RHC n. 163.334 do STF e a criminalização do ICMS declarado e não recolhido pelo contribuinte em operação própria

Por Francisco Monteiro Rocha Jr[1] e João Vitor Grycajuk[2]

 

Em 18 de dezembro de 2019[3], o Plenário do Supremo Tribunal Federal julgou o Recurso Ordinário em Habeas Corpus n 163.334 no qual, por maioria, vencidos os Ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio, fixou a seguinte tese: "O contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990"[4].

Pode-se concluir, a partir da decisão em análise, que a Suprema Corte brasileira sedimentou o entendimento de que é passível de sanção penal o mero não pagamento de dívida perante o Estado uma vez que, na hipótese considerada, o contribuinte, sem fraude, declara o valor devido e não realiza o respetivo pagamento. Tem-se assim a criminalização do ICMS declarado e não recolhido pelo contribuinte, em operação própria.

Existem inúmeros pontos controversos na decisão destacada que podem aqui ser abordados. Por conta dos limites impostos ao presente ensaio, optamos por realizar uma discussão topográfica sobre o tema, sem que qualquer aspecto fosse devidamente verticalizado, o que deverá ser realizado em outra oportunidade.

Inicialmente, pode-se sustentar que é incompatível com a Constituição Federal do Brasil a utilização do Direito Penal para os interesses próprios do Estado ou ainda como instrumento de política social e muito menos para instituir um instrumento exclusivamente arrecadatório do Estado. Tal fenômeno já foi definido por vários autores como sendo a administrativização do Direito Penal (TANGERINO, CANTERJI, FIGUEIREDO DIAS, ZAFFARONI, BATISTA, TAVARES) que, resumidamente pode ser definido como a utilização do direito penal não para punir condutas que ofendem bens jurídicos em sentido retributivo ou preventivo, mas para forçar pagamento de dívida. Ao contrário do art. 1º da Lei 8.137/1990 que penaliza os fraudadores do sistema tributário, a interpretação que foi dada pelo STF ao art. 2º teria o condão de institucionalizar a prisão por dívida tributária. Em síntese, trata-se de forçar o cidadão a realizar um pagamento (cujo atraso até então era penalmente irrelevante) para somente assim evitar a intervenção do direito penal.

Outra perspectiva faz exsurgir (mais uma vez!) o debate relacionado à prisão por dívida, assim regulada pela Constituição Federal de 1988: “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel” (art. 5º, inciso LXVII). O âmbito dessa discussão que deve ser trazida à tona diz respeito à existência (ou não) de diferenciação entre prisão civil e prisão tributária. Trata-se de debate já enfrentado por Hugo de Brito Machado, que assim se manifestou sobre o tema:

Admitir que a Constituição, ao vedar a prisão civil por dívida, não está proibindo também a definição da dívida como crime, é outorgar ao legislador ordinário ferramenta que lhe permite destruir completamente a supremacia constitucional. Na interpretação da norma jurídica, especialmente da norma da Constituição, tem-se de ir além do elemento meramente literal. É preciso buscar a realização dos objetivos que a norma tende a alcançar, os valores humanos que tende a realizar.[5]

Rememore-se que abordamos aqui apenas a decisão do RHC nº 163.334/STF que criminalizou o não recolhimento do ICMS declarado como apropriação indébita, sendo que na realidade há apenas uma obrigação tributária não cumprida que gerou uma mera inadimplência com o Fisco. O mesmo autor verticaliza a discussão, em passagem que deve ser citada:

A norma da Constituição que proíbe a prisão por dívida protege o direito à liberdade, colocando-o em patamar superior ao direito de receber um crédito. Isto não quer dizer que o direito de receber um crédito restou sem proteção jurídica. Quer dizer que essa proteção não pode chegar ao ponto de sacrificar a liberdade corporal, a liberdade de ir e vir. Limita-se, pois, a proteção do direito de receber um crédito ao uso da ação destinada a privar o devedor de seus bens patrimoniais, que poder ser afinal desapropriados no processo de execução.[6]

Evidencia-se assim, que a decisão do Supremo Tribunal Federal padece de inconstitucionalidade pelo motivo de possibilitar a prisão por dívida do devedor tributário.

Consigne-se, ainda sobre o ponto, que além da própria Constituição não ter recepcionado o art. 2º, inciso II, da Lei 8.137/90 nos moldes adotados pelo Supremo Tribunal Federal no RHC 163.334, é de incidir na espécie o Pacto São José da Costa Rica do qual o Brasil é signatário, e que nos levaria à mesma conclusão.

Além da (in)constitucionalidade da prisão por dívida no RHC 163.334, salienta-se que a tese oriunda do julgamento fere determinados princípios do Direito Penal que estabelecem a não criminalização da conduta analisada, tais como o a) in dubio pro reo; b) o princípio da legalidade; c) a lesividade/ofensividade; e d) a intervenção mínima.

Pode-se sustentar que o princípio do in dubio pro reo ou da presunção de inocência seria atacado na medida em que a decisão analisada consente com uma modalidade de dolo presumido incompatível com o regime jurídico aplicável à espécie. Sobre o ponto, merece destaque trecho do Recurso Ordinário Constitucional interposto pela Defensoria de Santa Catarina.

Porque o ICMS pode não ser repassado, de modo que a tipicidade dependeria da demonstração efetiva desse repasse, não bastando partir de uma presunção baseada na “prática costumeira”, sob pena de ofensa à presunção de inocência.[7]

O princípio da legalidade, por seu turno, é corolário tanto do Direito Penal quanto do Direito Tributário e está previsto no art. 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal. Pode-se perceber sua violação em ao menos dois momentos.

Primeiramente, porque a tipificação do delito de apropriação indébita tributária diz respeito apenas aos casos de substituição tributária. Assim, presumir que o tipo penal também se relaciona com o ICMS em operação própria caracteriza analogia in malam partem, o que é vedado pelo referido princípio, como já nos explicou MACHADO:

A elementar “tributo cobrado” diz respeito aos casos de substituição tributária, de modo que subsumir ao tipo penal também a hipótese de ICMS próprio “cobrado” dos consumidores significaria uma violação à legalidade penal (proibição de analogia)[8].

Na mesma senda, a tese emanada pelo Supremo Tribunal Federal criou nova tipificação penal por via jurisprudencial, uma vez que o art. 2º, inciso II, da Lei 8.137/90 não pode simplesmente ser comparado e aproximado do delito de apropriação indébita, analogicamente ou por fusão de elementares do tipo, dando origem a um novo tipo penal denominado apropriação indébita tributária e ferindo diretamente o princípio da legalidade. Como explicam ESTELLITA e PAULA JÚNIOR:

A possibilidade da criação doutrinária e/ou jurisprudencial de uma nova figura penal a partir da fusão de elementares de normas incriminadoras em vigor para ampliar o espectro de incidência de uma restrição a direito fundamental é de duvidosa constitucionalidade (princípio da legalidade, art. 5º, XXXIX, CF)[9].

Temos em terceiro plano o princípio da ofensividade ou lesividade que aduz que não há crime se não há lesão ou perigo real de lesão ao bem jurídico tutelado pelo Direito Penal. Portanto, o mero inadimplemento do ICMS sem uma conduta fraudulenta não pressupõe perigo, muito menos lesão, ao bem jurídico tutelado.

Segundo o princípio da intervenção mínima, o Direito Penal apenas interferirá em questão de máxima importância em que as demais áreas do Direito não sejam capazes de resolver. No caso do RHC nº 163.334/STF resta evidenciado que houve uma intervenção penal além do devido, uma vez que a questão poderia ter sido resolvida sem a coerção estatal, mediante novo parcelamento, por exemplo.

Para que exista a caracterização o delito de “apropriação indébita tributária”, é imprescindível que haja uma conduta extra para que a mera inadimplência tributária se torne mais reprovável e realmente atinja um bem jurídico, uma vez que é proibida a criminalização de meras desobediências.

Portanto, pode-se concluir que a decisão do Supremo Tribunal Federal no Recurso Ordinário Constitucional em Habeas Corpus nº 163.334 foi equivocada, uma vez que contraria princípios fundamentais do Direito Penal e da Constituição Federal. Trata-se de uma indevida administrativização do direito penal, da constitucionalização de uma modalidade de prisão por dívida, de ofensa à legalidade, além de um ataque à intervenção mínima.


[1] Professor Adjunto do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Doutor, Mestre e Especialista pela UFPR. Coordenador geral da área de Direito e Processo Penal da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst). Ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico (IBDE). Advogado criminalista.

[2] Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela ABDConst. Pós-graduado em Direito Penal Econômico pela PUCMG. Bacharel em Direito pela UFPR. Advogado criminalista.


[3] O acórdão respectivo não foi publicado até a data em que vem a público esse rápido ensaio.

[4] Art. 2° Constitui crime da mesma natureza: (...) II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;

[5] MACHADO, Hugo de Brito. Crimes contra a ordem tributária. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 414.

[6] Idem

[7] STF - RHC: 163334 SC - SANTA CATARINA, Relator: Min. ROBERTO BARROSO, Data de Julgamento: 11/02/2019, Data de Publicação: DJe-029 13/02/2019.

[8] Idem.

[9] ESTELLITA, Heloisa. PAULA JUNIOR, Aldo de. O STF e o RHC 163.334: uma proposta de punição da mera inadimplência tributária? Jota. 10/12/2019. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/penal-em-foco/o-stf-e-o-rhc-163-334-uma-proposta-de-punicao-da-mera-inadimplencia-tributaria-10122019#sdfootnote2anc>. Acesso em: 20.fev.2020.


 


O Projeto de Lei 1588/2020: Certificação de Programas de Compliance e impactos na Responsabilidade Criminal

Por Rafael Guedes de Castro[1]

 

No ano de 2016 começou a tramitar no Senado Federal o Projeto de Lei 435/2016, de autoria do Senador Antônio Anastasia, que inclui no artigo 7o, inciso VIII, da Lei 12846/2014, Lei Anticorrupção, a necessidade de certificação de programas de compliance por gestor de sistema de integridade devidamente preparado para a função. Ainda, insere um segundo parágrafo ao mesmo artigo ao prever as funções básicas desse chamado gestor de integridade, quais sejam, (i) gerir de forma autônoma, contribuindo para o seu aperfeiçoamento contínuo, (ii) o dever de atuar de forma constante e engajada nas interações da empresa com as autoridade públicas bem como de (iii) manter atualizada documentação relativa ao programa de integridade.

O Projeto foi aprovado no Senado Federal e, em 06 de abril de 2020, foi encaminhado à Câmara dos Deputados. Lá passou a tramitar sob o número 1588/2020 e atualmente aguarda despacho da Presidência para início do processo legislativo.

A proposta pretende alterar significativamente o modo como as organizações empresariais estruturam seus mecanismos de integridade, estabelecendo, em suma, a necessária (i) certificação do programa por alguém devidamente preparado para a função, com (ii) plena autonomia na gerência do mecanismo de integridade e (iii) autuação constante e engajada com as autoridade públicas.

Sem a pretensão de esgotar o tema, o presente artigo busca provocar uma reflexão sobre a proposta legislativa, especialmente no que concerne ao processo de certificação e a respectiva atuação do Compliance Officer.

Não é novidade que existe um certo consenso sobre os elementos básicos que estruturam um programa de compliance tais como o comprometimento da alta direção, a identificação de riscos, elaboração de código de conduta, elaboração canais de denúncia, dentre outros.

Por outro lado, a mesma constatação não ocorre quanto a determinação dos critérios de qualidade e validação, ou mais comumente chamados de processos de certificação. No ordenamento jurídico comparado, a submissão facultativa dos programas de compliance adotados pelas empresas a um sistema de certificação é um dos pontos mais avançados de discussão no âmbito da temática que envolve o compliance.[2]

A certificação dos programas de compliance é um fenômeno que se adequa bem à técnica da autorregulação. Há tempos os Estados têm se valido de instrumentos declarativos, como selos, marcas, etiquetas e certificados emitidos por terceiros para obter o compromisso de conformidade da empresa com as regras técnicas do setor. Da mesma forma, o administrador que submete o seu programa de compliance a um processo de certificação independente, de alguma maneira assegura que sua política de gestão de riscos responde a um critério organizacional de uma administração diligente e ordenada.[3]

Existem alguns modelos no direito comparado que indicam os critérios de qualidade e procedimentos de certificação dos programas de compliance. No Chile, por exemplo, a Lei 20.393/2009, que estabeleceu a responsabilidade penal das pessoas jurídicas contém indicações sobre os elementos que devem possuir os programas de compliance, bem como ofereceu à empresa que adotou o modelo de prevenção a possibilidade de submetê-lo a um processo de certificação.[4] A Lei considera a possibilidade, e não obrigatoriedade, de submissão do programa de compliance a um critério de certificação. Este certificado constará ter a empresa atingido todos os requisitos estabelecidos na Lei, estabelece que tais certificações poderão ser expedidas pelas empresas de auditoria externa, classificadoras de riscos ou outras entidades registradas na Superintendência de Valores e Seguros, o equivalente a SEC - Security Exchange Comission dos Estados Unidos da América.[5]

Além de classificar o programa de compliance de acordo com a sua qualidade e atenção aos postulados regulamentadores dispostos em Lei, no campo processual, em caso de ocorrência de algum ilicito no âmbito da atividade econômica empresarial, as certificações podem se revestir de alto valor probatório e servir como prova documental para atestar a eficiência do programa[6] e que todas as cautelas devidas foram devidamente tomadas na sua elaboração e execução. ACUÑA acentua neste ponto que a certificação dos programas de compliance poderia servir como um atestado de bom comportamento prévio, uma espécie de certificação de atuar prudente da empresa e, consequentemente, causa de atenuação da pena a ser aplicada.[7] Também, não se pode dizer que as certificações terão um valor absoluto visto que no direito processual penal não há hieraquia de provas bem como elas estão submetidas à livre convicção motiva da autoridade jurisdicional.

Embora a certificação de programas de compliance se constitua em necessária evolução normativa, ao contrário do estabelecido no Projeto de Lei 1588/2020, não é recomendável que a referida atribuição seja do mesmo gestor que o concebeu e executa. Como visto na experiência do direito comparado, a certificação compreenderia um processo legal de validação independente, seja ele público ou privado, que analisaria os padrões adotados e estaria sob constante monitoramento.

Também se denota uma evidente cumulação das atribuições do Compliance Officer. Além de ser o gestor do programa, terá a incumbência legal de certificá-lo, validando-o para todos os efeitos legais. Assim, não obstante as atribuições próprias decorrentes de sua função surge uma nova imposição legal ao profissional de compliance ao exigir que este seja o “certificador” do seu próprio programa.

A temática relativa à responsabilidade criminal do Compliance Officer não é tema novo na dogmática penal. Do modo como está, a certificação pelo próprio profissional tem o potencial de aumentar o escopo da sua posição de garante na organização empresarial, uma vez que a Lei estará ampliando o seu dever de cuidado, proteção e vigilância. Isso fica ainda mais claro quando a Projeto de Lei estabelece que as suas funções básicas devem guiar-se pela autonomia, engajamento e interação com autoridades públicas e constante atualização e disponibilidade de documentações.

Por óbvio é que a responsabilidade criminal do Compliance Officer implica em inúmeras discussões no âmbito da dogmática penal, sendo evidente a impossibilidade de sua responsabilização objetiva. Todavia há, de fato, um significativo incremento de sua responsabilidade e também do risco que decorre da sua função, principalmente em caso de falha do programa.

O Projeto de Lei 1588/2020, da forma como está, estabelece um processo de certificação de programas de compliance pouco eficaz, uma vez que não estaria a presente a independência necessária para a avaliação. De outro lado, amplia os deveres do Compliance Officer na organização empresarial, o que impacta na sua posição de garante, não estando de acordo como melhor aprimoramento do instituto.


[1] Advogado. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná e especialista em Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Direito Penal Econômico pela Universidade Federal do Paraná, pela Universidade de Coimbra – Portugal e pela Universidade Castilla La Mancha, Toledo, Espanha.


[2] SÁNCHEZ RIOS, Rodrigo. ANTONIETTO, Caio. Criminal Compliance – Prevenção e minimização de riscos na gestão da atividade empresarial. In, Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 114/2015, p. 341-375, mai./jun. 2015,p. 13.

[3]MARTIN, Adan Nieto. Fundamentos y Estructura de los programas de cumplimientos normativo. In: Manual de cumplimiento normativo penal em la empresa. MARTÍN, Adan Nieto. (Coord). Valencia: Tirant lo Blanch, 2015p. 116.

[4]MARTIN, Adan Nieto. Fundamentos y Estructura de los programas... op. cit., p. 115.

[5]ACUÑA. Jean Pierre Matus. La certificación de los programas de cumplimiento. In: El Derecho Penal Económico em la era Compliance, org. Luis Arroyo Zapatero e Andán Nieto Martín,  Tirant lo Banch, Valência, 2013. p. 147.

[6]MARTIN, Adan Nieto. Fundamentos y Estructura de los programas... op. cit., p. 116.

[7]ACUÑA. Jean Pierre Matus. La certificación de los programas... op. cit., p.151.


Este artigo reflete a opinião de seus autores e não necessariamente a opinião do IBDPE.

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A corrupção passiva e a alteração interpretativa jurisprudencial acerca da (des)necessidade do ato de ofício.

Por Bibiana Fontella[1]

 

Tradicionalmente a doutrina nacional entendeu aplicável ao tipo penal de corrupção passiva (art. 317, CP[2]) a exigência do ato de ofício prevista no crime de corrupção ativa (art. 333, CP[3]). Assim, se a vantagem recebida indevidamente pelo funcionário público não estivesse vinculada a um ato de ofício, não haveria nem corrupção ativa nem corrupção passiva. Justamente neste sentido foi o entendimento do Supremo Tribunal Federal na Ação Penal 307, que rejeitou a denúncia em face de Fernando Collor de Mello, haja vista a ausência da vinculação de ato de ofício à vantagem indevida no crime de corrupção passiva.[4]

Em 2003 os crimes de corrupção – ativa e passiva – sofreram alteração legislativa, pela Lei n. 10.763, com reflexos tão-somente na sanção penal. A descrição típica permaneceu inalterada.

