a Incompetência do Juízo de Curitiba: Crônica de uma morte anunciada

Caio Marcelo Cordeiro Antonietto [1],  Rafael Guedes de Castro[2] e Douglas Rodrigues da Silva[3]

Na última segunda-feira, dia 08 de março, o Ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, por meio de uma decisão monocrática, entendeu pela anulação de todos os atos decisórios que tenham vinculação aos casos criminais instaurados contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva perante a 13ª Vara Federal de Curitiba. De modo sintético, a decisão indicou que o Juízo curitibano seria incompetente para processar e julgar os processos em questão, cabendo aplicar o artigo 567 do Código de Processo Penal e, nessa medida, remeter os autos para o juízo competente com a invalidação de todas as decisões.

A decisão causou surpresa de um modo geral. Mas de inesperada não tinha nada.

Desde o início da rumorosa “Operação Lava-Jato”, nos idos de 2015, advogados, professores e juristas questionam a supercompetência construída pela 13ª Vara Federal de Curitiba. De uma operação que teve como mote casos de desvios na Petrobras, tornou-se uma espécie de juízo-geral universal para todos os casos que se entendia conveniente deixar nas mãos da denominada “Força-Tarefa”. Em certo momento da operação, acusadores e julgador passaram a elastecer todos os critérios de competência apresentados pelo Código de Processo Penal – especialmente o critério territorial do artigo 70 – como forma de justificar a manutenção dos processos em Curitiba. Tudo de modo ilegítimo.

A partir da tratativa de diversos acordos de colaboração premiada, em que eram narrados fatos que nada se relacionavam à Subseção Judiciária de Curitiba, os membros da “Força-Tarefa”, com a chancela do Juízo, passaram a aforar as ações no Paraná, justificando a existência de uma imaginada competência instrumental, em que era preciso manter todas as apurações sobre corrupção nas mãos da 13ª Vara Federal de Curitiba, considerando que a prova demandava o julgamento conjunto. E isso, obviamente, demonstrou um contexto bastante peculiar. Tudo era visto como “Fase da Operação Lava-Jato”, numa jogada de marketing e simbolismo que intentava justificar contextos peculiares, como, por exemplo, casos em que os fatos tinham se dado supostamente no Rio de Janeiro, Brasília, São Paulo ou mesmo Manaus, mas que seriam julgados por Curitiba, mesmo que nada tenha ocorrido nesta cidade. Construiu-se, efetivamente, um “Juízo Universal”.

E o próprio Supremo Tribunal Federal já estava atento a essa situação. A título de exemplo, no ano de 2016, no Inquérito 4130, o Ministro Dias Toffoli assentou que “o fato de polícia judiciária e Ministério Público denominarem de ‘fases da operação lava-jato’ uma sequência de crimes diversos [...], não se sobrepõe às normas disciplinadoras da competência”, o fator preponderante não poderia deixar de ser as regras de competência da Constituição ou do CPP. A grande preocupação do STF, naquela ocasião, era evitar transformar a 13ª Vara Federal de Curitiba em um Juízo Universal, como de fato ocorria.

Veja-se que a operação, de casos da Petrobras, passou também a investigar supostos desvios na Caixa Econômica Federal, na Transpetro, no Instituto Lula, no BNDES, em fundos do FGTS, enfim, tudo passou a ser “Lava-Jato”. O critério de competência utilizado? A mera conveniência da acusação. Era evidente, portanto, que um dia a competência seria rechaçada nas instâncias superiores. E isso aconteceu.

Embora não se negue a existência de critérios de extensão da competência, estava bastante claro que boa parte deles não existiam nos casos da “Lava-Jato”.

O primeiro deles, a chamada competência territorial, evidentemente não existia, como dito, chegou-se a um ponto da operação em que os casos simplesmente eram julgados em Curitiba sem ter a ver com nada que tenha ocorrido nesta cidade. Inclusive, exemplificativo eram os cumprimentos de mandados de prisão ou busca e apreensão. Rememorando algumas fases da operação, pode-se ver que boa parte dos casos não tinha nada a ser cumprido em Curitiba, a prisão ou a busca e apreensão se davam, por exemplo, em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília. Ao juízo paranaense incumbia “apenas julgar”. Evidentemente isso não se coaduna com o chamado Juiz Natural, pois o critério de definição da competência era pura conveniência, não a lei.

