O reconhecimento de pessoas (art. 226, do CPP) à luz da nova orientação jurisprudencial dos Tribunais Superiores: procedimento de caráter obrigatório, que perfaz garantia mínima do suspeito e cuja inobservância enseja a nulidade da prova.

Por: Bárbara Mostachio Ferrassioli e Ronaldo dos Santos Costa

O reconhecimento de pessoas e coisas é um “meio de prova utilizado com a finalidade de obter a identificação de pessoa ou coisa, por meio de um processo psicológico de comparação com elementos do passado[1]”.

Embora previsto no art. 226 do Código de Processo Penal um procedimento detalhado e formal para a produção de tal prova – ainda que defasado no tempo –, sabe-se que, durante muitos anos, a jurisprudência dos tribunais pátrios (lamentavelmente) relativizou a aplicação do rito legal, concebendo à referida norma o caráter deficitário de “mera recomendação”.

Desta deturpada concepção, sobrevieram diversas arbitrariedades, injustiças e erros judiciários em condenações criminais, decorrentes da utilização de reconhecimentos, não raras vezes, baseados em falsas memórias, preconceitos sociais e racismo estrutural.

O cenário mudou, porém, quando o Superior Tribunal de Justiça passou a questionar o tratamento (antes descuidado) da referida norma processual. O precedente consolidado no julgamento do HC 598.886/SC, em 27/10/2020, da lavra e relatoria do Exmo. Min. Rogerio Schietti Cruz, é emblemático quanto à radical mudança no enfrentamento do tema.

Sedimentou-se, pois, a partir do citado julgamento, que o reconhecimento de pessoas deve, portanto, observar o procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se vê na condição de suspeito da prática de um crime, não se tratando, como se tem compreendido, de "mera recomendação" do legislador.”.

Ou seja, com a mudança no paradigma jurisprudencial, o rito previsto no art. 226 do CPP para o reconhecimento de pessoas recebeu, finalmente, tratamento mais justo e coerente pelo sistema de justiça criminal, erigindo-se à posição de norma cogente e de observância obrigatória, porquanto detentora do status de inderrogável garantia processual penal àquele que ocupa a posição de investigado/acusado.

Na seara do reconhecimento por meio fotográfico, que sequer encontra previsão legal, a realidade experienciada nas Delegacias de Polícia é ainda mais caótica e propícia à ocorrência de falsos reconhecimentos.

A praxe demonstra “reconhecimentos” realizados pela mera exibição de foto do único suspeito (reconhecimento show up), extraídas de redes sociais, em caráter estático e, por vezes, em baixa resolução (isso para ficar em apenas alguns dos tantos problemas que permeiam a questão do reconhecimento fotográfico).

O problema do abandono das fórmulas legais quando da lavratura do auto de reconhecimento – e que parece ter sido finalmente compreendido pelos Tribunais superiores – consiste na alta probabilidade de indução do reconhecedor a falsas memórias, sobretudo pelo sugestionamento exógeno (do delegado, do investigador, do escrivão, etc), que busca meramente confirmar a hipótese investigatória que tem em mente.

É evidente que a chance de uma testemunha reconhecer um suspeito X quando a ela se exibe unicamente uma foto do sujeito X é muito maior do que a chance de ela reconhecer o mesmo sujeito se submetido a reconhecimento pelo rito do art. 226 do CPP. É dizer: o reconhecimento de pessoas, quando realizado sem observância do procedimento próprio ou similar, é altamente suscetível ao sugestionamento externo e, portanto, carece de confiabilidade, mormente na seara da prova processual penal.

Aury Lopes Jr[2]. há tempos alertava sobre o problema das falsas memórias em matéria de prova no processo penal:

 

As falsas memórias se diferenciam da mentira, essencialmente, porque, nas primeiras, o agente crê honestamente no que está relatando, pois a sugestão é externa (ou interna, mas inconsciente), chegando a sofrer com isso. Já a mentira é um ato consciente, em que a pessoa tem noção do seu espaço de criação e manipulação. Ambos são perigosos para a credibilidade da prova testemunhal, mas as falsas memórias são mais graves, pois a testemunha ou vítima desliza no imaginário sem consciência disso. Daí por que é mais difícil identificar uma falsa memória do que uma mentira, ainda que ambas sejam extremamente prejudiciais ao processo.

É importante destacar que, diferentemente do que se poderia pensar, as imagens não são permanentemente retidas na memória sob a forma de miniaturas ou microfilmes, tendo em vista que qualquer tipo de “cópia” geraria problemas de capacidade de armazenamento, devido à imensa gama de conhecimentos adquiridos ao longo da vida.

 

Janaina Matida também dedica boa parte de sua contribuição acadêmica ao estudo do reconhecimento de pessoas tal qual realizado no Brasil e o prejuízo decorrente da inobservância das garantias processuais penais. O exemplo trabalhado pela autora em uma de suas produções sobre o tema fala por si[3]:

 

Entre o início de sua oitiva em juízo e o momento em que apontou Thomas como seu estuprador, a audiência precisou ser suspensa para que Janet se recompusesse. Seu corpo respondia às fortes recordações daquele dia trágico. Perguntada pelo promotor como ela tinha 100% de certeza de que se tratava de seu estuprador, Janet reforçou que nunca seria capaz de esquecer aquele rosto. Thomas foi condenado a mais de 70 anos de prisão, dos quais cumpriu 27. Foi declarado inocente apenas em 2011, a partir da comparação do DNA dele com o material genético colhido por ocasião do estupro cuja incompatibilidade demonstrou, de uma vez por todas, a sua inocência. Em suma, vítimas e testemunhas podem não ter motivos para mentir, o que não afasta o perigo de erros honestos sejam por elas cometidos em razão de falsas memórias.

 

Essa realidade parece ter sido finalmente admitida, assimilada e, o que é melhor, repudiada pelo STJ[4]. No precedente acima mencionado (HC 598.886-SC) – que resultou na absolvição (em sede de Habeas Corpus!) de paciente condenado com base em reconhecimento fotográfico então declarado nulo –, restaram assentadas as seguintes conclusões, que servem de diretrizes para os reconhecimentos realizados a partir do referido julgamento: “1) O reconhecimento de pessoas deve observar o procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se encontra na condição de suspeito da prática de um crime; 2) À vista dos efeitos e dos riscos de um reconhecimento falho, a inobservância do procedimento descrito na referida norma processual torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita e não poderá servir de lastro a eventual condenação, mesmo se confirmado o reconhecimento em juízo; 3) Pode o magistrado realizar, em juízo, o ato de reconhecimento formal, desde que observado o devido procedimento probatório, bem como pode ele se convencer da autoria delitiva a partir do exame de outras provas que não guardem relação de causa e efeito com o ato viciado de reconhecimento; 4) O reconhecimento do suspeito por simples exibição de fotografia(s) ao reconhecedor, a par de dever seguir o mesmo procedimento do reconhecimento pessoal, há de ser visto como etapa antecedente a eventual reconhecimento pessoal e, portanto, não pode servir como prova em ação penal, ainda que confirmado em juízo.”.

Igualmente atento à nocividade do reconhecimento pessoal equivocado ao processo penal, o CNJ, por meio da Portaria nº 209 de 21 de agosto de 2021, instituiu o “Grupo de Trabalho destinado à realização de estudos e elaboração de proposta de regulamentação de diretrizes e procedimentos para o reconhecimento pessoal em processos criminais e a sua aplicação no âmbito do Poder Judiciário, com vistas a evitar condenação de pessoas inocentes”, coordenado pelo Exmo. Min. Rogério Schietti Cruz.

Segundo o CNJ, “o reconhecimento pessoal equivocado tem sido uma das principais causas de erro judiciário, que faz com que inocentes sejam indevidamente levados ao cárcere”. Os dados levantados pelo órgão e estampados na referia Portaria são alarmantes:

 

CONSIDERANDO o levantamento realizado pelo Innocence Project nos Estados Unidos, que indica que os reconhecimentos pessoais equivocados são a causa dos erros judiciais em 69% dos casos em que houve a revisão das condenações após a realização do exame de DNA (https://innocenceproject.org/dna-exonerations-in-the-united-states/);

CONSIDERANDO a ampla produção científica¹ acerca da falibilidade da memória humana, passível de sugestionamentos e influenciável por emoções, bem como acerca da diversidade de fatores implicados no ato do reconhecimento, seu alto grau de subjetividade e a suscetibilidade de falhas e distorções;

CONSIDERANDO que em levantamento feito pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, em âmbito nacional, foi identificado que em 60% dos casos de reconhecimento fotográfico equivocado em sede policial houve a decretação da prisão preventiva e, em média, o tempo de prisão foi de 281 dias (aproximadamente 9 meses) (https://www.defensoria.rj.def.br/uploads/arquivos/54f8edabb6d0456698a068a65053420c.pdf );

CONSIDERANDO que em 83% dos casos de reconhecimento equivocado identificados no referido levantamento, as pessoas apontadas eram negras, a denunciar que o procedimento é marcado pela seletividade do sistema penal e pelo racismo estrutural (...).

 

Mais recentemente, em sessão de julgamento realizada no dia 23/11/2021, o Supremo Tribunal Federal iniciou o julgamento do Recurso Ordinário em Habeas corpus nº 206.846, que também pretende definir se a inobservância do procedimento previsto no art. 226 do CPP constitui causa de nulidade absoluta ou relativa.

Conquanto ainda não finalizado referido julgamento – houve pedido de vista pelo Ministro Ricardo Lewandowski –, o voto do Ministro Gilmar Mendes, relator do caso, acompanha o entendimento sedimentado na Sexta Turma do STJ (HC 598.886/SC), pretendendo aprimorar a confiabilidade do reconhecimento pessoal enquanto meio de prova no processo penal brasileiro a partir de três teses prospectivas, a saber: “1) O reconhecimento de pessoas, presencial ou por fotografia, deve observar o procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se encontra na condição de suspeito da prática de um crime e para uma verificação dos fatos mais justa e precisa; 2) A inobservância do procedimento descrito na referida norma processual torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita, de modo que tal elemento não poderá fundamentar eventual condenação ou decretação de prisão cautelar, mesmo se refeito e confirmado o reconhecimento em Juízo. Se declarada a irregularidade do ato, eventual condenação já proferida poderá ser mantida, se fundamentada em provas independentes e não contaminadas; 3) A realização do ato de reconhecimento pessoal carece de justificação em elementos que indiquem, ainda que em juízo de verossimilhança, a autoria do fato investigado, de modo a se vedarem medidas investigativas genéricas e arbitrárias, que potencializam erros na verificação dos fatos”.

Significa, portanto, que, a partir da nova interpretação conferida à norma pelo STJ – que, a princípio, vem sendo referendada pelo STF –, a inobservância do procedimento legal na realização do reconhecimento pessoal atrai como consequência a nulidade (absoluta) da prova, que não pode servir para embasar eventual condenação criminal ou sequer o recebimento de denúncias (quando ausentes outros indícios válidos de autoria no início da persecução penal).

A mudança jurisprudencial, conquanto tardia, é recebida com aplausos. Sem dúvida, em um processo penal democrático e de base garantista, como deve ser o brasileiro, tornar mandatória a observância do procedimento legal do reconhecimento pessoal, ao menos até que advenha norma específica e atualizada a aprimorar a produção desta prova, representa não apenas uma necessidade emergente para melhoria da confiabilidade da prova processual penal, mas, sobretudo, importante iniciativa no combate ao racismo estrutural e à seletividade penal.


[1] LOPES, Mariângela T. O reconhecimento como meio de prova: necessidade de reformulação do direito brasileiro. Tese de Doutorado em Direito – Universidade de São Paulo, 2011. p. 23.

[2] Vide interessante artigo sobre o tema em https://www.conjur.com.br/2014-set-19/limite-penal-voce-confia-memoria-processo-penal-depende-dela?.

[3] Vide artigo completo em < https://www.conjur.com.br/2020-set-18/limite-penal-reconhecimento-pessoas-nao-porta-aberta-seletividade-penal?pagina=2>

[4] Outro precedente de peso nesta virada de paradigma jurisprudencial trata-se do acórdão resultante do julgamento do HC nº 652.284/ SC, de relatoria do Ministro Reynaldo Soares da Fonseca.


Ronaldo dos Santos Costa é advogado criminalista e sócio do escritório Gilson Bonato, Ronaldo Costa e Advogados.

Bárbara Mostachio Ferrassioli, é advogada criminalista e coordenadora do núcleo de Direito Penal do escritório Karsptein Falavinha Advocacia.


Este artigo reflete a opinião de seus autores e não necessariamente a opinião do IBDPE.

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OS PRINCIPAIS ENTRAVES FISCALIZATÓRIOS DA LAVAGEM DE CAPITAIS POR MEIO DE BITCOIN

Por: José Eugênio da Silva Mendes

Com o fito de superar falhas em compras online, de modo que estas pudessem ser realizadas de maneira anônima e sem a necessidade de uma instituição financeira atuando como intermediadora das transações, em 2008 foi criado o Bitcoin, a primeira criptomoeda do mundo. De lá para cá a utilização deste tipo de ativo cresceu de maneira exponencial, de modo que há países, como El Salvador, que já adotam o Bitcoin como moeda oficial.

A utilização das criptomoedas, no geral, traz diversas vantagens para o usuário, como taxas nulas ou muito baixas para a sua transferência, a velocidade das transações, a inexistência de fronteiras, podendo funcionar também como um investimento, entre outras, características que justificam os mais de 220 milhões de usuários (EXAME, 2021).

Não obstante os diversos avanços que as moedas digitais trazem, são estas também muito propicias a serem utilizadas na lavagem de capitais, justamente por se tratar de um ativo que, até o primeiro momento, não é rastreável e é descentralizado de uma entidade estatal.

Assim, o presente trabalho tem por objetivo descrever o crime de lavagem de dinheiro e suas fases, explicitar como funcionam as criptomoedas, e ainda, entender de que modo o Bitcoin pode ser utilizada para referido delito? A metodologia utilizada neste artigo é a explicativa, realizada através de pesquisa bibliográfica em livros, artigos acadêmicos e notícias, coletadas mídias de grande circulação.

 

A Lavagem de Capitais

A globalização é um fenômeno que remonta desde a antiguidade, com o expansionismo grego e mais tarde com o Império Romano. Já a atual globalização tem início em meados do séc. XV até o séc. XVIII, com a expansão marítimo-comercial européia. Como consequência da globalização houve um fortalecimento do livre comércio e do mercado, com a facilitação de transação entre os países, fato facilmente perceptível visto que nunca antes foi tão fácil abrir empresas em diversos países ou realizar movimentações financeiras.