Contudo, o entendimento jurisprudencial começou a ser alterado na Ação Penal 470 (Caso Mensalão), sendo, ainda, mantida a exigência de vinculação a ato de ofício, mas flexibilizou a determinação no momento das ações de solicitar e receber.[5]

A legislação brasileira conta apenas com dois tipos de corrupção – passiva e ativa – sem qualquer especificação quanto a função exercida pelo funcionário público, podendo ser um guarda de trânsito ou parlamentar. Neste ponto residem os problemas de política criminal, se o ato de ofício for exigível no momento do recebimento ou da solicitação da vantagem indevida, seriam punidos apenas os ilícitos de menor gravidade e aquela corrupção considerada sistêmica permaneceria ilesa.[6]

A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, em nova interpretação do tipo de corrupção passiva, entendeu pela desnecessidade da subsunção entre o específico ato de ofício e as vantagens indevidas, bastando apenas a subsunção causal entre as atribuições do funcionário público e as vantagens indevida, passando a atuar em prol de interesse particular, desvirtuando a função pública.[7]

Contudo, o Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial n. 1.745.410[8], de relatoria da Ministra Laurita Vaz, interpretou o termo “em razão da função” de forma inédita, alargando ainda mais a esfera de abrangência do tipo de corrupção passiva (art. 317, CP). Assim, entendeu-se que a expressão em razão da função não é equiparável ao ato de ofício da corrupção ativa (art. 333, CP), sendo admitida a condenação ainda que as ações ou omissões indevidas não estejam dentro das atribuições formais do funcionário público. [9]

Concretamente, dois dos recorrentes teriam sido denunciados pelo crime de corrupção passiva – dentro outros – em razão de terem, aceitado promessa de vantagem indevida, oferecida por terceiro, consistente no valor de R$ 1.000,00 (mil reais). Assim, caberia aos aeroportuários esperar o desembarque do estrangeiro em vôo que chegava ao Brasil e no corredor de desembarque recebê-lo e escolta-lo até as áreas restritas do aeroporto. Além disso, estaria dentro da promessa de vantagem indevida o acompanhamento do estrangeiro até que fosse possível a passagem furtiva pelo serviço de imigração.

O Juízo sentenciante entendeu pela atipicidade do crime de corrupção passiva, haja vista a ausência de competência dos funcionários públicos para permitir a entrada de estrangeiro em território brasileiro. Desta forma, não haveria nexo causal entre a promessa de vantagem indevida e o ato praticado. Assim, entendeu-se na sentença pela desclassificação para o crime de introdução irregular de estrangeiro em território nacional (art. 125, XII, da Lei n. 6.815/1980).

Ministro Sebastião Reis Júnior, relator originário do RESP 1.745.410, fez diferenciação entre os tipos de corrupção ativa e corrupção passiva. Sendo que na forma ativa há a exigência legal da existência de determinado ato de ofício e na forma passiva há apenas a descrição típica da solicitação, aceitação ou recebimento de promessa indevida em razão da função ocupada pelo funcionário público.

Embora o tipo de corrupção passiva não faça menção ao ato de ofício, há a expressão “em razão dela”, representando o necessário vínculo entre a vantagem indevida e a função exercida pelo agente. Neste sentido, para Sebastião Reis Júnior é indispensável a existência de nexo de causalidade entre a conduta do agente público e a realização de ato funcional de sua competência. Para corroborar colacionou-se diversos julgados do Superior Tribunal de Justiça[10] no sentido a necessidade do nexo causal entre as competências funcionais e a conduta do agente público no ato de corrupção passiva.

Entretanto, a Ministra Laurita Vaz abriu divergência parcial ao voto do Ministro Relator, quanto aos requisitos da configuração do crime de corrupção passiva.

O entendimento da Ministra Relatora foi no sentido de que a opção legislativa teria sido direcionada para ampliar a abrangência da incriminação por corrupção passiva, se comparada ao tipo de corrupção ativa. Desta forma, a proteção ao bem jurídico – probidade da administração pública[11] – seria potencializada.

Neste sentido, proferiu voto pelo parcial provimento do recurso especial a fim de reconhecer a prática do crime de corrupção passiva.

O legislador brasileiro optou por dois tipos penais diversos de corrupção, com contornos diferentes. Inegavelmente a modalidade ativa possui a restrição da vinculação do ato de ofício. Por algum tempo o entendimento doutrinário e jurisprudencial foi no sentimento de aplicação extensiva do requisito do ato de ofício à corrupção passiva. Contudo, tal entendimento foi sendo transformado jurisprudencialmente, chegando ao passo de completa desnecessidade de subsunção da vantagem indevida ao ato de ofício. Entretanto, a interpretação do Superior Tribunal de Justiça passou de entender pela desnecessidade de vinculação causal da vantagem indevida às atribuições do funcionário público.


[1] Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professora de Direito Penal. Advogada Criminal. Secretária-geral do IBDPE.


[2] Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem:         Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa

[3] Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.

[4] QUANDT, Gustavo de Oliveira. O crime de corrupção e a compra de boas relações. In: LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano (org). Crime e Política – Corrupção, financiamento irregular de partidos políticos, caixa dois eleitoral e enriquecimento ilícito. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017. p. 53 – 76.

[5] Idem.

[6] Idem.

[7] Neste sentido: STF, AP 695, Rel. Min. Rosa Weber, Primeira Turma, j. 06/09/2016.STF, Inq 4506, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 17/04/2018, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-183 DIVULG 03-09-2018  PUBLIC 04-09-2018.

[8] STJ, RESP 1745410, Relatora para Acórdão Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma. DJE 23 de outubro de 2018.

[9] Neste sentido: LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano; GRECO, Luis. A amplitude do tipo penal da corrupção passiva. Disponível em: https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-amplitude-do-tipo-penal-da-corrupcao-passiva-26122018. Acessado em 10 de setembro de 2020.

[10] STJ, HC 135.142/MS, Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, DJE 04/10/2010. STJ, RESP 440.106/RJ, Ministro Paulo Medina, Sexta Turma, DJ 09/10/2006. STJ, HC 13.487/RJ, Ministro Fernando Gonçalves, Sexta Turma, DJ 27/05/2002.

[11] Definição atribuída por Laurita Vaz.


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O acesso e o contraditório à colaboração premiada é manifestação precípua da ampla defesa

Por João Vieira Neto[i] e Vinícius Segatto[ii]

 

Alvo de divergências doutrinárias e jurisprudenciais, o acesso do delatado aos termos de colaboração em que tenham sido citados é, evidentemente, uma das configurações mais sólidas do exercício do contraditório e da ampla defesa. Isso porque, inobstante o acordo de colaboração premiada tratar-se tão somente de um meio de obtenção de prova, pode vir a influenciar uma possível convicção judicial condenatória.

O princípio do contraditório, bem como da ampla defesa, consagrados constitucionalmente e amparados também pelo Pacto de São José da Costa Rica, comumente conhecido por Convenção Americana sobre Direitos Humanos, são de inegável imprescindibilidade a qualquer Estado Democrático, pois, servem de anteparo àqueles submetidos à atividade persecutória penal estatal.

Basicamente, o contraditório se manifesta como a noção bilateral dos atos, das informações, dos termos e trâmite processual e a oportunidade de confrontá-los, possibilitando aos indivíduos que participem e reajam ao processo. Já a ampla defesa, na seara do processo penal, é garantir ao acusado o acesso e a disponibilização de todos os meios e recursos cabíveis para que, plenamente, se defenda daquilo que lhe é imputado.

Nessa perspectiva, a Segunda Turma da Suprema Corte decidiu conceder ao ex-presidente Lula o acesso a todos os trechos do acordo de colaboração premiada firmado pelo ex-ministro Antonio Palocci, nos quais lhe seja imputado algum delito.

Preponderou o entendimento exarado pelo Ministro Gilmar Mendes, que suscitou a aplicação da Súmula Vinculante 14, bem como, o juízo da própria Turma que tem concedido aos delatados o acesso dos termos de colaboração e que não tenham diligências em curso para não restarem prejudicadas.

Em verdade, tal posicionamento vem se consolidando a partir de premissa normativa à luz do art. 7º da Lei nº 12.850/2013, pois se confere ao defensor, no interesse do representado, a amplitude de acesso a todos os elementos de pré-prova, gize-se, mediante autorização judicial, ressalvados os referentes às diligências em andamento, logicamente após a homologação do acordo de colaboração premiada.

Aliás, nesse ponto, o Eminente Ministro considerou que, inobstante julgar favoravelmente ao acesso às informações que incriminem terceiros e que nem toda diligência em andamento dificulta esse direito, caso o delatado requeira ao juiz responsável pela instrução criminal a obtenção de certo procedimento, e o magistrado entender fundamentada e justificadamente ter risco à persecução por atos do delatado, o sigilo deverá permanecer.

Todavia, deve-se levar em consideração que uma investigação por si só pode ser eivada de prováveis riscos e irregularidades, motivado ou não pelo delatado. O que não se pode admitir, via de regra, é a mitigação ou o aniquilamento das garantias dos delatados, que devem ter acesso aos elementos essenciais ao exercício da sua defesa.

Nesta toada, para além do escopo da episódica demonstração, ou reafirmação do direito subjetivo processual-penal de acesso em prol de alinhavar parâmetros regulares de ordem constitucional, também, é de se observar o amadurecimento da matéria legislativa com a vigência da Lei nº 13.964/2019, onde se estabeleceu diretrizes conjunturais e procedimentais ao negócio jurídico, como meio de obtenção de prova (não é conteúdo probante absoluta), pois será inservível tão somente com a palavra do colaborador, em rescaldo da necessária harmonia contextual de outros elementos de pré-convicção (art. 3º-C, da Lei nº 12.850/2013).

Para tanto, o art. 7º, §3º, da Lei nº 12.850/2013, estabeleceu que o sigilo das informações do procedimento de colaboração só deverá se resguardar sob tal manto até o recebimento da denúncia, criando marco temporal para se garantir ao investigado/delatado o acesso às informações em desfavor.

Lado outro, a Segunda Turma do STF, nos autos dos HCs 142.205 e 143.427, em julgamento sob a relatoria do Ministro Gilmar Mendes, reconheceu a possibilidade-garantia do delatado perquirir a (falta) higidez das colaborações, suas negociações e a forma do procedimento, “em casos de manifesta ilegalidade no acordo, os atingidos por ele devem poder ir ao Judiciário, que deve agir para garantir os respeitos a direitos fundamentais e ao princípio da segurança jurídica.”[iii]

É de se observar outra perspectiva, sobretudo no cruzamento de colaborações em que há negligência de reporte ao conteúdo narrado, pois, como assinalam Renata Machado Saraiva e Luiza Farias Martins, “A omissão que dá causa à rescisão restringe-se aos fatos ilícitos para os quais o colaborador tenha concorrido na condição de autor ou partícipe, e desde que tenham relação direta com os fatos objeto de investigação já instaurada.”[iv]

Assinalaram André Luís Callegari e Raul Marques Linhares, em relação ao momento de terceiros-delatados impugnarem, como instrumento defensivo, o pacto premial, justamente, no “... procedimento criminal instaurado a partir da colaboração, quando os elementos colhidos no acordo passarão a influir nos seus direitos, considerando-se esse exercício do direito ao confronto um verdadeiro ‘filtro’ contra as ‘falsas colaborações’...”[v]

Acontece que, por (in)segurança jurídica de acordos firmados em relevo à legislação vigente (12.850/2013), agora passível de revisão por (re)estruturação da novel norma (13.964/2019), decerto, impõe-se o medo em negócios firmados e homologados, como descreve Zygmunt Bauman “Agora temos de aprender a viver com um permanente senso de incerteza”[vi].

Em arremate, relembremos, a norma processual é aplicável de imediato, sem prejuízo da “validação” dos atos realizados anteriormente, mas, sim, deverão guardar contemporaneidade e correlação à Constituição Federal sob pena de figurar sua aplicabilidade letra morta ou episódica a cada julgador.


[i] é advogado criminalista. Sócio do escritório João Vieira Neto Advocacia Criminal. Conselheiro Estadual da OAB-PE. Presidente da Comissão de Direito Penal da OAB-PE. E-mail: joao@jvn.adv.br;

[ii] é advogado criminalista. Sócio do escritório Segatto Advocacia. Membro da Comissão de Direito Penal da OAB-MT e do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. E-mail: advogado@segattoadvocacia.com.br.


[iii] https://www.conjur.com.br/2020-ago-25/delatados-podem-questionar-acordos-delacao-premiada-turma-stf

[iv] https://www.conjur.com.br/2020-ago-12/opiniao-retratacao-rescisao-colaboracao-premiada-pos-lei-anticrime

[v] CALLEGARI, André Luís, LINHARES, Raul Marques. Colaboração premiada, lições práticas e teóricas de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019, p. 155.

[vi] BAUMAN, Zygmunt; DONSKIS, Leonidas. Cegueira moral, a perda da sensibilidade moderna líquida, tradução Carlos Alberto Medeiros, 1ª ed., Rio de Janeiro: Zahar, 2014, pag. 117.


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Interceptação Telefônica Ilegal e a Condenação do Estado Brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no “Caso Escher”

Por Marlus H. Arns de Oliveira[i]

RESUMO

A interceptação telefônica, autorizada ou não judicialmente, deve estar sempre fundamentada em lei que indique as circunstâncias de tão grave interferência, visto que representa grave intervenção na vida privada de  indivíduo. Em síntese, a medida poderá ser requerida pela autoridade policial em sede de investigação criminal ou pelo Ministério Público na instrução penal. Também é possível que a autoridade judicial de ofício autorize a medida. Em qualquer hipótese devem ser demonstrados fortes indícios de autoria daquele que poderá ter sua comunicação telefônica violada, bem como que inexistem outras provas possíveis para alcançar o mesmo resultado. A decisão deve ser fundamentada, por força constitucional do art. 93, IX, sendo apontado o prazo de vigência, que não poderá ser superior a 15 dias prorrogáveis por mais 15.

Neste estudo apontamos as 5 (cinco) condenações já sofridas pelo Estado Brasileiro frente a Corte Interamericana de Justiça, ressaltando o denominado “Caso Escher”, oriundo de fatos graves de interceptação telefônica ilegal ocorrido no Estado do Paraná, numa demanda em que as vítimas tiveram suas conversas telefônicas interceptadas e divulgadas amplamente nos meios de comunicação, o que concluiu a Corte, causou gravame as suas vidas privadas.

A condenação do Estado Brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos deu-se devido a ingerência abusiva e arbitrária sob a ótica do artigo 11.2 da Convenção Americana de Direitos Humanos.

 

  1. Introdução

A interceptação telefônica representa grave intervenção na vida privada de qualquer indivíduo, devendo a mesma estar fundamentada em lei que indique as circunstâncias de tão grave interferência, bem como prevendo as hipóteses em que pode ocorrer a quebra de sigilo, quem pode solicitá-la, quem a autoriza e a executa.

Em sucinto apanhado podemos afirmar que a interceptação telefônica poderá ser requerida pela autoridade policial em sede de investigação criminal ou pelo Ministério Público na instrução penal. Considera-se possível, ao menos em tese, que a autoridade judicial de ofício autorize a medida[ii]. Em qualquer hipótese devem ser demonstrados pelo requerente fortes indícios de autoria e/ou participação daquele que poderá ter sua comunicação telefônica violada, bem como que inexistem outras provas possíveis para alcançar o mesmo resultado. Evidentemente, por força constitucional do art. 93, IX[iii] o juiz deve fundamentar sua decisão, apontando prazo de vigência, que não poderá ser superior a 15 dias prorrogáveis por mais 15 (quinze), devendo comunicar tal decisão ao parquet ministerial para que acompanhe a execução da gravosa medida.[iv]

No presente artigo buscamos analisamos o denominado “Caso Escher”, oriundo de fatos graves de interceptação telefônica ilegal ocorrido no Estado do Paraná, numa demanda em que as vítimas tiveram suas conversas telefônicas interceptadas e divulgadas amplamente nos meios de comunicação, o que seguramente causou gravame as suas vidas privadas.

Na análise do caso concreto apontamos que a Corte Interamericana de Direitos Humanos tratou de examinar se a ingerência foi abusiva ou arbitrária sob a ótica do artigo 11[v].2 da Convenção Americana de Direitos Humanos, tendo concluído pela ilegalidade da interceptação telefônica e condenado o Estado Brasileiro a reparação dos danos imateriais.

 

  1. Da legislação aplicável aos casos de interceptação telefônica em âmbito nacional e internacional

No âmbito do direito interno Brasileiro a matéria é regulada pela Carta Magna em seu artigo 5º, XII[vi] que considera inviolável a vida privada, a honra e a imagem de toda e qualquer pessoa[vii], bem como assegura o sigilo das comunicações telefônicas. Em sede infraconstitucional vige a Lei 9296/96, que regulamenta o art. 5º., XII da Constituição Federal, e explicita quais as hipóteses e os requisitos a observar quando de interceptação telefônica para fins de instrução penal ou investigação criminal.

No âmbito internacional o artigo 11 da Convenção Americana de Direitos Humanos proíbe interferência abusiva na vida privada das pessoas, suas famílias, seus domicílios e suas correspondências, bem como, assegura a toda pessoa o direito a honra determinando ao Estado que proteja qualquer ataque a sua reputação. Considerando o caráter não absoluto do direito a vida privada a Convenção Americana dispõe em seu artigo 11.2 que este pode ser limitado pelos Estados que a ratificaram quando as ingerências estiverem previstas em lei, possuírem fim legítimo e forem necessárias ao Estado democrático. É preciso analisar, quando existirem indícios concretos de crimes, os artigos 11 e 32[viii] da Convenção Americana, sopesando o bem comum frente a garantia de privacidade do indivíduo.

 

  1. Da Convenção Americana de Direitos Humanos

Atualmente vinte e cinco países já ratificaram a Convenção Americana de Direitos Humanos[ix]: Argentina, Barbados, Bolívia, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Chile, Dominica, Equador, El Salvado, Granada, Guatemala, Haiti, Honduras, Jamaica, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Suriname, Trindade e Tobago, Uruguai e Venezuela.  A Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem foi aprovada em 1948, na cidade de Bogotá, Colômbia, pelos então membros da OEA – Organização dos Estados Americanos.

Visando dar efetividade ao conteúdo da Declaração foram criados dois órgãos com competência para julgar casos de violação aos direitos humanos, a saber: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, criada em 1959, e a Corte Interamericana de Direitos Humanos que iniciou seu funcionamento em 1979, após o início de vigência da Convenção Americana de Direitos Humanos em 18 de julho de 1978.