Poder-se-ia pensar na prevenção. Como é sabido, o juízo que primeiro conhece da matéria torna-se prevento para processar e julgar todos os casos conexos. O problema, porém, está no fato de que a prevenção é critério subsidiário. Ou seja, somente caberia falar em juiz prevento se todos os outros critérios se mostrassem insuficientes. E não era o caso. Em primeiro plano, é certo que a competência territorial, por si, afastava qualquer outro. Mas, ainda assim, seria preciso que o Juízo de Curitiba fosse igualmente competente aos demais, para só então falar em prevenção. E isso não existia.

Mas e as colaborações premiadas, não tornariam o juízo prevento? Não. Inclusive, essa também já era a opinião do Supremo Tribunal Federal lá em 2016, quando entendeu que acordos de colaboração premiada não podem ser vistos como fatores de definição de competência, até porque não são processos autônomos, mas um meio de se obter provas. O simples fato de existir um acordo homologado em determinado juízo não o torna prevento para todos os outros.

Resta o argumento da conexão probatória. Ora, não seria o caso de manter a competência da 13ª Vara Federal de Curitiba como forma de manter a prova hígida, considerando que poderia existir uma relação entre a prova de um e outro fato? Ao que tudo indica não. Como é notório, o foco da “Operação Lava-Jato” sempre esteve ligado aos supostos desvios na Petrobras, então, se muito, a conexão probatória deveria se limitar a casos relativos à petrolífera. O problema é que isso não foi respeitado. Como apontado, em determinado momento, toda e qualquer acusação de corrupção ou acordos escusos passou a ser visto como atribuição da “Operação Lava-Jato”, construindo-se um falso argumento de que a “corrupção sistêmica” merecia ser tratada de modo unificado. De um dia para outro, tinha-se todo tipo de caso criminal no Juízo de Curitiba. Um completo vilipêndio às regras do processo penal. Estava nítido que havia uma verdadeira “escolha” do julgador, por pura conveniência.

Isso restou claro nas decisões recentes do Supremo Tribunal Federal, com especial destaque ao Inquérito 4215, à Petição n. 8090 e ao Habeas Corpus n. 198.081. Em todos os casos, então relativos à TRANSPETRO, o STF reforçou que houve verdadeira deturpação das regras de competência por parte da “Força-Tarefa da Lava-Jato”.

Em suma, a polêmica competência da 13ª Vara Federal de Curitiba não é um tema novo no Supremo Tribunal Federal.

Por isso mesmo não surpreende a decisão tomada pelo Ministro Edson Fachin no último dia 08 de março. O Ministro nada fez além de reforçar o que já estava claro desde muito tempo: a 13ª Vara Federal de Curitiba se arvorou na condição de juízo universal incabível segundo as regras constitucionais e legais. O resultado disso, gostemos ou não, deve ser a nulidade dos atos decisórios, pois há claro vício de origem em todos eles. A decisão, nesse ponto, é bastante correta – sem qualquer incursão em outros debates, como suspeição do Juízo.

De tudo isso, merece friso a reafirmação das regras do jogo e o recado claro de que não se combate qualquer crime que seja sem que se respeite a moldura legal. Enquanto houver vista grossa aos desmandos judiciais por pura simpatia a seus resultados, o preço a se pagar será sempre a perda dos atos. Que reste evidente, a partir de agora, que investigações e acusações somente são bem feitas quando amparadas nas regras e que estas, na verdade, não são meras formalidades ou preciosismo, mas a garantia de que a decisão será justa

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[1] Doutorando em Direito pela Universitat Pompeu Fabra. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Advogado Criminal. Sócio do Antonietto e Guedes de Castro Advogados Associados.

[2] Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Professor de Direito Processual Penal. Advogado Criminal. Sócio do Antonietto e Guedes de Castro Advogados Associados.

[3] Mestre em Direito pelo Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Especialista em Direito Penal e Processo Penal pelo Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Professor de Direito Penal. Advogado Criminal. Sócio do Antonietto e Guedes de Castro Advogados Associados.