Nesse sentido, o crime organizado se aproveita de tal situação para realizar diversos delitos, entre eles a lavagem de dinheiro, conceituada como: “(...) tratamento de proventos de origem, existência e/ou aplicação ilícita com a finalidade de ocultar e dissimular a referida ilicitude.” (RODRIGUES, p. 12). Conforme lecionam Calegari e Weber, referido crime podeser dividido em três fases distintas, quais sejam a fase de ocultação ou colocação, estratificação ou escurecimento e integração ou lavagem propriamente dita (CERVINI, OLIVEIRA, GOMES, p. 11-12). Frise-se que as fases são autônomas entre si e muitas vezes não ocorrem simultaneamente.

Na primeira fase o autor do delito ou aquele que está buscando a lavagem do dinheiro busca ocultar os valores ilicitamente recebidos através de instituições financeiras e não financeiras, como vendedores de joias, casas de câmbio e até mesmo com brokers da bolsa de valores.1 Neste momento da lavagem é que os criminosos se encontram em maior grau de vulnerabilidade, visto que as instituições já tem conhecimento de suas atividades ilegais.

Já na segunda fase de estratificação ou escurecimento, o que se pretende é dificultar a descoberta da origem do dinheiro, o que se faz pela superposição de diversas transações, tais como a manipulação de mercados ou o superfaturamento da venda de mercadorias.

Por fim a terceira fase tem o condão de reintroduzir os bens ao mercado tradicional, o que é feito para que o dinheiro novamente possa ser reinvestido em atividades ilícitas e para que a máquina que garante que ela aconteça continue a girar. Antes de voltar aos países de origem muitas vezes esse capital vai a paraísos fiscais, que o recebem de braços abertos. Tal retorno do capital ilícito ocorre, por exemplo, através de empréstimos solicitados no exterior, justamente para as empresas onde se encontra o dinheiro (CERVINI, OLIVEIRA, GOMES, p. 83).

No que tange a legislação brasileira, a Lei 9.613/98 em seu artigo 1º prevê como crime: “Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.”. (BRASIL, Lei 9.613/98)

 

O bitcoin e os entraves fiscalizatórios

O bitcoin pode ser conceituado como uma moeda, assim como o real, mas que diferentemente deste não foi emitida por qualquer governo e tem seu valor estipulado pelos indivíduos no mercado. Tal independência governamental só é possível pois ele utiliza um sistema peer-to-peer ou ponto a ponto, que permite que transações possam ser feitas diretamente entre usuários sem que um intermediário precise intervir.

Outra característica do bitcoin é ser open source, i.e., ter seu código aberto, o que permite que sua codificação seja visualizada e que suas inconsistências sejam encontradas,enquanto que, se o sistema fosse fechado, apenas colaboradores de uma determinada organização teriam acesso a tais complexos (CAMARA, 2014, p. 31)

Em relação à aquisição do bitcoin, esta pode se dar de duas maneiras, a mineração, que ocorre quando o usuário através do processamento da rede valida os códigos e assim “cria” novas unidades, também, por meio de casas de câmbio digitais, ou ainda, como pagamento por determinado produto ou serviço, já que hoje uma grande quantidade de empresas aceita tal moeda como forma de pagamento.

Por não ser regulamentado o bitcoin não há controle de qualquer órgão, o que dificulta a tributação e também o controle dos delitos que podem ser cometidos utilizando-se dele. No que toca a lavagem de dinheiro a descentralização e o pseudoanonimato são os principais fatores que a favorecem. A primeira pois não sendo tal moeda digital atrelada a qualquer órgão não há como aplicar sobre ela as regulações antilavagem de dinheiro (ALD), que preveria uma fiscalização sobre as exchanges, ou casas de câmbios do bitcoin (RODRIGUES, p. 7).

Outro fator determinante para que a lavagem de dinheiro possa ocorrer através do bitcoin relaciona-se aos diferentes níveis do pseudoanonimato. Isto porque apesar de ser possível verificar movimentações realizadas por diversas carteiras nas exchanges, não é possível determinar quem são os donos destes ativos. Sobre o assunto explicita Gustavo Rodrigues:

 

Daí a importância de jurisdições de sigilo para os sujeitos delitivos, sobretudo durante a fase de estratificação. Ao desvincular as identidades das partes na plataforma de qualquer dado que as identifique fora dela, as criptomoedas automatizam o sigilo financeiro de forma que não pode ser revertida pela via regulatória. Isso é agravado pela existência de misturadores de criptomoedas (cryptocurrency tumblers ou mixers), os quais dificultam ainda mais a identificação das partes. (RODRIGUES, p. 12)

 

O pseudoanonimato tem influência também nas outras fases da lavagem, na primeira fase, de colocação, porque esta pode ser realizada sem que se saibam quem são as pessoas que estão movimentando o dinheiro e na última, de integração pois permite que os proventos das atividades ilícitas sejam enviados anonimamente e não possam mais ser rastreados (RODRIGUES, p. 14).

A última característica com preponderância para a ocorrência da lavagem de capitais através do bitcoin é a transação em tempo real, que faz com que valores possam ser transferidos para outro país, na fase de colocação, que haja pouco tempo para interceptações em caso de

 

transações suspeitas, na fase de estratificação e por fim, a possibilidade de rápida movimentação pelo sistema financeiro global, na fase de integração (RODRIGUES, p. 14).

 

Considerações Finais

 

A cada dia o uso do bitcoin mais é difundido, seja pela aprovação de ETFs (fundos de investimento), que agora permitem a comercialização do bitcoin no mercado financeiro tradicional, ou ainda, por grandes empresas, como a automotiva BMW que aceita pagamento através dessa moeda digital.

Tendo em vista a possibilidade de utilização de tal criptomoeda para meios espúrios, como demonstrado alhures, fica cristalina a necessidade de que haja uma regulamentação sobre o Bitcoin. Somente com uma legislação que reja esta moeda digital será possível que os órgãos de controle possam se debruçar sobre as transações realizadas e evitar a ocorrência de crimes de lavagem ou ainda, que torne-se possível investigá-los com mais chances de êxito.

Contudo, importante ressaltar que o Bitcoin e todas as criptomoedas tratam-se de uma tecnologia revolucionária, que tem muito a contribuir para o desenvolvimento da sociedade, não devendo ser visto como algo negativo pelo mau uso que alguns fazem destes ativos.

 

REFERÊNCIAS

 

O avanço das criptomoedas e o perigoso silêncio da lei brasileira. O Estado de São Paulo. Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/o-avanco-das- criptomoedas-e-o-perigoso-silencio-da-lei-brasileira/>. Acesso em 04/10/2021

Número de usuário de criptomoedas dobras nos últimos seis meses. Exame. Disponível em:

<https://exame.com/future-of-money/numero-de-usuarios-de-criptomoedas-dobra-nos- ultimos-seis-meses/>. Acesso em 04/10/2021

Todas as Criptomoedas. CoinmarketCap. Disponível em: <https://coinmarketcap.com/pt- br/all/views/all/>. Acesso em 04/10/2021.

BIJOS, Leila, ALMEIDA, Marcio José de Magalhães. A GLOBALIZAÇÃO E A “LAVAGEM” DE DINHEIRO: medidas internacionais de combate ao delito e reflexos no Brasil. Revista CEJ, Brasília, Ano XIX, n. 65, p. 84-96, jan./abr. 2015.

CALLEGARI, André Luís, WEBER, Ariel Barazzetti. Lavagem de dinheiro. São Paulo: Atlas, 2014.

BRASIL,     LEI    Nº    9.613,    DE     3    DE     MARÇO     DE                    1998.  Disponível     em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9613.htm>. Acesso em 08/10/2021.

CAMARA, Michele Pacheco. O Bitcoin é alternativa aos meios de pagamento tradicionais?. Monografia, Escola de Administração da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014.

CERVINI, Raúl, OLIVEIRA, William Terra de, GOMES, Luiz Flávio. Lei de lavagem de capitais: comentários à lei 9.613/98. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998.

RODRIGUES, Gustavo, KURTZ, Lahis.     Criptomoedas e regulação antilavagem de dinheiro no G20. Instituto de referência em internet e sociedade.

VIEIRA, Stephanie Gonçalves. LAVAGEM DE DINHEIRO: POSSIBILIDADES DE BRANQUEAMENTO DE CAPITAIS COM USO DE BITCOIN. Monografia, Centro

Universitário de Brasília – UniCEUB, 2017.

 


1 CERVINI, Raúl, OLIVEIRA, William Terra de, GOMES, Luiz Flávio. Lei de lavagem de capitais: comentários à lei 9.613/98. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998. p. 104.


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O PROJETO DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL: A INVESTIGAÇÃO DEFENSIVA NA PERSPECTIVA DA DISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA

Por: Claudia da Rocha e Marlus Arns de Oliveira

O Projeto de Lei n. 8.045/2010, que objetiva instituir o Novo Código de Processo Penal, segue na Câmara dos Deputados. O substitutivo, que ainda pode sofrer alterações, engloba 372 propostas de mudanças na legislação, possuindo ao todo 827 artigos.

É importante lembrar que o Código de Processo Penal em vigor é de 1941, fortemente inspirado no Código Rocco da época de Mussolini, possui viés claramente autoritário, ligado ao ideário fascista e com estrutura inquisitorial. Embora tenha sido por diversas vezes reformado, a sua estrutura base mantém-se.

Desse modo, parece-nos clara a necessidade de substituição da Lei Processual Penal por uma que corresponda ao espírito da Constituição da República de 1988, isto é, que seja edificada sobre um sistema que, de fato, seja acusatório. Logo, tendo em mente que o processo penal deve ser lido à luz da ordem constitucional, objetivamos formular algumas considerações sobre o instituto da investigação defensiva, que se pauta principalmente no direito constitucional ao contraditório e à ampla defesa, desde a fase pré-processual[1].

Esclarece-se que o assunto não é novidade no direito brasileiro, sendo, atualmente, regulado pelo Provimento n. 118/2018 do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, que compreende a investigação defensiva como “o complexo de atividades de natureza investigatória desenvolvido pelo advogado, com ou sem assistência de consultor técnico ou outros profissionais legalmente habilitados, em qualquer fase da persecução penal, procedimento ou grau de jurisdição, visando à obtenção de elementos de prova destinados à constituição de acervo probatório lícito, para a tutela de direitos de seu constituinte” (art. 1º).

Ainda, conforme o artigo 2º do referido Provimento, a “investigação defensiva pode ser desenvolvida na etapa de investigação preliminar, no decorrer da instrução processual em juízo, na fase recursal em qualquer grau, durante a execução penal e, ainda, como medida preparatória para a propositura da revisão criminal ou em seu decorrer”. Dessa forma, não há limite temporal para a utilização do instituto, o qual pode, conforme a oportunidade e a conveniência, ser empregado a qualquer tempo.

Por sua vez, no Projeto do Novo Código de Processo Penal, o tema é tratado nos artigos 47 a 49, os quais trazem a possibilidade de o “advogado ou defensor público, na condução da investigação defensiva, promover diretamente diligências investigatórias necessárias ao esclarecimento de determinado fato, em especial a coleta de depoimentos, pesquisa e obtenção de dados e informações disponíveis em órgãos públicos ou privados, elaboração de laudos e exames periciais por profissionais privados, ressalvadas as hipóteses de reserva de jurisdição e os procedimentos previstos na legislação de acesso à informação”.

Nota-se que a regulamentação acerca da investigação defensiva pretende diminuir a disparidade de armas entre a acusação e a defesa, bem como afastar as tentativas de criminalização da advocacia criminal. Assim, andou bem o legislador ao almejar garantir a isonomia entre as partes na persecução penal e o direito de defesa do imputado.

Porém, é necessário ficar atento para que não haja o desvirtuamento do instituto. Nesse sentido, para ilustrar o problema em debate, menciona-se que, no caso de crime doloso contra a vida, no projeto do novo Código de Processo Penal, houve o alargamento do prazo da resposta, de 10 (dez) para 45 (quarenta e cinco) dias, na hipótese de o juiz não rejeitar a denúncia liminarmente, sob a justificativa de propiciar uma investigação defensiva, a fim de que a defesa possa apresentar documentos e elementos que entender pertinentes para a desclassificação ou absolvição sumária[2]. Ao lado disso, elimina-se a primeira fase do procedimento do júri, pois o Juiz deve decidir se recebe a inicial acusatória após a resposta da defesa e esse recebimento equivale à submissão do acusado ao júri.

Então, enquanto, de um lado, aumenta-se o prazo da resposta, de modo a possibilitar a investigação defensiva, de outro, exclui-se a primeira fase do procedimento do júri. Por isso, é preciso olhar atentamente a situação. Primeiro, deve-se proporcionar à defesa instrumentos capazes de proporcionar uma efetiva investigação, para que o mecanismo não seja apenas uma falácia legislativa.

A título exemplificativo, destaca-se que, além do poder de requisição, o Ministério Público possui acesso a inúmeros sistemas indisponíveis à defesa. Frise-se que não prevalece aqui a discussão quanto à dicotomia entre o interesse público e o interesse particular. O Parquet, como principal destinatário do inquérito policial, representando o Estado-acusação, foi estruturado para manifestar uma opinião independente e para buscar elementos de sua convicção, de sorte que o acusado, para melhor demonstrar sua versão dos fatos, a fim corroborar com provas as suas alegações, deve ter também acesso a um arcabouço de informações para não fazer do texto um incremento natimorto.

Em segundo lugar, esse instituto deve ser compreendido como uma faculdade e não um ônus disfarçado de comprovação da inocência, sendo oportuno lembrar, nesse ponto, que inúmeros acusados vulneráveis financeiramente possivelmente não terão condições de concretizar esse instituto.

A investigação defensiva não pode, ainda que não declaradamente, ser utilizada para redistribuir-se o ônus da prova, no sentido de aumentar o encargo que recai sobre a defesa de buscar fontes de prova capazes de comprovar a inocência do imputado. O ponto de partida de toda persecução penal deve ser a incerteza, afirmada pela presunção da inocência, cabendo à acusação o ônus da prova sobre o fato típico, autoria ou participação, nexo causal e elemento subjetivo. À defesa incumbe provar a presença de eventual causa excludente da ilicitude, da culpabilidade ou extintiva da punibilidade.

É inconcebível, portanto, qualquer alegação no sentido de que a defesa tinha à disposição a possibilidade de angariar elementos que comprovassem a inocência do acusado, de modo que, ao não fazê-lo, considera-se verdadeira a versão acusatória, pois não se exige da defesa uma prova cabal acerca das teses, bastando que produza um estado de dúvida razoável para que o acusado seja absolvido. Há uma distinção no tocante ao quantum necessário para cumprir o ônus da prova, não podendo a investigação defensiva ser utilizada para alterar essa distribuição.

Por fim, é necessário lembrar que o processo penal, em um Estado Democrático de Direito, não pode ser concebido como mero instrumento para diminuir a impunidade, mas sim como um diploma limitador do poder estatal e garantidor do indivíduo. O discurso de combate à criminalidade não pode legitimar, em hipótese alguma, a flexibilização das regras processuais penais e nem mesmo a sua alteração em prejuízo do acusado.