Portanto não há dúvida quanto a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos para julgar casos de violação a Convenção Americana de Direitos Humanos pelo Estado Brasileiro, conforme os termos do artigo 62[x] da referida Convenção, visto que o Brasil é Estado parte desde 25 de setembro de 1992, tendo reconhecido a competência da Corte em 10 de dezembro de 1998.

Praticamente desconhecida, e pouco respeitada, as decisões condenatórias da Corte Interamericana deveriam repercutir amplamente em nosso sistema jurídico interno. Com o avanço econômico dos blocos regionais e a uniformização de procedimentos, inclusive na área processual penal, impõem-se este desafio a todos que estudam e laboram com o tema.

 

  1. O Caso Escher e outro x Estado Brasileiro (2009)

Buscamos trazer os contornos fáticos do “Caso Escher” (interceptação telefônica e divulgação dos diálogos colhidos), seus aspectos legais no campo nacional e internacional, suas considerações sobre o direito a vida privada, a honra, a dignidade e a reputação garantidas pela Convenção Americana de Direitos Humanos e seus reflexos em solo Brasileiro.

A demanda é de 2009 e trata da tutela do direito à privacidade e a honra, direito à liberdade de associação, bem como, dos limites do exercício do poder público frente a interceptação telefônica e divulgação dos diálogos colhidos. Nas palavras da Comissão Interamericana de Direitos Humanos a demanda refere-se a “alegada interceptação e monitoramento ilegal das linhas telefônicas de Arlei José Escher, Dalton Luciano de Vargas, Delfino José Becker, Pedro Alves Cabral, Celso  Aghinoni, e Eduardo Aghinoni, (...) membros das organizações ADECON e COANA, realizados entre abril e junho de 1999 pela Polícia Militar do Estado do Paraná; a divulgação das conversas telefônicas, bem como a denegação de justiça e da reparação adequada”.

 

  1. Do relevo fático do Caso Escher frente as interceptações telefônicas ilegais e sua indevida divulgação

O fundo de cena no presente caso concreto é o sempre atual tema de conflito social vinculado a reforma agrária. Os conflitos, em série, levaram o Estado a tomar medidas de políticas públicas para resolver, ou ao menos tentar resolver, o tema. Destaque-se a implementação de Plano Nacional de Combate à Violência no Campo e  a elaboração de Manual de Diretrizes Nacionais para a Execução de Mandados Judiciais de Manutenção e Reintegração da Posse Coletiva.

Interessante notar que a medida de interceptação telefônica, neste caso ilegal, é forma de vigiar comportamentos futuros. Nas palavras de FÁBIO TOFIC SIMANTOB (2011, p. 10):

Trata-se de medida processual com vistas a fazer prova na investigação ou na instrução criminal por meio de vigilância do comportamento humano ainda por acontecer. A rigor, pois, como a ocorrência de um crime é pressuposto para a justiça autorizar a quebra de sigilo telefônico, o monitoramente telefônico não é juridicamente vocacionado para descobrir crimes, mas sim para prevenir a repetição deles, ou até permitir o flagrante da repetição, ou, ainda, desvendar crimes já noticiados (com provas circustanciais ou com informações que levem à prova do crime).

 Os representantes da demanda, organizações Justiça Global, Rede Nacional de Advogados Populares, Terra de Direitos, Comissão Pastoral da Terra (CPT) e Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) requereram, com base nos fatos relatados pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que o Estado Brasileiro fosse declarado responsável pela violação dos artigos 8.1[xi] (garantias judiciais), 11[xii] (proteção da honra e da dignidade), 16[xiii](liberdade de associação) e 25[xiv] (proteção judicial) da Convenção Americana de Direitos Humanos, e que fosse ordenada a adoção de medidas de reparação.

As supostas vítimas, que restaram aceitas pela Corte, eram todas membros da ADECON – Associação Comunitária de Trabalhadores Rurais e da COANA – Cooperativa Agrícola de Conciliação Avante Ltda. Ambas as organizações buscavam, através de atividades de cunho cultural, esportivo e econômico, integrar os agricultores na venda de produtos e demais atividades econômicas. Restou demonstrado nos autos que ambas mantinham relação com o MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra e tinham como objetivo comum a reforma agrária.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos sustentou, com a concordância das organizações representantes, violação do direito à vida privada, à honra e à reputação das supostas vítimas, diante da responsabilidade do Estado Brasileiro pela interceptação de conversas telefônicas que após gravadas foram amplamente divulgadas. Foi apontada, ainda, responsabilidade do Brasil pela negativa do Poder Judiciário em autorizar a destruição do material colhido.

Em sua defesa o Estado Brasileiro sustentou, em sede preliminar que restou afastada, a incompetência da Corte Interamericana de Direitos Humanos pela falta de esgotamentos dos recursos internos. No mérito, argüiu que inexistiram condutas juridicamente reprováveis e sustentou que deveria ser reconhecido que efetuou todos os esforços possíveis  no sentido de apurar os fatos denunciados. Ainda, que as vítimas tiveram oportunidade de apresentar os recursos adequados e questionar os atos do Estado. Apontou também que não existiram vícios no processo que determinou as interceptações telefônicas e que eventual falha não teria gerado ofensa a honra e a dignidade das pessoas que tiveram seu sigilo telefônico violado. Finalmente, que não seria admissível revisar em instância internacional, a já analisada, no âmbito interno, conduta dos agentes envolvidos na interceptação e gravação telefônica, e posteriormente na divulgação das fitas gravadas.

 

  1. Da necessária individualização das vítimas da interceptação telefônica ilegal

Na análise deste caso merece destaque a discussão quanto a determinação de quem seriam as supostas vítimas da interceptação telefônica ilegal. A Comissão apontou que “o Estado incorreu em responsabilidade internacional pela violação dos direitos humanos em prejuízo de Arlei José Escher, Dalton Luciano de Vargas, Delfino José Becker, Pedro Alves Cabral, Celso Aghinoni e Eduardo Aghinoni”, que eram membros da COANA e da ADECON.

Sustentaram as organizações representantes que eram 34 (trinta e quatro) supostas vítimas, sustentando que quando da denúncia no ano de 2000, não havia como qualificar todas as vítimas diante do sigilo da interceptação telefônica, previsto na Lei 9.296/96. Ao nominarem todas as lideranças da COANA e da ADECON, pretendiam ver incluídas no rol de vítimas todas aquelas pessoas que somente vieram a ser conhecidas em 2004, com o pleno acesso as transcrições da interceptação telefônica realizada. O Estado Brasileiro impugnou tal pretensão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos asseverou que apesar dos representante terem tido acesso a íntegra das gravações em 2004, só trouxe os nomes das supostas 34 (trinta e quatro vítimas) em maio de 2007.

Em consonância com a jurisprudência da Corte, que considera que as supostas vítimas devem ser arroladas na demanda, e especificamente no relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (vide artigo 50[xv] da Convenção), e ainda que a identificação específica de cada vítima cabe a Comissão Interamericana e não a Corte, conforme artigo 33.1[xvi] do Regulamento, a Corte considerou como supostas vítimas, aquelas inicialmente apontadas, vale dizer,  Arlei José Escher, Dalton Luciano de Vargas, Delfino José Becker, Pedro Alves Cabral e Celso Aghinoni, não aceitando a inclusão dos demais no pólo passivo da demanda.

 

  1. Da ilegalidade da interceptação telefônica e de sua indevida divulgação

A solicitação formulada em meados do ano de 1999 partiu do Chefe do Estado Maior da Polícia Militar ao Secretário de Segurança Pública do Estado do Paraná, para que este requeresse junto a Comarca de Loanda a interceptação e monitoramento dos terminais telefônicos da COANA, visto a existência de “fortes evidências de estar sendo utilizada pela liderança do MST para práticas delituosas”. Mencionou-se ainda “indícios de desvios por parte da diretoria da COANA de recursos financeiros concedidos através do Programa Nacional de Agricultura Familiar (PRONAF) e do Programa de Crédito Especial para a Reforma Agrária (PROCERA), aos trabalhadores do Assentamento Pontal do Tigre, no município de Querência do Norte.” Mencionou também o assassinato de Eduardo Aghinoni.

O requerimento foi autorizado pela então juíza da Comarca de Loanda que decidiu nos seguintes termos: “Recebido e Analisado. Defiro. Oficie-se. Em 05.05.99”.  Sequer o Ministério Público foi cientificado do procedimento. A flagrante ilegalidade foi tamanha que a intimação não ocorreu sequer posteriormente como determina a Lei 9296/96.

Foi requerido a mesma juíza uma segunda interceptação, sem qualquer motivação, tendo recebido a mesma autorização, no mesmo formato, e novamente sem notificação do parquet ministerial.

O Jornal Nacional da Rede Globo de Televisão, bem como, coletiva de imprensa concedida pelo então Secretário de Segurança, divulgaram amplamente as conversas interceptadas. Os jornalistas chegaram a receber cópias dos diálogos interceptados contendo gravações que sequer haviam sido solicitadas e autorizadas pela Justiça. Como em quase a totalidade dos casos de interceptação telefônica não foi divulgada a íntegra das conversas mas o resumo de trechos que interessavam apenas a investigação da polícia.

Finalmente, em setembro de 2000, os autos foram enviados ao Ministério Público, que taxativamente aduziu que a interceptação telefônica não buscava solucionar práticas criminosas mas sim monitorar o MST, “ou seja, possuía cunho estritamente político, em total desrespeito ao direito constitucional a intimidade, a vida privada e a livre associação” e requereu a nulidade das interceptações telefônicas e a destruição do material colhido, nos seguintes termos: “i) um policial militar, sem vínculos com a Comarca de Loanda e que não presidia nenhuma investigação criminal nessa área, não tinha legitimidade para solicitar a interceptação telefônica; ii) o pedido foi elaborado de modo isolado, sem fundamento em uma ação penal, investigação policial ou ação civil; iii) a interceptação da linha telefônica da ADECON foi requerida pelo sargento (...) sem nenhuma explicação; iv) o Pedido de Censura não foi anexado a um processo penal ou investigação policial; v) as decisões que autorizaram os pedidos não foram fundamentadas; e vi) o Ministério Público não foi notificado acerca do procedimento.”

A juíza rejeitou o pedido de nulidade mas determinou a queima das fitas, o que acabou ocorrendo somente 2 (dois) anos depois, em 2002.

De outro lado, em 1999, o MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra e a CPT – Comissão Pastoral da Terra apresentaram ao Ministério Público representação criminal contra o ex-secretário de segurança e membros da Casa Militar, além da juíza que atuou no caso, face ao suposto cometimento de crimes, entre eles, a usurpação da função pública[xvii], interceptação telefônica ilegal[xviii], divulgação de segredo de justiça e abuso de autoridade[xix].

No julgamento da notitia criminis o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná arquivou a investigação quanto a interceptação telefônica e determinou que a conduta do ex secretário de segurança, de divulgar o conteúdo interceptado, fosse analisada pelo juízo de 1º. grau. Em 2001, concluída a investigação, o parquet apresentou denúncia contra o ex secretário de segurança, que restou condenado. Entretanto, em 2004, o Tribunal de Justiça, em sede de apelação, absolveu-o sustentando que “o apelante não quebrou o sigilo dos dados obtidos pela interceptação telefônica, uma vez que não se pode quebrar [...] o sigilo de dados que já haviam sido divulgados no dia anterior em rede de televisão”.

No mesmo ano de 1999 (outubro) as vítimas da interceptação telefônica ilegal, bem como as associações representantes, COANA e ADECON, manejaram mandado de segurança contra a então juíza de Loanda requerendo a suspensão das interceptações telefônicas e a destruição das fitas gravadas. O mandamus foi rejeitado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, sem julgamento do mérito, sob argumento de perda de objeto, pois as interceptações já teriam cessado. Quanto a destruição das fitas o Tribunal de Justiça restou silente, e em sede de embargos de declaração considerou não poder analisar tal ponto, visto que o mandamental havia sido extinto sem julgamento do mérito.

Também em 1999, os mesmos representantes apresentaram denúncia administrativa contra a juíza do caso. A corregedoria entendeu que a matéria já havia sido exaustivamente analisada na investigação criminal em que a juíza havia sido absolvida e arquivou a denúncia. Ressalte-se que, em 2007, atendendo recomendação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República enviou o caso para o  CNJ - Conselho Nacional de Justiça e este recusou o caso entendendo que não havia “interesse procedimental”.

Em 2011 o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná julgou ações cíveis requerendo indenização por danos morais contra o Estado do Paraná, apresentadas por Arlei José Escher e Dalton Luciano de Vargas, em 2004 e 2007, respectivamente:

“APELAÇÃO CÍVEL ­ RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR ATO TÍPICO DE JURISDIÇÃO ­ DECISÃO JUDICIAL QUE, DESPROVIDA DE FUNDAMENTAÇÃO E SEM ATENDER AOS REQUISITOS COGENTES PREVISTOS NA LEI Nº 9296/1996, PERMITE A VIOLAÇÃO DE SIGILO DAS LIGAÇÕES TELEFÔNICAS ATINGINDO, ASSIM, A ESFERA DE PRIVACIDADE DO APELANTE (ART. 5º, X DA CF/88)­ PEDIDO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS DAÍ DECORRENTES JULGADO IMPROCEDENTE SOB O ARGUMENTO DE QUE O ESTADO NÃO RESPONDE CIVILMENTE POR ATOS TÍPICOS DA JURISDIÇÃO, COM EXCEÇÃO DAQUELES PREVISTOS NO ART. 5º, LXXV DA CF ­ ANTINOMIA APARENTE ENTRE OS ARTS. 5º, X, 5º, LXXV E 37, § 6º, TODOS DA CF/88 ­ RESOLUÇÃO, COM FOCO NO DIREITO INTERNO, QUE SE DÁ PELO PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE ­ SENTENÇA, CONTUDO, QUE DEIXA DE CONSIDERAR A EXISTÊNCIA DE CONVENCÃO INTERNACIONAL SOBRE DIREITOS HUMANOS (PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA), DA QUAL A REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL É SIGNATÁRIA ­ NECESSIDADE DE INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA E DIALÓGICA ENTRE AS DISPOSIÇÕES CONVENCIONAIS QUE VERSEM SOBRE DIREITOS HUMANOS E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL ­ PREVALÊNCIA DO TEXTO NORMATIVO QUE AMPLIA E EFETIVAMENTE GARANTE A PROIBIÇÃO À INGERÊNCIA ARBITRÁRIA NA INTIMIDADE E PRIVACIDADE DAS PESSOAS ­ ATO JUDICIAL, DESPROVIDO DE MÍNIMA FUNDAMENTAÇÃO E QUE, POR ISSO, DÁ AZO À VIOLAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS DO CIDADÃO QUE SÃO PROTEGIDOS NÃO SÓ PELO TEXTO CONSTITUCIONAL, MAS TAMBÉM PELO PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA ­ VIOLAÇÃO QUE, INEGAVELMENTE, GERA DANO MORAL ­ OBRIGAÇÃO DO ESTADO EM REPARAR O DANO, ANTE A SUA RESPONSABILIDADE OBJETIVA POR ATO DE SEUS AGENTES ­ NEXO CAUSAL BEM DELINEADO ­ DEVER DE REPARAR O DANO MORAL EXPERIMENTADO PELO APELANTE BEM CARACTERIZADO ­ APELAÇÃO PROVIDA PARA JULGAR PROCEDENTE O PEDIDO INICIAL, COM INVERSÃO DOS ÔNUS DA SUCUMBÊNCIA. (TJPR - 3ª C. Cível - AC - 772898-3 - Curitiba - Rel.: Desembargador Fernando Antonio Prazeres - Unânime - J. 23.08.2011)” (TJ-PR - APL: 7728983 PR 772898-3 (Acórdão), Relator: Desembargador Fernando Antonio Prazeres, Data de Julgamento: 23/08/2011, 3ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ: 706 31/08/2011)

  1. Da aplicação da legislação ao caso concreto

            Apesar das conversas telefônicas não estarem expressamente previstas no art. 11 da Convenção Americana, entendeu a Corte na análise do Caso Escher que “trata-se de uma forma de comunicação incluída no âmbito de proteção da vida privada. O artigo 11 protege as conversas realizadas através das linhas telefônicas instaladas nas residências particulares ou nos escritórios, seja seu conteúdo relacionado a assuntos privados do interlocutor, seja com o negócio ou a atividade profissional que desenvolva. Desse modo, o artigo 11 aplica-se às conversas telefônicas independentemente do conteúdo destas, inclusive, pode compreender tanto as operações técnicas dirigidas a registrar esse conteúdo, mediante sua gravação e escuta, como qualquer outro elemento do processo comunicativo, como, por exemplo, o destino das chamadas que saem ou a origem daquelas que ingressam; a identidade dos interlocutores; a frequência, hora e duração das chamadas; ou aspectos que podem ser constatados sem necessidade de registrar o conteúdo da chamada através da gravação das conversas. Finalmente, a proteção à vida privada se concretiza com o direito a que sujeitos distintos dos interlocutores não conheçam ilicitamente o conteúdo das conversas telefônicas ou de outros aspectos, como os já elencados, próprios do processo de comunicação”. Já antevendo novas formas de comunicação mencionou a decisão que “Esse progresso, especialmente quando se trata de interceptações e gravações telefônicas, não significa que as pessoas devam estar em uma situação de vulnerabilidade frente ao Estado ou aos particulares. Portanto, o Estado deve assumir um compromisso com o fim adequar aos tempos atuais as fórmulas tradicionais de proteção do direito à vida privada.”

Conclui-se, portanto,que a Convenção Americana protege o caráter inviolável das comunicações frente a qualquer abusividade, seja ela Estatal ou particular.

Por seu turno o Estado Brasileiro reconheceu a garantia constitucional a vida privada e apontou o seu caráter não absoluto, especialmente frente ao artigo 30[xx] da Convenção e ao artigo 5º, X[xxi] da Constituição Federal. Asseverou que qualquer vício ocorrido no procedimento de interceptação telefônica não resultou em violação de direitos humanos e que eventuais falhas seriam causa de nulidade de eventual ação penal e jamais prejuízo à honra ou à dignidade das pessoas envolvidas. Sustentou que as fitas contendo o material interceptado não foram utilizadas como prova contra as vítimas em ação penal e que estas foram incineradas “de ofício” em 2002. Asseverou ainda, que o art. 6º[xxii] da Lei 9296/96 não exige notificação prévia do representante do Ministério Público.