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STJ tranca ação penal baseada em interceptação telefônica ilegal

Fonte: Migalhas 

O paciente foi preso em flagrante e denunciado, juntamente com oito corréus, como incurso nos crimes de tráfico e associação para o tráfico de drogas. Aos argumentos de nulidade por cerceamento de defesa e inépcia da denúncia, a defesa impetrou habeas corpus na Corte de origem, que denegou a ordem.

Ao STJ, a defesa do paciente alegando constrangimento ilegal na manutenção da ação penal. Sustentou que a defesa técnica foi cerceada em razão de conduta do magistrado singular, que se omitiu na entrega de mídia solicitada, bem como não analisou "grampo ilegal".

O relator, ministro Sebastião Reis Jr. lembrou julgamento de sua relatoria (HC 159.711), que foi concedida a ordem para anular todas as provas decorrentes da interceptação telefônica considerada ilegal na ação penal que o paciente responde.

"Não verifiquei terem as acusações partido de uma fonte independente, estando contaminadas pelas interceptações declaradas ilegais, pois somente por meio dos diálogos captados foi possível identificar os acusados, sua movimentação entre Estados da Federação, bem como os locais de desembarque, incluindo a movimentação financeira do grupo e a atribuição de cada um na referida associação, cujo vínculo estável e permanente também só foi possível evidenciar por meio da interceptação telefônica."

Diante disso, concedeu a ordem para trancar a ação penal em relação a todos os acusados, sem prejuízo de que outra denúncia seja oferecida pelo Ministério Público, desde que calcada em elementos de informação que não decorram das interceptações declaradas ilegais.

O advogado João Vieira Neto, do escritório João Vieira Neto Advocacia Criminal, autor da impetração do habeas corpus, comentou a decisão.

"É de se notar que o socorro ao direito à ampla defesa, a despeito de ter sido acolhido após 13 anos dos fatos, não foi tardio, pois a Justiça foi realizada dentro da legalidade, com prisma em respeito as garantias constitucionais e respeitadas as regras do jogo processual penal."

  • Processo: HC 167.152

Veja o acórdão.


A prisão preventiva na Lei Anticrime: Primeiro ano de vigência e sua interpretação jurisprudencial

Por Bibiana Fontella[1] e Gabriela Kreusch Serena[2]

 

Em janeiro de 2020 entrou em vigor a Lei n. 13.964/2019, popularmente conhecida como lei anticrime, a qual alterou vários dispositivos do Código Penal, Código de Processo Penal e Leis Penais Especiais.

Quando da tramitação do projeto anticrime, divulgação da ideia de que seria uma lei que reformaria o sistema penal brasileiro e traria como consequência a repressão criminal como uma das suas características essenciais. Contudo, várias das propostas do então Ministro da Justiça Sergio Moro deixaram de ser aprovadas, assim, em alguns pontos, a lei deixou de ter o caráter repressivo e assumiu a postura garantista da lei penal. Entretanto, em outros aspectos Lei Anticrime aderiu o clamor popular e endureceu vários dispositivos penais.

Um dos pontos de grande relevância da Lei Anticrime foi a inclusão do art. 3º-B e seguintes no Código de Processo Penal, instituindo o tão esperado juiz de garantias. Contudo, tais dispositivos foram objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade (n. 6298, 6299, 6300 e 6305), tendo tido vigência da lei suspensa por decisão do então Vice-Presidente do STF, Ministro Luiz Fux, por prazo indeterminado. Também, foi objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade o teor do art. 28, caput, do Código de Processo Penal, com alteração da Lei n. 13.964/2019. No qual o arquivamento de inquérito policial seguiria novas tramitação: a vítima, o investigado e a autoridade policial seriam comunicados e os autos encaminhados para a instância de revisão ministerial para fins de homologação.  Da mesma forma, este dispositivo legal teve sua vigência suspensa pela decisão do então Vice-Presidente do STF, Ministro Luiz Fux. Todavia, até o presente ambos os dispositivos permanecem com eficácia suspensa.