Claudia da Rocha é Advogada, pós-graduada em Direito Constitucional pelo IDCC, em Direito e Processo Penal pela UEL, pós-graduanda em Direito Penal Econômico pelo IDPEE/IBCCRIM, mestranda em Direito Negocial na UEL e professora de Direito Penal, Processo Penal e Prática Penal no Centro Universitário Unifamma.

Marus H. Arns de Oliveira é Advogado sócio de Arns de Oliveira & Andreazza Advogados Associados e Doutor em Direito pela PUC/PR.


[1] PEZZOTTI, Olavo Evangelista; BECHARA, Fábio Ramazzini. Investigação Defensiva no projeto do novo CPP: disparidade de armas. Jota, 2021. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/investigacao-defensiva-no-projeto-do-novo-cpp-disparidade-de-armas-10052021. Acesso em 02 de ago. de 2021.

[2] PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz; AVELAR, Daniel Ribeiro Surdi de. Tribunal do Júri: avança na Câmara a Reforma do Código de Processo Penal, Consultor Jurídico, 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-abr-15/avelar-faucz-avanca-camara-reforma-cpp. Acesso em 02 de ago. de 2021.


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NÃO EXISTE FURTO DE BITCOINS

Por: Felipe Américo Moraes[1]

Neste mês ocorreu o maior ataque cibernético da história em termos financeiros: foram mais de 3 bilhões de reais em criptoativos desviados de uma plataforma de Finanças Descentralizadas (DeFi). Para tanto, o indivíduo que realizou o crime abusou de uma falha de segurança da rede, o que lhe permitiu se apropriar de diversos tokens das redes Ethereum e Binance Smart Chain.

A mídia especializada noticiou o fato afirmando que o autor do ataque teria praticado o crime de furto. Por exemplo, foi o caso da matéria jornalística da BBC, intitulada “o audacioso golpe de hackers que furtou mais de R$ 3,1 bilhões de criptomoedas”[2].

Essa afirmação faz surgir a dúvida se bitcoins – e outros criptoativos – podem ser o objeto material do crime de furto. Isso porque esse delito, previsto no art. 155 do CP, afirma ser proibida a conduta daquele que subtrai, para si ou para outrem, coisa alheia móvel. A questão é: os criptoativos podem ser considerados “coisa móvel”? Esse mesmo problema poderia ser colocado de maneira ainda mais simples caso se pensasse em outra situação hipotética: caso de um indivíduo que acesse clandestinamente uma “carteira de criptoativos” de terceiro e subtraia os ativos ali custodiados, enviando-os para sua “carteira” determinada quantidade de bitcoins, a conduta configuraria o delito de furto?

A resposta institivamente pode acabar sendo positiva. Afinal, a dinâmica das transações com criptoativos são – ao menos, aparentemente – semelhantes às realizadas mediante aplicativos de bancos (ou internet banking): o indivíduo acessa a aplicação que lhe permite consultar e enviar os valores depositados em determinada conta bancária e realiza a transferência para a conta bancária do destinatário. No caso do furto, o acesso é feito de maneira clandestina – mediante fraude ou destreza –, o que permite ao agente praticar a conduta prevista no tipo: subtrair coisa alheia móvel, no caso, dinheiro.

É nesse contexto que ocorre uma interpretação por analogia entre ambas as condutas. O raciocínio acaba sendo o seguinte: se nos casos envolvendo transações via internet banking há o acesso a um dispositivo eletrônico que permite o envio do saldo bancário à outra conta e isso configura o delito de furto; se no caso da subtração de criptoativos também ocorre o acesso a um dispositivo (ou aplicação) eletrônico que permite o envio à outra “carteira”; logo, ambas as condutas configuram o delito de furto. Correto? Entendo que não.

É verdade que a dinâmica desse delito é bastante semelhante ao furto ocorrido em uma conta bancária tradicional. Todavia, no sistema Bitcoin, todas as nomenclaturas utilizadas – como “moedas”, “carteiras”, “endereços”, e assim por diante – são abstrações criadas para permitir ao usuário uma mais fácil compreensão do sistema. Na prática, todos esses termos não existem. Sequer é possível dizer que existem “moedas” ou “carteiras”, por exemplo. Assim, para responder se é possível furtar bitcoins é preciso responder as seguintes perguntas: o que significa o conceito de “coisa móvel” exigida pelo tipo de furto? O que, tecnicamente, é um bitcoin? onde esse ativo está fisicamente localizado? E, por último: o bitcoin – ou outros criptoativos – se adequa ao conceito de “coisa móvel” exigida pelo tipo?

Para a doutrina, “coisa móvel” é compreendida como “tudo o que possa der deslocado de um lado para o outro”[3]. Para Bitencourt, é “todo e qualquer objeto passível de deslocamento, de remoção, apreensão, apossamento ou transporte de um lugar para o outro”.[4] Para ser ainda mais preciso, esse autor recorre à Hungria, sugerindo que “a noção desta, em direito penal, é escrupulosamente realística, não admitindo as equiparações fictícias do direito civil”[5]. Com essa posição concorda Busato, quando afirma que “o conceito de móvel e imóvel do Direito penal não guarda relação direta com os conceitos de móvel e imóvel do Direito civil ou comercial, sendo um conceito mais voltado à realidade física do que propriamente de uma ideia jurídica”.[6] Neste passo, concorda-se que “coisa móvel” é, portanto, todo objeto que permite movimentação no mundo físico, independentemente do significado jurídico.

Mesmo assim, remanesce um ponto que poderia suscitar maior abrangência do objeto material do delito. O § 3º afirma ser equiparável à “coisa móvel” a energia elétrica “ou qualquer outra que tenha valor econômico”. Apesar de o termo empregado ser amplo, entende-se que está evidentemente relacionado com a parte inicial, a “energia”. Ou seja, entende-se como “coisa móvel” a energia elétrica ou qualquer outro tipo de energia, desde que tenha valor econômico. É o que afirma Prado quando comenta que “a norma em epígrafe também equipara a coisa móvel qualquer outra energia, além da energia elétrica”.[7]

Dito isso, passa-se a aborda o que são bitcons.

Como dito, o termo “moeda” é uma abstração. Bitcoins são nada mais do que o resultado de anotações em um banco de dados distribuído, chamado de blockchain. Nesse banco de dados são registrados uma relação de todos os bitcoins existentes (representados em suas frações) e, principalmente, as respectivas chaves criptográficas que garantem o acesso à cada frações dessa criptomoeda.

Nessa dinâmica, a posse e propriedade de cada bitcoin de um usuário é determinada, em verdade, pela posse da respectiva chave criptográfica que garante o acesso – e capacidade de alteração – desse banco de dados. Isso porque, uma vez que o usuário detém a chave criptográfica que dá acesso à determinada fração de bitcoins, ele poderá enviar a criptomoeda a qualquer outro usuário. Para tanto, bastará a ele (i) comprovar ao sistema que possui a respectiva chave criptográfica e (ii) informar – também ao sistema – a chave criptográfica do destinatário da transação, representada pelo “endereço”. Dessa forma, haverá a alteração desse banco de dados – ou, mais precisamente, a criação de um novo bloco, na blockchain. Isso fará com que aquela fração de bitcoins deixe de ser disponível pelo remetente, passando a ser disponível somente pelo destinatário. Assim é realizada, tecnicamente, uma transação com bitcoins.[8]

Essa dinâmica permite compreender a função das “carteiras de criptoativos”. Elas, diferentemente do que instintivamente se acredita, não servem para armazenar (dentro de si) os bitcoins, mas somente para gerenciar as chaves criptográficas dos usuários. Os bitcoins são, em verdade, o produto final de todos os registros lançados na blockchain (tecnicamente chamados de “saídas de transações não gastas”, ou UTXO). Em outras palavras – e a grosso modo –, os bitcoins estão localizados na blockchain.

            Agora, se os bitcoins estão localizados na blockchain, poderia supor o leitor que seria necessário identificar a localização desse banco de dados. No entanto, isso não é preciso. No caso do sistema Bitcoin, a blockchain está localizada nos diversos computadores (chamados de nós) conectados à rede e que armazenam uma cópia de todas as transações realizadas desde o momento de seu surgimento. Todavia, ainda que assim não fosse – e a blockchain estivesse em um único local físico – as transações com bitcoins continuariam sendo simples alterações nesse banco de dados.

Dessa forma, conhecer a localização física da blockchain é irrelevante para determinar se bitcoins podem configurar “coisa móvel”. Uma vez que eles são meras informações armazenadas em bancos de dados, de forma que suas transações significam exclusivamente a alteração das informações ali contidas, é possível concluir que bitcoins não são passíveis de movimentação física. É dizer que o bitcoin não preenche, portanto, o conceito de “coisa móvel” exigida pelo tipo de furto.

Nessa dinâmica, quando um hacker (ou cracker) subtrai para si determinada quantidade de criptoativos, entende-se ser incorreto afirmar que ele praticou o delito de furto. O correto seria afirmar que houve uma “invasão de dispositivo informático com efeitos patrimoniais”, isto é, o tipo penal previsto no art. 154-A do Código Penal. Isso porque a conduta se adequa perfeitamente a esse tipo, o qual afirma ser proibida a conduta de invadir dispositivo informático de uso alheio, conectado ou não à rede de computadores, com o fim de obter ou adulterar dados ou informações sem autorização.

Assim, entende-se que as duas condutas sugeridas no início deste artigo não configuram o delito de furto, mas invasão de dispositivo informático. O agente que abusa de vulnerabilidades de sistemas de Finanças Descentralizadas (DeFi) para se apropriar dos criptoativos dessa rede acaba por invadir a rede e adulterando o banco de dados (a blockchain), para garantir a ele o acesso e capacidade de disposição. Da mesma forma, o indivíduo que acessa clandestinamente uma “carteira de criptoativos” e envia para um “endereço” de seu controle determinada quantidade de bitcoins pratica o mesmo delito, visto que utiliza essa “carteira” para alterar a blockchain.

O efeito prático da solução desse conflito aparente de normas é quanto à pena e às condições para ação penal. Caso fosse considerado o delito de furto, a pena seria de 2 (dois) a 8 (oito) anos. Isso porque a prática seria considerada um furto mediante fraude e/ou destreza (art. 155, § 4º, CP). Entretanto, uma vez entendendo que o crime praticado é de invasão de dispositivo informático com prejuízos econômicos (art. 154-A, § 2, CP), a pena seria de 1 (um) a 4 (quatro) anos, incidindo a causa de aumento de pena de 1/3 a 2/3. Além disso, a ação penal desse delito é pública e condicionada à representação (art. 154-B, CP). Ou seja, diferentemente do furto, esses delitos estão sujeitos à decadência caso não haja representação dentro do prazo legal.

A posição defendida neste artigo é fruto do estrito respeito ao princípio da legalidade, sobretudo diante da vedação de interpretações extensivas em Direito penal em prejuízo do acusado. Por outro lado, parece evidente o descompasso em considerar uma conduta que resulta na apropriação de criptoativos, socialmente idêntica a qualquer espécie de furto de outros bens patrimoniais, seja considerado um delito distinto e, principalmente, com pena inferior. Entende-se que tal incongruência é causada exclusivamente pelo surgimento dos novos modelos de realidade advindos das evoluções tecnológicas, mas que não foram tempestivamente absorvidos pelo texto legal. Assim, enquanto a problemática não for solucionada mediante a edição de novas normas penais que se adequem às alterações do mundo, entende-se que a interpretação mais precisa seja afastar o bitcoin – e outros criptoativos – como objeto material do delito de furto.

 

 


[1] Mestre em Direito pela Universidade Curitiba, especialista em Direito Penal Econômico e Empresarial. É advogado na Beno Brandão Advogados Associados. e-mail: felipe@benobrandao.com.br


[2] BBC. O audacioso golpe de hackers que furtou mais de R$ 3.1 bilhões em criptomoedas. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-58164420. Acesso em: 18 ago. 2021.

[3] BUSATO, Paulo César. Direito Penal – parte especial – 3ª edição. São Paulo: editora Atlas, 2017. p. 441.

[4] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – volume 3 – 15ª edição. São Paulo: editora Saraiva, 2019. p. 39.

[5] HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal, p. 21 apud BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – volume 3 – 15ª edição. São Paulo: editora Saraiva, 2019. p. 39.

[6] BUSATO, Paulo César. Op. Cit. p. 441.

[7] PRADO, Luiz Regis. Tratado de Direito Penal – volume 5. São Paulo: editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 79.

[8] ANTONOPOULOS, Andreas M. Mastering Bitcoin: Programming the open blockchain.  O'Reilly Media, Inc., 2017. p. 60.


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Julgados selecionados pelo IBDPE do ano de 2021

Neste último ano de 2021 prevaleceram diversos entendimentos emblemáticos e de suma importância pelos tribunais superiores. Isto posto, o IBDPE selecionou alguns julgados de grande relevância para o direito penal e processo penal do âmbito econômico.