A Comissão Interamericana, em sua análise do caso, apontou que “a interceptação e o monitoramento das comunicações telefônicas ou de outro tipo, ainda que formulada com a intenção de combater o crime, pode converter-se em um instrumento de espionagem e perseguição por sua irregular interpretação e aplicação.” Apontou em seu relatório que o monitoramento, solicitado por policial militar, portanto, pessoa não autorizada constitucionalmente[xxiii], foi requerida para uma linha telefônica pertencente a organização COANA, não havendo que se falar sequer em requerimento para interceptar o terminal telefônico da organização ADECON, e a sua violação sem autorização violou frontalmente a Lei 9296/96, em seu artigo 10.

A Comissão ao decidir que interceptação telefônica foi realmente abusiva, apontou que a decisão que a autorizou foi “ilegal, ilegítima e nula”, por não ter observado que: “i) as supostas vítimas não estavam submetidas a uma investigação criminal; ii) a interceptação das linhas telefônicas durou 49 dias e o Estado não juntou provas tendentes a demonstrar que, concluído o período inicial de 15 dias, se  outorgaram ampliações; iii) a decisão que autorizou a interceptação ‘não foi devidamente fundamentada, não indicou a forma em que devia ter realizado a  diligência, nem o prazo pelo qual devia ela se estender’; e iv) o Ministério Público não foi notificado de sua emissão, tudo isso em oposição aos artigos 5º e 6º da Lei No. 9.296/96.”

Importante mencionar quanto ao requerimento de destruição das fitas contendo as gravações, num total de 123, a Comissão Interamericana considerou que a negativa do Poder Judiciário “de destruir as 123 fitas magnetofônicas obtidas mediante o monitoramento dos números telefônicos da COANA e da ADECON violou o direito à intimidade de seus proprietários, Arlei José Escher, Dalton Luciano de Vargas, Delfino José Becker, Pedro Alves Cabral e Celso Aghinoni”.

A violação da Constituição Federal, e também da Lei 9296/96, ficou patente aos olhos da Comissão pelo fato da então juíza da Comarca de Loanda não ter observado os requisitos legais para conceder a medida, vale dizer, indícios de crimes e sua autoria, tampouco indispensabilidade da prova para instrução penal. Também por não ter o agente da Polícia Militar competência para tal requerimento visto que os supostos crimes eram comuns e portanto de competência da polícia civil, e finalmente, que o Ministério Público não foi intimado quanto ao requerimento de interceptação.

O vigente Estado policial vem sendo antevisto por muitos, entre eles RENATO MARCÃO (2004):

É inegável, entretanto, que a soma das atividades desenvolvidas pela criminalidade organizada, e também pela desorganizada, atemoriza a todos e reclama especial atenção. Entretanto, essa mesma atenção, não menos especial, também é preciso que se tenha em relação às atividades do Estado, desenvolvidas no enfrentamento do problema criminal, notadamente no campo das práticas investigativas, onde não raras vezes nos defrontamos com ilícitos os mais variados; com violações flagrantes que se perpetuam impunes ao longo do tempo.

 

  1. Da análise de legitimidade da interceptação telefônica realizada no presente caso concreto

Nas palavras da Corte, para que tal interceptação fosse legítima deveria cumprir os seguintes requisitos: “a) estar prevista em lei, b) perseguir um fim legítimo e c) ser idônea, necessária e proporcional. Em consequência, a falta de algum desses requisitos implica que a ingerência seja contrária à Convenção.”

Como dito, existe previsão legal para a interceptação telefônica, sendo a Lei 9296/96 regulamentadora da matéria.

Ocorre que a decisão da Corte apontou que o fim não era legítimo e a motivação estava desvinculada de qualquer procedimento de investigação, o que afrontou o artigo 1º[xxiv] da Lei 9.296/96. Apesar dos requerentes de uma e de outra interceptação telefônica terem mencionado supostos desvios de verbas e até mesmo o homicídio de Eduardo Aghinoni, não havia investigação de nenhum destes fatos, sendo que o pedido tramitou de forma isolada, em discordância com o disposto no art. 8º [xxv]da Lei 9296/96.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos apontou ainda que os requerimentos de interceptação telefônica contrariaram os artigos 2º[xxvi] e 4º[xxvii] da Lei 9.296/96, pois não se mencionou no pedido, tampouco na decisão que a autorizou, quais eram os fortes indícios de autoria presentes ao caso, tampouco quais seriam os meios para realizar a interceptação e qual o seu objeto. Sequer se mencionou a existência de outras provas que pudessem ser realizadas para alcançar o mesmo resultado.

Ainda asseverou que os pedidos, formulados por policiais militares, só poderiam, neste caso, ter sido formulados por policiais civis, por força do art. 144 da Constituição Federal, afinal, tratavam-se de supostos crimes de competência da polícia civil. Foram, inclusive, ouvidos dois peritos que assim se manifestaram: “tomando-se em conta a existência de uma investigação em curso, facilmente se poderá saber a quem caberá esse pedido. Se essa investigação estiver a cargo da polícia civil, normalmente a autoridade policial é o delegado de polícia ou o Secretário da Segurança Pública” (foi perita a atualmente Ministra do Superior Tribunal de Justiça, Maria Thereza Rocha de Assis Moura). Também o perito Luiz Flávio Gomes assinalou que “essa autoridade policial pode ser militar, na hipótese de investigação militar”. Diante disso, a Corte considerou que não foi observado o artigo 3º[xxviii] da Lei 9296/96.

Restou também violado o art. 5º[xxix] da referida Lei 9296/96, pois a decisão que autorizou a interceptação não foi fundamentada, tampouco foi fixado prazo para tal diligência. A Corte ressalta sistematicamente em sua jurisprudência que decisões que afetem direitos humanos devem ser sempre fundamentadas, sob pena de restarem caracterizadas como arbitrárias. No caso concreto, a Corte constatou que “A magistrada não expôs em sua decisão a análise dos requisitos legais nem os elementos que a motivaram a conceder a medida, nem a forma e o prazo em que se realizaria a diligência, a qual implicaria a restrição de um direito fundamental das supostas vítimas em descumprimento ao artigo 5º da Lei No. 9.296/96.”

Anote-se que a primeira interceptação durou 13 (treze) dias e a segunda 22 (vinte e dois dias), o que frontalmente violou o prazo de 15 (quinze) dias renováveis por mais 15 (quinze), em conformidade com o já mencionado art. 5º da Lei 9296/96. O segundo período de interceptação ocorreu sem autorização do juízo competente violando o art. 10 da referida Lei, e constituindo, por si só, fato criminoso.

A decisão da então juíza de Loanda afrontou também o artigo 6º da Lei 9296/96 visto que a concessão da medida não foi comunicada ao Ministério Público e este não pode acompanhar a diligência. Inclusive o parágrafo 1º do referido artigo restou violado pois as transcrições do material interceptado não foram encartadas aos autos.

Houve ainda quebra de sigilo dos dados obtidos através da interceptação telefônica. Não tendo estes dados caráter público, ao “vazar” para imprensa tais informações os agente públicos descumpriram seu dever legal, e violaram a honra, a vida privada e a dignidade das vítimas, tudo conforme os artigos 11, 30 e 32.2[xxx] da Convenção Americana. A Corte considerou que a divulgação de seu conteúdo ocorreu de modo “descontextualizado”, bem como “as atividades dos membros da COANA e da ADECON” foram “desqualificadas”. Não tendo sido preservado o sigilo das gravações obtidas através da interceptação telefônica restou violado o art. 8º da Lei 9296/96, sendo que o art. 10º da mesma lei tipifica tal conduta como crime.

A Corte ao concluir que houve violação da Lei 9296/96, em seus artigos 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 8º, 10º apontou que “o Estado violou o direito à vida privada, reconhecido no artigo 11 da Convenção Americana, em relação com a obrigação consagrada no artigo 1.1 do mesmo tratado em prejuízo de Arlei José Escher, Dalton Luciano de Vargas, Delfino José Becker, Pedro Alves Cabral e Celso Aghinoni.”

Restou evidenciado, portanto, a abusiva intromissão na vida privada, honra e reputação das vítimas.

 

  1. Da violação das garantias judiciais quanto a proteção judicial

Asseverou a Comissão Americana que “a inexistência de um recurso efetivo contra as violações dos direitos reconhecidos pela Convenção constitui uma transgressão desse mesmo instrumento pelo Estado Parte, deixando as pessoas indefesas. Manifestou que não basta que os recursos existam formalmente, mas também é preciso que seja efetiva sua aplicação pela autoridade competente.”

Neste sentido importante destacar os artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana:

            Artigo 8.1: “Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.”

Artigo 25.1: “Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.”

A violação das garantias judiciais, bem como da proteção judicial, teriam ocorrido, segundo a Comissão Interamericana, diante das inúmeras irregularidades já apontadas no presente trabalho, como autorização de interceptação telefônica em contrariedade ao previsto na Lei 9296/96; a contrariedade ao artigo 5º, XII da Constituição Federal; a ausência de fundamentação da decisão judicial que autorizou a interceptação em afronta ao artigo 93, IX da Constituição Federal; a divulgação dos diálogos interceptados pelas autoridades públicas; a ausência de intimação do Ministério Público, entre outras.

Entretanto, a Corte entendeu que neste caso não houve ofensa aos artigos supramencionados.

 

  1. Da efetiva condenação do Estado Brasileiro a reparação dos danos imateriais e outras formas de reparação

Vigora no Direito Internacional princípio basilar segundo o qual toda violação a obrigação contraída através de Tratado deve ser reparada, sendo que no presente caso concreto tal fundamento vem regulado no art. 63.1[xxxi] da Convenção Americana.

Analisando os argumentos das associações representantes, aceitas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, e os argumentos do Estado Brasileiro a Corte estabeleceu medidas de reparação as violações de direitos humanos que entendeu cometidas.

Apesar de requerida indenização por dano material, fixada com base na retirada média de um pequeno agricultor, a Corte Interamericana entendeu que a mesmo não seria aplicável ao caso devido “à falta de elementos que comprovem que as essas perdas realmente ocorreram e, eventualmente, quais teriam sido.”

Já quanto ao dano imaterial, que na jurisprudência da Corte “pode compreender tanto os sofrimentos e as aflições causadas à vítima direta e aos que lhe são próximos, como o menosprezo de valores muito significativos para as pessoas, e outras perturbações que não são suscetíveis de medição pecuniária”, a Corte Interamericana entendeu que a reparação ao mesmo era devida.

Nas palavras da Comissão Interamericana as vítimas “passaram por sofrimento psicológico, angústia, incerteza e mudanças pessoais, em virtude da intromissão indevida em sua vida privada e em sua correspondência, da divulgação arbitrária de suas conversas e comunicações, da denegação de justiça pelos fatos de que foram vítimas, apesar de se encontrarem os autores plenamente identificados, e das consequências, pessoais e profissionais, desses fatos”. Os representantes argumentaram ainda que a interceptação telefônica visava “criminalizar o movimento social [...], na tentativa de imputar aos seus membros [a autoria] de atos ilegais” e requereram que o valor fosse fixado em U$ 50.000,0 (cinqüenta mil dólares) para cada vítima.

É preciso ressaltar que a jurisprudência da Corte entende que a simples existência de sentença declaratória de violação de direitos humanos constitui forma de reparação.  Neste caso, entretanto, além da sentença, a Corte estabeleceu a quantia de U$ 20.000,00 (vinte mil dólares) para cada vítima, por entender que efetivamente houve violação aos direitos humanos, consubstanciada na vida privada, honra e dignidade das vítimas, tudo por conta dos fatos relatados e especificamente pela interceptação telefônica e sua divulgação, além de violação aos direitos de associação.

A Corte fixou o prazo de 12 meses para que o pagamento fosse efetuado, prazo este contado da notificação da sentença proferida.

Também foi acatada a solicitação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e foi ordenado que o Estado Brasileiro, num prazo de 6 (seis) meses publicasse em Diário Oficial, bem como, em um jornal de grande circulação nacional, e noutro de circulação no Estado do Paraná, a sentença, especificamente os “Capítulos I, VI a XI, sem as notas de rodapé, e a parte resolutiva da presente Sentença, como medida de satisfação.”

Ainda, determinou que em 2 (dois) meses a decisão fosse publicada, in totum, em site oficial da União e do Estado do Paraná.  A determinação para publicação da sentença supriu, segundo decisão da Corte, o requerimento da Comissão Interamericana para que houvesse ato de desagravo com “reconhecimento público de responsabilidade internacional” pelas violações aos direitos humanos. Da mesma forma o requerimento da Comissão para “investigar, julgar e, se for o caso, sancionar os responsáveis pelas violações aos direitos humanos” foi entendido como suprido diante da publicação da sentença e da fixação de pagamento por danos imateriais, salvo quanto a divulgação dos diálogos interceptados que deverão ser investigados pelo Estado Brasileiro.

A Comissão Interamericana requereu também que o Estado Brasileiro adotasse “medidas destinadas à formação dos funcionários da justiça e da polícia, relativamente aos limites de suas funções e investigações em cumprimento ao dever de respeitar o direito à privacidade”. Por sua vez, o Brasil informou que implementou diversos cursos de direitos humanos “com ênfase no direito à privacidade e à liberdade de associação”, citando a Escola da Magistratura do Paraná, Escola de Servidores de Justiça do Estado do Paraná e Cursos de Formação da Polícia Civil e Militar do Estado do Paraná.

O Estado Brasileiro foi condenado a pagar as custas processuais no prazo de um ano, sendo que o cumprimento da sentença será supervisionado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e através do Decreto 7158/2010 “autorizou a secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República a dar cumprimento a sentença exarada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos”.

 

  1. Conclusão

 É preciso, por força constitucional, e também frente as normas de Direito Internacional, bem fixadas na citada Convenção, respeitar as normas regulamentadoras da interceptação telefônica, especialmente esgotando a busca de todas as provas possíveis antes da autorização da quebra do sigilo telefônico.

Ao analisar o requerimento de interceptação telefônica a autoridade judicial deverá fundamentar sua decisão, estabelecendo o prazo para tal medida, e cientificando o ministério público para que acompanhe a medida.

Da análise da legislação brasileira e também frente a Convenção Americana de Direitos Humanos este instrumento de investigação policial, de grave repercussão na vida privada, honra e dignidade de qualquer cidadão, só pode ser utilizado nas restritas hipóteses previstas em lei, sob pena de nulidade do processo, mas também, de condenação do Estado Brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos.


[i] Advogado, Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUC/PR. Vice-presidente do IBDPE.


[ii] Em sentido contrário a possibilidade de decretar-se a interceptação telefônica de ofício posiciona-se Vanessa Curti Perenha Gasques: “A previsão legal da possibilidade do juiz determinar ´ex officio´ a INTERCEPTAÇÃO das comunicações telefônicas, destoa completamente do sistema jurídico processual adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro, que é o acusatório. A iniciativa na busca de provas com a finalidade de demonstrar a autoria do delito imputado ao réu é função que foi atribuída ao órgão ministerial e não ao Juiz.” E conclui: “O modelo acusatório de processo não admite que o magistrado tenha amplos poderes investigatórios. A iniciativa probatória do julgador deve restringir-se à elucidação de questões ou pontos duvidosos sobre o material já trazido pelas partes, nos termos do art. 156 do Código de Processo Penal. O Código de Processo Penal deve ser interpretado à luz da Constituição, pois esta prevê todo um sistema de garantia individual que permite concluir pela adoção do modelo acusatório de processo.” (GASQUES, V.C.P. 2004)

[iii] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 93, inc. IX. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios: (...) todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.

[iv] Nas palavras de Luciano Feldens: “Seja na perspectiva da teoria externa dos direitos fundamentais (o direito encontra barreiras exteriores, que limitam seu exercício), seja na perspectiva de sua teoria interna (o âmbito de proteção do direito é, desde já, estabelecido por limites imanentes, que se incorporam ao seu conteúdo), são cinco os requisitos constitucionais que condicionam a validade da intervenção estatal em casos tais: (a) existência de lei regulamentadora (atendido pela Lei 9.296/96); (b) finalidade de investigação criminal ou instrução processual penal; (c) ordem judicial – em todo o caso, devidamente fundamentada (artigo 93, inciso IX, da CF); (d) observância às hipóteses legais autorizadoras da medida; e, também, (e) obediência à forma estabelecida em lei. (FELDENS, L. 2010. p. 05)

[v] COSTA RICA. Convenção Americana de Direitos Humanos de 22 de novembro de 1969. Art. 11. 1. Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade 2.  Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação. 3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas.

[vi] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 5º, inc. XII. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer; (...).

[vii] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 5º, inc. V. (...) é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem.

[viii] COSTA RICA. Convenção Americana de Direitos Humanos de 22 de novembro de 1969. Art. 32. 1. Toda pessoa tem deveres para com a família, a comunidade e a humanidade. 2. Os direitos de cada pessoa são limitados pelos direitos dos demais, pela segurança de todos e pelas justas exigências do bem comum, em uma sociedade democrática.

[ix] Nas palavras de Valério de Oliveira Mazzuolli: “(...) a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (popularmente conhecida como Pacto de San José da Costa Rica) é o principal instrumento de proteção dos direitos civis e políticos já concluído no Continente Americano, e o que confere suporte axiológico e completude a todas as legislações internas dos seus Estados-partes.” (MAZUOLI, V.O. 2010. p. 18)

[x] COSTA RICA. Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 22 de novembro de 1969. Art. 62. 1.Todo Estado Parte pode, no momento do depósito do seu instrumento de ratificação desta Convenção ou de adesão a ela, ou em qualquer momento posterior, declarar que reconhece como obrigatória, de pleno direito e sem convenção especial, a competência da Corte em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação desta Convenção. 2. A declaração pode ser feita incondicionalmente, ou sob condição de reciprocidade, por prazo determinado ou para casos específicos.  Deverá ser apresentada ao Secretário-Geral da Organização, que encaminhará cópias da mesma aos outros Estados membros da Organização e ao Secretário da Corte.3. A Corte tem competência para conhecer de qualquer caso relativo à interpretação e aplicação das disposições desta Convenção que lhe seja submetido, desde que os Estados Partes no caso tenham reconhecido ou reconheçam a referida competência, seja por declaração especial, como prevêem os incisos anteriores, seja por convenção especial.