Entretanto, aqui analisa-se apenas as alterações promovidas pela Lei Anticrime no instituto da Prisão Preventiva, bem como a interpretação jurisprudencial:

A prisão preventiva – que é um dos temas mais sensíveis no cenário brasileiro – foi objeto de alterações pelo Lei n. 13.964/2019, fazendo consta no art. 315 do CPP a necessidade de fundamentação do decreto, substituição, negação da prisão preventiva, inclusão de indicação, na decisão, de existência de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada.

O §2º do referido artigo traz os requisitos para exclusão de fundamentação das decisões que versem sobre a prisão preventiva: i) limitar-se à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; ii) empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; iii) invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; iv) não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; v) limitar-se a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; vi) deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.

No tocante ao requisito da contemporaneidade nas medidas cautelares pessoais, o Superior Tribunal de Justiça entendeu no julgamento do Habeas Corpus n. 553310[3], de relatoria da Ministra Laurita Vaz, pela ofensa do princípio da contemporaneidade em razão do decurso de longo perigo de tempo entre os supostos fatos delituosos e a determinação de afastamento da paciente de cargo público.

Outra importante alteração promovida pela Lei Anticrime no tema da prisão preventiva foi a inclusão da necessária revisão periódica dos motivos ensejadores da segregação cautelar a cada 90 (noventa) dias, com a inclusão do parágrafo único no art. 316 do CPP.

Sobre a exigência de revisão periódica o Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento em Plenário no sentido de que o decurso do prazo de 90 (noventa) dias não conduziria à soltura automática do preso preventivamente. Neste sentido foi o julgamento do Habeas Corpus n. 190028[4], de relatoria da Ministra Rosa Weber.

Neste sentido, destaca-se o julgamento, em Plenário do STF, do Habeas Corpus n. 191836[5], quando da suspensão da liminar que determinou a soltura de André Rap, entendendo que a inobservância do prazo de 90 (noventa) dias para revisão da prisão preventiva não a revoga automaticamente.


[1] Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra. Professora de Direito Penal. Advogada Criminal.

[2] Acadêmica do Curso de Direito na UFPR.


[3] STJ, HC 553310/SP, Relatora Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, publicado em 17/11/2020.

[4] STF, HC 190028/SP, Relatora Ministra Rosa Weber, Primeira Turma, julgamento: 21/12/2020, publicação em 11/02/2021.

[5] STF, HC 191.826/SP, Relator Ministro Marco Aurelio, Relator para Acórdão Alexandre Moraes, Primeira Turma, julgamento em 20/11/2020.


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A Lavagem de Dinheiro e o Recebimento de Honorários Advocatícios

Beatriz Daguer[1] e Rafael Junior Soares[2]

A lei de lavagem de dinheiro (Lei 9.613/98) completou vinte e dois anos de existência no país, já tendo passado por profundas modificações no ano de 2012 (Lei 12.683/12). Com o objetivo especialmente de atender anseios internacionais, o Brasil introduziu mencionado crime e, por sua vez, organizou o mecanismo de controle à atividade ilícita, com a inserção de obrigações e responsabilidade administrativa para determinados sujeitos.

Neste contexto, observou-se pelo país nos últimos anos o aumento significativo da quantidade de processos criminais com a inclusão da figura típica da lavagem de dinheiro e, como consequência natural, uma série de desafios para os Tribunais, como, por exemplo, natureza jurídica do crime, os limites do tipo objetivo, caixa dois, medidas assecuratórias etc. Tanto é assim que recentemente a Câmara dos Deputados criou a Comissão de Juristas[3] para atualizar a legislação, especialmente na correção dos problemas decorrentes da prática judicial, visando conferir maior segurança jurídica e diminuição das lacunas legislativas.

Sem ignorar a importância de cada um dos temas a serem examinados pela Comissão de Juristas, uma das questões que sempre preocupou a advocacia consiste na possibilidade de imputação de lavagem de dinheiro pelo mero recebimento de honorários advocatícios. Embora a questão possa parecer simples, existem casos ao redor do país de incriminação de advogados pelo simples recebimento de honorários. Não é incomum a tentativa, por meio de projetos de lei[4], de impor obrigações aos advogados de comprovação da origem dos honorários recebidos ou até mesmo impor aos acusados que, em casos de lavagem de dinheiro, tenham de se socorrer da Defensoria Pública.