 

1.É nula busca e apreensão com base em depoimentos de colaboradores:

 

PENAL E PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. 1. MANDAMUS SUBSTITUTIVO DO RECURSO PRÓPRIO. DESVIRTUAMENTO DE GARANTIA CONSTITUCIONAL. 2. BUSCA E APREENSÃO. ALEGADA AUSÊNCIA DE CONTEMPORANEIDADE. ART. 315, § 1º, DO CPP. NÃO APLICAÇÃO. LOCALIZAÇÃO TOPOGRÁFICA NO CPP. 3. INSTITUTO QUE DIZ RESPEITO A MEDIDAS CAUTELARES PESSOAIS. CONTEMPORANEIDADE DO PERICULUM LIBERTATIS. 4. BUSCA E APREENSÃO. MEDIDA CAUTELAR REAL. MEIO DE OBTENÇÃO DE PROVA. REQUISITOS PRÓPRIOS. DESNECESSIDADE DE CONTEMPORANEIDADE. 5. LAPSO ENTRE FATOS E COLHEITA DE PROVAS. POSSIBILIDADE DE DESAPARECIMENTO DE VESTÍGIOS. SITUAÇÃO BENÉFICA AO RÉU. 6. EXIGÊNCIA DE CONTEMPORANEIDADE. INVIABILIZAÇÃO DE INVESTIGAÇÕES. PRÁTICA CRIMINOSA QUE OCORRE, EM REGRA, NA CLANDESTINIDADE. 7. PRAZO PARA PRODUÇÃO DE PROVAS. LAPSO PRESCRICIONAL. 8. DECRETO DE BUSCA E APREENSÃO. FUNDAMENTO APENAS EM DECLARAÇÕES DE COLABORADORES. INIDONEIDADE. ART. 4º, § 16, LEI 12.850/2013. 9. FUNDAMENTAÇÃO INIDÔNEA. DESNECESSIDADE DE REVOLVIMENTO DE FATOS E PROVAS. DECRETO NULO. 10. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO PARA ANULAR A BUSCA E APREENSÃO.
1. Diante da utilização crescente e sucessiva do habeas corpus, o Superior Tribunal de Justiça passou a acompanhar a orientação da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, no sentido de ser inadmissível o emprego do writ como sucedâneo de recurso ou revisão criminal, a fim de que não se desvirtue a finalidade dessa garantia constitucional, sem olvidar a possibilidade de concessão da ordem, de ofício, nos casos de flagrante ilegalidade.
2. O § 1º do art. 315 do Código de Processo Penal, incluído pela Lei n. 13.964/2019, encontra-se localizado no Capítulo III, intitulado "Da Prisão Preventiva", inserido no Título IX do Código de Processo Penal, denominado "Da Prisão, Das Medidas Cautelares e Da Liberdade Provisória", estando enumerados dentro do mesmo Título, no Capítulo V, as "outras medidas cautelares". Nesse contexto, a contemporaneidade exigida pelo dispositivo indicado pelo impetrante se refere às medidas constritivas da liberdade, seja a própria prisão preventiva ou as medidas cautelares diversas enumeradas no art. 319 do Código de Processo Penal.
3. Não bastasse a questão topográfica, não se pode descurar que a contemporaneidade guarda estreita relação com as medidas cautelares de natureza pessoal, uma vez que o motivo que determina a restrição da liberdade de uma pessoa deve ser contemporâneo à medida constritiva, sob pena de não mais se justificar. De fato, mister ficar demonstrado o perigo atual gerado pelo estado de liberdade do imputado, conforme disposto no art. 312 do Código de Processo Penal.
4. A busca e apreensão é medida cautelar real e não pessoal, tem natureza jurídica de meio de obtenção de prova e se encontra disciplinada no Capítulo XI do Título VII, intitulado "Da Prova". No referido capítulo, constam requisitos próprios da referida diligência, dentre os quais não se verifica a necessidade de contemporaneidade. Nesse sentido: RHC 119.225/SP, Rel. Ministro LEOPOLDO DE ARRUDA RAPOSO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/PE), QUINTA TURMA, julgado em 19/11/2019, DJe 26/11/2019.
5. Quanto mais distante a prática delitiva for da produção da prova, mais chances se tem de eventuais vestígios terem desaparecido, situação que, em verdade, beneficia o investigado. Nesse contexto, não faz sentido agregar às medidas cautelares reais o requisito da contemporaneidade.
- A contemporaneidade de riscos, de outro lado, não é requisito para a produção probatória. Mesmo passado o tempo, sempre poderá o magistrado determinar a produção de provas pertinentes aos fatos, mesmo sendo elas invasivas da intimidade - fundamentadamente (HC 480.092/DF, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 03/03/2020, DJe 10/03/2020.
6. Considerar que as diligências investigatórias dependem da efetiva demonstração da contemporaneidade com a prática criminosa impossibilitaria inúmeras investigações, uma vez que, em regra, os crimes são cometidos de forma clandestina, acreditando-se na sua não descoberta e na consequente impunidade.
7. Não se pode descurar, ademais, que o prazo previsto para se elucidar uma infração penal guarda relação com a prescrição.
Portanto, enquanto o crime investigado não estiver prescrito, são cabíveis todos os meios de produção de prova, desde que devidamente motivada sua necessidade, não havendo se falar, portanto, em contemporaneidade de medida cautelar não pessoal.
8. No que diz respeito à alegada carência de adequada fundamentação do decreto de busca e apreensão, em virtude de se embasar apenas em depoimentos contraditórios de colaboradores, registro, de início, que, de fato, o art. 4º, § 16, da Lei nº 12.850/2013, estabelece que "nenhuma das seguintes medidas será decretada ou proferida com fundamento apenas nas declarações do colaborador: I - medidas cautelares reais ou pessoais; II - recebimento de denúncia ou queixa-crime; III - sentença condenatória".
9. Na hipótese dos autos, verifica-se, sem necessidade de revolvimento de fatos e provas, mas pela simples leitura do decreto de busca e apreensão, que, realmente, a decisão que decretou a busca e apreensão em desfavor do paciente se encontra deficientemente fundamentada, porquanto embasada apenas em declarações de colaboradores, o que vai de encontro ao disposto no art. 4º, § 16, da Lei n. 12.850/2013.
- Precedentes do STF e do STJ.
10. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício, para para anular o decreto de busca e apreensão, bem como as provas dele derivadas, em virtude de sua deficiente fundamentação, sem prejuízo de que seja novamente decretada a medida, em observância ao regramento legal.
(HC 624.608/CE, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 02/02/2021, DJe 04/02/2021)

 

2. Nos crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores, tanto os bens de origem lícita quanto ilícita poderão ser objeto de constrição. Quando houver confusão patrimonial, a indisponibilidade de bens pode atingir, inclusive, pessoa jurídica ou familiar não denunciado:

PENAL. PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL DA DECISÃO QUE MANTEVE INDISPONIBILIDADE DE BENS. RECURSO TEMPESTIVO. INTERESSE DE AGIR CONFIGURADO. PRELIMINAR DE NULIDADE. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. INOCORRÊNCIA. ALEGAÇÃO DE QUE O PATRIMÔNIO CONSTRITO FOI ADQUIRIDO LICITAMENTE. IRRELEVÂNCIA. ALEGADA BOA-FÉ DE TERCEIROS. CONFUSÃO PATRIMONIAL DE BENS DE FAMÍLIA E DA PESSOA JURÍDICA. CASAMENTO SOB REGIME DE COMUNHÃO UNIVERSAL. COMUNICABILIDADE. PRESSUPOSTOS DA MEDIDA CAUTELAR. ART. 4º, § 4º DA LEI N. 9.613/98. AGRAVANTES SEM FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO. SUPERVENIENTE CISÃO DA AÇÃO PENAL.
CONEXÃO E CONTINÊNCIA. TEORIA JUÍZO APARENTE.
1. As medidas cautelares patrimoniais, previstas nos arts. 125 a 144 do Código de Processo Penal, bem como no art. 4º, § 4º, da Lei n.
9.613/98, destinam-se a garantir, em caso de condenação, tanto a perda do proveito ou produto do crime, como o ressarcimento dos danos causados (danos ex delicto) e o pagamento de pena de multa, custas processuais e demais obrigações pecuniárias impostas.
2. A medida assecuratória de indisponibilidade de bens prevista no art. 4º, § 4º, da Lei n. 9.613/98 permite a constrição de quaisquer bens, direitos ou valores para reparação do dano decorrente do crime ou para pagamento de prestação pecuniária, pena de multa e custas processuais. Desnecessidade de verificar se os bens atingidos têm origem lícita ou ilícita ou se foram adquiridos antes ou depois da infração penal. Interpretação do art. 91, inciso II, alínea b, § 2º, do Código Penal.
3. Hipótese em que a constrição atinge o patrimônio de pessoa jurídica e familiares não denunciados, inclusive o cônjuge casado sob o regime de comunhão universal de bens, o que se mostra necessário, adequado e proporcional às circunstâncias relatadas nos autos, de incorporação de bens ao patrimônio da empresa familiar e transferência de outros bens aos citados familiares, a indicar confusão patrimonial.
4. Investigações iniciadas e denúncia oferecida, perante o STJ, por alcançar Governador de Estado. O posterior desmembramento do processo, com a remessa da ação penal em face dos denunciados sem prerrogativa de foro para outro juízo, não acarreta a nulidade das medidas constritivas determinadas em relação aos agentes não detentores de foro por prerrogativa de função. Caberá ao juiz ao qual distribuída a ação penal desmembrada reexaminar a conveniência ou não de manutenção das medidas cautelares.
5. Agravo regimental a que se nega provimento.
(AgRg no Inq 1.190/DF, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, CORTE ESPECIAL, julgado em 15/09/2021, DJe 24/09/2021)

 

3. exigência de representação no crime de estelionato não retroage a ações iniciadas antes do Pacote Anticrime:

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO. ESTELIONATO. LEI N. 13.964/2019 (PACOTE ANTICRIME). RETROATIVIDADE. INVIABILIDADE. ATO JURÍDICO PERFEITO. CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE. WRIT INDEFERIDO.
1. A retroatividade da norma que previu a ação penal pública condicionada, como regra, no crime de estelionato, é desaconselhada por, ao menos, duas ordens de motivos.
2. A primeira é de caráter processual e constitucional, pois o papel dos Tribunais Superiores, na estrutura do Judiciário brasileiro é o de estabelecer diretrizes aos demais Órgãos jurisdicionais. Nesse sentido, verifica-se que o STF, por ambas as turmas, já se manifestou no sentido da irretroatividade da lei que instituiu a condição de procedibilidade no delito previsto no art. 171 do CP.
3. Em relação ao aspecto material, tem-se que a irretroatividade do art. 171, §5º, do CP, decorre da própria mens legis, pois, mesmo podendo, o legislador previu apenas a condição de procedibilidade, nada dispondo sobre a condição de prosseguibilidade. Ademais, necessário ainda registrar a importância de se resguardar a segurança jurídica e o ato jurídico perfeito (art. 25 do CPP), quando já oferecida a denúncia.
4. Não bastassem esses fundamentos, necessário registrar, ainda, prevalecer, tanto neste STJ quanto no STF, o entendimento "a representação, nos crimes de ação penal pública condicionada, não exige maiores formalidades, sendo suficiente a demonstração inequívoca de que a vítima tem interesse na persecução penal. Dessa forma, não há necessidade da existência nos autos de peça processual com esse título, sendo suficiente que a vítima ou seu representante legal leve o fato ao conhecimentos das autoridades." (AgRg no HC 435.751/DF, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 23/08/2018, DJe 04/09/2018).
6. Habeas corpus indeferido.
(HC 610.201/SP, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 24/03/2021, DJe 08/04/2021)

 

4. A quebra da cadeia de custódia não gera nulidade obrigatória da prova, decide Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça:

"A violação da cadeia de custódia – disciplinada nos artigos 158-A a 158-F do Código de Processo Penal (CPP) – não implica, de maneira obrigatória, a inadmissibilidade ou a nulidade da prova colhida. Nesse caso, eventuais irregularidades devem ser observadas pelo juízo ao lado dos demais elementos produzidos na instrução criminal, a fim de decidir se a prova questionada ainda pode ser considerada confiável. Somente após essa confrontação é que o magistrado, caso não encontre sustentação na prova cuja cadeia de custódia foi violada, pode retirá-la dos autos ou declará-la nula" (fonte: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/09122021-Quebra-da-cadeia-de-custodia-nao-gera-nulidade-obrigatoria-da-prova--define-Sexta-Turma.aspx)

Leia a decisão do HC 653515: stj_dje__0_28370504

 

5. É inepta a denúncia que atribui responsabilidade penal à pessoa física levando em consideração apenas a sua qualidade dentro da empresa:

AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. PRETENSÃO DE TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. INÉPCIA DA DENÚNCIA. INICIAL CONDUTA IMPUTADA. CONSIDERAÇÃO, APENAS, DA CONDIÇÃO DOS RECORRENTES DENTRO DA EMPRESA. AUSÊNCIA DE MENÇÃO DA COMPETÊNCIA FUNCIONAL DO IMPUTADO. CONFIGURAÇÃO DE RESPONSABILIDADE PENAL OBJETIVA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO.
1. É entendimento pacífico do Superior Tribunal de Justiça que o trancamento de ação penal pela via eleita é medida excepcional, cabível apenas quando demonstrada, de plano, a atipicidade da conduta, a extinção da punibilidade ou a manifesta ausência de provas da existência do crime e de indícios de autoria. Precedentes.
2. Esta Corte Superior tem reiteradamente decidido ser inepta a denúncia que, mesmo em crimes societários e de autoria coletiva, atribui responsabilidade penal à pessoa física, levando em consideração apenas a qualidade dela dentro da empresa, deixando de demonstrar o vínculo desta com a conduta delituosa, por configurar, além de ofensa à ampla defesa, ao contraditório e ao devido processo legal, responsabilidade penal objetiva, repudiada pelo ordenamento jurídico pátrio.
3. No caso dos autos, atribuiu-se aos acusados a conduta de promover a redução de tributos devidos ao Estado de Santa Catarina, limitando-se a denúncia a indicar os cargos por eles ocupados no âmbito da empresa, deixando de descrever qualquer conduta ou fato que os ligasse, minimamente, ao delito nela indicado.
4. Agravo regimental provido para prover o recurso em habeas corpus de modo a reconhecer a inépcia da denúncia de fls. 26/29 e trancar a ação penal proposta contra os recorrentes, sem prejuízo de que outra seja oferecida, desde que preenchidas as exigências legais.
(AgRg no RHC 132.900/SC, Rel. Ministra LAURITA VAZ, Rel. p/ Acórdão Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 17/08/2021, DJe 02/09/2021)

 

6. É ilícita prova obtida por meio de prints do WhatsApp Web: 

"As mensagens obtidas por meio do print screen da tela da ferramenta WhatsApp Web devem ser consideradas provas ilícitas e, portanto, desentranhadas dos autos", afirmou o relator do caso, ministro Nefi Cordeiro.