[xi] COSTA RICA. Convenção Americana de Direitos Humanos de 22 de novembro de 1969. Art. 8.1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.

[xii] COSTA RICA. Convenção Americana de Direitos Humanos de 22 de novembro de 1969: Art. 11. Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade. 2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação.3.Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas.

[xiii] COSTA RICA. Convenção Americana de Direitos Humanos de 22 de novembro de 1969. Art. 16. 1. Todas as pessoas têm o direito de associar-se livremente com fins ideológicos, religiosos, políticos, econômicos, trabalhistas, sociais, culturais, desportivos ou de qualquer outra natureza. 2. O exercício de tal direito só pode estar sujeito às restrições previstas pela lei que sejam necessárias, numa sociedade democrática, no interesse da segurança nacional, da segurança ou da ordem públicas, ou para proteger a saúde ou a moral públicas ou os direitos e liberdades das demais pessoas. 3. O disposto neste artigo não impede a imposição de restrições legais, e mesmo a privação do exercício do direito de associação, aos membros das forças armadas e da polícia.

[xiv] Costa RICA. Convenção Americana de Direitos Humanos de 22 de novembro de 1969. Art. 25.1.Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais. 2. Os Estados Partes comprometem-se: a. a assegurar que a autoridade competente prevista pelo sistema legal do Estado decida sobre os direitos de toda pessoa que interpuser tal recurso; b. a desenvolver as possibilidades de recurso judicial; e c. a assegurar o cumprimento, pelas autoridades competentes, de toda decisão em que se tenha considerado procedente o recurso.

[xv] COSTA RICA. Convenção Americana de Direitos Humanos de 22 de novembro de 1969. Art. 50.1. Se não se chegar a uma solução, e dentro do prazo que for fixado pelo Estatuto da Comissão, esta redigirá um relatório no qual exporá os fatos e suas conclusões.  Se o relatório não representar, no todo ou em parte, o acordo unânime dos membros da Comissão, qualquer deles poderá agregar ao referido relatório seu voto em separado.  Também se agregarão ao relatório as exposições verbais ou escritas que houverem sido feitas pelos interessados em virtude do inciso 1, e, do artigo 48. 2. O relatório será encaminhado aos Estados interessados, aos quais não será facultado publicá-lo. 3. Ao encaminhar o relatório, a Comissão pode formular as proposições e recomendações que julgar adequadas.

[xvi] COSTA RICA. Convenção Americana de Direitos Humanos de 22 de novembro de 1969. Art. 33. São competentes para conhecer dos assuntos relacionados com o cumprimento dos compromissos assumidos pelos Estados Partes nesta Convenção: a. a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, doravante denominada a Comissão; e b. a Corte Interamericana de Direitos Humanos, doravante denominada a Corte.

[xvii] BRASIL. Código Penal, Decreto-Lei nº 2.848 de 1940. Art. 328. Usurpar o exercício de função pública: Pena - detenção, de três meses a dois anos, e multa.

[xviii] BRASIL. Lei nº 9296 de 1996. Art. 10. Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei. Pena: reclusão, de dois a quatro anos, e multa.

[xix] BRASIL. Lei nº 4898 de 1965.

[xx] COSTA RICA. Convenção Americana de Direitos Humanos de 22 de novembro de 1969. Art. 30. As restrições permitidas, de acordo com esta Convenção, ao gozo e exercício dos direitos e liberdades nela reconhecidos, não podem ser aplicadas senão de acordo com leis que forem promulgadas por motivo de interesse geral e com o propósito para o qual houverem sido estabelecidas.

[xxi] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 5º, inc. X Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

[xxii] BRASIL. Lei nº 9296 de 1996. Art. 6º. Deferido o pedido, a autoridade policial conduzirá os procedimentos de interceptação, dando ciência ao Ministério Público, que poderá acompanhar a sua realização.      § 1° No caso de a diligência possibilitar a gravação da comunicação interceptada, será determinada a sua transcrição. § 2° Cumprida a diligência, a autoridade policial encaminhará o resultado da interceptação ao juiz, acompanhado de auto circunstanciado, que deverá conter o resumo das operações realizadas. § 3° Recebidos esses elementos, o juiz determinará a providência do art. 8°, ciente o Ministério Público.

[xxiii] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:  I - polícia federal;  II - polícia rodoviária federal;  III - polícia ferroviária federal;  IV - polícias civis; V - polícias militares e corpos de bombeiros militares. (...) § 4º - às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares. § 5º - às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil. Destaque-se que os supostos crimes eram de natureza comum, portanto de competência da Polícia Civil, não podendo um policial militar requerer a interceptação, também sob a ótica do art. 3º. da Lei 9296/96, segundo o qual: A interceptação das comunicações telefônicas poderá ser determinada pelo juiz, de ofício ou a requerimento: I - da autoridade policial, na investigação criminal; II - do representante do Ministério Público, na investigação criminal e na instrução processual penal.

[xxiv] BRASIL. Lei nº 9296 de 1996. Art. 1º. A interceptação de comunicações telefônicas, de qualquer natureza, para prova em investigação criminal e em instrução processual penal, observará o disposto nesta Lei e dependerá de ordem do juiz competente da ação principal, sob segredo de justiça. Parágrafo único. O disposto nesta Lei aplica-se à interceptação do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática.

[xxv] BRASIL. Lei nº 9296 de 1996. Art. 8º. A interceptação de comunicação telefônica, de qualquer natureza, ocorrerá em autos apartados, apensados aos autos do inquérito policial ou do processo criminal, preservando-se o sigilo das diligências, gravações e transcrições respectivas. Parágrafo único. A apensação somente poderá ser realizada imediatamente antes do relatório da autoridade, quando se tratar de inquérito policial (Código de Processo Penal, art.10, § 1°) ou na conclusão do processo ao juiz para o despacho decorrente do disposto nos arts. 407, 502 ou 538 do Código de Processo Penal.

[xxvi] BRASIL. Lei nº 9296 de 1996. Art. 2º Não será admitida a interceptação de comunicações telefônicas quando ocorrer qualquer das seguintes hipóteses: I - não houver indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal; II - a prova puder ser feita por outros meios disponíveis; III - o fato investigado constituir infração penal punida, no máximo, com pena de detenção. Parágrafo único. Em qualquer hipótese deve ser descrita com clareza a situação objeto da investigação, inclusive com a indicação e qualificação dos investigados, salvo impossibilidade manifesta, devidamente justificada.

[xxvii] BRASIL. Lei nº 9296 de 1996. Art. 4º O pedido de interceptação de comunicação telefônica conterá a demonstração de que a sua realização é necessária à apuração de infração penal, com indicação dos meios a serem empregados. § 1° Excepcionalmente, o juiz poderá admitir que o pedido seja formulado verbalmente, desde que estejam presentes os pressupostos que autorizem a interceptação, caso em que a concessão será condicionada à sua redução a termo. § 2° O juiz, no prazo máximo de vinte e quatro horas, decidirá sobre o pedido.

[xxviii] BRASIL. Lei nº 9296 de 1996. Art. 3º. A interceptação das comunicações telefônicas poderá ser determinada pelo juiz, de ofício ou a requerimento: I - da autoridade policial, na investigação criminal; II - do representante do Ministério Público, na investigação criminal e na instrução processual penal.

[xxix] BRASIL. Lei nº 9296 de 1996. Art. 5º A decisão será fundamentada, sob pena de nulidade, indicando também a forma de execução da diligência, que não poderá exceder o prazo de quinze dias, renovável por igual tempo uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova.

[xxx] COSTA RICA. Convenção Americana de Direitos Humanos de 22 de novembro de 1969. Art. 32.2. Os direitos de cada pessoa são limitados pelos direitos dos demais, pela segurança de todos e pelas justas exigências do bem comum, numa sociedade democrática.

[xxxi] COSTA RICA. Convenção Americana de Direitos Humanos de 22 de novembro de 1969. Art. 63 – 1. Quando decidir que houve violação de um direito ou liberdade protegidos nesta Convenção, a Corte determinará que se assegure ao prejudicado o gozo do seu direito ou liberdade violados. Determinará também, se isso for procedente, que sejam reparadas as conseqüências da medida ou situação que haja configurado a violação desses direitos, bem como o pagamento de indenização justa à parte lesada.


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A conexão probatória nos maxiprocessos: riscos de manipulação e limites interpretativos

Por Lívia Yuen Ngan Moscatelli[i] e Roberto Portugal de Biazi[ii]

 

Uma das notas características da criminalidade econômica é o seu grau de sofisticação, geralmente marcada pela multiplicidade de autores e de ações delitivas, as quais se desenvolvem em diversas localidades, seja em território nacional ou até mesmo fora dele (transnacionalidade/multinacionalidade). Por isso, o objeto de análise do Direito Penal Econômico é, no mais das vezes, complexo, arrojado, além de tratar da tutela de bens jurídicos difusos, pluriofensivos e/ou de perigo, demandando a reanálise conjunta dos institutos do Direito Penal e Processual Penal clássicos.

Esses fatores compõem alguns dos motivos pelos quais tem se tornado cada vez mais comum nos depararmos com os assim denominados maxiprocessos[iii], geralmente oriundos de operações policiais que, quando deflagradas, empreendem medidas em vários estados da federação.

Das inúmeras repercussões que esse (ainda) novo contexto gera, em especial pela confusão processual entre diversas ações penais e investigações, certamente merece atenção a questão do juiz natural e, portanto, da fixação da competência. Vale dizer, é preciso analisar como operam as regras processuais que determinarão a qual (ou quais) órgão jurisdicional competirá processar e julgar aludidos maxiprocessos, ainda que venham a ser cindidos, sem se olvidar das garantias asseguradas constitucional e convencionalmente.

Neste contexto, exsurge a importância da adequada aplicação das regras de prorrogação de competência, notadamente da conexão instrumental ou probatória (art. 76, III, CPP), por se tratar de hipótese com ampla margem interpretativa. É essa a proposta do presente artigo. Porém, para tanto, é preciso estabelecer, de partida, uma premissa necessária: o conteúdo da garantia do juiz natural e suas reverberações nas regras processuais.

A Constituição Federal estabelece, em seu artigo 5º, incisos LIII e XXXVII, que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente” e que “não haverá juízo ou tribunal de exceção”. Com isso, ela previu a garantia do juiz natural em um duplo aspecto: um positivo, que assegura o direito ao juiz competente (inciso LIII); e outro negativo, que veda a criação de tribunais de exceção (inciso XXXVII)[iv].

Ademais, o Brasil é signatário de tratados internacionais de direitos humanos, integrantes do ordenamento jurídico pátrio, que asseguram expressamente a garantia do juiz natural. Neste sentido, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP), em seu artigo 14.1, dispõe que “Toda pessoa terá o direito de ser ouvida publicamente e com devidas garantias por um tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido por lei (...)”, enquanto o artigo 8.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) prevê que “Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei (...)”[v].

Ressalte-se que, na estrutura ideal do Estado Democrático de Direito, dificilmente as autoridades se valeriam de medidas ostensivas de manipulação da competência para atender determinados interesses, de tal sorte que uma forma sutil de violação do juiz natural seria justamente a designação do juiz competente ex post factum (ou seja, a partir do fato passado), alterando determinados critérios de fixação ou prorrogação da competência, com efeitos imediatos em investigações e processos em andamento e em prejuízo do acusado, ou fazendo com que um caso penal seja atribuído a um determinado juiz. Por tais razões, afirma Gustavo Badaró que “as normas que definem o juiz competente devem estabelecer critérios gerais, abstratos e objetivos de determinação de competência, não se admitindo qualquer possibilidade de alteração de tais critérios por atos discricionários de quem quer que seja”[vi].

Não restam dúvidas, portanto, que as regras de conexão, por incidirem na determinação da competência, devem ser interpretadas à luz da garantia do juiz natural. Para cada fato em concreto, há, supostamente, um único juiz ou tribunal competente. Na prática, este respeito nem sempre ocorre, não sendo incomum manipulações discricionárias motivadas pela distorcida hermenêutica das normas, muitas vezes a partir do instituto da conexão processual.

Em linhas gerais, a conexão pode ser definida como o nexo, liame ou junção entre duas ou mais condutas criminais, originárias de uma relação material anterior à existência do processo[vii]. Ocorrendo uma dependência recíproca, entre pessoas, coisas e os fatos entre si, deverá ser promovido julgamento conjunto.

Quanto às hipóteses de conexão intersubjetiva e objetiva (art. 76, incisos I e II do CPP), não há grande dificuldade o seu reconhecimento e aplicação. A situação se agrava com a modalidade probatória ou instrumental, definida como o liame mais sensível, tênue e impreciso de conexão de causas[viii] e que ocorre quando “a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra inflação” (art. 76, inciso III do CPP).

Antes de apontarmos os problemas decorrentes de sua incorreta aplicação, é fundamental compreender as causas e finalidades pelos quais ela foi concebida. Em primeiro lugar, a união de feitos evitaria a repetição inútil de atos processuais, como o aproveitamento da oitiva de uma mesma testemunha relevante que presenciou todos os crimes. É um ganho em celeridade e economia processual[ix].

Ela igualmente serve para evitar o risco da existência de decisões judiciais divergentes e contraditórias sobre fatos relacionados[x]. Imaginemos um processo já com condenação por lavagem de dinheiro, sendo que o processo do crime antecedente, que tramitou de forma separada, veio posteriormente a reconhecer a absoluta inexistência de fato delituoso, imperando a absolvição. Se as ações penais tramitassem em conjunto, certamente o resultado seria diferente, já que a “proveniência do produto ou proveito da infração penal antecedente é verdadeiro elemento normativo do tipo de lavagem”[xi].

Em um aspecto mais importante, a conexão probatória tem ganhos expressivos quando analisada em uma perspectiva epistemológica e heurística[xii], já que a verdade é um dos objetivos institucionais do processo[xiii] e um critério importante para a decisão[xiv]. Em determinados casos, somente com a união dos feitos é que se poderá ter um correto acertamento dos fatos e um melhor esclarecimento de ambos crimes, já que procedimentos separados possibilitarão apenas visões fracionárias e parciais[xv]. O julgador terá uma visão mais global da imputação, dos atores envolvidos, do contexto em que ambos crimes foram cometidos, das causas e finalidades do delito, situação em que poderá proferir uma decisão mais qualificada. Para além, o instituto pode aprimorar a paridade de armas entre a defesa e a acusação, já que o defensor passa a compreender a amplitude da imputação, e dependendo do caso, pode ser a única forma de se viabilizar a apreciação de determinada tese jurídica.

Entendendo sua importância, cumpre esclarecer que a redação do art. 76, inciso III do CPP não expressa qual é o grau de influência necessário para o reconhecimento da prorrogação de competência, o que resulta na união de processos a depender da casuística e dos critérios de oportunidade.

Dentro do espectro dos maxiprocessos, foi exatamente este fenômeno que ocorreu na Operação Lava-Jato. A 13aVara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba se declarava competente para julgar processos que não influíam no acervo probatório de outras ações penais, não tinham relação com o contexto da Petrobrás, como sequer haviam sido cometidos na área territorial que abrange a referida subseção judiciária, sob o argumento da incidência das regras de prevenção ou conexão probatória. Para Aury Lopes e Alexandre Morais da Rosa, criou-se até mesmo uma competência "conglobante" ou "esponja" em absorver o que não lhe era devido, em manifesta manipulação do juiz natural[xvi].

Fato igualmente grave foi denunciado por Gustavo Badaró ao afirmar que “A Operação Lava-Jato quer só a prorrogação da competência, mas não a unidade processual”[xvii]. O Juízo Federal, logo após reconhecer a existência da conexão probatória, imediata e discricionariamente determinava a separação dos processos, nos termos do art. 80 do CPP. Cabe lembrar que o referido artigo não autoriza que o juiz deixe de reunir os processos desde o início, mas somente possibilita a separação dos feitos que estavam anteriormente reunidos[xviii]. Em outras palavras, a crítica se perfaz no sentido que os processos nasciam separados, nunca eram reunidos e mesmo assim eram mantidos sob julgamento da 13aVara Federal, sendo que os efeitos benéficos da conexão sequer eram aproveitados.

Diante dessa desnaturação da aplicação das regras de conexão probatória, imprescindível uma correta delimitação da conceituação de qual será o grau necessário para o seu correto reconhecimento.

Para a corrente minoritária, “o interesse probatório vai além de qualquer relação de prejudicialidade penal”, de modo que o que importa é a relação probatória em que a mesma prova possa servir para o esclarecimento de ambos delitos[xix], bastando a mera demonstração desse interesse probatório para o reconhecimento da conexão instrumental.

Por outro lado, grande parte da doutrina defende que é necessária a exposição da efetiva influência e repercussão no conhecimento da prova para justificar a união dos processos[xx], com a demonstração da prejudicialidade homogênea entre os delitos[xxi].

Ao que parece, o STF tem adotado esse último entendimento, afinal, já afirmou que “o simples encontro fortuito de prova de infração que não possui relação com o objeto da investigação em andamento não enseja o simultaneus processus[xxii]. Posteriomente, na decisão paradigmática que admitiu o fatiamento da Operação Lava-Jato em sede do Inq 4130, a Suprema Corte definiu que “não há relação de dependência entre a apuração desses fatos e a investigação de fraudes e desvios de recursos no âmbito da Petrobras, a afastar a existência de conexão (art. 76, CPP) e de continência (art. 77, CPP) que pudessem ensejar o simultaneus processus[xxiii]. O Supremo Tribunal Federal já reiterou diversas vezes referido entendimento, consignando que “a identidade entre autores de crimes em tese praticados no âmbito de pessoas jurídicas diversas, por si só, não enseja a existência de conexão instrumental, quando não constatada que a prova relacionada a infrações penais supostamente ocorridas em uma pessoa jurídica possa influir decisivamente na prova de crimes cometidos em outra”[xxiv] (destacamos).