Dentre os projetos de lei, há a proposição de equiparação de recebimento de honorários advocatícios que sabe ser proveniente de crime à receptação qualificada[5] e até impor a obrigação de que os advogados ou sociedades de advogados forneçam informações sobre pagamentos que porventura possam constituir indícios de lavagem de dinheiro[6], entre outras investidas que objetivam criminalizar a profissão do defensor, notadamente o que atua na área criminal.

Enquanto a discussão não é deliberada e definida no âmbito do Poder Legislativo, com o escopo de solucionar o problema e dirimir eventual insegurança, em 2020, a Ordem dos Advogados do Brasil apresentou proposta de Provimento instituindo medidas de prevenção à lavagem de dinheiro para advogados e sociedades de advogados, oferecendo, com isso, contornos mais seguros à atividade profissional em diversos aspectos.

O instrumento normativo é dividido em três capítulos[7]. O primeiro tratando dos princípios gerais de prevenção da lavagem de dinheiro (arts 1º e 2º). O segundo abordando os honorários profissionais (arts. 3º a 9). E, por fim, os deveres relacionados à comunicação de operações suspeitas (arts. 10 a 12). Não obstante a importância dos três tópicos, o presente trabalho limita-se a examinar a questão relativa aos honorários profissionais.

O objetivo do Provimento nada mais é do que afastar qualquer tentativa indevida de criminalização da atividade advocatícia, tanto é assim que no art. 2º, parágrafo único, assevera não constituir qualquer forma de colaboração para lavagem de dinheiro a prestação legítima de atividades privativas da advocacia e o recebimento de honorários pela atividade profissional desempenhada.

Dessa forma, os dispositivos subsequentes estabelecem a forma de comprovação da prestação de serviços (art. 7º), elencando diversos meios de demonstração a partir da forma e natureza jurídica do trabalho desempenhado tanto na seara litigiosa quanto na consultiva, como contratos de honorários, petições, arrazoados, participação em audiências, despachos, sustentações orais etc.

A previsão é importante porque traz orientações objetivas e claras à classe da advocacia quanto à necessidade de observar obrigações mínimas de registro e controle como forma de se afastar por completo eventual suspeição acerca da atividade profissional, a fim de se evitar problemas de imputação da prática dos ilícitos dispostos na Lei 9.613/98.

Na sequência se apresenta orientação ao recebimento de valores a título de honorários com o escopo de repasse a terceiros, ainda que sob a forma simulada de contratação pelo serviço, estabelecendo que ficará o defensor sujeito às sanções legais (art. 8º). Trata-se de dispositivo que visa reforçar o objetivo do Provimento de regulação do recebimento de honorários como contraprestação pelo trabalho desenvolvido, uma vez que a situação narrada acima esquiva-se das atividades da advocacia. Além disso, afasta a possibilidade de criminalização do legítimo direito ao recebimento de honorários pelo lícito serviço prestado pela classe.

É certo que o tema está na ordem do dia tanto no Congresso Nacional quanto na Ordem dos Advogados do Brasil, esperando-se que a posição terminativa a ser adotada seja no sentido de que não se considere que o ato legítimo de recebimento de honorários pela correta prestação de serviços – independentemente da necessidade de se perquirir a origem dos recursos – possa se enquadrar nos dispositivos previstos na lei de lavagem de dinheiro.

Aliás, como bem suscitado por Pierpaolo Cruz Bottini, “o escopo da lei de lavagem de dinheiro é garantir a rastreabilidade do capital para que as autoridades públicas possam conhecer o caminho entre a infração e o destino dos bens”[8], ao passo que não deve ser imposto ao advogado o dever de investigar a origem do dinheiro ou os atos que justificaram sua aquisição, mas o recebimento deve ser tão somente registrado e anotado para que os responsáveis pela investigação tenham à sua disposição elementos para construir a cadeia de distribuição de eventuais recursos ilícitos[9].