Processo:  RHC 133.430 (segredo de justiça)

 

7. Juiz que questiona detalhadamente a testemunha de acusação desrespeita o preconizado pelo artigo 212 do Código de Processo Penal:

HABEAS CORPUS. IMPETRAÇÃO QUE FIGURA COMO SUCEDÂNEO DE REVISÃO CRIMINAL. NÃO CONHECIMENTO. CONCESSÃO DA ORDEM DE OFÍCIO. POSSIBILIDADE.
ILEGALIDADE FLAGRANTE VERIFICADA NO CASO CONCRETO. ATUAÇÃO DO JUIZ E ORDEM DE INQUIRIÇÃO DE TESTEMUNHAS. ART. 212 DO CPP. AUSÊNCIA DE JUSTIFICATIVA APTA A AFASTAR A INCIDÊNCIA DE NORMA COGENTE E DE APLICABILIDADE IMEDIATA. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. ATUAÇÃO ATIVA E DE PROTAGONISMO DESEMPENHADA PELO JUÍZO A QUO NA INQUIRIÇÃO DE TESTEMUNHAS DE ACUSAÇÃO. AFRONTA AO PRINCÍPIO ACUSATÓRIO. COMPROMETIMENTO AO ACTUM TRIUM PERSONARUM UTILIZAÇÃO DE DEPOIMENTOS COLHIDOS EM DESCOMPASSO COM A LEGISLAÇÃO DE REGÊNCIA PARA FUNDAMENTAR O DECRETO CONDENATÓRIO. PREJUÍZO DEMONSTRADO. RÉU CUSTODIADO EM DECORRÊNCIA DE SENTENÇA ORA REPUTADA NULA. RESTITUIÇÃO AO STATUS LIBERTATIS QUE SE IMPÕE. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO PARA RECONHECER A NULIDADE DA AÇÃO PENAL ORIGINÁRIA A PARTIR DA AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO E JULGAMENTO E DETERMINAR A IMEDIATA SOLTURA DO PACIENTE .
1. A Constituição Federal de 1988, ao atribuir a privatividade da promoção da ação penal pública ao Ministério Público (art. 129, I); ao assegurar aos ligantes o direito ao contraditório e à ampla defesa e assentar o advogado como função essencial à Justiça (art. 5º, LV e 133); bem como, ao prever a resolução da lide penal, após o devido processo legal, por um terceiro imparcial, o Juiz natural (art. 5º, LIII e LXI; 93 e seguintes), consagra o sistema acusatório.
2. A separação entre as atividades de acusar e julgar não autoriza que o juiz, em substituição ao órgão de acusação, assuma papel ativo na produção probatória, sob pena de quebra da necessária imparcialidade do Poder Judiciário.
3. O processo penal é instrumento de legitimação do direito de punir do Estado e, para que a intervenção estatal opere nas liberdades individuais com legitimidade, é necessário o respeito à legalidade estrita e às garantias fundamentais.
4. No que tange à oitiva das testemunhas em audiência de instrução e julgamento, deve o magistrado, em atenção ao art. 212 do CPP, logo após a qualificação do depoente, passar a palavra às partes, a fim de que produzam a prova, somente cabendo-lhe intervir em duas hipóteses: se evidenciada ilegalidade ou irregularidade na condução do depoimento ou, ao final, para complementar a oitiva, se ainda existir dúvida - nessa última hipótese sempre atuando de forma supletiva e subsidiária (como se extrai da expressão “poderá complementar”).
5. A redação do art. 212 é clara e não encerra uma opção ou recomendação. Trata-se de norma cogente, de aplicabilidade imediata, e portanto o seu descumprimento pelo magistrado acarreta nulidade à ação penal correlata quando demonstrado prejuízo ao acusado.
6. A demonstração de efetivo prejuízo no campo das nulidades processuais penais é sempre prospectiva e nunca presumida. É dizer, não cabe ao magistrado já antecipar e prever que a inobservância a norma processual cogente gerará ou não prejuízo à parte, pois desconhece quo ante a estratégia defensiva.
7. Demonstrado, no caso dos autos, iniciativa e protagonismo exercido pelo Juízo singular na inquirição das testemunhas de acusação e verificado que foram esses elementos considerados na fundamentação do decreto condenatório, forçoso reconhecer a existência de prejuízo ao acusado.

8. O Juízo a quo ao iniciar e questionar detalhadamente a testemunha de acusação, além de subverter a norma processual do art. 212 do CPP, violando a diretiva legal, exerceu papel que não lhe cabia na dinâmica instrutória da ação penal, comprometendo o actum trium personarum, já que a “separação rígida entre, de um lado, as tarefas de investigar e acusar e, de outro, a função propriamente jurisdicional” é consectário lógico e inafastável do sistema penal acusatório (ADIMC 5.104, Plenário, Rel. Min. Roberto Barroso, j. 21.5.2014 ).
9. Habeas corpus concedido de ofício a fim de reconhecer a nulidade da ação penal originária a partir da audiência de instrução e julgamento e, como consequência, restituir a liberdade ao acusado, a fim de que responda solto à instrução da ação penal que deverá ser renovada.

Leia o acordão:  HC 202.557

 

8. Em regra, a homologação do acordo de colaboração deverá ser feita no juízo competente para autorizar as medidas de produção de prova e julgar os crimes cometidos pelo colaborador. Se a proposta de acordo ocorrer depois da sentença e antes do julgamento de eventual recurso, a homologação será incluída no acórdão do Tribunal. 

Penal e processual penal. Habeas corpus. Cabimento para questionar decisão que não homologou colaboração premiada. Competência para homologação do acordo. Benefício de não oferecimento da denúncia (art. 4º, §4º, Lei 12.850/2013) em relação a três fatos. Processos distintos. Sentença já proferida contra corréus. Competência do Juízo de primeiro grau para análise quanto à homologação em relação a todos os fatos conexos. Ordem parcialmente concedida.
(HC 192063, Relator(a): GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 02/02/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-063 DIVULG 06-04-2021 PUBLIC 07-04-2021)

 

9. Após o advento da Lei n. 13.964/2019, não é possível a conversão ex offício da prisão em flagrante em preventiva, mesmo nas situações em que não ocorre audiência de custódia:

PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. PRISÃO. CONVERSÃO EX OFFICIO DA PRISÃO EM FLAGRANTE EM PREVENTIVA. IMPOSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE REQUERIMENTO PRÉVIO OU PELO MINISTÉRIO PÚBLICO, OU PELO QUERELANTE, OU PELO ASSISTENTE, OU, POR FIM, MEDIANTE REPRESENTAÇÃO DA AUTORIDADE POLICIAL.
1. Em razão do advento da Lei n. 13.964/2019 não é mais possível a conversão ex officio da prisão em flagrante em prisão preventiva.
Interpretação conjunta do disposto nos arts. 3º-A, 282, § 2º, e 311, caput, todos do CPP.
2. IMPOSSIBILIDADE, DE OUTRO LADO, DA DECRETAÇÃO "EX OFFICIO" DE PRISÃO PREVENTIVA EM QUALQUER SITUAÇÃO (EM JUÍZO OU NO CURSO DE INVESTIGAÇÃO PENAL) INCLUSIVE NO CONTEXTO DE AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA (OU DE APRESENTAÇÃO), SEM QUE SE REGISTRE, MESMO NA HIPÓTESE DA CONVERSÃO A QUE SE REFERE O ART. 310, II, DO CPP, PRÉVIA, NECESSÁRIA E INDISPENSÁVEL PROVOCAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO OU DA AUTORIDADE POLICIAL - RECENTE INOVAÇÃO LEGISLATIVA INTRODUZIDA PELA LEI N.
13.964/2019 ("LEI ANTICRIME"), QUE ALTEROU OS ARTS. 282, §§ 2º e 4º, E 311 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, SUPRIMINDO AO MAGISTRADO A POSSIBILIDADE DE ORDENAR, "SPONTE SUA", A IMPOSIÇÃO DE PRISÃO PREVENTIVA - NÃO REALIZAÇÃO, NO CASO, DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA (OU DE APRESENTAÇÃO) - INADMISSIBILIDADE DE PRESUMIR-SE IMPLÍCITA, NO AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE, A EXISTÊNCIA DE PEDIDO DE CONVERSÃO EM PRISÃO PREVENTIVA - CONVERSÃO, DE OFÍCIO, MESMO ASSIM, DA PRISÃO EM FLAGRANTE DO ORA PACIENTE EM PRISÃO PREVENTIVA - IMPOSSIBILIDADE DE TAL ATO, QUER EM FACE DA ILEGALIDADE DESSA DECISÃO. [...] - A reforma introduzida pela Lei n. 13.964/2019 ("Lei Anticrime") modificou a disciplina referente às medidas de índole cautelar, notadamente aquelas de caráter pessoal, estabelecendo um modelo mais consentâneo com as novas exigências definidas pelo moderno processo penal de perfil democrático e assim preservando, em consequência, de modo mais expressivo, as características essenciais inerentes à estrutura acusatória do processo penal brasileiro. - A Lei n. 13.964/2019, ao suprimir a expressão "de ofício" que constava do art. 282, §§ 2º e 4º, e do art. 311, todos do Código de Processo Penal, vedou, de forma absoluta, a decretação da prisão preventiva sem o prévio "requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público" (grifo nosso), não mais sendo lícita, portanto, com base no ordenamento jurídico vigente, a atuação "ex officio" do Juízo processante em tema de privação cautelar da liberdade. - A interpretação do art. 310, II, do CPP deve ser realizada à luz dos arts. 282, §§ 2º e 4º, e 311, do mesmo estatuto processual penal, a significar que se tornou inviável, mesmo no contexto da audiência de custódia, a conversão, de ofício, da prisão em flagrante de qualquer pessoa em prisão preventiva, sendo necessária, por isso mesmo, para tal efeito, anterior e formal provocação do Ministério Público, da autoridade policial ou, quando for o caso, do querelante ou do assistente do MP. Magistério doutrinário. Jurisprudência. [...] - A conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva, no contexto da audiência de custódia, somente se legitima se e quando houver, por parte do Ministério Público ou da autoridade policial (ou do querelante, quando for o caso), pedido expresso e inequívoco dirigido ao Juízo competente, pois não se presume - independentemente da gravidade em abstrato do crime - a configuração dos pressupostos e dos fundamentos a que se refere o art. 312 do Código de Processo Penal, que hão de ser adequada e motivadamente comprovados em cada situação ocorrente. Doutrina. PROCESSO PENAL - PODER GERAL DE CAUTELA - INCOMPATIBILIDADE COM OS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE ESTRITA E DA TIPICIDADE PROCESSUAL - CONSEQUENTE INADMISSIBILIDADE DA ADOÇÃO, PELO MAGISTRADO, DE MEDIDAS CAUTELARES ATÍPICAS, INESPECÍFICAS OU INOMINADAS EM DETRIMENTO DO "STATUS LIBERTATIS" E DA ESFERA JURÍDICA DO INVESTIGADO, DO ACUSADO OU DO RÉU - O PROCESSO PENAL COMO INSTRUMENTO DE SALVAGUARDA DA LIBERDADE JURÍDICA DAS PESSOAS SOB PERSECUÇÃO CRIMINAL. - Inexiste, em nosso sistema jurídico, em matéria processual penal, o poder geral de cautela dos Juízes, notadamente em tema de privação e/ou de restrição da liberdade das pessoas, vedada, em consequência, em face dos postulados constitucionais da tipicidade processual e da legalidade estrita, a adoção, em detrimento do investigado, do acusado ou do réu, de provimentos cautelares inominados ou atípicos. O processo penal como instrumento de salvaguarda da liberdade jurídica das pessoas sob persecução criminal. Doutrina. Precedentes: HC n. 173.791/MG, Ministro Celso de Mello - HC n. 173.800/MG, Ministro Celso de Mello - HC n. 186.209 - MC/SP, Ministro Celso de Mello, v.g. (HC n. 188.888/MG, Ministro Celso de Mello, Segunda Turma, julgado em 6/10/2020).
3. Da análise do auto de prisão é possível se concluir que houve ilegalidade no ingresso pela polícia do domicilio do paciente e, por conseguinte, que são inadmissíveis as provas daí derivadas e, consequentemente, sua própria prisão. Tal conclusão autoriza a concessão de ordem de ofício.
4. Recurso em habeas corpus provido para invalidar, por ilegal, a conversão ex officio da prisão em flagrante do ora recorrente em prisão preventiva. Ordem concedida de ofício, para anular o processo, ab initio, por ilegalidade da prova de que resultou sua prisão, a qual, por conseguinte, deve ser imediatamente relaxada também por essa razão.
(RHC 131.263/GO, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 24/02/2021, DJe 15/04/2021)

 

10. Terceira Seção define critérios para progressão penal de condenados com reincidência genérica:

"É reconhecida a retroatividade do patamar estabelecido no art. 112, V, da Lei n. 13.964/2019, àqueles apenados que, embora tenham cometido crime hediondo ou equiparado sem resultado morte, não sejam reincidentes em delito de natureza semelhante",

Leia a decisão: 1910240 MG

 

11. Terceira Seção admite que tempo de recolhimento domiciliar com tornozeleira seja descontado da pena:

HABEAS CORPUS. PENAL. MEDIDA CAUTELAR DE RECOLHIMENTO NOTURNO, AOS FINAIS DE SEMANA E DEMAIS DIAS NÃO ÚTEIS (FISCALIZADA, NA ESPÉCIE, POR MONITORAÇÃO ELETRÔNICA). DETRAÇÃO. PRINCÍPIO DA HUMANIDADE. ESPECIAL PERCEPÇÃO DA PESSOA PRESA COMO SUJEITO DE DIREITOS. ÓBICE À DETRAÇÃO DO TEMPO DE RECOLHIMENTO DOMICILIAR DETERMINADO COMO MEDIDA SUBSTITUTIVA DA PRISÃO PREVENTIVA. EXCESSO DE EXECUÇÃO. MEDIDA CAUTELAR QUE SE ASSEMELHA AO CUMPRIMENTO DE PENA EM REGIME PRISIONAL SEMIABERTO. UBI EADEM RATIO, IBI EADEM LEGIS DISPOSITIO. HIPÓTESES DO ART. 42 DO CÓDIGO PENAL QUE NÃO SÃO NUMERUS CLAUSUS. PARECER MINISTERIAL ACOLHIDO. ORDEM DE HABEAS CORPUS CONCEDIDA.
1. A detração é prevista no art. 42 do Código Penal, segundo o qual se computa, "na pena privativa de liberdade e na medida de segurança, o tempo de prisão provisória, no Brasil ou no estrangeiro, o de prisão administrativa e o de internação em qualquer dos estabelecimentos referido no artigo anterior".
2. Interpretar a legislação que regula a detração de forma que favoreça o Sentenciado harmoniza-se com o Princípio da Humanidade, que impõe ao Juiz da Execução Penal a especial percepção da pessoa presa como sujeito de direitos. Doutrina.
3. No clássico Direito e Razão, Ferrajoli esclareceu a dupla função preventiva do Direito Penal. De um lado, há a finalidade de prevenção geral dos delitos, decorrente das exigências de segurança e defesa social. De outro, o Direito Penal visa também a prevenir penas arbitrárias ou desmedidas. Essas duas funções são conexas e legitimam o Direito Penal como instrumento concreto para a tutela dos direitos fundamentais, ao definir concomitantemente dois limites que devem minimizar uma dupla violência: a prática de delitos é antijurídica, mas também o é a punição excessiva.
4. O óbice à detração do tempo de recolhimento noturno e aos finais de semana determinado com fundamento no art. 319 do Código de Processo Penal sujeita o Apenado a excesso de execução, em razão da limitação objetiva à liberdade concretizada pela referida medida diversa do cárcere.
5. A medida diversa da prisão que impede o Acautelado de sair de casa após o anoitecer e em dias não úteis assemelha-se ao cumprimento de pena em regime prisional semiaberto. Se nesta última hipótese não se diverge que a restrição da liberdade decorre notadamente da circunstância de o Agente ser obrigado a recolher-se, igual premissa deve permitir a detração do tempo de aplicação daquela limitação cautelar. Ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio: onde existe a mesma razão fundamental, aplica-se a mesma regra jurídica.
6. O Superior Tribunal de Justiça, nos casos em que há a configuração dos requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal, admite que a condenação em regime semiaberto produza efeitos antes do trânsito em julgado da sentença (prisão preventiva compatibilizada com o regime carcerário do título prisional). Nessa perspectiva, mostra-se incoerente impedir que a medida cautelar que pressuponha a saída do Paciente de casa apenas para laborar, e durante o dia, seja descontada da reprimenda.
7. Conforme ponderou em seu voto-vogal o eminente Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, o réu submetido a recolhimento noturno domiciliar e dias não úteis - ainda que se encontre em situação mais confortável em relação àqueles a quem se impõe o retorno ao estabelecimento prisional -, "não é mais senhor da sua vontade", por não dispor da mesma autodeterminação de uma pessoa integralmente livre. Assim, em razão da evidente restrição ao status libertatis nesses casos, deve haver a detração.
8. Conjuntura que impõe o reconhecimento de que as hipóteses do art.
42 do Código Penal não consubstanciam rol taxativo.
9. A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça deliberou que a soma das horas de recolhimento domiciliar a que o Paciente foi submetido devem ser convertidas em dias para contagem da detração da pena. Se no cômputo total remanescer período menor que vinte e quatro horas, essa fração de dia deverá ser desprezada.
10. Parecer ministerial acolhido. Ordem de habeas corpus concedida, para que o período de recolhimento domiciliar a que o Paciente foi submetido (fiscalizado, no caso, por monitoramento eletrônico) seja detraído da pena do Paciente, nos termos do presente julgamento.
(HC 455.097/PR, Rel. Ministra LAURITA VAZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 14/04/2021, DJe 07/06/2021)