Portanto, ainda que seja de fundamental importância a previsão da hipótese da conexão probatória, em especial pelo seu potencial epistêmico, defendemos uma interpretação restritiva, que preze pelo incondicional respeito à garantia do juiz natural. A relação entre as causas deve ser evidente (ou decisiva, nas palavras do ex-Ministro Teori Zavascki), com uma concreta relação probatória entre as circunstâncias dos delitos, sob pena de atender determinados interesses políticos e criar maxiprocessos exagerados com uma grande quantidade de fases, apenas para justificar a manutenção de determinado julgador que sempre se afirme prevento, fazendo as vezes de um “juízo universal”.

Regra é garantia dentro do processo penal, ainda mais em tema de conexão, cujas hipóteses legais atinam com a garantia constitucional e convencional do juiz natural. Por isso, não há espaço para manipulações discricionárias dos critérios de fixação e de prorrogação da competência, sob pena de abrir-se margem a indevidos oportunismos. Enfim, a observância do devido processo legal (e de seus consectários) é imprescindível à própria preservação do Estado Democrático de Direito.


[i] Mestranda em Direito na Universidade de São Paulo, no Departamento de Direito Processual, subárea de Processo Penal e em raciocínio probatório pela Universitat de Girona (UDG) na Espanha. Pós-graduada em Direito Penal pela Universidade de Coimbra (IDPEE/IBCCRIM). Graduada em Direito na Universidade de São Paulo (USP). Advogada criminalista.

[ii] Mestrando em Direito na Universidade de São Paulo, no Departamento de Direito Processual, subárea de Processo Penal. Pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas (GVLaw). Pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra (IDPEE/IBCCRIM). Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado criminalista.


[iii] Os maxiprocessos possuem: (1) cobertura midiática massiva; (2) o gigantismo processual; (3) a confusão processual; (4) a mutação substancial domodelo clássico de legalidade penal; (5) o incremento da utilização dos meios investigação ou obtenção de prova. SANTORO, Antonio EduardoRamires. A imbricação entre maxiprocessos e colaboração premiada: o deslocamento do centro informativo para a fase investigatória na OperaçãoLava Jato. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v. 6, n. 1, p. 81-116, jan-abr. 2020. p. 88.

[iv] BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 124.

[v] Apesar da redação bastante similar ao PIDCP, a CADH se revela muito mais protetiva, na medida em que fez inserir o termo anteriormente. Como bem pontuou Sylvia Steiner, o Pacto de São José da Costa Rica exige “seja o juízo competente estabelecido com anterioridade, o que implica em afastar-se a possibilidade de alteração de competência em face da criação de novos tribunais ou juízos, posteriores à prática do delito” In: A convenção americana sobre direitos humanos e sua integração ao processo penal brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 113.

[vi] BADARÓ, Gustavo Henrique. A conexão no processo penal, segundo o princípio do juiz natural, e sua aplicação nos processos da operação Lava Jato. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 24, n. 122, p. 171-204, ago. 2016. Neste sentido: STF, RHC 107.453, Rel. Min. Gilmar Mendes, 2ª T, julgado em 13.09.2011.

[vii] XAVIER DE ALBUQUERQUE, Francisco Manoel. Aspectos da Conexão. Tese (Titular), Manaus, Faculdade de Direito do Amazonas, 1956, p. 29.

[viii] MARQUES, Frederico. Elementos do Processo Penal. vol. I. Campinas: Bookseller, 1997, p. 259.

[ix] ASSIS, Maria Thereza Rocha de. Da competência. In: GOMES FILHO, Antonio Magalhaes; TORON, Alberto Zacharias; BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy (Orgs). Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018. p. 251-308, p. 269.

[x] Ibidem, p. 269.

[xi] MENDONÇA, Andrey Borges. Do processo e julgamento da Lavagem de Dinheiro. In: Carla Veríssimo de Carli. (Org.). Lavagem de Dinheiro: Prevenção e Controle Penal. 2. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2013, p. 483-610, p. 594.

[xii] BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI; Pierpaolo Cruz. Lavagem de Dinheiro: Aspectos penais e processuais penais. Comentários à Lei 9.613/1998, com alterações da Lei 12.683/2012. 4a ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 302.

[xiii] MATIDA, Janaina; MASCARENHAS, Marcella; HERDY, Rachel. No processo penal, a verdade dos fatos é garantia. CONJUR. Disponível em: https://bit.ly/3br0BVX. Acesso em 04 set. 2020.

[xiv] TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. Trad. de Vitor de Paula Ramos. São Paulo, Marcial Pons, 2012. p. 160.

[xv] BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI; Pierpaolo Cruz. Lavagem de Dinheiro: Aspectos penais e processuais penais, op. cit, p. 302.

[xvi] LOPES, Aury; ROSA, Alexandre Morais da. Supremo pode ter retirado a competência de Sergio Moro. CONJUR. Disponível em: https://bit.ly/32LIh5Y. Acesso em 1 set. 2020.

[xvii] BADARÓ, Gustavo Henrique. Conexão no processo penal, op. cit., p. 186.

[xviii] BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI; Pierpaolo Cruz. Lavagem de Dinheiro, op. cit., p. 322.

[xix] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 13a ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 309.

[xx] ASSIS, Maria Thereza Rocha de. Da competência, op. cit., p. 270.

[xxi] Nesse sentido: BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI; Pierpaolo Cruz. Lavagem de Dinheiro, op. cit., p. 304; PEDROSO, Fernando de Almeida. Competência penal: doutrina e jurisprudência. 2. Ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2007. p. 87-88; ASSIS, Maria Thereza Rocha de. Da competência, op. cit., p. 270.

[xxii] STF, RHC 120.379/RO, Rel. Min. Luiz Fux, 1a Turma, julgado em 26.08.2014.

[xxiii] STF, Questão de Ordem no Inq 4130, Rel. Dias Toffoli, Pleno, julgado em 23.09.2015.

[xxiv] STF, Pet 5862, Relator Min. Teori Zavascki, Segunda Turma, julgado em 15.03.2016. Em sentido semelhante: “O juízo que homologa o acordo de colaboração premiada não é, necessariamente, competente para o processamento de todos os fatos relatados no âmbito das declarações dos colaboradores” (STF, Pet 7074, Rel. Min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 29.06.2017).


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Limites à solidariedade no sequestro dos proventos do crime

Por Guilherme Brenner Lucchesi[1] e Ivan Navarro Zonta[2]

 

Sob a ideia de que o “o crime não compensa” (ou não deveria compensar), verifica-se crescente patrimonialização da repressão criminal. São inúmeras as manchetes e notícias alardeiam o “bloqueio de milhões em paraísos fiscais”, a apreensão de veículos e obras de arte de valor estratosférico”, “a recuperação de bilhões aos cofres públicos” etc.

O direito penal parece passar por mutação gradual da forma com a qual o Ministério Público e o juízo criminal aplicam dispositivos já existentes na lei penal e processual penal, que permitem alcançar o patrimônio do agente delituoso. Como exemplo, as próprias medidas assecuratórias previstas há décadas no CPP, mas que até poucos anos sequer eram objeto de atenção em comparação às penas corporais.

Isso contribui para um cenário desafiador, em que o profissional e o estudioso do direito penal enfrentam cada vez maior dificuldade para delimitar com exatidão os limites da responsabilização pecuniária decorrente de um fato delituoso. Embora a sentença condenatória, via de regra, defina estritamente todas as penas e efeitos da condenação, antes desse marco processual ainda não se pode delimitar com segurança — mesmo quanto aplicadas medidas assecuratórias tais quais o sequestro — quais serão os efeitos patrimoniais incidentes sobre cada investigado ou acusado.

E mais: em se tratando de delitos perpetrados por diversos agentes, com efeitos danosos e/ou de enriquecimento que ultrapassa a esfera individual do patrimônio de cada um dos autores, esbarra-se na dificultosa tarefa de delimitar se, quando e quanto do patrimônio de cada agente deve responder pelo dano e enriquecimento decorrentes da atividade conjunta.

Isso dá margem, muitas vezes, a violações às garantias ne bis in idem e de intranscendência das sanções penais, que se abatem sobre direito que, assim como a liberdade de locomoção, é fundamental e assegurado com destaque pela Constituição: a propriedade.

A desatenção dada ao alcance patrimonial da persecução penal no cenário pátrio, em comparação com a relevância atual dos instrumentos de constrição de bens e valores manejados na prática, fica evidente com o tratamento dado pelo CPP às ditas medidas assecuratórias disciplinadas nos seus arts. 125 a 144-A.

Muitas vezes as medidas instrumentais aplicadas na fase investigatória ou ao longo do processo, visando assegurar bens destinados à reparação de danos e/ou ao perdimento de proventos do crime, não tomam a forma estrita das medidas previstas no CPP. Com crescente frequência, tem-se visualizado a aplicação de medidas amorfas, seguindo linhas práticas do processo civil ou outros diplomas legais, que priorizam o bloqueio de valores em contas, poupanças e fundos de investimentos, ou mesmo um bloqueio de bens genérico que tampouco se amolda às medidas assecuratórias.

No caso do sequestro, este se aplica “bens imóveis, adquiridos pelo indiciado com os proventos da infração, ainda que já tenham sido transferidos a terceiro” (art. 125), desde que haja “indícios veementes da proveniência ilícita dos bens” (art. 126). Denote-se então que, para decretação do sequestro, será necessário evidenciar indícios veementes de que os bens foram adquiridos com proventos da infração, consistindo, portanto, em provento indireto da atividade criminosa. A finalidade imediata desse instrumento é assegurar a decretação final de perdimento dos bens (art. 133).

A operacionalização das medidas assecuratórias só pode ser corretamente compreendida e efetivada com respeito aos limites estabelecidos pelo legislador acaso se retroceda a análise para um ponto elementar precedente: os efeitos patrimoniais da condenação penal.[3]

A sentença penal condenatória tem como efeito genérico declarar a obrigação de reparar os danos causados pelo crime ou o determinar o perdimento de bens e valores provenientes de infração penal ou utilizados para a sua prática.

Ao se falar em reparação de dano, o Código Civil permite a solidariedade da obrigação a que concorrer mais de um credor, obrigando todos à satisfação da dívida (art. 264, CC). Em outras palavras, o ato ilícito (art. 186, CC) que tomar forma de crime ensejará a obrigação de reparar o dano (art. 927, CC), à qual responderão solidariamente todos os autores (art. 942, CC). Com a sentença penal condenatória, torna-se certa esta obrigação (art. 91, I, CP) que, diante das regras que regem a responsabilidade civil, pode ser exigida de quaisquer dos condenados. O perdimento, contudo, não obedece à mesma lógica.

Em se tratando de sanção penal propriamente dita, vige o princípio da intranscendência, insculpido na no inciso XLV do art. 5.º da Constituição, o qual determina de forma clara que “nenhuma pena passará da pessoa do condenado”.

Contudo, no tocante ao produto do crime ou qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido em decorrência do ilícito, somente se poderá decretar o perdimento contra o próprio autor do fato delituoso ou, quando muito, contra quem tiver recebido bens ou valores provenientes da prática do ilícito. Nesse último caso, o perdimento estará limitado ao valor transferido. O perdimento dos proventos do crime, naturalmente, exige que tenha havido enriquecimento ilícito por parte daquele que virá a ser alvo da decretação.

Conjugando-se (i) a limitação da solidariedade passiva à obrigação de reparação do dano, (ii) o princípio da intranscendência das penas e (iii) os limites claros das exceções constitucionais ao referido princípio, tem-se por certo que a decretação de perdimento dos proventos do crime não pode se dar de forma solidária entre os coautores de um ilícito penal e/ou entre corréus em um mesmo feito, ainda que todos venham a ser condenados.

Em suma, diferentemente da obrigação solidária de reparar o dano causado, os limites da decretação de perdimento deverão obedecer estritamente ao exato montante do enriquecimento ilícito que cada autor do fato criminoso auferiu, admitindo-se extensão tão somente se houve transferência de proventos entre eles. Não se poderá, dessa forma, decretar o perdimento de bens e valores contra um determinado réu condenado, a fim de punir eventual enriquecimento ilícito auferido por outro réu.

Tendo em vista a referibilidade das medidas assecuratórias, e tendo em vista que o sequestro tem por finalidade assegurar o perdimento, o sequestro não poderá ser aplicado quanto a patrimônio lícito e que não decorra, na forma de provento indireto, de valor ou proveito obtido com a prática delituosa.

Neste caso, em se tratando de imputação de enriquecimento ilícito a algum dos autores, não se poderá falar em solidariedade. Diferentemente da obrigação solidária de reparar o dano causado, os limites da decretação de perdimento devem obedecer estritamente ao exato montante do enriquecimento ilícito que cada autor do fato criminoso auferiu.

Por conseguinte, considerando que a finalidade do sequestro está relacionada ao perdimento, tem-se que o sequestro somente poderá incidir sobre instrumentos, produtos e proventos da atividade criminosa e no estrito limite do enriquecimento ilícito auferido pelo agente.

Tem-se, portanto, que essa medida não poderá ser aplicada em limite superior ao que cada coautor tenha percebido como enriquecimento ilícito próprio. Em suma, o sequestro não poderá ser aplicado conforme a lógica da solidariedade, sendo inviável que se aplique tal constrição em quantum superior ao que o agente efetivamente percebeu como produto e proventos do crime.[4]


[1] Professor de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da UFPR. Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR (CAPES 6). Doutor em Direito pela UFPR. Master of Laws pela Cornell Law School. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico – IBDPE. Advogado sócio da Lucchesi Advocacia.

[2] Mestrando em Direito na UFPR. Advogado sócio da Lucchesi Advocacia.


[3] “Cada um dos efeitos da condenação — pessoal e patrimonial — conta com medida cautelar, prevista no Código de Processo Penal, destinada a acautelá-la no curso da persecução penal.” SAAD, Marta. Prisão processual para recuperação de ativos: uma prática desfuncionalizada. In: MALAN, Diogo; BADARÓ, Gustavo; ZILLI, Marcos; MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis; SAAD, Marta; MORAES, Maurício Zanoide de (org.). Processo penal humanista: escritos em homenagem a Antonio Magalhães Gomes Filho. Belo Horizonte: D’Plácido, 2019. p. 267.

[4] Para uma visão aprofundada do tema, ver LUCCHESI, Guilherme Brenner; ZONTA, Ivan Navarro. Sequestro dos proventos do crime: limites à solidariedade na decretação de medidas assecuratórias. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 6, n. 2, p. 735-764, mai./ago. 2020.


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Concurso de pessoas na criminalidade econômica: a dogmática entre a efetividade e a garantia de direitos

Por Michael Procopio Ribeiro Alves Avelar[i]

 

Nada demonstra melhor a dicotomia e a corda-bamba em que vive o Direito Penal do que a metáfora da espada e da balança, de Christine Van den Wyngaert[ii]. O direito penal, em sua relação com os direitos humanos, possui uma função de proteção e um poder de violação, a depender, como todo medicamento, da dose aplicada. Um direito penal – e, nesse ponto, deve ser concebido conjuntamente com o Processo Penal, em sua instrumentalidade – que não alcança condutas violadoras de bens jurídicos fundamentais é ineficaz e potencial ofensor de direitos humanos. Entretanto, a sua chancela a um poder estatal ilimitado e imoderado – ao sabor de um Estado absolutista – que sujeite os seus súditos a sanções e males ao seu alvedrio, sob o argumento sempre atrativo da ordem e do respeito, e que preencha as lacunas de punibilidade, a título de proteção de direitos “dos cidadãos”, na verdade mais os infringe do que os protege.

Nadar contra a correnteza é tentar demonstrar essa dualidade e a necessidade de conter o poder estatal, na notável expressão de Isaiah Berlin[iii]. Isso se torna especialmente problemático em um mundo – não é um fenômeno exclusivamente brasileiro – em que se fala em uma sociedade de risco[iv] e na qual, como bem delineado por Silva Sanchez, é mais fácil ao sujeito comum se empatizar com a vítima do que com o autor do delito[v], ainda que a esfera de criminalização de novos interesses – como direitos autorais, ambientais e tributários – torne grande parte da sociedade agentes de condutas criminosas, ou, em um labelling approach– “delinquentes”[vi]. Não mais se olha para o punido pelo Estado como um de nós, mas como aquele que mereceu, mesmo em tempos de crescente menção a ideias cristãs – uma interpretação livre em que a prostituta, no final das contas, mereceu e, por isso, deve ser apedrejada.

Retornando à dicotomia das funções ofensiva e defensiva do Direito Penal, ela se torna mais evidente em crimes violentos e grandes – aquele núcleo de um chamado Direito Penal Tradicional – em que os delitos, de resultado, violam diretamente interesses de importância vital para vítimas determinadas, com nome e sobrenome. É o caso do homicídio. Seja tentado ou consumado, há uma vítima – in memoriam ou no banco do Judiciário – a reclamar de toda a sociedade que se puna o sujeito acusado. Frise-se que até mesmo essa diferença entre acusado e culpado parece cada vez mais distante da opinião comum, como se o flagrante substituísse todos escritos e avanços da processualística e atestasse a culpa de forma irrevogável, apesar da comoção geral que causa um filme como À Espera de um Milagre.

Torna-se evidente, comprovada a prática do homicídio ou do estupro – que haja um sistema apto a repelir os crimes, já que, a despeito das críticas – como a visão agnóstica de Zaffaroni[vii] – a nossa legislação optou pelas ideias de repressão e retribuição[viii]. Partindo da legislação e mesmo de uma respeitável posição doutrinária pela função preventiva da pena[ix], a punição dos crimes violentos é uma necessidade que ressoa da valoração paralela da esfera do profano[x], se possível a analogia, sem necessidade de nenhum recurso a fundamentos jusfilosóficos.

Ocorre que a espiritualização do Direito Penal, com a tutela de bens jurídicos cada vez mais coletivos, sem uma vítima individualizada, começa a retirar aquela sensação popular de que crime é uma coisa grave e a causar confusão social – “Mas eu já paguei a multa ambiental, por que existe esse processo de novo?” – sobre os limites e a própria função das normais penais. Na criminalidade econômica isso se torna bastante evidente, já que as vítimas estão pulverizadas e os interesses são mais difusos.