Portanto, o Provimento representa importante avanço como forma de proteção da advocacia nacional, tendo em vista que estabelece padrões objetivos de conduta do profissional, especialmente pela indicação das formas de comprovação da atividade exercida, as quais uma vez atendidas afastam, por si só, qualquer possibilidade de incriminação da atividade exercida como lavagem de dinheiro.


[1] Mestranda em Direito Penal na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Especialista em Direito Penal e Processo Penal Econômico pela PUC/PR. Advogada criminalista. E-mail: beatrizdaguer.adv@gmail.com

[2] Doutorando em Direito pela PUC/PR. Mestre em Direito Penal pela PUC/SP. Professor de Direito Penal da PUC/PR. Advogado Criminalista. E-mail: rafael@advocaciabittar.adv.br


[3]   Lista completa disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/grupos-de-trabalho/comissao-de-juristas-lavagem-de-capitais/conheca-a-comissao/criacao-e-constituicao/Criaoeinstituiao.pdf. Acesso em: 03 mar. 2021.

[4]   REVISTA CONJUR. Mais um projeto quer obrigar advogados a provar origem legal dos honorários. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jul-02/projeto-obrigar-advogados-provar-origem-legal-honorarios. Acesso em: 25 fev. 2021.

[5]   CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei nº _____, de 2019. Deputada Bia Kicis.  Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/pl-responsabilizar-advogado-honorario.pdf. Acesso em: 03 mar. 2021.

[6]   SENADO FEDERAL. Projeto de Lei nº 4516, de 2020. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8889028&ts=1599758994970&disposition=inline. Acesso em: 03 mar. 2021.

[7]   REVISTA CONJUR. Para OAB, advogado, em outra função, deve informar atividade suspeita de cliente. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-dez-07/proposta-preve-advogado-comunique-operacoes-suspeitas-clientes. Acesso em: 03 mar. 2021.

[8]   BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Advogado não deve ser fiscal dos próprios honorários. Disponível em: conjur.com.br/2013-fev-26/direito-defesa-advogado-nao-fiscal-proprios-honorarios. Acesso em: 05 mar. 2021.

[9] Ibidem.

BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Advogado não deve ser fiscal dos próprios honorários. Disponível em: conjur.com.br/2013-fev-26/direito-defesa-advogado-nao-fiscal-proprios-honorarios. Acesso em: 05 mar. 2021.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei nº _____, de 2019. Deputada Bia Kicis.  Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/pl-responsabilizar-advogado-honorario.pdf. Acesso em: 03 mar. 2021.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Câmara instala hoje comissão de juristas que vai propor mudanças na lei de lavagem de dinheiro. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/grupos-de-trabalho/comissao-de-juristas-lavagem-de-capitais/conheca-a-comissao/criacao-e-constituicao/Criaoeinstituiao.pdf. Acesso em: 03 mar. 2021.

REVISTA CONJUR. Mais um projeto quer obrigar advogados a provar origem legal dos honorários. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jul-02/projeto-obrigar-advogados-provar-origem-legal-honorarios. Acesso em: 25 fev. 2021.

REVISTA CONJUR. Para OAB, advogado, em outra função, deve informar atividade suspeita de cliente. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-dez-07/proposta-preve-advogado-comunique-operacoes-suspeitas-clientes. Acesso em: 03 mar. 2021.

SENADO FEDERAL. Projeto de Lei nº 4516, de 2020. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8889028&ts=1599758994970&disposition=inline. Acesso em: 03 mar. 2021.



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Não é possível a conversão ex offício da prisão em flagrante em preventiva, mesmo nas situações em que não ocorre audiência de custódia, diz STJ.

Fonte: Informativo nº 0686

Discute-se acerca da possibilidade de se decretar a prisão preventiva de ofício, mesmo se decorrente de prisão flagrante e mesmo se não tiver ocorrido audiência de custódia, em face do que dispõe a Lei n. 13.964/2019, em razão da divergência de posicionamento entre as Turmas criminais que compõem esta Corte Superior de Justiça.

Contudo, após o advento da Lei n. 13.964/2019, não é mais possível a conversão da prisão em flagrante em preventiva sem provocação por parte ou da autoridade policial, do querelante, do assistente, ou do Ministério Público, mesmo nas situações em que não ocorre audiência de custódia.