Leia a decisão: HC 455.097

 

12. Multa não impede extinção da punibilidade para condenado que não pode pagar:

RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. EXECUÇÃO PENAL. REVISÃO DE TESE. TEMA 931. CUMPRIMENTO DA SANÇÃO CORPORAL. PENDÊNCIA DA PENA DE MULTA. CUMPRIMENTO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE OU DE RESTRITIVA DE DIREITOS SUBSTITUTIVA. INADIMPLEMENTO DA PENA DE MULTA. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. COMPREENSÃO FIRMADA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO JULGAMENTO DA ADI N. 3.150/DF. MANUTENÇÃO DO CARÁTER DE SANÇÃO CRIMINAL DA PENA DE MULTA. PRIMAZIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA EXECUÇÃO DA SANÇÃO PECUNIÁRIA. ALTERAÇÃO LEGISLATIVA DO ART. 51 DO CÓDIGO PENAL. DISTINGUISHING. IMPOSSIBILIDADE DE CUMPRIMENTO DA PENA PECUNIÁRIA PELOS CONDENADOS HIPOSSUFICIENTES. PRINCÍPIO DA INTRASCENDÊNCIA DA PENA. VIOLAÇÃO DE PRECEITOS FUNDAMENTAIS. EXCESSO DE EXECUÇÃO. RECURSO PROVIDO.
1. A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento do Recurso Especial Representativo da Controvérsia n. 1.519.777/SP (Rel. Ministro Rogerio Schietti, 3ª S., DJe 10/9/2015), assentou a tese de que "[n]os casos em que haja condenação a pena privativa de liberdade e multa, cumprida a primeira (ou a restritiva de direitos que eventualmente a tenha substituído), o inadimplemento da sanção pecuniária não obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade".
2. Entretanto, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.150 (Rel. Ministro Marco Aurélio, Rel. p/ Acórdão Ministro Roberto Barroso, Tribunal Pleno, DJe-170 divulg. 5/8/2019 public.6/8/2019), o Pretório Excelso firmou o entendimento de que a alteração do art. 51 do Código Penal, promovida Lei n. 9.268/1996, não retirou o caráter de sanção criminal da pena de multa, de modo que a primazia para sua execução incumbe ao Ministério Público e o seu inadimplemento obsta a extinção da punibilidade do apenado. Tal compreensão foi posteriormente sintetizada em nova alteração do referido dispositivo legal, levada a cabo pela Lei n. 13.964/2019.
3. Em decorrência do entendimento firmado pelo STF, bem como em face da mais recente alteração legislativa sofrida pelo artigo 51 do Código Penal, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento dos Recursos Especiais Representativos da Controvérsia n. 1.785.383/SP e 1.785.861/SP (Rel. Ministro Rogerio Schietti, 3ª S., DJe 21/9/2021), reviu a tese anteriormente aventada no Tema n. 931, para assentar que, "na hipótese de condenação concomitante a pena privativa de liberdade e multa, o inadimplemento da sanção pecuniária obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade".
4. Ainda consoante o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal julgamento da ADI n. 3.150/DF, "em matéria de criminalidade econômica, a pena de multa desempenha um papel proeminente de prevenção específica, prevenção geral e retribuição".
5. Na mesma direção, quando do julgamento do Agravo Regimental na Progressão de Regime na Execução Penal n. 12/DF, a Suprema Corte já havia ressaltado que, "especialmente em matéria de crimes contra a Administração Pública - como também nos crimes de colarinho branco em geral -, a parte verdadeiramente severa da pena, a ser executada com rigor, há de ser a de natureza pecuniária. Esta, sim, tem o poder de funcionar como real fator de prevenção, capaz de inibir a prática de crimes que envolvam apropriação de recursos públicos".
6. Mais ainda, segundo os próprios termos em que o Supremo Tribunal Federal decidiu pela indispensabilidade do pagamento da sanção pecuniária para o gozo da progressão a regime menos gravoso, "[a] exceção admissível ao dever de pagar a multa é a impossibilidade econômica absoluta de fazê-lo. [...] é possível a progressão se o sentenciado, veraz e comprovadamente, demonstrar sua absoluta insolvabilidade. Absoluta insolvabilidade que o impossibilite até mesmo de efetuar o pagamento parcelado da quantia devida, como autorizado pelo art. 50 do Código Penal" (Rel. Ministro Roberto Barroso, Tribunal Pleno, DJe-111 divulg. 10/6/2015 public.
11/6/2015).
7. Nota-se o manifesto endereçamento das decisões retrocitadas àqueles condenados que possuam condições econômicas de adimplir a sanção pecuniária, de modo a impedir que o descumprimento da decisão judicial resulte em sensação de impunidade.
8. Oportunamente, mencione-se também o teor da Recomendação n. 425, de 8 de outubro de 2021, do Conselho Nacional de Justiça, a qual institui, no âmbito do Poder Judiciário, a Política Nacional Judicial de Atenção a Pessoas em Situação de Rua e suas interseccionalidades, abordando de maneira central a relevância da extinção da punibilidade daqueles a quem remanesce tão-somente o resgate da pena pecuniária, ao estabelecer, em seu art. 29, parágrafo único, que, "[n]o curso da execução criminal, cumprida a pena privativa de liberdade e verificada a situação de rua da pessoa egressa, deve-se observar a possibilidade de extinção da punibilidade da pena de multa".
9. Releva, por seu turno, obtemperar que a realidade do País desafia um exame do tema sob outra perspectiva, de sorte a complementar a razão final que inspirou o julgamento da Suprema Corte na ADI 3.150/DF. Segundo dados do Infopen, até dezembro de 2020, 40,91% dos presos no país estavam cumprindo pena pela prática de crimes contra o patrimônio; 29,9%, por tráfico de drogas, seguidos de 15,13% por crimes contra a pessoa, crimes que cominam pena privativa de liberdade concomitantemente com pena de multa.
10. Não se há, outrossim, de desconsiderar que o cenário do sistema carcerário expõe as vísceras das disparidades sócio-econômicas arraigadas na sociedade brasileira, as quais ultrapassam o inegável caráter seletivo do sistema punitivo e se projetam não apenas como mecanismo de aprisionamento físico, mas também de confinamento em sua comunidade, a reduzir, amiúde, o indivíduo desencarcerado ao status de um pária social. Outra não é a conclusão a que poderia conduzir - relativamente aos condenados em comprovada situação de hipossuficiência econômica - a subordinação da retomada dos seus direitos políticos e de sua consequente reinserção social ao prévio adimplemento da pena de multa.
11. Conforme salientou a instituição requerente, o quadro atual tem produzido "a sobrepunição da pobreza, visto que o egresso miserável e sem condições de trabalho durante o cumprimento da pena (menos de 20% da população prisional trabalha, conforme dados do INFOPEN), alijado dos direitos do art. 25 da LEP, não tem como conseguir os recursos para o pagamento da multa, e ingressa em círculo vicioso de desespero".
12. Ineludível é concluir, portanto, que o condicionamento da extinção da punibilidade, após o cumprimento da pena corporal, ao adimplemento da pena de multa transmuda-se em punição hábil tanto a acentuar a já agravada situação de penúria e de indigência dos apenados hipossuficientes, quanto a sobreonerar pessoas próximas do condenado, impondo a todo o seu grupo familiar privações decorrentes de sua impossibilitada reabilitação social, o que põe sob risco a implementação da política estatal proteção da família (art. 226 da Carta de 1988).
13. Demais disso, a barreira ao reconhecimento da extinção da punibilidade dos condenados pobres, para além do exame de benefícios executórios como a mencionada progressão de regime, frustra fundamentalmente os fins a que se prestam a imposição e a execução das reprimendas penais, e contradiz a inferência lógica do princípio isonômico (art. 5º, caput da Constituição Federal) segundo a qual desiguais devem ser tratados de forma desigual. Mais ainda, desafia objetivos fundamentais da República, entre os quais o de "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais" (art. 3º, III).
14. A extinção da punibilidade, quando pendente apenas o adimplemento da pena pecuniária, reclama para si singular relevo na trajetória do egresso de reconquista de sua posição como indivíduo aos olhos do Estado, ou seja, do percurso de reconstrução da existência sob as balizas de um patamar civilizatório mínimo, a permitir outra vez o gozo e o exercício de direitos e garantias fundamentais, cujo panorama atual de interdição os conduz a atingir estágio de desmedida invisibilidade, a qual encontra, em última análise, semelhança à própria inexistência de registro civil.
15. Recurso especial provido, para acolher a seguinte tese: Na hipótese de condenação concomitante a pena privativa de liberdade e multa, o inadimplemento da sanção pecuniária, pelo condenado que comprovar impossibilidade de fazê-lo, não obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade.
(REsp 1785861/SP, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 24/11/2021, DJe 30/11/2021)

 

13. Terceira Seção admite realização de audiência de custódia em comarca diversa do local da prisão:

CONFLITO DE COMPETÊNCIA. PROCESSUAL PENAL. PRISÃO EM FLAGRANTE REALIZADA QUANDO DO CUMPRIMENTO DE MANDADO DE BUSCA E APREENSÃO.
UNIDADE JURISDICIONAL DIVERSA. AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA. INVESTIGADO JÁ TRANSFERIDO PARA A COMARCA PREVENTA. AUSÊNCIA DE RAZOABILIDADE DE RETORNO PARA A REALIZAÇÃO DO ATO. CONFLITO CONHECIDO PARA DECLARAR COMPETENTE O JUÍZO SUSCITADO.
1. Nos termos da jurisprudência desta Corte, a audiência de custódia deve ser realizada na localidade em que ocorreu a prisão.
No caso, porém, o Investigado já foi conduzido à Comarca do Juízo que determinou a busca e apreensão, há aparente conexão probatória com outros casos e prevenção daquele Juízo, de forma que não se mostra razoável determinar o retorno do Investigado para análise do auto de prisão em flagrante, notadamente em razão da celeridade que deve ser empregada em casos de análise da legalidade da custódia.
2. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo de Direito da Comarca de São Lourenço do Oeste/SC, o Suscitado.
(CC 182.728/PR, Rel. Ministra LAURITA VAZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 13/10/2021, DJe 19/10/2021)

Leia a decisão: CONFLITO DE COMPETÊNCIA Nº 182.728

 

 


Presidente Jair Bolsonaro sanciona nova lei sobre mercado de câmbio

O presidente Jair Bolsonaro sancionou a Lei 14.286/2021, que dispõe sobre o mercado de câmbio brasileiro, o capital brasileiro no exterior, o capital estrangeiro no País e a prestação de informações ao Banco Central do Brasil. Conhecida como o novo marco cambial do País, o texto moderniza a legislação atual, que é de 1935, e representa uma “revolução” no mercado de câmbio, de acordo com o Banco Central. A lei sancionada está publicada no Diário Oficial da União (DOU) desta quinta-feira (30) e entra em vigor em um ano.

Dentre as principais novidades da nova lei sobre o mercado de câmbio, estão: mudança do teto do valor permitido durante viagens internacionais, de R$ 10 mil para US$ 10 mil ou equivalente; liberação para que pessoa física possa realizar no País operações de compra ou venda de moeda estrangeira em espécie no valor de até US$ 500 ou seu equivalente em outras moedas, de forma eventual e não profissional; facilitação para que compra e venda de moeda estrangeira possa ser feita com outros agentes, e não apenas bancos e corretoras; facilitação para que bancos e instituições financeiras possam investir no exterior; possibilidade de abertura de conta em dólar no Brasil por um investidor estrangeiro ou em casos específicos que devem ser justificados ao Banco Central; e facilitação de remessa do exterior para uma instituição brasileira que tenha um correspondente bancário fora do País.

Em nota, a Secretaria-Geral da Presidência da República ressalta que “a proposta possibilita que bancos e instituições financeiras brasileiros invistam no exterior recursos captados no País ou no exterior, além de facilitar o uso da moeda brasileira em transações internacionais”. Também, as instituições financeiras autorizadas a funcionar pelo Banco Central poderão usar os recursos para alocar, investir, financiar ou emprestar no território nacional ou estrangeiro.

A lei ainda abre maior possibilidade de pagamento em moeda estrangeira de obrigações devidas no território nacional e passa a permitir pagamentos de contratos de arrendamento mercantil (leasing) feitos entre residentes no Brasil, se os recursos forem captados no exterior.

Pelo novo marco cambial, algumas atribuições do Conselho Monetário Nacional (CMN) são transferidas para o Banco Central, “como a regulação das operações de câmbio, contratos futuros de câmbio usados pelo Banco Central e a organização e fiscalização de corretoras de valores de bolsa e de câmbio”.

Com informações de Estadão Conteúdo (Luci Ribeiro)

Fonte: Mercado e Consumo

Acessado dia 01/01/2022 no link: https://mercadoeconsumo.com.br/2021/12/30/presidente-jair-bolsonaro-sanciona-nova-lei-sobre-mercado-de-cambio/amp/

 


BOLETIM DO NUPPE

O Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da UFPR apresenta o seu Boletim do ano de 2021. O IBDPE tem grande felicidade em patrocinar este promissor grupo de pesquisa e O Boletim esá disponível no seguinte link:

Boletim Anual do NUPPE


O ETERNO RETORNO DO AUTORITARISMO

​Por Khalil Vieira Proença Aquim
Artigo do colunista Khalil Vieira Proença Aquim no sala de aula criminal, abordando o importante tema do autoritarismo no processo penal, observado o caso de repercussão nacional da Boate Kiss, vale a leitura!
''Curiosamente, vale relembrar, a Súmula 691 do próprio Supremo Tribunal Federal veda o conhecimento de habeas corpus impetrado contra decisão monocrática. No mesmo sentido, por coerência sistêmica, imperativo também seria o não conhecimento de pleito acusatório.
Importante, então, deixar claro: os precedentes citados não guardam qualquer relação concreta com o caso da boate Kiss''.