Não se quer dizer, com isso, que condutas como a lavagem de dinheiro, que trouxe um esforço da comunidade internacional para a harmonização do direito interno e do internacional[xi], não mereça repressão penal, mas sim que a correlação entre proteção de bens jurídicos por meio da restrição de liberdades públicas se torna ainda mais abstrata e de difícil apreensão. De todo modo, há uma necessidade de garantia da liberdade econômica e, mais do que isso, um interesse social nítido de atração de investimentos – como sói acontecer em um país que se diz em desenvolvimento – o que, claro, deve levar a uma análise econômica dos riscos de incriminação de dirigentes da pessoa jurídica no caso de sua atuação no território brasileiro[xii]. Como realce do paradoxo, um direito penal inefetivo torna possível a inserção de capital proveniente de atividades criminosas, inclusive do rentável tráfico de entorpecentes, desequilibrando o mercado com o sacrifício da livre concorrência[xiii].

É nesse ponto que se torna interessante a crítica doutrinária sobre a concepção jurisprudencial brasileira de domínio do fato, a qual levaria a uma punição por um domínio pela posição, ou seja, a possibilidade de punição de alguém pela posição que ostenta em determinada corporação, como se lhe fosse obrigatório conhecer e coibir qualquer prática delitiva nas suas estruturas, sob pena de responder pessoalmente pelo ocorrido[xiv]. A ideia é deveras sedutora, mormente quando se pensa na seletividade penal que impera no país, com as condutas das camadas mais pobres sendo punidas de forma mais dura e mais frequentemente levadas ao Judiciário, ou, como destacam com maestria Zaffaroni e Batista, a punição da “obra tosca”[xv] – nossos ramos de polícia investigativa, sem a estrutura necessária, acabam por desvendar quase sempre o crime praticado de forma menos sofisticada e, por isso, mais evidente aos olhos,  o que torna esse tipo de delito quase a totalidade das punições efetivadas pelas agências oficiais.

Entretanto, a seletividade penal deve levar a discussões que tornem todos igualmente responsabilizáveis nos limites da lei, e não encarcerar a todos para demonstrar que há uma igualdade na exclusão de direitos, ao método Simão Bacamarte, que, com a genialidade machadiana, demonstra os perigos de procurar encontrar traços de desvios em cada indivíduo.

Daí advém a crescente crítica doutrinária de se imputarem os fatos cometidos na empresa aos seus dirigentes a partir de um domínio pela posição ocupada. É evidente a necessidade de punição de atos cometidos por meio de estruturas empresariais, em que o indivíduo que decide praticar condutas nocivas à sociedade se esconde em estruturas hierárquicas complexas e burocráticas, a justificar, inclusive, em uma coculpabilidade às avessas, uma individualização da pena que lhe enseje uma punição com rigor maior do que ao autor da “obra tosca”, de parcos recursos, que atenta contra o mesmo bem jurídico[xvi]. Entretanto, tal punição deve passar por toda a análise dogmática, por meio da majoritária visão tripartite de delito, com a imputação do resultado caso a conduta represente sua conditio sine qua non, filtro inafastável pela previsão da cabeça do artigo 13, que pode, claro, ser aperfeiçoada (e restringida) pela avançada teoria da imputação objetiva.

Partindo-se da imputação do resultado ao agente, aí sim é possível lançar mão da teoria do domínio do fato, que busca diferenciar autores e partícipes, e não aumentar o âmbito de imputação de resultados típicos. Ainda que nosso Código Penal não diferencie abertamente autores e partícipes, o artigo 29, em seus parágrafos, refere-se à participação, o que não deve ser interpretado como se o legislador utilizasse palavras inúteis[xvii], partindo-se da presunção de palavras em sentido não jurídico, e não o contrário. Deve-se partir da conceituação dada pela ciência jurídica, sob pena de os termos se tornarem inúteis e a legislação comportar qualquer interpretação[xviii]. Não se argumenta que o artigo 29, em seu caput, não deixou aberta a possibilidade acolhimento de uma concepção unitária de autoria. O que se pode depreender dos parágrafos do artigo 29, no entanto, é uma referência à participação, o que deveria levar a doutrina e a jurisprudência a se dedicarem a uma diferenciação técnica entre as figuras, com a desejada aplicação do artigo 66 do Código Penal, encampador da atenuante genérica, como válvula de escape legislativa para hipóteses em que a pena aplicada não otimizaria em grau adequado o princípio da individualização.

A agravante genérica, portanto, pode ser aplicada a todos os partícipes, como forma de diferenciar o seu tratamento dos autores, inclusive quando os dirigentes das pessoas jurídicas apresentam conduta acessória, sem demonstrar a configuração de verdadeira coautoria, o que não pode decorrer nem de uma responsabilidade pela posição ocupada, muito menos de uma correção a fórceps da seletividade penal. Lado outro, a coautoria, por meio do domínio funcional, ou mesmo a autoria no âmbito do domínio da vontade, por meio de aparato organizado de poder – ambas especificações da teoria do domínio do fato, devem ser analisadas com base nos seus requisitos científicos, sob pena de uso de rótulos sem conteúdo, malversação de teorias específicas[xix] e desconsideração do princípio da culpabilidade.

A autoria dos dirigentes por meio de aparatos organizados de poder deve enfrentar a argumentação a respeito da necessidade ou não de a organização ser apartada da sua ordem jurídica, requisito imposto pelo maior estudioso do tema, Claus Roxin[xx]. Ainda que se conceba ser possível eliminar tal requisito, adotando posição doutrinária diversa daquela defendida pelo autor alemão, é preciso, ainda, enfrentar o tema da fungibilidade dos executores, um dos requisitos necessários para se conceber a existência de um autor por trás de outro autor, ambos responsáveis por seus atos[xxi]. Em organizações empresariais cada vez maiores e mais complexas, a fungibilidade pode esbarrar na especialização dos funcionários, como no caso do contador que consegue mascarar ganhos e ocultar bens derivados da sonegação tributária, o que, segundo o entendimento jurisprudencial pátrio, pode configurar o crime de lavagem de dinheiro. Quando maior a especialização do funcionário e o maior know-how por ele detido, mais difícil se torna a argumentação a favor de sua fungibilidade na execução típica[xxii].

Já sob o manto da coautoria é possível analisar a conduta do sujeito que, do alto comando de uma pessoa jurídica, determine a prática de condutas delitivas aos subordinados. A punição do sujeito como autor teria a crítica da ausência de execução, por si mesmo, de atos típicos ou, em outros termos, seu envolvimento direto na fase executória. Interessante, nesse campo, a visão de Muñoz Conde, para quem seria possível analisar o domínio funcional na perspectiva de uma coautoria, mesmo que um dos agentes não participe da execução propriamente dita. Em outros termos, o jurista espanhol defende a aplicação de uma concepção de coautoria desvinculada das amarras da coexecução típica, como uma “realização conjunta”, interpretação mais adequada ao direito penal econômico, em que as condutas não são delineadas como nos crimes tradicionais, como no homicídio, com estruturas mais facilmente compartimentáveis[xxiii].

Já em linhas conclusivas, o que se deve buscar é uma melhor fundamentação técnico-científica da punição, o que garanta previsibilidade e, assim, segurança jurídica, com limites nítidos entre a atividade empresarial de risco e atividades ilícitas cometidas por meio de estruturas organizacionais. Se os anseios de um direito penal liberal, limitado em nome da convivência democrática, não comovem muito, quem sabe a necessidade econômica, cuja voz ressoa mais forte, possa demonstrar a adequação de se estabelecerem limites técnico-científicos mais rígidos entre a gestão empresarial, que necessariamente abrange riscos, e a atividade delitiva, sobre a qual a coerção deve ser eficaz até mesmo pela garantia da livre concorrência. Em uma sociedade avessa aos riscos que o seu próprio afã de desenvolvimento cria, essas externalidades devem ser punidas com observância de todo um aparato dogmático-legislativo, custo necessário para que a segurança jurídica impere nas atividades econômicas, protegendo o seu livre exercício e punindo apenas o que o ordenamento jurídico realmente permita, na correta medida de sua culpabilidade.


[i] Especialista em Filosofia e Teoria do Direito pela PUC Minas e em Justiça Constitucional e Tutela Jurisdicional dos Direitos Fundamentais pela Universidade de Pisa. Mestrando em Direito Penal pela Faculdade de Direito da USP. Juiz Federal.

[ii] TULKENS, Françoise. The paradoxical relationship between criminal law and human rights. Journal of International Criminal Justice, vol. 9, no. 3, July 2011, p.577-578.

[iii] CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto. A humanização do direito internacional. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 113.

[iv] BECH, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2011, passim.

[v] SILVA SANCHEZ, Jesús María. La expansión del Derecho penal. 3ª ed. Madrid: Edisofer S. L., 2011, p. 46-57.

[vi] BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 6 ed. Rio de Janeiro: Editora Reva, 2001, p. 85-100.

[vii] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro, volume I, 4ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 74.

[viii] Artigo 59, caput, do Código Penal.

[ix] PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte geral e parte especial. 18 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 267-269.

[x] Em sentido diverso do empregado, mas com a origem aceita da expressão: MEZGER, Edmund. Derecho Penal. Libro de Estudio. Parte General. Traducción de Conrado A. Finzi. Santiago: Ediciones Olejnik, 2019, p. 204.

[xi] BLANCO CORDERO, Isidoro. El delito de blanqueo de capitales. 4ª ed. Navarra: Arazandi, 2015, p. 110-205.

[xii] POSNER, Richard A. Para além do direito. Tradução de Evandro Ferreira e Silva. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 450-467.

[xiii] BOTTINI, Pierpaolo. Lavagem de dinheiro. Aspectos Penais. In: BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais; comentários à Lei 6.613/1998, com as alterações da Lei 12.683/2012. 4 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomsom Reuters Brasil, 2019. 82-85.

[xiv] LEITE, Alaor. Domínio do fato, domínio da organização e responsabilidade penal por fatos de terceiros. Os conceitos de autor e partícipe na AP 470 do Supremo Tribunal Federal. In: GRECO, Luís et al. Autoria como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 145-151.

[xv] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; Batista, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro, volume I, 4ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011, 3ª reimp., 2017, p. 46-51.

[xvi] MOURA, Grégore Moreira. O princípio da Co-culpabilidade no Direito Penal. Belo Horizonte: D’Plácido, 2006, passim.

[xvii] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 20 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 91.

[xviii] GRAU, Eros. Por que tenho medo dos juízes (a interpretação/aplicação do direito e princípios). 7 ed. refundida do ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São Paulo, Malheiros, 2016, p. 90-94.

[xix] GRECO, Luís; LEITE, Alaor. O que é e o que não é a teoria do domínio do fato. Sobre a distinção entre autor e partícipe no Direito Penal. In: GRECO, Luís et al. Autoria como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 19-45.

[xx] ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I. Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. Traducción y notas Diego-Manuel Luzón Peña (Director), Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Thomson Reuters, 2008, p. 111-125.

[xxi] GRECO, Luís; ASSIS, Adriano. O que significa a teoria do domínio do fato para a criminalidade de empresa. In: GRECO, Luís et al. Autoria como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 102-106.

[xxii] MUÑOZ CONDE, Francisco. Problemas de autoría y participación en el derecho penal económico, o ¿cómo imputar a título de autores a las personas que, sin realizar acciones ejecutivas, deciden la realización de un delito en el ámbito de la delincuencia económica empresarial? In: Manuales de formación continuada, n. 14, 2001, ISBN 84-89230-81-1, p. 80.

[xxiii] MUÑOZ CONDE, Francisco. Op. Cit., p. 93-94.


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O princípio da especialidade em cooperação jurídica internacional e o compartilhamento de provas obtidas em procedimento de colaboração premiada

Por João Rafael de Oliveira[i]

 

O princípio da especialidade tem origem no direito internacional, deriva de tratados internacionais, e tem por escopo tanto proteger a soberania do Estado quanto à pessoa investigada ou extraditada[ii].

Na extradição o princípio da especialidade proíbe que o Estado solicitante exerça qualquer ação jurídica que vá além dos delitos mencionados no pedido de extradição. Isto é, como regra o Estado não poderá processar ou punir o extraditado por crimes outros não referenciados no procedimento de extradição, ressalvada a expressa autorização por parte do Estado solicitado.[iii]

No que diz respeito à assistência mútua ou cooperação, o princípio proíbe o Estado solicitante de utilizar os documentos e informações fornecidas para outros fins que não a punição das infrações pelas quais o Estado requerido concedeu sua cooperação.

Destarte, no campo da assistência mútua e/ou cooperação, o princípio da especialidade tem o efeito de limitar o uso pelo Estado solicitante de documentos e informações recebidas, proibindo, por exemplo, a utilização de informações recebidas para repressão de delitos pelos quais o Estado solicitante exclui sua cooperação (delitos políticos e militares, fiscais, monetários e econômicos) ou nos casos em que a concessão da cooperação compromete a soberania, a segurança, a ordem pública ou outros interesses essenciais do Estado solicitado.

Daí a importância de o pedido de cooperação jurídica internacional, em matéria penal, cumprir minimamente os requisitos necessários para seu deferimento. Tal núcleo fundamental está presente, entre outros diplomas normativos, na Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção[iv], no acordo de assistência jurídica em matéria penal celebrado com o governo dos Estados Unidos da América[v], Tratado de Cooperação Jurídica em Matéria Penal entre o Brasil e a Confederação Suíça[vi] e Protocolo de Assistência Jurídica Mútua em Assuntos Penais do Mercosul[vii].

Em todos estes diplomas normativos há expressa referência ao conteúdo do princípio da especialidade que, como já visto, limita a utilização das provas encaminhados pelo Estado solicitado ao que foi expressamente requerido pelo Estado solicitante.

Com efeito, o que se pretende ponderar no presente estudo é se a aplicação do princípio da especialidade pode alcançar os elementos de provas obtidos em colaboração premiada, e, mais do que isso, se o Estado solicitado pode exigir a aderência aos termos do acordo para o compartilhamento de provas.        

Como cediço, a colaboração premiada, a rigor, tem natureza consensual e pressupõe acordo entre as partes, no qual, inclusive, o acusado abre mão de várias garantias constitucionais, tais como não autoincriminação, duplo grau de jurisdição, etc.

É justamente por essa característica que ganha relevância o debate sobre o compartilhamento e respectiva utilização das provas fornecidas pelo colaborador, ou arrecadadas a partir das informações por ele prestadas, em processos distintos daquele em que foi celebrado o acordo.

Com efeito, dos diplomas normativos acima mencionados se extrai, sem qualquer dúvida, a restrição ao uso da prova somente no procedimento penal mencionado no pedido de cooperação ou assistência mútua, ressalvada a possibilidade de solicitação expressa por parte do Estado requerente de utilização em outros procedimentos, cuja autorização e eventual imposição de condições ficará sob deliberação do Estado solicitado.

A pergunta que se impõe é seguinte: não havendo nenhuma regulamentação expressa nos tratados internacionais, pode o Estado solicitado condicionar o uso da prova obtida à adesão aos termos do acordo para, por exemplo, impedir que sejam utilizadas contra o réu colaborador?

Tal problema surgiu no âmbito da denominada Operação Lava Jato, mormente em torno da colaboração premiada celebrada pela empresa Odebrecht, supostamente envolvida em crimes de corrupção ocorridos em outros países. A celeuma foi tamanha que a Procuradoria Geral da República chegou a expedir, em junho de 2017, a seguinte nota sobre o assunto:

“(...) Segundo o secretário de cooperação internacional, Vladimir Aras, as condições exigidas para o cumprimento dos pedidos de assistência jurídica internacional são fundadas em tratados internacionais. Tais tratados permitem ao Estado requerido estabelecer requisitos para o atendimento dos pedidos estrangeiros. Além disso, os países rogados podem rejeitar o cumprimento de solicitações que violem a “ordem pública” e conceitos relacionados à legalidade, ao respeito aos direitos fundamentais e ao interesse público. “Se as condições exigidas pela lei brasileira – permitidas pelos tratados e derivadas dos princípios de direito internacional – não forem aceitas pelo Estado solicitante, por impossibilidade legal conforme a lei desse país, o Estado brasileiro não pode, com base em suas próprias leis, entregar as provas ao MP requerente”, explica.

Na relação do Brasil com Estados estrangeiros a imposição de condições para atendimento a pedidos de cooperação é corriqueira. Há vários casos em que a Suíça exigiu do Brasil a observância do princípio da especialidade. O mesmo se dá com outras nações, como recentemente ocorreu com solicitação, por Israel, de idêntico compromisso ao Brasil.

No caso da Odebrecht, o Estado brasileiro deve respeito à Lei 12.850/2013 (Lei do Crime Organizado) e à Lei 12.846/2013 (Lei Anticorrupção), no que se refere aos acordos de colaboração premiada e de leniência. Cumpre às autoridades brasileiras fazer valer os tratados internacionais vigentes, sejam bilaterais ou multilaterais, que autorizam tais condições. De igual modo, o MPF deve cumprir os acordos que firmou com os investigados, acordos estes devidamente homologados em juízo. Deste modo, a entrega de provas a Estados requerentes deve observar os princípios da especialidade, da ampla defesa e da boa-fé. Isso não significa, todavia, que os países solicitantes devam conceder imunidade ou benefícios ilegais aos colaboradores. Significa apenas que o Brasil não está autorizado a enviar ao exterior provas fornecidas por colaboradores, não podendo tampouco facultar a coleta de depoimentos desses mesmos colaboradores, sem a imposição de limites ao uso da prova voluntariamente fornecida por eles.[viii]

Sobre o tema o Ministério Público Federal emitiu posteriormente a Orientação Conjunta n° 1/2018:

As provas decorrentes do acordo de colaboração premiada poderão ser compartilhadas com outros órgãos e autoridades públicas nacionais, para fins cíveis, fiscais e administrativos, e com autoridades públicas estrangeiras, inclusive para fins criminais, com a ressalva de que tais provas não poderão ser utilizadas contra os próprios colaboradores para produzir punições além daquelas pactuadas no acordo. Esta ressalva deve ser expressamente comunicada ao destinatário da prova, com a informação de que se trata de uma limitação intrínseca e subjetiva de validade do uso da prova, nos termos da Nota Técnica nº 01/2017, da 5ª Câmara de Coordenação e Revisão.