Nesse sentido, deve-se considerar o disposto no art. 3º-A do CPP, que reafirma o sistema acusatório em que o juiz atua, vinculado à provocação do órgão acusador; no art. 282, § 2º, do CPP, que vincula a decretação de medida cautelar pelo juiz ao requerimento das partes ou quando, no curso da investigação criminal, à representação da autoridade policial ou a requerimento do Ministério Público; e, finalmente, no art. 311, também do CPP, que é expresso ao vincular a decretação da prisão preventiva a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou à representação da autoridade policial.

Vale ressaltar que a prisão preventiva não é uma consequência natural da prisão flagrante, logo é uma situação nova que deve respeitar o disposto, em especial, nos arts. 311 e 312 do CPP.

Não se vê, ainda, como o disposto no inciso II do art. 310 do CPP - possibilidade de o juiz converter a prisão em flagrante em preventiva quando presentes os requisitos do art. 312 e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão - pode autorizar a conversão da prisão em flagrante em preventiva sem pedido expresso nesse sentido, já que tal dispositivo deve ser interpretado em conjunto com os demais que cuidam da prisão preventiva.

Dessa forma, pode, sim, o juiz converter a prisão em flagrante em preventiva desde que, além de presentes as hipóteses do art. 312 e ausente a possibilidade de substituir por cautelares outras, haja o pedido expresso por parte ou do Ministério Público, ou da autoridade policial, ou do assistente ou do querelante.

Por fim, a não realização da audiência de custódia (qualquer que tenha sido a razão para que isso ocorresse ou eventual ausência do representante do Ministério Público quando de sua realização) não autoriza a prisão, de ofício, considerando que o pedido para tanto pode ser formulado independentemente de sua ocorrência. O fato é que as novas disposições legais trazidas pela Lei n. 13.964/2019 impõem ao Ministério Público e à Autoridade Policial a obrigação de se estruturarem de modo a atender os novos deveres que lhes foram impostos.

 


RHC 131.263, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Terceira Seção, por maioria, julgado em 24/02/2021.


A Justiça Penal Negociada e os Direitos Fundamentais

Claudia da Rocha e  Marlus H. Arns de Oliveira

Os avanços tecnológicos, econômicos e científicos nos conduzem cotidianamente “a uma nova modernidade” e caracterizam a chamada sociedade de risco. O mercado financeiro e de capitais, o controle de remessa de divisas, o combate à lavagem de dinheiro – entre muitos - são alguns dos fenômenos que o Direito Penal reconhece e acaba por tipificar condutas.

Nesse cenário, em que o Direito Penal tenta coibir ataques à economia, à globalização, às sociedades empresariais, ao meio ambiente, gradativamente nos afastamos da “ultima ratio” de controle e passamos – para o bem e para o mal – a um discurso de “Direito Penal liberal”.

Assim, condutas que outrora eram objeto de tutela na seara administrativa passam a ser tuteladas pelo Direito Penal, utilizando-se o Direito Administrativo como braço de apoio do Direito Penal, ocasionando uma desenfreada expansão.

Em decorrência dessa expansão penal e dos novos desafios impostos pela sociedade de risco tem-se, no cenário processual penal, a introdução de instrumentos de justiça negociada, na qual se alteram os ambientes de conflitos por espaços de consenso.

Desse contexto temático, extrai-se o seguinte problema: como conciliar esse quadro, em que, de um lado, o Estado expande a incidência do Direito Penal e, de outro, afasta-se, ainda que parcialmente, da resolução do conflito primando pela justiça penal negocial?

O negócio processual penal pode ser concei­tuado, de forma ampla, como um acordo entre acusação e defesa, com concessões mútuas e possibilitando uma solução antecipada para o conflito.

Conforme Sánchez, na justiça negociada, os valores como “verdade e justiça ficam, quando muito, em segundo plano”[1]. Parte-se da premissa de que devem ser buscados novos paradigmas na aplicação do Processo Penal, de modo a torná-lo mais célere, efetivo e negocial.