            No dia 13 de dezembro de 1968 foi promulgado o Ato Institucional nº 5. O ato foi o mais severo de todo o regime militar, conferindo poderes de exceção ao Presidente da República, que poderia agir “sem as limitações previstas na Constituição”[1], suspender direitos e restringir liberdades individuais sendo “defesa sua apreciação pelo Poder Judiciário”[2], demitir, remover ou aposentar funcionários públicos, porquanto suspensa estabilidade constitucional[3] e decretar estado de sítio[4].
Ainda, e pelo único período da história nacional, foi determinado no art. 10 do Ato Institucional a suspensão da garantia do habeas corpus nos crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social, e a economia popular.
O Ato vigorou até a promulgação da Emenda Constitucional nº 11, em outubro de 1978, que revogou os Atos Institucionais que contrariassem a Constituição.
Exatamente uma década depois, em 1988, promulgou-se a vigente Constituição Cidadã, consagrando em  seu segundo título direitos e garantias fundamentais, dentre os quais se insere a concessão de habeas corpus (art. 5º, LXVIII). Direito que, passadas cinco décadas do AI-5, vê-se novamente em risco de mitigação.
Na última semana, noticiou-se amplamente o julgamento de quatro acusados de terem agido com suposto dolo eventual na trágica fatalidade que vitimou centenas de pessoas na boate Kiss, em Santa Maria/RS. Ao final, foram os quatro condenados, tendo o juiz presidente decretado a execução imediata da pena privativa de liberdade, nos termos do art. 492, I, e, CPP. Uma das defesas, porém, havia impetrado writ preventivo de habeas corpus, tendo obtido decisão liminar do TJRS impedindo a execução provisória da pena.
Em face disso, no dia 13 de dezembro, o Ministério Público do Rio Grande do Sul, em grave deturpação de seu papel institucional, sem interpor sequer agravo interno, como pontuou Alberto Zacharias Toron[5], não aguardou o julgamento de mérito do writ nem encaminhou qualquer medida ao Superior Tribunal de Justiça (instância imediatamente superior), mas dirigiu-se diretamente ao Supremo Tribunal Federal protocolando pedido de Suspensão de Liminar (SL 1504 MC).
O fundamento buscado para tanto teve por base o art. 297 do Regimento Interno do STF e o art. 4º da Lei nº 8.437/92 - cuja redação expressa aponta a possibilidade de suspensão de execução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes. Cita como precedentes a SL 453 MC, a SL 787 e a SL 1395. Necessário, portanto, um breve distinguishing dos casos mencionados.
A SL 453 MC, de relatoria do Min. Cezar Peluso, foi julgada em 2010, e tinha por objeto a suspensão de ordem liminar de habeas corpus deferida para que o paciente, condenado, retornasse à unidade prisional onde cumpria inicialmente a pena:
“Requer o Estado do Rio de Janeiro, em síntese, que o réu cumpra o restante da pena privativa de liberdade em presídio federal de segurança máxima (Mossoró), alega que seu retorno aos presídios do Rio de Janeiro causará irreparável lesão à ordem e à segurança pública.”

A SL 787, por sua vez, de relatoria do Min. Joaquim Barbosa, foi julgada em 2014, e tinha por objeto a suspensão de ordens liminares de habeas corpus deferidas que versavam sobre a alteração das posições cênicas dos plenários de júri no Rio Grande do Sul:
“Por essa razão, argumenta, ajuizou a presente suspensão de liminar sustentando: a) impropriedade do habeas corpus para o questionamento da disposição cênica do plenário do Tribunal do Júri, haja vista que a tutela pretendida no caso não se refere à liberdade de locomoção; b) violação ao enunciado da Súmula Vinculante 10, pois as decisões proferidas pelo TJRS afastaram a incidência de dispositivos da Lei Orgânica do Ministério Público, mesmo sem haver declaração expressa de inconstitucionalidade; e c) lesão à ordem e à segurança públicas em decorrência do cancelamento sucessivo de sessões de julgamento, o que ocasionou o prolongamento indefinido/“eternizando” a existência de inúmeros processos.”

Ambos os casos, em que pese sejam igualmente pedidos de suspensão de liminar em habeas corpus, tem no objeto do mandamus original um ponto específico: atos do poder público. No primeiro, o estabelecimento (federal ou estadual) para o prosseguimento da execução penal. No segundo, a reestruturação cênica dos plenários do Tribunal do Júri. Nenhuma versava diretamente sobre cerceamento imediato do direito de ir e vir.
Situação distinta do que ocorreu na SL 1395, julgada em 2020 pelo próprio min. Luiz Fux. Ali, a partir de pedido formulado pela Procuradoria-Geral da República, pugnava-se pela suspensão de ordem liminar em habeas corpus concedido pelo Min. Marco Aurélio ao paciente alcunhado “André do Rap”, supostamente líder de uma das maiores organizações criminosas do país. A discussão versava sobre se a ausência de revisão periódica da prisão preventiva, advinda com a Lei nº 13.964/19, implicaria ou não a revogação automática da prisão.
Note-se que, em que pese versasse este último caso de habeas corpus liberatório, tampouco se assemelha ao caso da boate Kiss. A liminar cassada por decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal havia sido concedida por outro ministro da mesma Corte. Em que pese a discussão sobre a legitimidade de o presidente, monocraticamente, suspender decisão de outro ministro, distingue-se por completo do caso atual oriundo do TJRS, em que a postulação se deu per saltum.
Curiosamente, vale relembrar, a Súmula 691 do próprio Supremo Tribunal Federal veda o conhecimento de habeas corpus impetrado contra decisão monocrática. No mesmo sentido, por coerência sistêmica, imperativo também seria o não conhecimento de pleito acusatório.
Importante, então, deixar claro: os precedentes citados não guardam qualquer relação concreta com o caso da boate Kiss.
No mérito, fundamentou o órgão de acusação gaúcho nos votos - ainda em discussão - divulgados acerca do RE 1.235.340, nas decisões monocráticas proferidas nas ADIs 6735 e 6783, bem como em suposta ofensa do Desembargador atacado à cláusula de reserva de plenário, sendo necessário o respeito às decisões colegiadas do TJRS, e infirma violações à ordem e à segurança jurídica, à ordem social e à paz pública.
Em menos de um dia, o min. Luiz Fux deferiu a suspensão da liminar pleiteada. Para fundamentar o conhecimento do pleito, fundamentou no art. 297 do Regimento Interno do STF, no art. 4º da Lei nº 8.437/92 e no art. 15 da Lei nº 12.016/09 (que versa sobre o mandado de segurança), bem como indicou como precedentes os seguintes julgados: SS 846 AgR, SS 5049 AgR, SL 1165 AgR, STA 782 AgR, SS 5112 AgR, STA 729 AgR e STA 152 AgR. Distinguishing novamente necessário:
- A SS 846 AgR (Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 29/05/1996) era em face de mandado de segurança, que versava sobre a equiparação e os vencimentos dos policiais civis e militares do Distrito Federal;
- A SS 5049 Agr (Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 22/10/2015) versava sobre ação reintegratória de posse que implicava na retirada de comunidade indígena em terras sob litígio;
- A SL 1165 AgR (Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 13/02/2020) era sobre o distanciamento de veículos em corredores exclusivos de ônibus. Consignou o presidente que “é inadmissível, ademais, o uso da suspensão como sucedâneo recursal”;
- A STA 782 AgR (Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 26/02/2015) versava sobre determinação à Companhia Paulista de Força e Luz a realizar limpezas em áreas ocupadas;
- A SS 5112 AgR (Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 07/04/2017) tratava de discussão sobre pagamento de precatórios ao Instituto de Previdência do Estado de Santa Catarina;
- A STA 729 AgR (Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 22/10/2013) também tinha como parte o Instituto de Previdência de Santa Catarina, que discutia a constitucionalidade dos arts. 206, inc. VI, e 212, inc. I, da lei estadual 6.843/1986;
- A STA 152 AgR (Rel. Min. Ellen Gracie, j. 10/03/2008), por fim, tinha por objeto suspensão de pagamento de taxa de limpeza pública.
Importante assentar, mais uma vez, que nenhum dos precedentes apontados na decisão do min. Luiz Fux guarda qualquer similitude fática com o caso da boate Kiss.
No mérito, trouxe à tona o entendimento assentado no ARE 964.246[6], bem como a nova redação do art. 492, §4º, CPP, afirmando que a decisão liminar atacada teria se dado “ao arrepio da lei e da jurisprudência”, e afirmou verificar “elevada culpabilidade em concreto dos réus”.
Ocorre, porém, que o Supremo Tribunal Federal não tomou ainda decisão colegiada acerca da constitucionalidade da nova redação do art. 492 no tocante à execução imediata da pena. O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, tem entendimento já pacífico em ambas as turmas que julgam matéria penal, e ambas no mesmo sentido: não se admite a execução antecipada da pena[7].
Em face da decisão, porém, se apresentaram voluntariamente os acusados para darem cumprimento à ordem de prisão. Um deles, ao arrepio da Súmula Vinculante nº 11 e da determinação expressa do magistrado de primeiro grau, foi algemado. Ao arrepio da Lei nº 13.869/18, foi exibido como troféu para a imprensa.
Na tarde de quinta feira, 16/12, iniciou o julgamento do mérito do habeas corpus. Em sessão virtual, disponibilizaram-se dois votos, ambos pela concessão da ordem. Se um dos fundamentos do pleito ministerial era violação ao princípio da colegialidade, agora tal argumento já cairia por terra. No entanto, em face disso, o órgão acusador do Rio Grande do Sul protocolou nova petição, nos mesmo autos de SL 1504 MC: em vista da provável concessão da ordem, requereu a concessão de provimento preventivo a fim de impedir eventual concessão de Habeas Corpus pelo TJRS, afirmando que o decreto prisional vigente seria de competência do STF.
Para o espanto da comunidade jurídica, o ministro presidente do Supremo Tribunal Federal deferiu o pedido, para sustar os efeitos de eventual concessão de Habeas Corpus pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, até o trânsito em julgado da ação.
O que se verifica é absolutamente estarrecedor.
A uma, pela inaplicabilidade da Lei nº 8.437/92 a processos criminais, eis que versa expressamente sobre atos do poder público.
A duas, pela impossibilidade de conhecimento de pedido formulado per saltum, desrespeitando o trâmite recursal ordinário.
A três, pela absoluta discrepância entre os precedentes citados e o caso concreto.
A quatro, pela impossibilidade de execução imediata da pena, nos termos do decidido nas ADCs 43, 44 e 54, bem como na recente jurisprudência pacífica do STJ.
A cinco, pela grave violação às garantias constitucionais de presunção de inocência e devido processo legal.
A seis, pela constatação de um arbitrário poder monocrático, exercido pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, contra o qual o Plenário da Corte deve se insurgir.
Em 13 de dezembro de 1968 foi promulgado o Ato Institucional nº 5, que permitia ao Presidente da República exercer seus poderes “sem as limitações previstas na Constituição”, bem como suspendia a ordem de habeas corpus.
Em 13 de dezembro de 2021 o Ministério Público do Rio Grande do Sul protocolou pedido que escancarou uma atuação do Presidente do STF fora das limitações previstas na Constituição, e suspendendo ordem futura de habeas corpus.
A potencialização exponencial dos poderes monocráticos dos ministros ultrapassou todos os limites admissíveis ao Estado Democrático de Direito. Uma revisão urge. Por mais nobres que pudessem ser as intenções individuais, são absolutamente incompatíveis com a democracia.
Por enquanto, a cada dia se torna mais necessário responder à indagação da sexta sátira de Juvenal: quis custodiet ipsos custodes?



Khalil Vieira Proença Aquim
Advogado criminalista
Professor de direito penal da faculdade inspirar
Especialista em direito penal e processual penal
Membro do conselho estadual da associação paranaense dos advogados criminalistas (Apacrimi)
Ex presidente da comissão de advogados iniciantes OAB PR (2016/2018).



NOTAS:
[1] Artigos 2º, 3º e 4º.

[2] Art. 5º.

[3] Art. 6º.

[4] Art. 7º.

[5] https://www.conjur.com.br/2021-dez-15/alberto-toron-justica-todos-boate-kiss

[6] Julgado em 2016, e cujo entendimento foi superado pelo superveniente julgamento das ADCs 43, 44 e 54.

[7] https://www.conjur.com.br/2021-nov-13/tribunal-juri-execucao-provisoria-pena-tribunal-juri


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As novas regras da PGFN para elaboração de representações fiscais para fins penais

Por Thiago Diniz Nicolai e Natália Di Maio

Há pouco mais de três anos, a Receita Federal do Brasil editou a Portaria RFB nº 1.750/2018, que apresentou nova sistemática para a elaboração de representação fiscal para fins penais referente a crimes contra a ordem tributária, contra a Previdência Social, de contrabando ou descaminho, contra a Administração Pública Federal, em detrimento da Fazenda Nacional ou contra administração pública estrangeira, de falsidade de títulos, papéis e documentos públicos e de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores, e sobre representação referente a atos de improbidade administrativa.

Referida norma, além de expor a forma a ser seguida e o que seria obrigatório em termos de conteúdo e documentos instrutórios, ainda contém requisitos de essencial importância, relacionados a prazos para encaminhamento e hipóteses de exceção.

Prevê, por exemplo, o artigo 10, caput — em consonância com a Súmula Vinculante nº 24 do Supremo Tribunal Federal —, que representações fiscais para fins penais relativas a crimes contra a ordem tributária ou contra a Previdência Social devem "permanecer no âmbito da unidade responsável pelo controle do processo administrativo fiscal até a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente". A única hipótese de envio ao MPF antes desse prazo estava relacionada a casos excepcionais de contrabando e descaminho (conforme artigo 10, §1º, artigo 12, §2º, e artigo 15, IV, da referida portaria).

Já o §2º do mesmo artigo determina que, "na hipótese prevista no caput, se o crédito tributário correspondente ao ilícito penal for integralmente extinto por decisão administrativa ou pelo pagamento, os autos da representação, juntamente com cópia da respectiva decisão administrativa, deverão ser arquivados".

A despeito de a matéria estar amplamente positivada, contudo, no último dia 13 de outubro a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional publicou a Portaria nº 12.072/2021 para estabelecer "os procedimentos de envio das representações para fins penais aos órgãos de persecução penal" e dispor "sobre a atuação na esfera penal, da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional", assunto este nunca debatido até então.

Ocorre, no entanto, que tal portaria trouxe diversos pontos que colidem com outras normas e o entendimento jurisprudencial vigente.