Essas normativas passaram a incidir em acordos de colaboração premiada firmados no âmbito da Operação Lava Jato em forma de cláusulas específicas de limitação do compartilhamento e uso da prova por parte da autoridade estrangeira: “O Ministério Público Federal e, no âmbito de suas atribuições, qualquer outro ente administrativo que venha a ter acesso às provas resultantes deste acordo, somente prestará cooperação jurídica internacional de qualquer natureza que envolva acesso a qualquer informação ou elemento de prova resultante da colaboração ora pactuada, bem como ao próprio colaborador, se a autoridade estrangeira celebrar com o colaborador acordo ou lhe fizer proposta formal de acordo cujo efeito exoneratório seja, no mínimo, equivalente ao do presente acordo. (Cláusula 21, acordo na PET 6.138-STF). 32 A autoridade estrangeira ainda deverá “indicar, fundamentadamente, que seu ordenamento jurídico também lhe confere competência sobre os fatos objetivo desse acordo” (cláusula 20, parágrafo único, acordo na PET 6.138-STF)”[ix].

Levando-se em consideração a natureza consensual da colaboração premiada e, principalmente, o fato de que quando o acusado opta por cooperar ele abre mão de exercer resistência à acusação e, por conseguinte, espontaneamente renuncia garantias processuais (não autoincriminação, duplo grau de jurisdição, autodefesa, etc), parece acertada a posição do Ministério Público Federal em condicionar o uso da prova, pela autoridade estrangeira,  à adesão aos termos da colaboração, principalmente a de não utilização (ou uso condicionado) em desfavor do réu colaborador.[x]

Embora não seja objeto específico do presente estudo, cabe assentar que a “especialização” da prova obtida com a colaboração premiada também se aplica no âmbito interno. Vale dizer, as informações arrecadadas em procedimento de colaboração premiada, em regra, não podem ser irrestritamente compartilhada para órgãos de outras esferas (cível, administrativo, fiscal).

A fim de preservar a segurança jurídica, previsibilidade e, sobretudo, o próprio instituto da colaboração premiada - cuja eficácia restou demonstrada nas grandes operações policiais deflagradas nos últimos anos no País -, impõe-se o condicionamento do uso da prova à adesão dos termos do acordo pelos órgãos interessados (TCU, CADE, RF).

Recentemente, no julgamento do Ag. Rg no Inquérito 4420-DF, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal enfrentou a temática do compartilhamento da prova obtida em acordo leniência, cujos contornos de consensualidade e cooperação são idênticos ao da colaboração, e entendeu por limitar o uso da prova à aderência aos termos estipulados no acordo. A ementa do acórdão espelha bem o entendimento do colegiado:

Penal e Processual Penal. 2. Compartilhamento de provas e acordo de leniência. 3. A possibilidade de compartilhamento de provas produzidas consensualmente para outras investigações não incluídas na abrangência do negócio jurídico pode colocar em risco a sua efetividade e a esfera de direitos dos imputados que consentirem em colaborar com a persecução estatal. 4. No caso em concreto, o inquérito civil investiga possível prática de ato que envolve imputado que não é abrangido pelo acordo de leniência em questão. 5. Contudo, deverão ser respeitados os termos do acordo em relação à agravante e aos demais aderentes, em caso de eventual prejuízo a tais pessoas. 6. Nego provimento ao agravo, mantendo a decisão impugnada e o compartilhamento de provas, observados os limites estabelecidos no acordo de leniência em relação à agravante e aos demais aderentes.

Conforme aponta VASCONCELOS, posteriormente, no julgamento do Agravo Regimental na Petição nº 7.065[xi], a Segunda Turma do STF reiterou tal entendimento, mantendo-se o compartilhamento de provas, mas se destacou que “deverá respeitar os termos do acordo em relação aos seus aderentes, em caso de eventual prejuízo a tais pessoas”.[xii]

Destarte, diante da natureza consensual da colaboração premiada, bem como e principalmente da necessária segurança jurídica e previsibilidade que deve reger o acordo de tal natureza, principalmente se levar em consideração que o acusado colaborador abre mão de suas garantias constitucionais para cooperar com Estado, impõe-se a “especialização” no compartilhamento das provas obtidas mediante acordo de colaboração premiada.


[i] Doutorando em Direito Constitucional no Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP. Mestre em Direito do Estado, com ênfase em direito processual penal pela UFPR. Professor de Direito Processual Penal do Centro Universitário Unibrasil. Coordenador da pós-graduação em direito penal e processual penal da ABDCONST. Advogado Criminalista.

[ii] ZIMMERMMANN, Robert. Remise anticipée de renseignements et de moyens de preuve dans le cadre de l’entraide judiciaire internationale ? Un avant-projet défectueux. Disponível em: <Remise anticipée de renseignements et de moyens de preuve dans le cadre de l’entraide judiciaire internationale ? Un avant-projet défectueux>. Acesso em: 04 dez 2019

[iii] Idem. Capítulo do Manual do Bitencourt sobre extradição é bem feito, e explica isso também.

[iv] Promulgada no Brasil por meio do Decreto nº 5.687/06 que, ao que aqui importa, assim dispõe no artigo 46, item 19: O Estado Parte requerente não transmitirá nem utilizará, sem prévio consentimento do Estado Parte requerido, a informação ou as provas proporcionadas por este para investigações, processos ou ações judiciais distintas daquelas indicadas na solicitação. Nada do disposto no presente parágrafo impedirá que o Estado Parte requerente revele, em suas ações, informação ou provas que sejam fatores de absolvição de uma pessoa acusada. Neste último caso, o Estado Parte requerente notificará o Estado Parte requerido antes de revelar a informação ou as provas e, se assim solicitado, consultará o Estado Parte requerido. Se, em um caso excepcional, não for possível notificar este com antecipação, o Estado Parte requerente informará sem demora o Estado Parte requerido da mencionada revelação.

[v] Promulgado no Brasil pelo Decreto 3.810/01, o referido acordo bilateral prevê em seu artigo VII que: A Autoridade Central do Estado Requerido pode solicitar que o Estado Requerente deixe de usar qualquer informação ou prova obtida por força deste Acordo em investigação, inquérito, ação penal ou procedimentos outros que não aqueles descritos na solicitação, sem o prévio consentimento da Autoridade Central do Estado Requerido. Nesses casos, o Estado Requerente deverá respeitar as condições estabelecidas. 2. A Autoridade Central do Estado Requerido poderá requerer que as informações ou provas produzidas por força do presente Acordo sejam mantidas confidenciais ou usadas apenas sob os termos e condições por ela especificadas. Caso o Estado Requerente aceite as informações ou provas sujeitas a essas condições, ele deverá respeitar tais condições. 3. Nenhum dos dispositivos contidos neste Artigo constituirá impedimento ao uso ou ao fornecimento das informações na medida em que haja obrigação constitucional nesse sentido do Estado Requerente, no âmbito de uma ação penal. O Estado Requerente deve notificar previamente o Estado Requerido de qualquer proposta de fornecimento de tais informações. 4. Informações ou provas que tenham sido tornadas públicas no Estado Requerente, nos termos do parágrafo 1 ou 2, podem, daí por diante, ser usadas para qualquer fim.

[vi] Promulgado no Brasil pelo Decreto nº 6.974/09, acerca da especialidade, assim prevê em seu artigo 13: 1.As informações, documentos ou objetos obtidos pela via da cooperação jurídica não podem, no Estado Requerente, ser utilizados em investigações, nem ser produzidos como meios de prova em qualquer procedimento penal relativo a um delito em relação ao qual a cooperação jurídica não possa ser concedida.

2.Qualquer outra utilização está subordinada à aprovação prévia da Autoridade Central do Estado Requerido. Esta aprovação não é necessária quando: a)Os fatos que originaram o pedido representam um outro delito em relação ao qual a cooperação jurídica pode ser concedida; b)O procedimento penal estrangeiro for instaurado contra outras pessoas que participaram do delito; ou c)O material for usado para uma investigação ou procedimento que se refira ao pagamento de indenização relacionada a procedimento para o qual a cooperação jurídica foi concedida.

[vii] O citado protocolo, promulgado pelo decreto 3468/2000, assim dispõe no seu artigo 12: 1. Salvo consentimento prévio do Estado requerido, o Estado requerente somente poderá empregar a informação ou a prova obtida, em virtude do presente Protocolo, na investigação ou no procedimento indicado na solicitação. 2. A autoridade competente do Estado requerido poderá solicitar que a informação ou a prova obtida em virtude do presente Protocolo tenha caráter confidencial, de conformidade com as condições que especificará. Nesse caso, o Estado requerente respeitará tais condições. Se não puder aceitá-las, comunicará o requerido, que decidirá sobre a prestação da cooperação.

[viii] Disponível em: http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/nota-de-esclarecimento-sobre-cooperacao-internacional-no-caso-odebrecht. Acesso em 12/12/2019.

[ix] VASCONCELOS, VINICIUS. Compartilhamento de provas na Colaboração Premiada: Limites à Persecução Penal Baseada nos Elementos de Autoincriminação Produzidos pelo Delator. In: Revista de Direito Público. V. 15, n. 87, p. 9-24, maio-jun 2019. Disponível em: https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/direitopublico/article/view/3381/pdf.  Acesso em: 09/01/2020.

[x] VASCONCELOS, Vinicius. Compartilhamento de provas na Colaboração Premiada: Limites à Persecução Penal Baseada nos Elementos de Autoincriminação Produzidos pelo Delator. In: Revista de Direito Público. V. 15, n. 87, p. 9-24, maio-jun 2019. Disponível em: https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/direitopublico/article/view/3381/pdf

[xi] STF, PET 7.065-AgRg, 2ª T., Rel. Min. Edson Fachin, J. 30.10.2018. Acórdão ainda não publicado. Consulta pelo sítio eletrônico: www.stf.jus.br

[xii] VASCONCELOS, Vinicius. Compartilhamento de provas na Colaboração Premiada: Limites à Persecução Penal Baseada nos Elementos de Autoincriminação Produzidos pelo Delator. In: Revista de Direito Público. V. 15, n. 87, p. 9-24, maio-jun 2019. Disponível em: https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/direitopublico/article/view/3381/pdf


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Da retroatividade da Resolução nº 3.854 do Conselho Monetário Nacional

Por Gamil Föppel El Hireche[1] e Raul Mangabeira[2]

 

Caso concreto: o ordenamento jurídico determina que todos que tenham mais de US$ 100 mil no exterior devem declará-los ao Banco Central do Brasil, sob pena de uma ação penal. O sujeito X, em 31 de dezembro de 2019, tem US$ 150 mil não declarados. Em julho de 2020, o Conselho Monetário Nacional altera o valor mínimo da declaração necessária para US$ 1 milhão. Em setembro, a inteligência fiscal descobre a ardilosa ocultação do sujeito X. Pergunta: X deve estar sujeito a uma pena entre dois e seis anos de reclusão?

 

O Conselho Monetário Nacional (CMN) aumentou, o último dia 30 de julho, o valor mínimo para a exigência de declaração de Capitais Brasileiros no Exterior (CBE)[3]. O piso para a obrigatoriedade da declaração anual de CBE permanecia fixo, em valores nominais, desde 2004, em US$ 100 mil [4]. O piso passa a ser de US$ 1 milhão.

Dois são os questionamentos práticos que surgem dessa alteração. De início, questionam-se as consequências jurídico-penais para aquele que deixa de declarar capitais no exterior em valor superior ao piso estabelecido. Questiona-se, assim, a própria tipicidade ínsita à prática de não declarar esses recursos. Por fim, questiona-se a situação jurídica de quem, antes da nova base, já se havia omitido em declará-los. Discussão, portanto, sobre a existência de um injusto penal e sobre a intertemporalidade do complemento de uma normal penal em branco.

É certo que, de acordo com a legislação vigente, não declarar capitais mantidos no exterior, acima do piso estipulado pelo CMN, representa um injusto penal. A conduta encontra adequação no suporte fático do artigo 22, parágrafo único, segunda parte, da Lei nº 7.492/1986, que prevê o tipo autônomo de manutenção de capitais no exterior não declarados à repartição federal competente[5]. Essa discussão foi um dos objetos da Ação Penal 470, ocasião em que um dos denunciados foi absolvido, tendo restado comprovado que no dia 31 de dezembro de 2003 mantinha em depósito valores inferiores ao determinado na circular do Banco Central.

A discussão sobre a tipicidade ou não da conduta considerada em si mesmo não é, no entanto, o aspecto mais interessante do debate[6]. A discussão mais sensível, aqui, é sobre a situação jurídica de quem, antes da nova resolução, mantinha, sem declarar à repartição federal competente, capitais no exterior em valores superiores a US$ 100 mil, porém inferiores a US$ 1 milhão. Estariam à margem da tipicidade diante do surgimento de um cenário mais benéfico? Teria havido abolio criminis?

O xis da questão, por conseguinte, é a própria natureza dos efeitos jurídicos da alteração do complemento da norma penal em branco. Assim, a lei que define os crimes contra o sistema financeiro nacional prevê, na segunda parte do parágrafo único do artigo 22, a própria existência do delito de evasão de divisas, na modalidade imprópria (em atendimento ao princípio da legalidade). Sua conformação, à guisa do que ocorre com o conceito de substância entorpecente, não é dada pela própria lei penal. Em específico, é o CMN, por meio de resolução e, portanto, administrativamente, que altera o valor mínimo da declaração necessária.

Por outro lado, diferentemente do que ocorre com a lista de substâncias entorpecentes, o complemento da norma penal extraível da segunda parte do parágrafo único do artigo 22 da Lei nº 7.492/1986 é quantitativo, e não qualitativo. Essa diferenciação é justamente o que define qual será o efeito da alteração do complemento. O STF, por exemplo, verificando a natureza qualitativa da lista de substâncias entorpecentes, reconheceu a ocorrência de abolitio criminis do porte de cloreto de etílico nos anos 2000 (a substância ficou oito dias fora da lista, o que foi suficiente para gerar a abolitio criminis em relação a todas as condutas que já haviam sido consumadas).

No caso dos complementos quantitativos, costuma-se afirmar que sua alteração não gera os efeitos comuns à alteração benéfica do complemento qualitativo. Os efeitos seriam os mesmos dos gerados pelo escoamento da vigência da lei temporária. Assim, as condutas havidas ao tempo de vigência da lei temporária e, em específico, dos parâmetros estabelecidos pelo complemento quantitativo da norma penal em branco, seriam punidas conforme o tempus regit actum (ultratividade).

Essa orientação está incompleta e precisa ser revista.

Esse entendimento pode gerar, definitivamente, algumas injustiças. Vamos às premissas: 1) o sujeito X, em 31 de dezembro de 2019, tem US$ 150 mil não declarados ao Banco Central; 2) o CNM, nesta data, determina que todos que tenham mais de US$ 100 mil devem declará-los; 3) O CNM, em julho de 2020, altera o valor mínimo e agora apenas aqueles que tenham mais de US$ 1 milhão devem declará-los; 4) no mês de setembro de 2020, a inteligência descobre essa ocultação patrimonial o sujeito X, que tinha US$ 150 mil.

Seria mesmo pertinente que o Estado movesse todo seu aparato penal para perseguir uma conduta que, à luz do seu próprio ordenamento, já não representa mais qualquer relevância típica? Ou mais: seria razoável que o Estado continuasse a punir todos aqueles que deixaram de declarar CBE em valores superiores a US$ 100 mil, porém inferiores a US$ 1 milhão?

É por isso que parece razoável estabelecer uma diferenciação dos próprios complementos de natureza quantitativa, subdividindo-os, a fim de que não se perca a coerência dogmática e de que se mantenha a função penal de proteger bens jurídicos indispensáveis.

Com efeito, há complementos de natureza quantitativa que se pretendem atemporais e complementos de natureza quantitativa que se pretendem temporais, que se prendem a um contexto fático. Assim, quem, nos idos anos 1986, não seguiu o tabelamento determinado pela Superintendência Nacional de Abastecimento e Preços, realizava conduta típica contra a economia popular, independentemente ou não de os valores tabelados sofrerem alteração para maior. O complemento, aqui, quantitativo, era evidentemente temporal e buscava resolver uma situação específica no tempo.

O complemento da segunda parte do parágrafo único artigo 22 da Lei nº 7.492/199 não se pretende, no entanto, limitado no tempo, sendo, pois, atemporal. É, sim, um complemento quantitativo, mas não é um complemento que pretende resolver um problema específico no tempo. A não declaração de determinada quantia de CBE não se vincula a uma necessidade quantitativa de época, mas a uma necessidade geral de proibição com base em um quantum que mais satisfaz a critérios qualitativos do que a quantitativos.

O fato de o valor-piso ter sido alterado não faz com que o presente argumento se perca; não é, assim, a "modificabilidade" do quantum que define a sua natureza temporária. É o seu próprio compromisso político criminal. O quantum agora estabelecido não o foi com a já expectativa de que futuramente irá mudar.

Justamente por isso é que o complemento quantitativo das leis penais em branco precisa ser considerado em seu compromisso temporal: quando buscar resolver problemas específicos no tempo, seguirá a regra da ultratividade; quando buscar estabelecer um quantum atemporal, seguirá a regra benéfica prevista no artigo 2º do Código Penal.

Assim, respondendo ao caso concreto que abre este artigo, identifica-se a superveniente ausência de crime daquele que deixou de declarar valores superiores a US$ 100 mil, porém inferiores a US$ 1 milhão. Tão por isso, enuncia-se a necessidade do seguinte enunciado dogmático: o complemento quantitativo atemporal de um tipo penal incriminador deve seguir a regra da retroatividade mais benéfica, razão pela qual tornou-se atípica a conduta de deixar de declarar valores inferiores àqueles previstos na mencionada resolução, inclusive de forma retroativa.


[1] Advogado, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e membro das comissões de Reforma do Código Penal e da Lei de Execução Penal, nomeado pelo Senado Federal.

[2] Graduando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia.

[3] V. a íntegra da resolução em <https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/exibenormativo? tipo=Resolu%C3%A7%C3%A3o%20CMN&numero=4841>, Acesso em 5 de agosto de 2020.

[4] V. a íntegra da resolução em <https://www.bcb.gov.br/pre/normativos/busca/downloadNormativo.asp? arquivo=/Lists/Normativos/Attachments/49620/Res_3854_v2_P.pdf>, Acesso em 5 de agosto de 2020.

[5] A repartição federal competente é o Banco Central. Parte da doutrina fala que seriam o Banco Central e a Receita Federal. Sobre isso, cf. BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. Crimes Federais. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 728-729.

[6] Não há muitas discussões sobre a constitucionalidade do tipo em questão, uma vez que este não viola o direito de propriedade ou de locomoção de capitais, nos termos do inciso XV do artigo 5º da CF.


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