A negociação no Processo Penal, apesar de ser uma forte tendência, em especial com o recente Acordo de Não Persecução Penal, é um tema sensível – desde a transação penal à suspensão condicional do processo, pois afasta o Estado-Juiz de sua atuação como interventor necessário e coloca-o na condição de expectador do conflito.

A própria concepção do Processo Penal, compreendido como instrumento legitimador do exercício do poder punitivo estatal, ganha novos contornos após o acolhimento da transação penal, da suspensão condicional do processo, da colaboração premiada e do acordo de não persecução penal. Assume-se a faceta contratual de um negócio jurídico.

Nesse sentido, exemplificativamente, o artigo 3º-A da Lei n. 12.850/2013 estabelece que “o acordo de colaboração premiada é negócio jurídico processual”, em consonância com o que já havia decidido o Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC n. 127.483/PR.

É certo que a figura do negócio jurídico possui relevo no direito privado, sendo igualmente correto afirmar que vem ganhando força no âmbito processual penal. Inicia-se com a edição da Lei n. 9.099/1995, ao disciplinar sobre a transação e a suspensão condicional do processo, expande-se com a colaboração premiada e, mais recentemente, com a inclusão do acordo de não persecução penal, pela Lei Anticrime, no Código de Processo Penal.

No entanto, é essencial compreender que enquanto no campo civil se lida mais com o “ter”, no âmbito penal a preocupação maior é o homem. Por isso, quando se pensa, por exemplo, no acordo de não persecução penal surgem problemas como i) a supervalorização da confissão, a nosso sentir totalmente inconstitucional enquanto condição obrigatória no acordo de não persecução penal e ii) a ilusão de voluntariedade e consenso, que oculta a sujeição do acusado ao poder do Estado, em especial, quanto à pena pretendida pelo acusador.

É certo que o abuso na utilização desses instrumentos de negociação penal levará à falência dos institutos, por isso toda cautela se faz necessária, bem como o cumprimento das obrigações legais e o imprescindível registro integral das negociações.

Não obstante as problemáticas suscitadas, e muitas outras existentes, faz-se  necessário analisar e debater novos pressupostos para a compreensão do Processo Penal, especialmente no que concerne à distinção entre direitos fundamentais e privilégios, pois a disponibilidade da ação penal e o direito ao processo são pressupostos da negociação.

A título exemplificativo, no caso do acordo de não persecução penal, em que se confessa e se negocia a pena, cabe destacar o seguinte:

 

  1. a) se a presunção da inocência e o direito ao processo forem tratados como Direitos Fundamentais indisponíveis, será impossível negociar-se a culpa e pena, logo, por dever de coerência, não se poderá aceitar a negociação porque o caso penal seria inegociável;
  2. b) no entanto, se a presunção de inocência e o direito ao processo forem normas disponíveis, não se poderá invocar boa parte da tradição continental de Direito processual penal, e deverá se compreender (a negociação) como privilégios, portanto, disponíveis.[2]

 

Portanto, o verdadeiro divisor de águas neste momento de transição do Direito Penal e Processual Penal é a definição do que se constituiu fundamentalmente como standard de garantias e o que pode ser negociado. Isso porque são verdadeiramente os Direitos Fundamentais as balizas para a negociação. Estabelecidos quais são os resguardos básicos da dignidade humana, estará assegurado que os novos institutos de negociação penal observem o devido processo legal.

 


Claudia da Rocha é advogada, pós-graduada em Direito Constitucional pelo IDCC, em Direito e Processo Penal pela UEL, pós-graduanda em Direito Penal Econômico pelo IDPEE/IBCCRIM, mestranda em Direito Negocial na UEL e professora de Processo Penal e Prática Penal no Centro Universitário Unifamma.

Marlus H. Arns de Oliveira é advogado, sócio do escritório Arns de Oliveira & Andreazza Advogados Associados e doutor em Direito pela PUC/PR.


[1] SÁNCHEZ, Jesus-Maria Silva. A Expansão do Direito Penal. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 90.

[2]ROSA, Alexandre Morais da. Guia do processo penal conforme a teoria dos jogos. 6. ed. Florianópolis: EMais, 2020, p. 508.


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