O mais grave deles é o fato de não consignar a necessidade de o encaminhamento da representação ter de aguardar o término do processo administrativo relacionado a crimes contra a ordem tributária, em absoluta afronta à Súmula Vinculante nº 24 do STF e ao texto expresso dos artigo 83, caput, e §1º da Lei nº 9.430/96 [1] e do Decreto nº 2.730/98 [2].

Pelo contrário, a nova norma — que não revoga a anterior, pois formulada por órgão distinto — dispõe em sentido diverso, sobre a necessidade de encaminhamento das representações em até 60 dias, contados do encerramento de investigação feita pela Fazenda Nacional ou da ciência dos fatos, na hipótese de o procurador fiscal entender dispensáveis as diligências investigativas ou "se mostrar conveniente e oportuno o encaminhamento imediato" (artigo 3, I e II). Entretanto, a portaria não impõe limites ao entendimento do que seria "conveniente e oportuno", abrindo, assim, possibilidade para que a Fazenda Nacional dite as regras como bem entender.

Mas não é só isso, e não é preciso um raciocínio muito profundo para perceber os demais problemas intrínsecos às novas disposições normativas. Numa análise rasa, estamos diante desde a afronta direta a texto de súmula vinculante até questões de ordem processual, tendo em vista o previsível aumento de reclamações junto ao STF nos casos em que inquéritos policiais forem instaurados para apurar crimes materiais contra a ordem tributária sem que o débito esteja definitivamente constituído, por exemplo.

Nem mesmo casos em que o débito for parcelado foram excluídos da discricionariedade fiscal, já que, nessas hipóteses, o prazo de 60 dias será contado do restabelecimento da exigibilidade, "salvo se houver indicativo de concurso de crimes com outras espécies delitivas, caso em que será aplicada a regra geral do caput deste artigo" (artigo 3º, §1º).

Nesse ponto, a norma aumenta de maneira vertiginosa os poderes dos procuradores da Fazenda, que agora terão a possibilidade e a discricionariedade de decidir se, além do delito fiscal, há indícios de eventual lavagem de capitais, falsidades, crimes contra a Administração Pública etc.

Outra novidade é a possibilidade de a Procuradoria da Fazenda Nacional poder recorrer de arquivamentos de representações fiscais feitos pelo Ministério Público Federal (artigo 5º), providência prevista pela primeira vez, tal qual a possibilidade de o Fisco se tornar assistente do MPF em ações penais (artigo 6º, caput), participar ativamente em colaborações premiadas (artigo 6º, §2º) e oferecer ação penal privada subsidiária da pública em caso de inércia ministerial (artigo 7º).

Primeiramente, a possibilidade de recurso do arquivamento está fundamentada no artigo 28, §1º, do Código de Processo Penal. Entretanto, tal norma está com sua vigência suspensa, em razão de decisão liminar proferida Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.305/DF, sem previsão de julgamento. Não bastasse isso, a legislação fala em possibilidade de recurso da vítima, cabendo aqui, ainda, uma discussão sobre se a PGFN seria vítima de delitos tributários — o que não nos parece o caso.

Noutro passo, a figura dos assistentes é prevista nos artigos 268 a 273 do CPP, que autorizam a intervenção, em todos os termos da ação pública, do ofendido ou de seu representante legal. E quando se fala em "ofendido", quer-se dizer a vítima pessoa física ou quem lhe represente. Como ensina Aury Lopes Jr., a possibilidade de que órgãos ou entidades sejam assistentes da acusação só é relativizado em casos excepcionais e previstos em lei de forma expressa [3], como acontece com a CVM e o Banco Central nas Leis nº 6.385/79 e 7.492/86.

Para que a PGFN pudesse cogitar auxiliar formalmente o MPF em ações penais, seria preciso haver uma alteração legislativa prevendo essa hipótese, alteração essa que não pode, nunca, ser substituída por uma portaria do órgão fiscal.

O mesmo entendimento deve ser aplicado para a participação ativa do Fisco em procedimentos de colaboração premiada, ante a sua ilegitimidade para atuação em processos criminais. No entanto, visando a celeridade, transparência e segurança jurídica, nada impede que exista uma negociação conjunta do acordo em matéria penal com uma transação tributária, em consonância com o disposto na Lei nº 13.988/20 [4].

Como se pode perceber, o texto proposto pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional destoa não só de dispositivos legais e da jurisprudência, como da própria Secretaria da Receita Federal do Brasil, entidade que está hierarquicamente pareada a ela dentro do Ministério da Fazenda. Ora, não é possível que dois órgãos fiscais tenham entendimentos diferentes sobre um mesmo assunto; que o fiscal da RFB fale uma coisa enquanto o Procurador da PGFN pensa de forma diversa. É preciso que a União esteja alinhada numa posição única, e, diante do quanto exposto neste artigo, não nos parece que a melhor saída seja tomar a posição da Portaria nº 12.072/21 como norte.


[1] Nos termos dos quais "a representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária previstos nos artigos 1º e 2º da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e aos crimes contra a Previdência Social, previstos nos artigos 168-A e 337-A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), será encaminhada ao Ministério Público depois de proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente". "Na hipótese de concessão de parcelamento do crédito tributário, a representação fiscal para fins penais somente será encaminhada ao Ministério Público após a exclusão da pessoa física ou jurídica do parcelamento".

[2] "Artigo 1º - O Auditor-Fiscal do Tesouro Nacional formalizará representação fiscal, para os fins do artigo 83 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, em autos separados e protocolizada na mesma data da lavratura do auto de infração, sempre que, no curso de ação fiscal de que resulte lavratura de auto de infração de exigência de crédito de tributos e contribuições administrados pela Secretaria da Receita Federal do Ministério da Fazenda ou decorrente de apreensão de bens sujeitos à pena de perdimento, constatar fato que configure, em tese; I - crime contra a ordem tributária tipificado nos artigos 1º e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990; II - crime de contrabando ou descaminho. Artigo 2º Encerrado o processo administrativo-fiscal, os autos da representação fiscal para fins penais serão remetidos ao Ministério Público Federal, se: I - mantida a imputação de multa agravada, o crédito de tributos e contribuições, inclusive acessórios, não for extinto pelo pagamento; II - aplicada, administrativamente, a pena de perdimento de bens, estiver configurado em tese, crime de contrabando ou descaminho".

[3] Direito Processual Penal, 17ª ed., Saraiva, São Paulo, 2020, p. 613. Isso sem contar, como segue o professor, que "se o crime for praticado em detrimento do patrimônio ou interesse da União, Estado e Município, a ação penal será de iniciativa pública. Logo, quem defende em juízo os interesses do órgão público afetado é o Ministério Público, sendo sem sentido (salvo para gerar desequilíbrio processual e contaminar o processo com o sentimento de vingança) admitir-se a assistência. Do contrário, teríamos que admitir que o Ministério Público é negligente na tutela do patrimônio público, o que seria um contrassenso" (Opus citatum, p. 613/614).

[4] "Artigo 1º - Esta Lei estabelece os requisitos e as condições para que a União, as suas autarquias e fundações, e os devedores ou as partes adversas realizem transação resolutiva de litígio relativo à cobrança de créditos da Fazenda Pública, de natureza tributária ou não tributária".


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Considerações sobre o chamado jurado 'suplente'

Por Adriano Bretas

Entre a teoria e a prática, têm sido convencionadas adaptações que moldam a realidade. A teoria sem a prática é um encastelamento dogmático estéril. A prática sem a teoria cavalga no campo da temeridade. É, pois, na intersecção entre a legalidade e a sua aplicação que se modulam a doutrina e a jurisprudência.

Isso não muda em relação à figura do jurado dito "suplente".

Fixemos algumas premissas.

De acordo com o CPP, dez a 15 dias úteis antes do início da reunião periódica do Tribunal do Júri deve ser realizado o sorteio de jurados (artigo 433, parágrafo 1º). Premissa um.

Ainda de acordo com o CPP, nessa ocasião, devem ser sorteados 25 jurados (artigo 433, caput). Premissa dois.

Do mesmo modo, conforme o CPP, no dia do júri, devem comparecer, pelo menos, 15 jurados (artigo 463) para a instalação dos trabalhos, dos quais serão sorteados os sete para compor o conselho de sentença. Premissa três.

Pois bem.

Até aqui, a legislação não prevê a figura do chamado jurado suplente. Do ponto de vista legal, conforme o artigo 464, o jurado dito suplente só passa a entrar em cena a partir do momento em que não houver quórum para instalação dos trabalhos, situação em que o juiz deverá sorteá-los e designar nova data para o júri.

Isso é o que prevê a lei.

Mas não é o que tem sido feito Brasil afora.

práxis tem convencionado algo distinto. A doutrina [1] (Avelar e Faucz) e a jurisprudência (TJ-PR [2]) já consagraram a prática de sortear os jurados suplentes desde o sorteio primitivo dos 25 jurados iniciais. Convencionaram-se, assim, duas categorias de jurados: os titulares e os suplentes.

No dia do júri, todos — titulares e suplentes — têm o dever de comparecer. Essa prática tem evitado o chamado estouro de urna e a consequente redesignação de diversos júris.

Perfeito.

À figura do jurado suplente, em si, nenhuma objeção.

À possibilidade de o jurado suplente ser sorteado na mesma ocasião em que são sorteados os titulares, mesmo que a lei defina outra oportunidade, também, nenhuma objeção.

Todavia, algumas questões práticas têm causado preocupação.

A primeira questão (a menos preocupante, na verdade) concerne ao número de jurados suplentes. Em alguns casos práticos, tem-se sorteado mais suplentes do que titulares. Vinte e cinco são os titulares. Há situações em que os suplentes somam mais de 30. Com base em qual critério são sorteados 35 suplentes? Por que não 25? Ou 93? Ou 327? Seja como for, consoante dito acima, essa questão é a menos preocupante.

Outra questão (esta, sim, relevante) diz respeito à ocasião em que o jurado suplente passa a integrar o universo de jurados potencialmente sorteáveis para a composição do conselho de sentença. Na prática, jurados titulares e jurados suplentes acabam se misturando no mesmo elenco. Assim, se existem 25 jurados titulares e outros tantos 35 suplentes, o juiz sorteia um a um do universo de 60 jurados.

Isso é inaceitável.

O correto seria que os jurados suplentes só passassem a figurar no universo de jurados potencialmente sorteáveis a partir do momento em que os titulares faltassem ao comparecimento do júri. Aliás, foi exatamente assim que se fez ainda há pouco no rumoroso caso da boate Kiss.

E aí duas possibilidades poderiam ser abertas.

A primeira possibilidade é que os jurados suplentes só fossem acionados a partir do momento em que faltasse o quorum de pelo menos 15 jurados presentes para a instalação dos trabalhos. Se comparecerem, por exemplo, 13 jurados titulares, dois suplentes seriam escalados para compor o quórum de 15 jurados para a instalação dos trabalhos.

A segunda possibilidade é que os jurados suplentes pudessem ser acionados desde o momento em que faltasse um dos 25 jurados titulares. Se comparecerem, por exemplo, 20 jurados, cinco suplentes seriam escalados para compor o número de 25 jurados sorteáveis para o conselho de sentença.

A primeira solução nos parece a mais acertada.

De todo modo, seja pela primeira possibilidade (15 jurados), seja pela segunda possibilidade (25 jurados), não se pode aceitar que jurados titulares e jurados suplentes componham um universo indistinto de pessoas potencialmente sorteáveis para integrar o conselho de sentença.

Não se pretende o estouro de urna.

Não se pretende adiamentos de júris.

O que não se admite é que jurados suplentes funcionem como se titulares fossem.

Mas, aqui, outra ordem de preocupação: qual o critério para se escalar tal ou qual jurado suplente?

Uma das alternativas seria sortear, entre os suplentes, os nomes que passarão a integrar o universo dos que serão posteriormente sorteados para o conselho de sentença. Haveria, assim, três sorteios. O primeiro, de dez a 15 dias úteis antes do início da reunião periódica, sortearia titulares e suplentes. O segundo, no dia do júri, sortearia suplentes para compor o universo de potenciais jurados efetivos. E o terceiro, finalmente, sortearia os jurados que farão parte do conselho de sentença. Parece-nos uma inovação um tanto ousada.

Outra alternativa seria tomar, entre os suplentes, os primeiros nomes que figuram na ordem da lista do sorteio inicial. Parece-nos o mais razoável.

Uma terceira preocupação é que, durante a pandemia, inaugurou-se uma terceira figura: o jurado dito complementar.

Nem titular, nem suplente.

Existe uma lista de jurados titulares e uma lista de jurados suplentes (sorteados com a antecedência que o código define). E existe uma lista de jurados ditos complementares que são sorteados às vésperas do júri, fora do prazo preconizado em lei, sob o argumento de que a pandemia tem acarretado muitas ausências de jurados.

Assim, todos os jurados — titulares, suplentes e complementares — passam a integrar o universo de jurados que são sorteados para compor o conselho de sentença.

Titulares: 25. Sorteados com a antecedência legal. Tudo bem.

Suplentes: às vezes 20, 30 ou até mais. Sorteados com a antecedência legal. Não é bem o que define o código, mas tem lá o seu respaldo doutrinário e jurisprudencial. Passa. Com ressalvas: de forma subsidiária aos titulares.

Complementares: por vezes, 20. Sorteados a destempo. Um absurdo.

Somados, titulares, suplentes e complementares, os jurados chegam a alcançar um universo da casa de 80 pessoas. 80!

Mais do que o triplo dos 25 previstos em lei.

E o prejuízo decola do fato de que as recusas imotivadas permanecem sendo três. Uma coisa é recusar três jurados de um universo de 25. Uma coisa é recusar três jurados de um universo de 15 — o que equivale a 20% do universo dos sorteáveis.

Outra coisa, bem distinta, é recusar três jurados de um universo de 80. As recusas acabam se diluindo num contingente muito mais amplo.

Essas preocupações todas acabam tendo profundas ressonâncias num princípio basilar de um processo penal de base garantista: o juiz natural da causa. É direito de todo jurisdicionado saber, de antemão, os critérios que definem quem vai lhe julgar. A existência de critérios prévios, definidos em lei, para a definição de quem vai julgar a causa, constitui garantia processual intransponível. Desbordar esses limites espanca de morte a espinha dorsal de princípios que garantem a segurança jurídica do jurisdicionado.

Nem se alegue que a prática já está consagrada pelo uso.

O certo é certo. O errado é errado.

O certo é certo, mesmo que nunca tenha sido feito.

O errado é errado, mesmo que sempre tenha sido feito.

Se a realidade posta está errada, que seja corrigida. Errar é humano. Permanecer no erro é teimosia.


[1] AVELAR, Daniel Ribeiro Surdi de e SILVA, Rodrigo Faucz Pereira e. Plenário do Tribunal do Júri. São Paulo: RT, 2020, p. 40.

[2] Correição Parcial nº 0005257-58.2018.8.16.0000.


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